CONTOS FLUMINENSES MACHADO DE ASSIS CONTOS FLUMINENSES MISS DOLLAR LUIZ SOARES — A MULHER DE PRETO O SEGREDO DE AUGUSTA CONFISSÕES DE UMA VIÚVA MOÇA FREI SIMÃO LINHA RECTA E LINHA CURVA H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR 71, RUA MOREIRA CESAR, 71 | 6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6 RIO DE JANEIRO PARIS MISS DOLLAR I Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentação de Miss Dollar, seria o autor obrigado a longas digressões, que encheriam o papel sem adiantar a acção. Não ha hesitação possivel: vou apresentar-lhes Miss Dollar. Se o leitor é rapaz e dado ao genio melancólico, imagina que Miss Dollar é uma ingleza pallida e delgada, escassa de carnes e de sangue, abrindo á flôr do rosto dous grandes olhos azues e sacudindo ao vento umas longas tranças louras. A moça em questão deve ser vaporosa e ideal como uma creação de Shakspeare; deve ser o contraste do roast-beef britannico, com que se alimenta a liberdade do Reino-Unido. Uma tal Miss Dollar deve ter o poeta Tennyson de cór e ler Lamartine no original, se souber o portuguez deve deliciar-se com a leitura dos sonetos de Camões ou os Cantos de Gonçalves Dias. O chá e o leite devem ser a alimentação de semelhante creatura, addicionando-se-lhe alguns confeitos e biscoutos para acudir ás urgencias do estomago. A sua falla deve ser um murmurio de harpa eolea; o seu amor um desmaio, a sua vida uma contemplação, a sua morte um suspiro. A figura é poética, mas não é a da heroina do romance. Supponhamos que o leitor não é dado a estes devaneios e melancolias; n’esse caso imagina uma Miss Dollar totalmente differente da outra. Desta vez será uma robusta Americana, vertendo sangue pelas faces, formas arredondadas, olhos vivos e ardentes, mulher feita, refeita e perfeita. Amiga da boa mesa e do bom copo, esta Miss Dollar preferirá um quarto de carneiro a uma pagina de Longfellow, cousa naturalissima quando o estomago reclama, e nunca chegará a comprehender a poesia do pôr do sol. Será uma boa mãe de familia segundo a doutrina de alguns padres-mestres da civilisação, isto é, fecunda e ignorante. Já não será do mesmo sentir o leitor que tiver passado a segunda mocidade e vir diante de si uma velhice sem recurso. Para esse, a Miss Dollar verdadeiramente digna de ser contada em algumas paginas, seria uma boa ingleza de cincoenta annos, dotada com algumas mil libras esterlinas, e que, aportando ao Brasil em procura de assumpto para escrever um romance, realisasse um romance verdadeiro, casando com o leitor alludido. Uma tal Miss Dollar seria incompleta se não tivesse oculos verdes e um grande cacho de cabello grisalho em cada fonte. Luvas de renda branca e chapéo de linho em forma de cuia, seriam a ultima demão d’este magnifico typo de ultra-mar. Mais experto que os outros, acode um leitor dizendo que a heroina do romance não é nem foi ingleza, mas Brasileira dos quatro costados, e que o nome de Miss Dollar quer dizer simplesmente que a rapariga é rica. A descoberta seria excellente, se fosse exacta; infelizmente nem esta nem as outras são exactas. A Miss Dollar do romance não é a menina romantica, nem a mulher robusta, nem a velha litterata, nem a Brasileira rica. Falha d’esta vez a proverbial perspicácia dos leitores; Miss Dollar é uma cadellinha galga. Para algumas pessoas a qualidade da heroina fará perder o interesse do romance. Erro manifesto. Miss Dollar, apezar de não ser mais que uma cadellinha galga, teve as honras de ver o seu nome nos papéis públicos, antes de entrar para este livro. O Jornal do Commercio e o Correio Mercantil publicaram nas columnas dos annuncios as seguintes linhas reverberantes de promessa: « Desencaminhou-se uma cadellinha galga, na noite de hontem, 30. Acode ao nome de Miss Dollar. Quem a achou e quizer levar á rua de Matacavallos nº..., receberá duzentos mil réis de recompensa. Miss Dollar tem uma colleira ao pescoço fechada por um cadeado em que se lêem as seguintes palavras: « De tout mon coeur. » Todas as pessoas que sentiam necessidade urgente de duzentos mil réis, e tiveram a felicidade de ler aquelle annuncio, andaram n’esse dia com extremo cuidado nas ruas do Rio de Janeiro, a ver se davam com a fugitiva Miss Dollar. Galgo que apparecesse ao longe era perseguido com tenacidade até verificar-se que não era o animal procurado. Mas toda esta caçada dos duzentos mil réis era completamente inútil, visto que, no dia em que appareceu o annuncio, já Miss Dollar estava aboletada na casa de um sujeito morador nos Cajueiros que fazia collecção de cães. II Quaes as razões que induziram o Dr. Mendonça a fazer collecção de cães, é cousa que ninguém podia dizer; uns queriam que fosse simplesmente paixão por esse symbolo da fidelidade ou do servilismo; outros pensavam antes que, cheio de profundo desgosto pelos homens, Mendonça achou que era de boa guerra adorar os cães. Fossem quaes fossem as razões, o certo é que ninguém possuia mais bonita e variada collecção do que elle. Tinha-os de todas as raças, tamanhos e cores. Cuidava d’elles como se fossem seus filhos; se algum lhe morria ficava melancólico. Quasi se póde dizer que, no espirito de Mendonça, o cão pesava tanto como o amor, segundo uma expressão celebre: tirai do mundo o cão, e o mundo será um ermo. O leitor superficial conclue d’aqui que o nosso Mendonça era um homem excêntrico. Não era. Mendonça era um homem como os outros; gostava de cães como outros gostam de flôres. Os cães eram as suas rosas e violetas; cultivava-os com o mesmissimo esmero. De llòres gostava também; mas gostava d’ellas nas plantas em que nasciam: cortar um jasmin ou prender um canario parecia-lhe idêntico attentado. Era o Dr. Mendonça homem de seus trinta e quatro annos, bem apessoado, maneiras francas e distinctas. Tinha-se formado em medicina e tratou algum tempo de doentes; a clinica estava já adiantada quando sobreveio uma epidemia na capital; o Dr. Mendonça inventou um elixir contra a doença; e tão excellente era o elixir, que o autor ganhou um bom par de contos de réis. Agora exercia a medicina como amador. Tinha quanto bastava para si e a familia. A familia compunha-se dos animaes citados acima. Na memorável noite em que se desencaminhou Miss Dollar, voltava Mendonça para casa quando teve a ventura de encontrar a fugitiva no Rocio. A cadellinha entrou a acompanhal-o, e elle, notando que era animal sem dono visivel, levou-a comsigo para os Cajueiros. Apenas entrou em casa examinou cuidadosamente a cadellinha. Miss Dollar era realmente um mimo; tinha as formas delgadas e graciosas da sua fidalga raça; os olhos castanhos e avelludados pareciam exprimir a mais completa felicidade d’este mundo, tão alegres e serenos eram. Mendonça contemplou-a e examinou minuciosamente. Leu o distico do cadeado que fechava a colleira, e convenceu-se finalmente de que a cadellinha era animal de grande estimação da parte de quem quer que fosse dono d’ella. — Se não apparecer o dono, fica comigo, disse elle entregando Miss Dollar ao moleque encarregado dos cães. Tratou o moleque de dar comida a Miss Dollar, emquanto Mendonça planeava um bom futuro a nova hospede, cuja familia devia perpetuar-se na casa. O plano de Mendonça durou o que duram os sonhos: o espaço de uma noite. No dia seguinte, lendo os jornaes, vio o annuncio transcripto acima, promettendo duzentos mil réis a quem entregasse a cadellinha fugitiva. A sua paixão pelos cães deu-lhe a medida da dôr que devia soffrer o dono ou dona de Miss Dollar, visto que chegava a offerecer duzentos mil réis de gratificação a quem apresentasse a galga. Consequentemente resolveu restituil-a, com bastante mágoa do coração. Chegou a hesitar por alguns instantes; mas a final venceram os sentimentos de probidade e compaixão, que eram o apanagio d’aquella alma. E, como se lhe custasse despedir-se do animal, ainda recente na casa, dispôz-se a leval-o elle mesmo, e para esse fim preparou-se. Almoçou, e depois de averiguar bem se Miss Dollar havia feito a mesma operação, sahiram ambos de casa com direcção a Matacavallos. N’aquelle tempo ainda o barão do Amazonas não tinha salvo a independencia das republicas platinas mediante a victoria de Riachuelo, nome com que depois a camara municipal chrismou a rua de Matacavallos. Vigorava, portanto, o nome tradicional da rua, que não queria dizer cousa nenhuma de geito. A casa que tinha o numero indicado no annuncio era de bonita apparencia e indicava certa abastança nos haveres de quem lá morasse. Antes mesmo que Mendonça batesse palmas no corredor, já Miss Dollar, reconhecendo os patrios lares, começava a pular de contente e a soltar uns sons alegres e gutturaes que, se houvesse entre os cães litteratura, deviam ser um hymno de acção de graças. Veio um moleque saber quem estava; Mendonça disse que vinha restituir a galga fugitiva. Expansão do rosto do moleque, que correu a annunciar a boa nova. Miss Dollar, aproveitando uma fresta, precipitou-se pelas escadas acima. Dispunha-se Mendonça a descer, pois estava cumprida a sua tarefa, quando o moleque voltou dizendo-lhe que subisse e entrasse para a sala. Na sala não havia ninguém. Algumas pessoas, que têm salas elegantemente dispostas, costumam deixar tempo de serem estas admiradas pelas visitas, antes de as virem comprimentar. É possivel que esse fosse o costume dos donos d’aquella casa, mas d’esta vez não se cuidou em semelhante cousa, porque mal o medico entrou pela porta do corredor surgio de outra interior uma velha com Miss Dollar nos braços e a alegria no rosto. — Queira ter a bondade de sentar-se, disse ella designando uma cadeira a Mendonça. — A minha demora é pequena, disse o medico sentando-se. Vim trazer-lhe a cadellinha que está commigo desde hontem... — Não imagina que desassocego causou cá em casa a ausência de Miss Dollar... — Imagino, minha senhora; eu também sou apreciador de cães, e se me faltasse um sentiria profundamente. A sua Miss Dollar... — Perdão! interrompeu a velha; minha não; Miss Dollar não é minha, e de minha sobrinha. — Ahl... — Ella ahi vem. Mendonça levantou-se justamente quando entrava na sala a sobrinha em questão. Era uma moça que representava vinte e oito annos, no pleno desenvolvimento da sua belleza, uma d’essas mulheres que annunciam velhice tardia e imponente. O vestido de seda escura dava singular realce á côr immensamente branca da sua pelle. Era roçagante o vestido, o que lhe augmentava a magestade do porte e da estatura. O corpinho do vestido cobria-lhe todo o collo; mas adivinhava-se por baixo da seda um bello tronco de mármore modelado por esculptor divino. Os cabellos castanhos e naturalmente ondeados estavam penteados com essa simplicidade caseira, que é a melhor de todas as modas conhecidas; ornavam-lhe graciosamente a fronte como uma corôa doada pela natureza. A extrema brancura da pelle não tinha o menor tom côr de rosa que lhe fizesse harmonia e contraste. A boca era pequena, e tinha uma certa expressão imperiosa. Mas a grande distincção d’aquelle rosto, aquillo que mais prendia os olhos, eram os olhos; imaginem duas esmeraldas nadando em leite. Mendonça nunca vira olhos verdes em toda a sua vida; disseram-lhe que existiam olhos verdes, e elle sabia de cór uns versos celebres de Gonçalves Dias; mas até então os olhos eram para elle a mesma cousa que a phénix dos antigos. Um dia, conversando com uns amigos a proposito d’isto, affirmava que se alguma vez encontrasse um par de olhos verdes fugiria d’elles com terror. — Porque? perguntou-lhe um dos circumstantes admirado. — A côr verde é a còr do mar, respondeu Mendonça; evito as tempestades de um; evitarei as tempestades dos outros. Eu deixo ao critério do leitor esta singularidade de Mendonça, que de mais a mais é preciosa no sentido de Molière. III Mendonça comprimentou respeitosamente a recem-chegada, e esta, com um gesto, convidou-o a sentar-se outra vez. — Agradeço-lhe infinitamente o ter-me restituído este pobre animal, que me merece grande estima, disse Margarida sentando-se. — E eu dou graças a Deus por tel-o achado; podia ter cabido em mãos que o não restituíssem. Margarida fez um gesto a Miss Dollar, e a cadellinha, saltando do regaço da velha, foi ter com Margarida; levantou as patas dianteiras e poz-lh’as sobre os joelhos; Margarida e Miss Dollar trocaram um longo olhar de affecto. Durante esse tempo uma das mãos da moça brincava com uma das orelhas da galga, e dava assim lugar a que Mendonça admirasse os seus bellissimos dedos armados com unhas agudíssimas. Mas, comquanto Mendonça tivesse summo prazer em estar alli, reparou que era exquisita e humilhante a sua demora. Pareceria estar esperando a gratificação. Para escapar a essa interpretação desairosa, sacrificou o prazer da conversa e a contemplação da moça ; levantou-se dizendo: — A minha missão está cumprida... — Mas... interrompeu a velha. Mendonça comprehendeu a ameaça da interrupção da velha. — A alegria, disse elle, que restitui a esta casa é a maior recompensa que eu podia ambicionar. Agora peço-lhes licença... As duas senhoras comprehenderam a intenção de Mendonça; a moça pagou-lhe a cortezia com um sorriso; e a velha, reunindo no pulso quantas forças ainda lhe restavam pelo corpo todo, apertou com amizade a mão do rapaz. Mendonça sahio impressionado pela interessante Margarida. Notava-lhe principalmente, além da belleza, que era de primeira agua, certa severidade triste no olhar e nos modos. Se aquillo era caracter da moça, dava-se bem com a indole de medico; se era resultado de algum episodio da vida, era uma pagina do romance que devia ser decifrada por olhos habeis. A fallar verdade, o unico defeito que Mendonça lhe achou foi a cor dos olhos, não porque a còr fosse feia, mas porque elle tinha prevenção contra os olhos verdes. A prevenção, cumpre dizel-o, era mais litteraria que outra cousa; Mendonça apegava-se á phrase que uma vez proferira, e foi acima citada, e a phrase é quo lhe produzio a prevenção. Não m’o accusem de chofre; Mendonça era homem intelligente, instruido e dotado de horn senso; tinha, além d’isso, grande tendencia para as affeições romanticas; mas apezar d’isso lá tinha calcanhar o nosso Achilles. Era homem como os outros, outros Achilles andam por ahi que são da cabeça aos pés um immenso calcanhar. O ponto vulnerável de Mendonça era esse; o amor de uma phrase era capaz de violentar-lhe affectos; sacrificava uma situação a um periodo arredondado. Referindo a um amigo o episodio da galga e a entrevista com Margarida, Mendonça disse que poderia vir a gostar d’ella se não tivesse olhos verdes. O amigo rio com certo ar de sarcasmo. — Mas, doutor, disse-lhe elle, não comprehendo essa prevenção; eu ouço até dizer que os olhos verdes são de ordinário nuncios de boa alma. Além de que, a cor dos olhos não vale nada, a questão é a expressão d’elles. Podem ser azues como o céo e pérfidos como o mar. A observação d’este amigo anonymo tinha a vantagem de ser tão poética como a de Mendonça. Por isso abalou profundamente o animo do medico. Não ficou este como o asno de Buridan entre a celha d’agua e a quarta de cevada; o asno hesitaria, Mendonça não hesitou. Acudio-lhe de prompto a lição do casuista Sanchez, e das duas opiniões tomou a que lhe pareceu provavel. Algum leitor grave achará pueril esta circumstancia dos olhos verdes e esta controvérsia sobre a qualidade provável d’elles. Provará com isso que tem pouca pratica do mundo. Os almanachs pittorescos citam ate a saciedade mil excentricidades e senões dos grandes varões que a humanidade admira, já por instruidos nas lettras, ja por valentes nas armas e nem por isso deixamos de admirar esses mesmos varões. Não queira o leitor abrir uma excepção só para encaixar n’ella o nosso doutor. Aceitemol-o com os seus ridiculos; quem os não tem? O ridiculo é uma especie de lastro da alma quando ella entra no mar da vida; algumas fazem toda a navegação sem outra especie de carregamento. Para compensar essas fraquezas, já disse que Mendonça tinha qualidades não vulgares. Adoptando a opinião que lhe pareceu mais provável, que foi a do amigo, Mendonça disse comsigo que nas mãos de Margarida estava talvez a chave do seu futuro. Ideou n’esse sentido um plano de felicidade; uma casa n’um ermo, olhando para o mar do lado do occidente, afim de poder assistir ao espectáculo do pôr do sol. Margarida e elle, unidos pelo amor e pela Igreja, beberiam alli, gotta a gotta, a taça inteira da celeste felicidade. O sonho de Mendonça continha outras particularidades que seria ocioso mencionar aqui. Mendonça pensou n’isto alguns dias; chegou a passar algumas vezes por Matacavallos; mas tão infeliz que nunca vio Margarida nem a tia; a final desistio da empreza e voltou aos cães. A collecção de cães era uma verdadeira galeria de homens illustres. O mais estimado d’elles chamava-se Diogenes; havia um galgo que acudia ao nome de Cesar; um cão d’agua que se chamava Nelson, Cornelia chamava-se uma cadellinha rateira, e Calígula um enorme cão de fila, vera effigie do grande monstro que a sociedade romana produziu. Quando se achava entre toda essa gente, illustre por differentes titulos, dizia Mendonça que entrava na historia; era assim que se esquecia do resto do mundo. IV Achava-se Mendonça uma vez á porta do Carceller, onde acabava de tomar sorvete em companhia de um indivíduo, amigo d’elle, quando vio passar um carro, e dentro do carro duas senhoras que lhe pareceram as senhoras de Matacavallos. Mendonça fez um movimento de espanto que não escapou ao amigo. — Que foi? perguntou-lhe este. — Nada; pareceu-me conhecer aquellas senhoras. Viste-as, Andrade? — Não. O carro entrára na rua do Ouvidor; os dous subiram pela mesma rua. Logo acima da rua da Quitanda, parára o carro á porta de uma loja, e as senhoras apearam-se e entraram. Mendonça não as vio sahir; mas vio o carro e suspeitou que fosse o mesmo. Apressou o passo sem dizer nada a Andrade, que fez o mesmo, movido por essa natural curiosidade que sente um homem quando percebe algum segredo occulto. Poucos instantes depois estavam á porta da loja; Mendonça verificou que eram as duas senhoras de Matacavallos. Entrou afouto, com ar de quem ia comprar alguma cousa, e approximou-se das senhoras. A primeira que o conheceu foi a tia. Mendonça comprimentou-as respeitosamente. Ellas receberam o comprimento com affabilidade. Ao pé de Margarida estava Miss Dollar, que, por esse admiravel faro que a natureza concedeu aos cães e aos cortezãos da fortuna, deu dous saltos de alegria apenas vio Mendonça, chegando a tocar-lhe o estomago com as patas dianteiras. — Parece que Miss Dollar ficou com boas recordações suas, disse D. Antonia (assim se chamava a tia de Margarida). — Creio que sim, respondeu Mendonça brincando com a galga e olhando para Margarida. Justamente n’esse momento entrou Andrade. — Só agora as reconheci, disse elle dirigindo-se ás senhoras. Andrade apertou a mão das duas senhoras, ou antes apertou a mão de Antonia e os dedos de Margarida. Mendonça não contava com este incidente, e alegrou-se com elle por ter á mão o meio de tornar intimas as relações superficiaes que tinha com a familia. — Seria bom, disse elle a Andrade, que me apresentasses a estas senhoras. — Pois não as conheces? perguntou Andrade estupefacto. — Conhece-nos sem nos conhecer, respondeu sorrindo a velha tia; por ora quem o apresentou foi Miss Dollar. Antonia referio a Andrade a perda e o achado da cadellinha. — Pois, n’esse caso, respondeu Andrade, apresentou-o já. Feita a apresentação official, o caixeiro trouxe a Margarida os objectos que ella havia comprado, e as duas senhoras despediram-se dos rapazes pedindo-lhes que as fossem ver. Não citei nenhuma palavra de Margarida no dialogo acima transcripto, porque, a fallar verdade, a moça só proferio duas palavras a cada um dos rapazes. — Passe bem, disse-lhes ella dando as pontas dos dedos e sahindo para entrar no carro. Ficando sós, sahiram também os dous rapazes e seguiram pela rua do Ouvidor acima, ambos calados. Mendonça pensava em Margarida; Andrade pensava nos meios de entrar na confidencia de Mendonça. A vaidade tem mil formas de manifestar-se como o fabuloso Prothèo. A vaidade de Andrade era ser confidente dos outros; parecia-lhe assim obter da confiança aquillo que só alcançava da indiscrição. Não lhe foi difficil apanhar o segredo de Mendonça; antes de chegar á esquina da rua dos Ourives já Andi-ade sabia de tudo. — Comprehendes agora, disse Mendonça, que eu preciso ir á casa d’ella; tenho necessidade de vel-a; quero ver se consigo... Mendonça estacou. — Acaba! disse Andrade; se consegues ser amado. Porque não? Mas desde já te digo que não será facil. — Por que? — Margarida tem rejeitado cinco casamentos. — Naturalmente não amava os pretendentes, disse Mendonça com o ar de um geometra que acha uma solução. — Amava apaixonadamente o primeiro, respondeu Andrade, e não era indifferente ao ultimo. — Houve naturalmente intriga. — Tambem não. Admiras-te? E o que me acontece. É uma rapariga exquisita. Se te achas com força de ser o Colombo d’aquelle mundo, lança-te ao mar com a armada; mas toma cuidado com a revolta das paixões, que são os ferozes marujos d’estas navegações de descoberta. Enthusiasmado com esta allusão, histórica debaixo da fôrma de allegoria, Andrade olhou para Mendonça, que, d’esta vez entregue ao pensamento da moça, não attendeu á phrase do amigo. Andrade contentou-se com o seu proprio suffragio, e sorrio com o mesmo ar de satisfação que deve ter um poeta quando escreve o ultimo verso de um poema. V Dias depois, Andrade e Mendonça foram á casa de Margarida, e lá passaram meia hora em conversa ceremoniosa. As visitas repetiram-se; eram porém mais frequentes da parte de Mendonça que de Andrade. D. Antonia mostrou-se mais familiar que Margarida; só depois de algum tempo Margarida desceu do Olympo do silencio em que habitualmente se encerrara. Era difficil deixar de o fazer. Mendonça, conquanto não fosse dado á convivência das salas, era um cavalleiro proprio para entreter duas senhoras que pareciam mortalmente aborrecidas. O medico sabia piano e tocava agradavelmente; a sua conversa era animada; sabia esses mil nadas que entretém geralmente as senhoras quando ellas nao gostam ou não podem entrar no terreno elevado da arte, da historia e da philosophia. Não foi difficil ao rapaz estabelecer intimidade com a familia. Posteriormente ás primeiras visitas, soube Mendonça, por via de Andrade, que Margarida era viuva. Mendonça não reprimio um gesto de espanto. — Mas tu fallaste de um modo que parecias tratar de uma solteira, disse elle ao amigo. — É verdade que não me expliquei bem; os casamentos recusados foram todos propostos depois da viuvez. — Ha que tempo está viuva? — Ha tres annos. — Tudo se explica, disse Mendonça depois de algum silencio; quer ficar fiel á sepultura, é uma Arthemisa do século. Andrade era sceptico a respeito de Artemisas; sorrio á observação do amigo, e, como este insistisse, replicou: — Mas se eu já te disse que ella amava apaixonadamente o primeiro pretendente e nao era indifferente ao ultimo. — Então, não comprehendo. — Nem eu. Mendonça desde esse momento tratou de cortejar assiduamente a viuva; Margarida recebeu os primeiros olhares de Mendonça com um ar de tão supremo desdem, que o rapaz esteve quasi a abandonar a empreza; mas, a viuva, ao mesmo tempo que parecia recusar amor, não lhe recusava estima, e tratava-o com a maior meiguice d’este mundo sempre que elle a olhava como toda a gente. Amor repellido é amor multiplicado. Cada repulsa de Margarida augmentava a paixão de Mendonça. Nem já lhe mereciam attenção o feroz Caligula, nem o elegante Julio Cesar. Os dous escravos de Mendonça começaram a notar a profunda differença que havia entre os hábitos de hoje e os de outro tempo. Suppuzeram logo que alguma cousa o preoccupava. Convenceram-se d’isso quando Mendonça, entrando uma vez em casa, deu com a ponta do botim no focinho de Cornelia, na occasião em que esta interessante cadellinha, mãi de dous Gracchos rateiros, festejava a chegada do doutor. Andrade não foi insensivel aos soffrimentos do amigo e procurou consolal-o. Toda a consolacção n’estes casos é tão desejada quanto inútil; Mendonça ouvia as palavras de Andrade e confiava-lhe todas as suas penas. Andrade lembrou a Mendonça um excellente meio de fazer cessar a paixão: era ausentar-se da casa. A isto respondeu Mendonça citando La Rochefoucauld: « A ausencia diminue as paixões mediocres e augmenta as grandes, como o vento apaga as velas e atiça as fogueiras. » A citação teve o mérito de tapar a boca de Andrade, que acreditava tanto na constância como nas Arthemisas, mas que não queria contrariar a autoridade do moralista, nem a resolução de Mendonça. VI Correram assim tres mezes. A corte de Mendonça não adiantava um passo; mas a viuva nunca deixou de ser amavel com elle. Era isto o que principalmente retinha o medico aos pés da insensivel viuva; não o abandonava a esperança de vencel-a. Algum leitor conspicuo desejaria antes que Mendonça não fosse tão assiduo na casa dé uma senhora exposta ás calumnias do mundo. Pensou n’isso o medico e consolou a consciência com a presença de um individuo, até aqui não nomeado por motivo de sua nullidade, e que era nada menos que o filho da Sra. D. Antonia e a menina dos seus olhos. Chamava-se Jorge esse rapaz, que gastava duzentos mil réis por mez, sem os ganhar, graças a longanimidade da mãi. Frequentava as casas dos cabelleireiros, onde gastava mais tempo que uma Romana da decadência ás mãos das suas servas latinas. Não perdia representação de importância no Alcazar; montava bons cavallos, e enriquecia com despezas extraordinarias as algibeiras de algumas damas celebres e de varios parasitas obscuros. Calçava luvas da lettra E e botas nº 36, duas qualidades que lançava á cara de todos os seus amigos que não desciam do nº40 e da lettra H. A presença d’este gentil pimpollio, achava Mendonça que salvava a situação. Mendonça queria dar esta satisfação ao mundo, isto é, á opinião dos ociosos da cidade. Mas bastaria isso para tapar a boca aos ociosos? Margarida parecia indifferente ás interpretações do mundo como á assiduidade do rapaz. Seria ella tão indifferente a tudo mais n’este mundo? Não; amava a mãi, tinha um capricho por Miss Dollar, gostava da boa musica, e lia romances. Vestia-se bem, sem ser rigorista em matéria de moda; não valsava; quando muito dansava alguma quadrilha nos saráos a que era convidada. Não fallava muito, mas exprimia-se bem. Tinha o gesto gracioso e animado, mas sem pretenção nem faceirice. Quando Mendonça apparecia lá. Margarida recebia-o com visivel contentamento. O medico illudia-se sempre, apezar de já acostumado a essas manifestações. Com effeito, Margarida gostava immenso da presença do rapaz, mas não parecia dar-lhe uma importância que lisongeasse o coração d’elle. Gostava de o ver como se gosta de ver um dia bonito, sem morrer de amores pelo sol. Não era possivel soffrer por muito tempo a posição em que se achava medico. Uma noite, por um esforço de que antes d’isso se não julgaria capaz, Mendonça dirigio a Margarida esta pergunta indiscreta: — Foi feliz com seu marido? Margarida franzio a testa com espanto e cravou os olhos nos do medico, que pareciam continuar mudamente a pergunta. — Fui, disse ella no fim de alguns instantes, Mendonça não disse palavra; não contava com aquella resposta. Confiava de mais na intimidade que reinava entre ambos; e queria descobrir por algum modo a causa da insensibilidade da viuva. Falhou o calculo; Margarida tornou-se seria durante algum tempo; a chegada de D. Antonia salvou uma situação esquerda para Mendonça. Pouco depois Margarida voltava ás boas, e a conversa tornou-se animada e intima como sempre. A chegada de Jorge levou a animação da conversa a proporções maiores; D. Antonia, com olhos e ouvidos de mãi, achava que o filho era o rapaz mais engraçado d’este mundo; mas a verdade é que não havia em toda a christandade espirito mais frivolo. A mãi ria-se de tudo quanto o filho dizia; o filho enchia, só elle, a conversa, referindo anecdotas e reproduzindo ditos e sestros do Alcazar. Mendonça via todas essas feições do rapaz, e aturava-o com resignação evangelica. A entrada de Jorge, animando a conversa, accelerou as horas; ás dez retirou-se o medico, acompanhado pelo filho de D. Antonia, que ia ceiar. Menilonea recusou o convite que Jorge lhe fez, e despedio-se d’elle na rua do Conde, esquina da do Lavradio. N’essa mesma noite, resolveu Mendonça dar um golpe decisivo; resolveu escrever uma carta a Margarida. Era temerário para quem conhecesse o caracter da viuva; mas, com os precedentes já mencionados, era loucura. Entretanto, não hesitou o medico em empregar a carta, confiando que no papel diria as cousas de muito melhor maneira que de boca. A carta foi escripta com febril impaciência; no dia seguinte, logo depois de almoçar, Mendonça metteu a carta dentro de um volume de George Sand, mandou-o pelo moleque a Margarida. A viuva rompeu a capa de papel que embrulhava o volume, e poz o livro sobre a mesa da sala; meia hora depois voltou e pegou no livro para ler. Apenas o abrio, cahio-lhe a carta aos pés. Abrio-a e leu o seguinte: « Qualquer que seja a causa da sua esquivança, respeito-a, não me insurjo contra ella. Mas, se não me é dado insurgir-me, não me será licito queixar-me? Ha de ter comprehendido o meu amor, do mesmo modo que tenho comprehendido a sua indifferença; mas, por maior que seja essa indifferença está longe de hombrear com o amor profundo e imperioso que se apossou de meu coração quando eu mais longe me cuidava d’estas paixões dos primeiros annos. Não lhe contarei as insomnias e as lagrimas, as esperanças e os desencantos, paginas tristes d’este livro que o destino põe nas mãos do homem para que duas almas o leiam. E’-lhe indifferente isso. « Não ouso interrogal-a sobre a esquivança que tem mostrado em relação a mim; mas por que motivo se estende essa esquivança a tantos mais? Na idade das paixões fervidas, ornada pelo céo com uma belleza rara, por que motivo quer esconder-se ao mundo e defraudar a natureza e o coração de seus incontestáveis direitos? Perdoe-me a audacia da pergunta; acho-me diante de um enigma que o meu coração desejaria decifrar. Penso á vezes que alguma grande dor a atormenta, e quizera ser o medico do seu coração; ambicionava, confesso, restaurar-lhe alguma illusão perdida. Parece que não ha offensa n’esta ambição. « Se, porém, essa esquivança denota simplesmente um sentimento de orgulho legitimo, perdoe-me se ousei escrever-lhe quando seus olhos expressamente m’o prohibiram. Rasgue a carta que não póde valer-lhe uma recordação, nem representar uma arma. » A carta era toda de reflexão; a phrase fria e medida não exprimia o fogo do sentimento. Não terá, porém, escapado ao leitor a sinceridade e a simplicidade com que Mendonça pedia uma explicação que Margarida provavelmente não podia dar. Quando Mendonça disse a Andrade haver escripto a Margarida, o amigo do medico entrou a rir despregadamente. — Fiz mal? perguntou Mendonça. — Estragaste tudo. Os outros pretendentes começaram também por carta; foi justamente a certidão de obito do amor. — Paciência, se acontecer o mesmo, disse Mendonça levantando os hombros com apparente indifferença; mas eu desejava que não estivesses sempre a fallar nos pretendentes; eu não sou pretendente no sentido d’esses. — Não querias casar com ella? — Sem duvida, se fosse possivel, respondeu Mendonça. — Pois era justamente o que os outros queriam; casar-te-hias e entrarias na mansa posse dos bens que lhe couberam em partilha e que sobem a muito mais de cem contos. Meu rico, se fallo em pretendentes não é por te offender, porque um dos quatro pretendentes despedidos fui eu. — Tu? — É verdade; mas descansa, não fui o primeiro, nem ao menos o ultimo. — Escreveste? — Como os outros; como elles, não obtive resposta; isto é, obtive uma: devolveu-me a carta. Portanto, já que lhe escreveste, espera o resto; verás se o que te digo é ou não exacto. Estás perdido, Mendonça; fizeste muito mal. Andrade tinha esta feição caracteristica de não omittir nenhuma das cores sombrias de uma situação, com o pretexto de que aos amigos se deve a verdade. Desenhado o quatro, despedio-se da Mendonça, e foi adiante. Mendonça foi para casa, onde passou a noite em claro. VII Enganara-se Andrade; a viuva respondeu á carta do medico. A carta d’ella limitou-se a isto: « Perdoo-lhe tudo; não lhe perdoarei se me escrever outra vez. A minha esquivança não tem nenhuma causa; é questão de temperamento. » O sentido da carta era ainda mais laconico do que a expressão. Mendonça leu-a muitas vezes, a ver se a completava; mas foi trabalho perdido. Uma cousa concluio elle logo; era que havia cousa occulta que arredava Margarida do casamento; depois concluio outra, era que Margarida ainda lhe perdoaria segunda carta se lh’a escrevesse. A primeira vez que Mendonça foi a Matacavallos achou-se embaraçado sobre a maneira por que fallaria a Margarida; a viuva tirou-o do embaraço, tratando-o como se nada houvesse entre ambos. Mendonça não teve occasião de alludir ás cartas por causa da presença de D. Antonia, mas estimou isso mesmo, porque não sabia o que lhe diria caso viessem a ficar sós os dous. Dias depois, Mendonça escreveu segunda carta á viuva e mandou-lh’a pelo mesmo canal da outra. A carta foi-lhe devolvida sem resposta. Mendonça arrependeu-se de ter abusado da ordem da moça, e resolveu, de uma vez por todas não voltar á casa de Matacavallos. Nem tinha animo de lá apparecer, nem julgava conveniente estar junto de uma pessoa a quem amava sem esperança. Ao cabo de um mez não tinha perdido uma particula sequer do sentimento que nutria pela viuva. Amava-a com o mesmissimo ardor. A ausência, como ella pensára, augmentou-lhe o amor, como o vento ateia um incêndio. Debalde lia ou buscava distrahir-se na vida agitada do Rio de Janeiro; entrou a escrever um estudo sobre a theoria do ouvido, mas a penna escapava-se-lhe para o coração, e sahio o escripto com uma mistura de nervos e sentimentos. Estava então na sua maior nomeada o romance de Pelletan sobre a vida de Jesus; Mendonça encheu o gabinete com todos os folhetos publicados de parte a parte, e entrou a estudar profundamente o mysterioso drama da Judéa. Fez quanto pôde para absorver o espirito e esquecer a esquiva Margarida; era-lhe impossivel. Um dia de manhã appareceu-lhe em casa o filho de D. Antonia; traziam-o dous motivos: perguntar-lhe porque não ia a Matacavallos, e mostrar-lhe umas calças novas. Mendonça approvou as calças, e desculpou como pôde a ausência, dizendo que andava atarefado. Jorge não era alma que comprehendesse a verdade escondida por baixo de uma palavra indifferente; vendo Mendonça mergulhado no meio de uma chusma de livros e folhetos, perguntou-lhe se estava estudando para ser deputado. Jorge cuidava que se estudava para ser deputado! — Não, respondeu Mendonça. — É verdade que a prima tambem lá anda com livros, e não creio que pretende ir á camara. — Ah! sua prima? — Não imagina; não faz outra cousa. Fecha-se no quarto, e passa os dias inteiros a ler. Informado por Jorge, Mendonça suppoz que Margarida era nada menos que uma mulher de lettras, alguma modesta poetiza, que esquecia o amor dos homens nos braços das musas. A supposição era gratuita e filha mesmo de um espirito cego pelo amor como o de Mendonça. Ha varias razões para ter muito sem ter commercio com as musas. — Note que a prima nunca leu tanto; agora é que lhe deu para isso, disse Jorge tirando da charuteira um magniffico havana do valor de tres tostões, e offerecendo outro a Mendonça. Fume isto, continuou elle, fume e diga-me se ha ninguém como o Bernardo para ter charutos bons. Gastos os charutos, Jorge despedio-se do medico levando a promessa de que este iria á casa de D. Antonia o mais cedo que pudesse. No fim de quinze dias Mendonça voltou a Matacavallos. Encontrou na sala Andrade e D. Antonia, que o receberam com alleluias. Mendonça parecia com effeito resurgir de um tumulo; tinha emmagrecido e empallidecido. A melancolia dava-lhe ao rosto maior expressão de abatimento. Allegou trabalhos extraordinários, e entrou a conversar alegremente como d’antes. Mas essa alegria, como se comprehende, era toda forçada. No fim de um quarto de hora a tristeza apossou-se-lhe outra vez do rosto. Durante esse tempo, Margarida não appareceu na sala; Mendonça, que até então não perguntára por ella, não sei por que razão, vendo que ella não apparecia, perguntou se estava doente. D. Antonio respondeu-lhe que Margarida estava um pouco incommodada. O incommodo de Margarida durou uns tres dias; era uma simples dor de cabeça, que o primo attribuio a aturada leitura. No fim de alguns dias mais, D. Antonia foi sorprendida com uma lembrança de Margarida; a viuva queria ir viver na roça algum tempo. — Aborrece-te a cidade? perguntou a boa velha. — Alguma cousa, respondeu Margarida; queria ir viver uns dous mezes na roça. D. Antonia não podia recusar nada á sobrinha; concordou em ir para a roça; e começaram os preparativos. Mendonça soube da mudança no Rocio, andando a passear de noite; disse-lh’o Jorge na occasião de ir para o Alcazar. Para o rapaz era uma fortuna aquella mudança, porque supprimia-lhe a unica obrigação que ainda tinha n’este mundo, que era a de ir jantar com a mãi. Não achou Mendonça nada que admirar na resolução; as resoluções de Margarida começavam a parecer-lhe simplicidades. Quando voltou para casa encontrou um bilhete de D. Antonia concebido n’estes termos: Temos de ir para fóra alguns mezes; espero que não nos deixe sem despedir-se de nós. A partida e sabbado; e eu quero incumbil-o de uma cousa. » Mendonça tomou chá, e dispôz-se a dormir. Não pôde. Quiz 1er; estava incapaz d’isso. Era cedo; sahio. Insensivelmente dirigio os passos para Matacavallos. A casa de D. Antonia estava fechada e silenciosa; evidentemente estavam já dormindo. Mendonça passou adiante, e parou junto da grade do jardim adjacente á casa. De fóra podia ver a janella do quarto de Margarida, pouco elevada, e dando para o jardim. Havia luz dentro; naturalmente Margarida estava acordada. Mendonça deu mais alguns passos; a porta do jardim estava aberta. Mendonça sentio pulsar-lhe o coração com força desconhecida. Surgio-lhe no espirito uma suspeita. Não ha coração confiante que não tenha desfallecimentos d’estes; além de que, seria errada a suspeita? Mendonça, entretanto, não tinha nenhum direito á viuva; fora repellido categoricamente. Se havia algum dever da parte d’elle era a retirada e o silencio. Mendonça quiz conservar-se no limite que lhe estava marcado; a porta aberta do jardim podia ser esquecimento da parte dos fâmulos. O medico reflectiu bem que aquillo tudo era fortuito, e fazendo um esforço afastou-se do lugar. Adiante parou e reflectio; havia um demonio que o impellia por aquella porta dentro. Mendonça voltou, e entrou com precaução. Apenas dera alguns passos surgio-lhe em frente Miss Dollar latindo; parece que a galga sahira de casa sem ser presentida; Mendonça amimou-a e cadellinha parece que reconheceu o medico, porque trocou os latidos em festas. Na parede do quarto de Margarida desenhou-se uma sombra de mulher; era a viuva que chegava é janella para ver a causa do ruido. Mendonça coseu-se como pôde com uns arbustos que ficavam junto da grade; não vendo ninguém. Margarida voltou para dentro. Passados alguns minutos, Mendonça sahio do lugar em que se achava e dirigio-se para o lado da janella da viuva. Acompanhava-o Miss Dollar. Do jardim não podia olhar, ainda que fosse mais alto, para o aposento da moça. A cadellinha apenas chegou áquelle ponto, subio ligeira uma escada de pedra que communicava o jardim com a casa; a porta do quarto de Margarida ficava justamente no corredor que se seguia á escada; a porta estava aberta. O rapaz imitou a cadellinha; subio os seis degráos de pedra vagarosamente; quando poz o pé no ultimo ouvio Miss Dollar pulando no quarto e vindo latir á porta, como que avisando a Margarida de que se approximava um estranho. Mendonça deu mais um passo. Mas n’esse momento atravessou o jardim um escravo que acudia ao latido da cadellinha; o escravo examinou o jardim, e não vendo ninguém retirou-se. Margarida foi á janella e perguntou o que era; o escravo explicou-lh’o e tranquillisou-a dizendo que não havia ninguém. Justamente quando ella sahia da janella apparecia á porta a figura de Mendonça. Margarida estremeceu por um abalo nervoso; ficou mais pallida do que era; depois concentrando nos olhos toda a somma de indignação que póde conter um coração, perguntou-lhe com voz tremula: — Que quer aqui? Foi n’esse momento, e só então, que Mendonça reconheceu toda a baixeza do seu procedimento, ou para fallar mais acertadamente, toda a hallucinação do seu espirito. Pareceu-lhe ver em Margarida a figura da sua consciência, a explobar-lhe tamanha indignidade. O pobre rapaz não procurou desculpar-se; a sua resposta foi singela e verdadeira. — Sei que commetti um acto infame, disse elle; não tinha razão para isso; estava louco; agora conheço a extensão do mal. Não lhe peço que me desculpe, D. Margarida; não mereço perdão; mereço desprezo; adeos! — Comprehendo, senhor, disse Margarida; quer obrigar-me pela força do descrédito quando me não pode obrigar pelo coração. Não é de cavalheiro. — Oh! isso... juro-lhe que não foi tal o meu pensamento.... Margarida cahio n’uma cadeira parecendo chorar. Mendonça deu um passo para entrar, visto que até então não sahira da porta; Margarida levantou os olhos cobertos de lagrimas, e com um gesto imperioso mostrou-lhe que sahisse. Mendonça obedeceu; nem um nem outro dormiram n’essa noite. Ambos curvaram-se ao peso da vergonha: mas, por honra de Mendonça, a d’elle era maior que a d’ella; e a dòr de uma não hombreava com o remorso de outro. VIII No dia seguinte estava Mendonça em casa fumando charutos sobre charutos, recurso das grandes occasiões, quando parou á porta d’elle um carro, apeando-se pouco depois a mãi de Jorge. A visita pareceu de máo agouro ao medico. Mas apenas a velha entrou, dissipou-lhe o receio. — Creio, disse D. Antonia, que a minha idade permitte visitar um homem solteiro. Mendonça procurou sorrir ouvindo este gracejo; mas não pôde. Convidou a boa senhora a sentar-se, e sentou-se elle também esperando que ella lhe explicasse a causa da visita. — Escrevi-lhe hontem, disse ella, para que fosse ver-me hoje;-preferi vir cá, receiando que por qualquer motivo não fosse a Matacavallos. — Queria então incumbir-me? — De cousa nenhuma, respondeu a velha sorrindo; incumbir disse-lhe eu, como diria qualquer outra cousa indifferente; quero informal-o. — Ah! de que? — Sabe quem ficou hoje de cama? — D. Margarida? — E verdade; amanheceu um pouco doente; diz que passou a noite mal. Eu creio que sei a razão, accrescentou D. Antonia rindo maliciosamente para Mendonça. — Qual será então a razão? perguntou o medico. — Pois não percebe? — Não. — Margarida ama-o. Mendonça levantou-se da cadeira como por uma mola. A declaração da tia da viuva era tão inesperada que o rapaz cuidou estar sonhando. — Ama-o, repetio D. Antonia. — Não creio, respondeu Mendonça depois de algum silencio; ha de ser engano seu. — Engano! disse a velha. D. Antonia contou a Mendonça que, curiosa por saber a causa das vigilias de Margarida, descobrira no quarto d’ella um diário de impressões, escripto por ella, á imitação de não sei quantas heroinas de romances; ahi lera a verdade, que lhe acabava de dizer. — Mas se me ama, observou Mendonça sentindo entrar-lhe n’alma um mundo de esperanças, se me ama, porque recusa o meu coração? — O diário explica isso mesmo; eu lhe digo. Margarida foi infeliz no casamento; o marido leve unicamente em vista gozar da riqueza d’ella; Margarida adquirio a certeza de que nunca será amada por si, mas pelos cabedaes que possue; attribue o seu amor á cobiça. Está convencido? Mendonça começou a protestar. — É inútil, disse D. Antonia, eu creio na sinceridade do seu affecto; já de lia muito percebi isso mesmo; mas como convencer um coraçao desconfiado? — Não sei. — Nem eu, disse a velha; mas para isso é que eu vim cá; peço-lhe que veja se póde fazer com que a minha Margarida torne a ser feliz, se lhe incline a crença no amor (jue lhe tem. — Acho que é impossível... Mendonça lembrou-se de contar a D. Antonia a scena da vespera; mas arrependeu-se a tempo. D. Antonia sahio pouco depois. A situação de Mendonça, ao passo que se tornara mais clara, estava mais difficil que d’antes. Era possível tentar alguma cousa antes de scena do quarto; mas depois, achava Mendonça impossível conseguir nada. A doença de Margarida durou dous dias, no fim dos quaes levantou-se a viuva um pouco abatida, e a primeira cousa que fez foi escrever a Mendonça pedindo-lhe que fosse lá a casa. Mendonça admirou-se bastante do convite, e obedeceu de prompto. — Depois do que se deu ha tres dias, disse-lhe Margarida, comprehende o senhor que eu não posso ficar debaixo da acção da maledicência... Diz que me ama; pois bem, o nosso casamento é inevitável. Inevitável! amargou esta palavra ao medico, que aliás não podia recusar uma reparação. Lembrava-se ao mesmo tempo que era amado; e comquanto a ideia lhe sorrisse ao espirito, outra vinha dissipar esse instantâneo prazer, e era a suspeita que Margarida nutria a seu respeito. — Estou ás suas ordens, respondeu elle. Admirou-se D. Antonia da presteza do casamento quando Margarida lh’o annunciou n’esse mesmo dia. Suppoz que fosse milagre do rapaz. Pelo tempo adiante reparou que os noivos tinham cara mais de enterro que de casamento. Interrogou a sobrinha a essa respeito; obteve uma resposta evasiva. Foi modesta e reservada a ceremonia do casamento. Andrade servio de padrinho, D. Antonia de madrinha; Jorge fallou no Alcazar a um padre, seu amigo, para celebrar o acto. D. Antonia quiz que os noivos ficassem residindo em casa com ella. Quando Mendonça si achou a sós com Margarida, disse-lhe: — Casei-me para salvar-lhe a reputação; não quero obrigar pela fatalidade das cousas um coração que me não pertence. Ter-me-ha por seu amigo; até amanhã. Saiu Mendonça depois deste speech, deixando Margarida suspensa entre o conceito que fazia d’elle e a impressão das suas palavras agora. Não havia posição mais singular do que a destes noivos separados por uma chimera. O mais bello dia da vida tornava-se para elles um dia de desgraça e, de solidão; a formalidade do casamento foi simplesmente o prelúdio do mais completo divorcio. Menos scepticismo da parte de Margarida, mais cavalheirismo da parte do rapaz, teriam poupado o desenlace sombrio da comedia do coração. Vale mais imaginar que descrever as torturas d’quella primeira noite de noivado Mas aquillo que o espirito do homem não vence, ha de vencel-o o tempo, a quem cabe final razão. O tempo convenceu Margarida de que a sua suspeita era gratuita; e, coincidindo com elle o coração, veio a tornar-se efetivo o casamento apenas celebrado. Andrade ignorou estas cousas; cada vez que encontrava Mendonça chamava-lhe Colombo do amor; tinha Andrade a mania de todo o sujeito a quem as ideas occorrem trimestralmente; apenas pilhada alguma de geito repetia-a a até a saciedade. Os dous esposos são ainda noivos e promettem sél-o ate a morte. Andrade metteu-se na diplomacia e promette ser um dos luzeiros da nossa representação internacional. Jorge contínua a ser um bom pandego; D. Antonia prepara-se para despedir-se do mundo. Quanto a Miss Dollar, causa indirecta de todos estes acontecimentos, sahindo um dia á rua foi pisada por um carro; falleceu pouco depois. Margarida não pode reter algumas lagrimas pela nobre cadellinha; foi o corpo enterrado na chacara, á sombra de uma laranjeira; cobre a sepultura uma lapida com esta simples inscripção: A MISS DOLLAR. LUIZ SOARES I Trocar o dia pela noite, dizia Luiz Soares, é restaurar o império da natureza corrigindo a obra da sociedade. O calor do sol está dizendo aos homens que vão descansar e dormir, ao passo que a frescura relativa da noite e a verdadeira estação em que se deve viver. Livre em todas as minhas acções, não quero sujeitar-me á lei absurda que a sociedade me impõe: velarei de noite, dormirei de dia. Contrariamente, a vários ministérios, Soares cumpria este programma com um escrúpulo digno de uma grande consciência. A aurora para elle era o crepúsculo, o crepúsculo era a aurora. Dormia doze horas consecutivas, durante o dia, quer dizer das seis da manhã ás seis da tarde. Almoçava ás sete e jantava ás duas da madrugada. Não ceiava. A sua ceia limitava-se a uma chicara de chocolate que o criado lhe dava ás cinco horas da manhã quando elle entrava para casa. Soares engolia o chocolate, fumava dous charutos, fazia alguns trocadilhos com o criado, lia uma pagina de algum romance, e deitava-se. Não lia jornaes. Achava que um jornal era a cousa mais inútil d’este mundo, depois da camara dos deputados, das obras dos poetas, e das missas. Não quer isto dizer que Soares fosse athéo em religião, politica e poesia. Não. Soares era apenas indifferente. Olhava para todas as grandes cousas com a mesma cara com que via uma mulher feia. Podia vir a ser um grande perverso; até então era apenas uma grande unitilidade, Graça a uma boa fortuna que lhe deixára o pai. Soares podia gozar a vida que levava, esquivando-se a todo o genero de trabalho e entregue somente aos instinctos da sua natureza e aos caprichos do seu coração. Coração é talvez de mais. Era duvidoso que Soares o tivesse. Elle mesmo o dizia. Quando alguma dama lhe pedia que elle a amasse. Soares respondia: — Minha rica pequena, eu nasci com a grande vantagem de não ter cousa nenhuma dentro do peito nem dentro da cabeça. Isso que chamam juizo e sentimento são para mim verdadeiros mysterios. Não os comprehendo porque os não sinto. Soares accrescentava que a fortuna supplantára a natureza deitando-lhe no berço em que nasceu uma boa somma de contos de réis. Mas esquecia que a fortuna, apezar de generosa, é exigente, e quer da parte dos seus afilhados algum esforço proprio. A fortuna não é Danaide. Quando ve que um tonel esgota a agua que se lhe põe dentro vai levar os seus cantaros a outra parte. Soares não pensava n’isto. Cuidava que os seus bens eram renascentes como as cabeças da hydra antiga. Gastava ás mãos largas; e os contos de réis, tão difficilmente accumulados por seu pai, escapavam-se-lhe das mãos como passaros sequiosos por gozarem do ar livre. Achou-se, portanto, pobre quando menos o esperava. Um dia de manhã, quer dizer ás ave-marias, os olhos de Soares viram escriptas as palavras fatídicas do festim babylonico. Era uma carta que o criado lhe entregára dizendo que o banqueiro de Soares a havia deixado á meia-noite. O criado fallava como o amo vivia: ao meio-dia chamava meia-noite. — Já te disse, respondeu Soares, que eu só recebo cartas dos meus amigos, ou então... — De alguma rapariga, bem sei. É por isso que lhe não tenho dado as cartas que o banqueiro tem trazido ha um mez. Hoje, porém, o homem disse que era indispensável que lhe eu desse esta. Soares sentou-se na cama, e perguntou ao criado meio alegre e meio zangado: — Então tu és criado d’elle ou meu? — Meu amo, o banqueiro disse que se trata de um grande perigo. — Que perigo? — Não sei. — Deixa ver a carta. O criado entregou-lhe a carta Soares abrio-a e leu-a duas vezes. Dizia a carta que o rapaz não possuia mais que seis contos de réis. Para Soares seis contos de réis erão menos que seis vintens. Pela primeira vez na sua vida Soares sentio uma grande commoção. A idéa de não ter dinheiro nunca lhe havia acudido ao espirito, não imaginava que um dia se achasse na posição de qualquer outro homem que precisava de trabalhar. Almoçou sem vontade e sahio. Foi ao Alcazar. Os amigos acharam-o triste; perguntaram-lhe se era alguma mágoa de amor. Soares respondeu que estava doente. As Lais da localidade acharam que era de bom gosto ficarem tristes também. A consternação foi geral. Um dos seus amigos, José Pires, propoz um passeio a Botafogo para distrahir as melancolias de Soares. O rapaz aceitou. Mas o passeio a Botafogo era tão commum que não podia distrahil-o. Lembraram-se de ir ao Corcovado, idéa que foi aceita e executada immediatamente. Mas que ha que possa distrahir um rapaz nas condições de Soares? A viagem ao Corcovado apenas lhe produzio uma grande fadiga, aliás útil, porque, na volta, dormio o rapaz a somno solto. Quando acordou mandou dizer ao Pires que viesse fallar-lhe immediatamente. D’ahi a uma hora parava um carro á porta: era o Pires que chegava, mas acompanhado de uma rapariga morena que respondia ao nome de Victoria. Entraram os dous pela sala de Soares com a franqueza e o estrepito naturaes entre pessoas de familia. — Não está doente? perguntou Victoria ao dono da casa. — Não, respondeu este; mas porque veio você? — E boa! disse José Pires; veio porque e a minha chicara inseparável... Querias fallar-me em particular? — Queria. — Pois fallemos ahi em qualquer canto; Victoria fica na sala vendo os álbuns. — Nada, interrompeu a moça; n’esse caso vou-me embora. É melhor; só imponho uma condição: é que ambos hão de ir depois lá para casa; temos ceiata. — Valeu! disse Pires. Victoria sahio; os dous rapazes ficaram sós. Pires era o typo do bisbilhoteiro e leviano. Em lhe cheirando novidade preparava-se para instruir-se de tudo. Lisongeava-o a confiança de Soares, e adivinhava que o rapaz ia communicar-lhe alguma cousa importante. Para isso assumio um ar condigno com a situação. Sentou-se commodamente em uma cadeira de braços; pòz o castão da bengala na boca e começou o ataque com estas palavras: — Estamos sós; que me queres? Soares confiou-lhe tudo; leu-lhe a carta do banqueiro; mostrou-lhe em toda a nudez a sua miséria. Disse-lhe que n’aquella situação não via solução possivel, e confessou ingenuamente que a idéa do suicidio o havia alimentado durante longas horas. — Um suicidio! exclamou Pires; estás doudo. — Doudo! respondeu Soares: entretanto não vejo outra sabida n’este becco. Demais, é apenas meio suicidio, porque a pobreza já é meia morte. — Convenho que a pobreza não é cousa agradavel, e até acho... Pires interrompeu-se; uma idéa súbita atravessára-lhe o espirito: a idea de que Soares acabasse a conferência por pedir-lhe dinheiro. Pires tinha um preceito na sua vida; era hão emprestar dinheiro aos amigos. Não se empresta sangue, dizia elle. Soares não reparou na phrase cortada do amigo, e disse: — Viver pobre depois de ter sido rico... é impossível — N’esse caso que me queres tu? perguntou Pires, a quem pareceu que era bom atacar touro de frente. — Um conselho. — Inutil conselho, pois que já tens uma idéa fixa. — Talvez. Entretanto confesso que não se deixa ija villa com facilidade, o má ou boa, sempre custa morrer. Por outro lado, ostentar a minha miséria diante das pessoas que me viram rico é uma humilhação que eu não aceito. Que farias tu no meu lugar? — Homem, respondeu Pires, ha muitos meios... — Venha um. — Primeiro meio. Vai para New-York e procura uma fortuna. — Não me convem; n’esse caso fico no Rio de Janeiro. — Segundo meio. Arranja um casamento rico. — E’ bom de dizer. Onde está esse casamento? — Procura. Não tens uma prima que gosta de ti? — Creio que já não gosta; e demais não e rica; tem apenas trinta contos; despeza de um anno. — É um hom principio de vida. — Nada; outro meio. — Terceiro meio, e o melhor. Vai á casa de teu tio, angaria-lhe a estima, dize que estás arrependido da vida passada, aceita um emprego, emfim vê se te constitues seu herdeiro universal. Soares não respondeu; a idéa pareceu-lhe boa. — Aposto que te agrada o terceiro meio? Perguntou Pires rindo. — Nao é máo. Aceito; e bem sei que é difficil e demorado; mas eu não tenho muitos á escolha. — Ainda hem, disse Pires levantando-se. Agora e que se quer é algum juizo. Ha de custar-te o sacrifício, mas lembra-te que é o meio unico de teres dentro do pouco tempo uma fortuna. Ten tio é um homem achacado de moléstias; qualquer dia bate a bota. Aproveita o tempo, E agora vamos a cia da Victoria. — Não vou, disse Soares; quero acostumar-me, desde já a viver vida nova. — Bem; adeos. — Olha; confiei-te iste a ti só; guarda-me segredo — Sou um tumulo, respondeu Pires descendo a escada. Mas no dia seguinte já os rapazes e raparigas sabiam que Soares ia fazer-se anachoreta... por não ter dinheiro nenhum. O proprio Soares reconheceu isto no rosto dos amigos. Todos pareciam dizei-lhe: É pena! que pândego vamos nós perder! Pires nunca mais o visitou. II O tio de Soares chamava-se o major Luiz da Cunha Villela, e era com effeito um homem já velho e adoentado. Comtudo não se podia dizer que morreria cedo. O major Villela observava um rigoroso regimen que lhe ia entretendo a vida. Tinha uns bons sessenta annos. Era um velho alegre e severo ao mesmo tempo. Gostava de rir, mas era implacável com os máos costumes. Constitucional por necessidade, era no fundo de sua alma absolutista. Chorava pela sociedade antiga; criticava constantemente a nova. Emfim foi o ultimo homem que abandonou a cabelleira de rabicho. Vivia o major Villela em Catumby, acompanhado de sua sobrinha Adelaide, e mais uma velha parenta. A sua vida era patriarcal. Importando-se pouco ou nada com o que ía por fóra, o major entregava-se todo ao cuidado de sua casa, aonde poucos amigos e algumas familias da vizinhança o iam ver, e passar as noites com elle. O major conservava sempre a mesma alegria, ainda nas occasiões em que o rheumatismo o prostrava. Os rheumaticos difficilmente acreditaram n’isto; mas eu posso affirmar que era verdade. Foi n’um dia de manhã, felizmente um dia em que o major nao sentia o menor achaque, e ria e brincava com as duas parentas, que Soares appareceu em Catumby á porta do tio. Quando o major recebeu o cartão com o nome do sobrinho, suppoz que era alguma cocoada. Podia contar com todos em casa, menos o sobrinho. Faziam já dous annos que o não via, e entre a ultima e a penúltima vez tinha mediado anno e meio. Mas o moleque disse-lhe tão seriamente que o nhonhô Luiz. estava na sala de espera, que o velho acabou por acreditar. — Que te parece, Adelaide? A moça não respondeu. O velho foi á sala de visitas. Soares tinha pensado no meio de apparecer ao tio. Ajoelhar-se era dramatico de mais; cahir-lhe nos braços exigia certo impulso intimo que elle não tinha; além de que Soares vexava-se de ter ou fingir uma commoção. Lembrou-se de começar uma conversação alheia ao fim que o levava lá, e acabar por confessar-se disposto a arrepiar carreira. Mas este meio tinha o inconveniente de fazer preceder a reconciliarão por um sermão, que o rapaz dispensava. Ainda não se resolvêra a aceitar um dos muitos meios que lhe vieram a idéa, quando o major appareceu á porta da sala. O major parou á porta sem dizer palavra e lançou sobre o sobrinho um olhar severo e interrogador. Soares hesitou um instante; mas como a situação podia prolongar-se sem beneficio seu, o rapaz seguio um movimento natural: foi ao tio e estendeu-lhe a mão. - Meu tio, disse elle, nao precisa dizer mais nada; o seu olhar diz-me tudo. Fui peccador e arrependo-me. Aqui estou. O major estendeu-lhe a mão, que o rapaz beijou com o respeito de que era susceptivel. Depois encaminhou-se para uma cadeira e sentou-se; o rapaz ficou de pé. - Se o teu arrependimento é sincero, abro-te a minha porta e o meu coração. Se não é sincero podes ir embora; ha muito tempo que não frequento a casa da opera : não gosto de comediantes. Soares protestou que era sincero. Disse que fòra dissipado e doudo, mas que aos trinta annos era justo ter juizo. Reconhecia agora que o tio sempre tivera razao. Suppoz ao principio que eram simples rabugices de velho, e mais nada; mas não era natural esta leviandade n’um rapaz educado no vicio? Felizmente corrigia-se a tempo. O que elle agora queria era entrar em bom viver, e começava por aceitar um emprego publico que o obrigasse a trabalhar e fazer-se serio. Tratava-se de ganhar uma posição. Ouvindo o discurso de que fiz o extracto acima, o major procurava adivinhar o fundo do pensamento de Soares. Seria elle sincero? O velho concluio que o sobrinho fallava com a alma nas mãos. A sua illusão chegou ao ponto de ver-lhe uma lagrima nos olhos, lagrima que não appareceu, nem mesmo fingida. Quando Soares acabou, o major estendeu-lhe a mão e apertou a que o rapaz lhe estendeu tambem. — Creio, Luiz. Ainda bem que te arrependeste a tempo. Isso que vivias não era vida nem morte; a vida é mais digna e a morte mais tranquilla do que a existência que malbarataste. Entras agora em casa como um filho prodigo. Terás o melhor lugar a mesa. Esta familia é a mesma familia. O major continuou por este tom; Soares ouviu a pé quedo o discurso do tio. Dizia comsigo que era a amostra da pena que ia soffrer, e um grande desconto dos seus peccados. O major acabou levando o rapaz para dentro, onde os esperava o almoço. Na sala de jantar estavam Adelaide e a velharenta. A Sra. Antonia de Moura Villela recebeu Soares com grandes exclamações que envergonharam sinceramente o rapaz. Quanto a Adelaide, apenas o comprimentou sem olhar para elle; Soares retribuio o comprimento. O major reparou na frieza; mas parece que sabia alguma cousa, porque apenas deu uma risadinha amarella, cousa que lhe era peculiar. Sentaram-se á mesa, e o almoço correu entre as pilhérias do major, as recriminações da Sra. Antonia, as explicações do rapaz e o silencio de Adelaide. Quando o almoço acabou, o major disse ao sobrinho que fumasse, concessão enorme que o rapaz a custo aceitou. As duas senhoras sahiram; ficaram os dous á mesa. — Estás então disposto a trabalhar? — Estou, meu tio. — Bem vou ver se te arranjo um emprego. Que emprego preferes? — O que quizer, meu tio, comtanto que eu trabalhe. — Bem. Levarás amanhã uma carta minha a um dos ministros. Deos queira que possas obter o emprego sem difficuldade. Quero ver-te trabalhador e serio; (quero ver-te homem. As dissipações não produzem nada, a não serem dívidas e desgostos… Tens dividas? — Nenhuma, respondeu Soares. Soares mentia. Tinha uma divida de alfaiate, relativamente pequena; queria pagal-a sem que o tio soubesse. No dia seguinte o major escreveu a carta promettida, que o sobrinho levou ao ministro; e tao feliz fui, que d’ahi a um mez estava empregado em uma secretaria com um bom ordenado. Cumpre fazer justiça ao rapaz. O sacrificio que fez de transformar os seus hábitos de vida foi enorme, e a jugal-o pelos seus antecedentes, ninguém o julgára capaz de tal. Mas o desejo de perpetuar uma vida de dissipação pode explicar a mudança e o sacrifficio. Aquillo na existência de Soares não passava de um parenthesis mais ou menos extenso. Almejava por fechal-o e continuar o periodo como havia começado, isto é, vivendo com Aspasia e pagodeando com Alcibiades. O tio não desconfiava de nada; mas temia que o rapaz fosse novamente tentado á fuga, ou porque o seduzisse a lembrança das dissipações antigas, ou porque o aborrecesse a monotonia e a fadiga do trabalho. Com o fim de impedir o desastre, lembrou-se de inspirar-lhe a ambição política. Pensava o major que a política seria um remedio decisivo para aquelle doente, como se não fosse conhecido que os louros de Lovelace e os de Turgot andam muita vez na mesma cabeça. Soares não desanimou o major. Disse que era natural acabar a sua existência na política, e chegou a dizer que algumas vezes sonhára com uma cadeira no parlamento. — Pois eu verei se te posso arranjar isto, respondeu o tio. O que é preciso é que estudes a sciencia da política, a historia do nosso parlamento e do nosso governo; e principalmente é preciso que continues a ser o que és hoje: um rapaz serio. Se bem o dizia o major, melhor o fazia Soares, que desde então metteu-se com os livros e lia com afinco as discussões das camaras. Soares não morava com o tio, mas passava bi todo o tempo que lhe sobrava do trabalho, e voltava para casa depois do chá, que era patriarchal, e bem differente das ceiatas do antigo tempo. Mo affirmo que entre as duas phrases da existência de Luiz Soares não houvesse um elo de união, e que o emigrante das terras de Guido não fizesse de quando em quando excursão á patria. Em todo o caso essas excursões erão tão secretas que ninguém sabia d’ellas, nem talvez os habitantes das referidas terras, com excepção dos poucos escolhidos para receberem o expatriado. O caso era singular, porque n’aquelle paiz não se reconhece o cidadão naturalisado estrangeiro, ao contrario da Inglaterra, que não dá aos súbditos da rainha o direito de escolherem outra patria. Soares encontrava-se de quando em quando com Pires. 0 confidente do convertido manifestava a sua amizade antiga offerecendo-lhe um charuto de Havana e contando-lhe algumas boas fortunas havidas nas campanhas do amor, em que o alarve suppunha ser consummado general. Havia já cinco mezes que o sobrinho do major Villela se achava empregado, e ainda os chefes da repartição não tinham tido um só motivo de queixa contra elle. A dedicação era digna de melhor causa. Exteriormente \ia-se em Luiz Soares um monge; raspando-se um pouco achava-se o diabo. Ora, o diabo vio de longe uma conquista... III A prima Adelaide tinha vinte e quatro annos, e a sua belleza, no pleno desenvolvimento da sua mocidade, tinha em si o condão de fazer morrer de amores. Era alta e bem proporcionada; tinha uma cabeça modelada pelo typo antigo; a testa era espaçosa e alta, os olhos rasgados e negros, o nariz levemente aquilino. Quem a contemplava durante alguns momentos sentia que ella tinha todas as energias, a das paixões e a da vontade. Ha de lembrar-se o leitor do Frio comprimento trocado entre Adelaide e seu primo também se ha de lembrar que Soares disse ao amigo Pires ter sido amado por sua prima. Ligam-se estas duas cousas. A frieza de Adelaide resultava de uma lembrança que era dolorosa para a moça; Adelaide amára o primo, não com um simples amor de primos, que em geral resulta da convivência e não de uma subita attracçao. Amára-o com todo o vigor e calor de sua alma; mas já então o rapaz iniciava os seus passos em outras regiões e ficou indifferente aos affectos da moça. Um amigo que sabia do segredo perguntou-lhe um dia por que razão não se casava, com Adelaide, ao que o rapaz respondeu friamente: — Quem tem a minha fortuna não se casa; mas se se casa é sempre com quem tenha mais. Os bens de Adelaide são a quinta parte dos meus; para ella é negocio da China; para mim é um máo negocio. O amigo que ouvira esta resposta não deixou de dar uma prova da sua affeiçao ao rapaz indo contar tudo á moça. O golpe foi tremendo, não tanto pela certeza que lhe dava de não ser amada, como pela circumstancia de nem ao menos ficar-lhe o direito de estima. A confissão de Soares era um corpo de delicto. O confidente officioso esperava talvez colher os despojos da derrota; mas Adelaide, tão depressa ouvio a delação, como desprezou o delator. O incidente não passou disto. Quando Soares voltou á casa do tio, a moça achou-se em dolorosa situação; era obrigada a conviver com um homem ao qual nem podia dar apreço, pela sua parte, o rapaz tambem se achava acanhado, não porque lhe doessem as palavras que dissera um dia, mas por causa do tio, que ignorava tudo. Não ignorava; o moço c que o suppuriha. O major soube da paixão de Adelaide e soube tambem da repulsa que tivera no coração do rapaz. Talvez não soubesse das palavras textuaes repetidas á moça pelo amigo de Soares; mas se não conhecia o texto, conhecia o espirito; sabia que, pelo motivo de ser amado, o rapaz entrára a aborrecer a prima, e que esta, vendo-se repellida, entrara a aborrecer o rapaz. O major suppoz até durante algum tempo que a ausência de Soares tinha por motivo a presença da moça em casa. Adelaide era filha de um irmão do major, homem muito rico e igualmente excêntrico, que morrera haviam dez annos deixando a moça entregue aos cuidados do irmão. Como o pai de Adelaide fizer muitas viagens, parece que gastou n’ellas a maior parte da sua fortuna. Quando morreu apenas coube a Adelaide, filha unica, cerca de trinta contos, que o tio conservou intactos para serem o dote da pupilla. Soares houve-se como pôde na singular situação em que se achava. Não conversava com a prima; apenas trocava com ella as palavras estrictamente necessárias para não chamar a attenção do tio. A moça fazia o mesmo. Mas quem póde ter mão ao coração? A prima de Luiz Soares sentio que pouco a pouco lhe ia renascendo o antigo affecto. Procurou combatel-o sinceramente; mas não se impede o crescimento de uma planta senão arrancando-lhe as raizes. As raizes existiam ainda. Apezar dos esforços da moça o amor veio pouco a pouco invadindo o lugar do odio, e se até então o supplicio era grande, agora era enorme. Travára-se uma luta entre o orgulho e o amor. A moça soffreu comsigo; não articulou uma palavra. Luiz Soares reparava que quando os seus dedos tocavam os da prima, esta experimentava uma grande emoção: corava e empallidecia. Era um grande navegador aquelle rapaz nos mares do amor: conhecia-lhe a calma e a tempestade. Convenceu-se de que a prima o amava outra vez. A descoberta não o alegrou; pelo contrario, foi-lhe motivo de grande irritação. Receaiva que o tio, descobrindo o sentimento da sobrinha, propuzesse o casamento ao rapaz; e recusal-o não seria comprometter no futuro a esperada herança? A herança sem o casamento era o ideal do moço. Dar-me azas, pensava elle, atando-me os pés, é o mesmo que condemnar-me á prisão. É o destino do papagaio domestico; não aspiro a tel-o. Realisaram-se as previsões do rapaz. O major descobrio a causa da tristeza da moça e resolveu por termo aquella situação propondo ao sobrinho o casamento. Soares não podia recusar abertamente sem comprometter o edifício da sua fortuna. — Este casamento, disse-lhe o tio, é complemento da minha felicidade. De um só lance reuno duas pessoas que tanto estimo, e morro tranquillo sem levar nenhum pezar para o outro mundo. Estou que aceitarás. — Aceito, meu tio; mas observo que o casamento assenta no amor, e eu não amo minha prima. — Bem; has de amal-a; casa-te primeiro... — Não desejo expol-a a uma desillusão. — Qual desillusão! disse o major sorrindo. Gosto de ouvir-te fallar essa linguagem poética, mas casamento não é poesia. É verdade que é bom que duas pessoas antes de se casarem se tenham já alguma estima mutua. Isso creio que tens. Lá fogos ardentes, meu rico sobrinho, são cousas que ficam bem em verso, e mesmo em prosa, mas na vida, que não prosa nem verso, o casamento apenas exige certa conformidade de genio, de educação e de estima. — Meu tio sabe que eu não me recuso a uma ordem sua. — Ordem, não! Não te ordeno, proponho. Dizes que não amas tua prima; pois bem, faze por isso, e d’aqui a algum tempo casem-se que me darão gosto. O que eu quero e que seja cedo, porque não estou longe de dar á casca O rapaz disse que sim. Adiou a difficuldade nao podendo resolvel-a. O major ficou satisfeito com o arranjo e consolou a sobrinha com a promessa de que podia casar-se um dia com o primo. Era a primeira vez que o velho tocava em semelhante assumpto, e Adelaide nao dissimulou o seu espanto, espanto que lisongeou profundamente a perspicácia do major. — Ah! tu pensas, disse elle, que eu por ser velho a perdi os olhos do coração? Vejo tudo, Adelaide; vejo aquillo mesmo que se quer esconder. A moça não pôde reter algumas lagrimas, e como o velho a consolasse dando-lhe esperanças, ella respondeu abanando a cabeça: — Esperanças, nenhuma! — Descansa em mim! disse o major. Comquanto a dedicação do tio fosse toda espontânea e lillia do amor que votava á sobrinha, esta comprehendeu que semelhante intervenção podia fazer suppor ao primo que ella esmolava os affectos do seu coração. Aqui fallou o orgulho da mulher, que preferia o soffrimento á humilhação. Quando ella expoz estas objecçoes ao tio, o major sorrio-se affavelmente e procurou acalmar a susceptibilidade da moça. Passaram-se alguns dias sem mais incidente; o rapaz estava no gozo da dilação que lhe dera o tio. Adelaide readquirio o seu ar frio e indifferente. Soares comprehendia o motivo, e áquella manifestação do orgulho respondia com um sorriso. Duas vezes notou Adelaide essa expressão de desdem da parte do primo. Que mais precisava para reconhecer que o rapaz sentia por ella a mesma indifferença de outro tempo? Accrescia que sempre que os dous se encontravam sós. Soares era o primeiro que se afastava d’ella. Era o mesmo homem. — Não me ama, não me amara nunca! dizia a moça comsigo. IV Um dia de manhã o major Villela recebeu a seguinte carta: « Meu valente major. - Cheguei da Bahia hoje mesmo, e lá irei de tarde para ver-te e abraçar-te. Prepara um jantar. Creio que me não has de receber como qualquer individuo. Não esqueças o vatapa. Teu amigo, Anselmo. » — Bravo! disse o major. Temos cá o Anselmo; prima Antonia, mande fazer um hom vatapá. O Anselmo que chegára da Bahia chamava-se Anselmo Barroso de Vasconcellos. Era um fazendeiro rico, e veterano da independência. Com os seus setenta e oito annos ainda se mostrava rijo e capaz de grandes feitos. Tinha sido intimo amigo do pai de Adelaide, que o apresentou ao major, vindo a ficar amigo d’este depois que o outro morrera. Anselmo acompanhou o amigo até os seus últimos instantes; e chorou a perda como se fora seu proprio irmão. As lagrimas cimentaram a amizade entre elle e o major. De tarde appareceu Anselmo galliofeiro e vivo como se começasse para elle uma nova mocidade. Abraçou a todos; deu um beijo em Adelaide, a quem felicitou pelo desenvolvimento das suas graças. — Não se ria de mim, disse-lhe elle, eu fui o maior amigo de seu pai. Pobre amigo! morreu nos meus braços. Soares, que soffria com a monotonia da vida que levava em casa do tio, alegrou-se com a presença do galhofeiro ancião, que era um verdadeiro fogo de artificio. Anselmo é que pareceu não sympathisar com o sobrinho do major. Quando o major ouvio isto, disse: — Sinto muito, porque Soares é um rapaz serio. — Creio que é serio de mais. Rapaz que não ri... Não sei que incidente interrompeu a phrase do fazendeiro. Depois do jantar Anselmo disse ao major: — Quantos são amanhã? — 15. — De que mez? — É boa! de Dezembro. — Bem; amanhã 15 de Dezembro preciso ter uma conferência comtigo e os teus parentes. Se o vapor se demora um dia em caminho pregava-me uma boa peça. No dia seguinte verificou-se a conferência pedida por Anselmo. Estavam presentes o major. Soares, Adelaide e D. Antonia, únicos parentes do finado. — Fazem hoje dez annos que falleceu o pai d’esta ingênua, disse Anselmo apontando para Adelaide. Como sabem, o Dr. Bento Varella foi o meu melhor amigo, e eu tenho consciência de haver correspondido á sua affeição até aos últimos instantes. Sabem que elle era um genio excêntrico; toda a sua vida foi uma grande originalidade. Ideava vinte projectos, qual mais grandioso, qual mais impossível, sem chegar ao cabo de nenhum, porque o seu espirito creador tão depressa compunha uma cousa como entrava a planear outra. — É verdade, interrompeu o major. — O Bento morreu nos meus braços, e como derradeira prova da sua amizade confiou-me um papel com a declaração de que eu só o abrisse em presença dos seus parentes dez annos depois de sua morte. No caso de eu morrer os meus herdeiros assumiriam essa obrigação; em falta d’elles, o major, a Sra. D. Adelaide, emfim qualquer pessoa que por laço de sangue estivesse ligada a elle. Emfim, se ninguém houvesse na classe mencionada, ficava incumbido um tabellião. Tudo isto havia eu declarado em testamento, que vou reformar. O papel a que me refiro, tenho aqui no bolso. Houve um movimento de curiosidade. Anselmo tirou do bolso uma carta fechada com lacre preto. — É este, disse elle. Está intacto. Não conheço o texto; mas posso mais ou menos saber o que está dentro por circumstancias que vou referir. Redobrou a attenção geral. — Antes de morrer, continuou Anselmo, o meu querido amigo entregou-me uma parte da sua fortuna, quero dizer a maior parte, porque a menina recebeu apenas trinta contos. Eu recebi d’elle trezentos contos, que guardei até hoje intactos, e que devo restituir segundo as indicações d’esta carta. A um movimento de espanto em todos seguio-se um movimento de anxiedade. Qual seria a vontade mysteriosa do pai de Adelaide? D. Antonia lembrou-se que em rapariga fòra namorada do defunto, e por um momento lisongeou-se com a idea de que o velho maniaco se houvesse lembrado d’ella ás portas da morte. — N’isto reconheço eu o mano Bento, disse o major tomando uma pitada; era o homem dos mysterios, das sorpresas e das ideas extravagantes, seja dito sem aggravo aos seus peccados, se é que os teve... Anselmo tinha aberto a carta. Todos prestaram ouvidos. O veterano leu o seguinte: « Meu bom e estimadissimo Anselmo. - Quero que me prestes o ultimo favor. Tens contigo a maior parte da minha fortuna, e eu diria a melhor se tivesse de alludir á minha querida filha Adelaide. Guarda esses trezentos contos até d’aqui a dez annos, e ao terminar o prazo, lê esta carta diante dos meus parentes. « Se n’essa época a minha filha Adelaide for viva e casada entrega-lhe a fortuna. Se não estiver casada, entrega-lh’a tambem, mas com uma condição: é que se case com o sobrinho Luiz Soares, filho de minha irmã Luiza; quero-lhe muito, e apezar de ser rico, desejo que entre na posse da fortuna com minha filha. No caso em que esta se recuse a esta condição, fica tu com a fortuna toda. » Quando Anselmo acabou de ler esta carta seguio-se um silencio de surpresa geral, de que partilhava o próprio veterano, alheio até então ao conteúdo da carta. Soares tinha os olhos em Adelaide; esta tinha-os no chão. Como o silencio se prolongasse, Anselmo resolveu rompel-o. — Ignorava, como todos, disse elle, o que esta carta contém; felizmente chega ella a tempo de se realisar a ultima vontade do meu finado amigo. — Sem duvida nenhuma, disse o major. Ouvindo isto, a moça levantou insensivelmente os olhos para o primo, e os d’ella encontraram-se com os d’elle. Os d’elle transbordavam de contentamento e ternura; a moça fitou-os durante alguns instantes. Um sorriso, já não zombeteiro, passou pelos lábios do rapaz. A moça sorrio com tamanho desdem ás zumbaias de um cortezão. Anselmo levantou-se. — Agora que estão scientes d’isto, disse elle aos dous primos, espero que resolvam, e como o resultado não pode ser duvidoso, desde já os felicito. Entretanto, hão de dar-lhe licença, que tenho de ir a outras partes. Com a sahida de Anselmo dispersára-se a reunião. Adelaide foi para o seu quarto com a velha parenta, o tio e o sobrinho ficaram na sala. — Luiz, disse o primeiro, és o homem mais feliz do mundo. — Parece-lhe, meu tio? disse o moço procurando disfarçar a sua alegria. — Es. Tens uma moça que te ama loucamente. De repente cahe-lhe nas mãos uma fortuna inesperada; e essa fortuna só póde havel-a com a condição de se casar comtigo. Até os mortos trabalham a teu favor. — Affirmo-lhe, meu tio, que a fortuna não pesa nada n’estes casos, e se eu assentar em casar com a prima será por outro motivo. — Bem sei que a riqueza não é essencial; não é. Mas emfim vale alguma cousa. É melhor ter trezentos contos que trinta: sempre é mais uma cifra. Comtudo não te aconselho que te cases com ella se não tiveres alguma affeição. Nota que eu não me refiro a essas paixões de que me fallaste. Casar mal, apezar da riqueza, é sempre casar mal. — Estou convencido d’isto, meu tio. Por isso ainda não dei a minha resposta, nem dou por ora. Se eu vier a affeiçoar-me á prima estou prompto a entrar na posse d’essa inesperada riqueza. Como o leitor terá adivinhado, a resolução do casamento estava assentada no espirito de Soares. Em vez de esperar a morte do tio, parecia-lhe melhor entrar desde logo na posse de um excellente pecúlio, o que se lhe afigurava tanto mais fácil, quanto que era a voz do túmulo que o impunha. Soares contava também com a profunda veneração de Adelaide por seu pai. Isto, ligado ao amor que a rapariga sentia por ele, devia produzir o desejado efeito. N’essa noite o rapaz dormiu pouco. Sonhou com o Oriente. Pintou-lhe a imaginação um harém recendente das melhores essências da Arábia, forrado o chão com tapetes da Pérsia; sobre moles divãs ostentavam-se as mais perfeitas belezas do mundo. Uma Circassiana dançava no meio do salão ao som de um pandeiro de marfim. Mas um furioso eunuco, precipitando-se na sala com o yatagã desembainhado, enterrou-o todo no peito de Soares, que acordou com o pesadelo, e não pôde mais conciliar o somno. Levantou-se mais cedo e foi passear até chegar a hora do almoço e da repartição. V O plano de Luiz Soares estava feito. Tratava-se de abater as armas pouco a pouco, simulando-se vencido diante a influencia de Adelaide. A circumstancia da riqueza tornava necessária toda a discrição. A transição devia ser lenta. Cumpria ser diplomata. Os leitores terão visto que, apezar de certa argúcia da parte de Soares, não tinha elle a perfeita comprehensão das cousas, e por outro lado o seu caracter era indeciso e vario. Hesitara em casar com Adelaide quando - o tio lhe fallou n’isso, quando era certo que viria a obter mais tarde a fortuna do major. Dizia então que não tinha vocação de papagaio. A situação agora era a mesma; aceitava uma fortuna mediante uma prisão. É verdade que se esta resolução era contraria á primeira, podia ter por causa o cansaço que lhe ia produzindo a vida que levava. Além de que, d’esta vez a riqueza não se fazia esperar; era entregue logo depois do consorcio. - Trezentos contos, pensava o rapaz, é quanto basta para eu ser mais do que fui. O que não hão de dizer os outros! Antevendo uma felicidade que era certa para elle. Soares começou o assedio da praça, aliás praça rendida. Já o rapaz procurava os olhos da prima, já os encontrava, já lhes pedia aquillo que recusára até então, o amor da moça. Quando, á mesa, as suas mãos se encontravam, Soares tinha cuidado de demorar o contacto, e se a moça retirava a sua mão, o rapaz nem por isso desanimava. Quando se encontrava a sós com ella, não fugia como outr’ora, antes lhe dirigia alguma palavra, a que Adelaide respondia com fria polidez. — Quer vender o peixe carro, pensava Soares. Uma vez atreveu-se a mais. Adelaide tocava piano quando elle entrou sem que ella o visse. Quando a moça acabou, Soares estava por trás d’ella. — Que lindo! disse o rapaz; deixe-me beijar-lhe essas mãos inspiradas. A moça olhou séria para elle, pegou no lenço que puzera sobre o piano, e sahio sem dizer palavra. Esta scena mostrou a Soares toda a difficuldade da empreza; mas o rapaz confiava em si, não porque se reconhecesse capaz de grandes energias, mas por espécie de esperança na sua boa estrella. — É difficil subir a corrente, disse elle, mas sobe-se. Não se fazem Alexandres na conquista de praças desarmadas. Comtudo as desillusões iam-se succedendo, e o rapaz, se o não alentasse a idéa da riqueza, teria abatido as armas. Um dia lembrou-se de escrever-lhe uma carta. Lembrou-se de que era difficil expôr-lhe de viva voz tudo quanto sentia; mas que uma carta, por muito odio que ella lhe tivesse, sempre seria lida. Adelaide devolveu a carta pelo moleque da casa que lh’a havia entregue. A segunda carta teve a mesma sorte. Quando mandou a terceira, o moleque não a quiz receber. Luiz Soares teve um instante de desengano. Indifferente á moça, já começava a odial-a; se casasse com ella era provável que a tratasse como inimigo mortal. A situação tornava-se ridicula para elle; ou antes, já o era ha muito, mas Soares só então o comprehendeu. Para escapar ao ridiculo, resolveu dar um golpe final, mas grande. Aproveitou a primeira occasião que node, e fez uma declaração positiva á moça, cheia de supplicas, de suspiros, talvez de lagrimas. Confessou os seus erros; reconheceu que não a havia comprehedido; mas arrependera-se e confessava tudo. A influencia d’ella acabára por abatel-o. — Abatel-o! disse ella; não comprehendo. A que influencia allude? — Bem sabe; á influencia da sua belleza, do seu amor... Não supponha que lhe estou mentindo. Sinto-me hoje tão apaixonado que era capaz de commetter um crime! — Um crime? — Não é crime o suicidio? De que me serviria a vida sem o seu amor? Vamos, falle! A moça olhou para elle durante alguns instantes sem dizer palavra. O rapaz ajoelhou-se. — Ou seja a morte, ou seja a felicidade, disse elle, quero recebêl-a de joelhos. Adelaide sorrio e soltou lentamente estas palavras: — Trezentos contos! É muito dinheiro para comprar um miserável. E deu-lhe as costas. Soares ficou petrificado. Durante alguns minutos conservou-se na mesma posição, com os olhos fitos na moça que se afastava lentamente. O rapaz dobrava-se ao peso da humilhação. Não previra tão cruel desforra da parte de Adelaide. Nem uma palavra de odio, nem um indicio de raiva; apenas um calmo desdem, um desprezo tranquillo e soberano. Soares soffrera muito quando perdeu a fortuna; mas agora que o seu orgulho foi humilhado, a sua dor foi infinitamente maior. Pobre rapaz. A moça foi para dentro. Parece que contava com aquella scena; porque entrando em casa, foi logo procurar o tio, e declarou-lhe que, apezar de quanto venerava a memória do pai, não podia obedecer-lhe, e desistia do casamento. — Mas não o amas tu? perguntou-lhe o major. — Amei-o. — Amas a outro? — Não. — Então explica-te. Adelaide expoz francamente o procedimento de Soares desde que alli entrára, a mudança que fizera, a sua ambição, a scena do jardim. O major ouvio attentamente a moça, procurou desculpar o sobrinho, mas no fundo elle acreditava que Soares era um mão caracter. Este, depois que pôde refrear a sua cólera, entrou em casa e foi despedir-se do tio até o dia seguinte. Pretextou que tinha um negocio urgente. VI Adelaide contou miudamente ao amigo de seu pai os successos que a obrigavam a não preencher a condição da carta postumma confiada a Anselmo. Em consequência d’esta recusa, a fortuna devia ficar com Anselmo; a moça contentava-se com o que tinha. Não se deu Anselmo por vencido, e antes de acceitar a recusa foi ver se sondava o espirito de Luiz Soares. Quando o sobrinho do major vio entrar por casa o fazendeiro suspeitou que alguma cousa houvesse a respeito do casamento. Anselmo era perspicaz; de modo que, apezar da apparencia de victima com que Soares lhe apparecera, comprehendeu elle que Adelaide tinha razão. Assim pois tudo estava acabado. Anselmo dispoz-se a partir para a Bahia, e assim o declarou á familia do major. Nas vesperas de partir achavam-se todos juntos na sala de visitas, quando Anselmo soltou estas palavras: — Major, está ficando melhor e forte; eu creio que uma viagem á Europa lhe fará hem. Esta moça também gostará de ver a Europa, e creio que a Sra. D. Antonia, apezar da idade, lá quererá ir. Pela minha parte sacrifficio a Bahia e vou também. Approvam o conselho? — Homem, disse o major, é preciso pensar... — Qual pensar! Se pensarem não embarcarão. Que diz a menina? — Eu obedeço ao tio, respondeu Adelaide. — Além de que, disse Anselmo, agora que D. Adelaide está de posse de uma grande fortuna, ha de querer apreciar o que ha de bonito nos paizes estrangeiros afim de poder melhor avaliar o que ha no nosso... — Sim, disse o major; mas você falla de grande fortuna... — Trezentos contos. — São seus. — Meus! Então sou algum ratoneiro? Que me importa a mim a fantasia de um generoso amigo? O dinheiro é d’esta menina, sua legitima herdeira, e não meu, que aliás tenho bastante. — Isto é bonito, Anselmo! — Mas 0 que não seria se não fosse isto? A viagem á Europa ficou assentada. Luiz Soares ouvio a conversa toda sem dizer palavra; mas a idéa de que talvez pudesse ir com o tio sorrio-lhe ao espirito. No dia seguinte teve um desengano cruel. Disse-lhe o major que, antes de partir, o deixaria recommendado ao ministro. Soares procurou ainda ver se alcançava seguir com a familia. Era simples cobiça na fortuna do tio, desejo de ver novas terras, ou impulso de vingança contra a prima? Era tudo isso, talvez. A ultima hora foi-se a derradeira esperança. A familia partio sem elle. Abandonado, pobre, tendo por única perspectiva o trabalho diário, sem esperanças no futuro, e além do mais, humilhado e ferido em seu amor-proprio, Soares tomou a triste resolução dos cobardes. Um dia de noite o criado ouvio no quarto d’elle um tiro; correu, achou um cadaver. Pires soube na rua da noticia, e correu á casa de Victoria, que encontrou no toucador. — Sabes de uma cousa? perguntou elle. — Não. Que é? — O Soares matou-se. — Quando? — N’este momento. — Coitado! É sério? — É serio. Vais sahir? — Vou ao Alcazar. — Canta-se hoje Barbe-Bleue, não é? — É — Pois eu também vou. E entrou a cantarolar a canção de Barbe-Bleue. Luiz Soares não teve outra oração fúnebre dos seus amigos mais íntimos. A MULHER DE PRETO I A primeira vez que o Dr. Estevão Soares fallou ao deputado Menezes foi no theatro Lyrico no tempo da memorável lucta entre lagruistas e chartonistas. Um amigo commum os apresentou ao outro. No fim da noite separaram-se offerecendo cada um d’elles os seus serviços e trocando os respectivos cartões de visita. Só dous mezes depois encontraram-se outra vez. Estevão Soares teve de ir á casa de um ministro de estado para saber de uns papéis relativos a um parente da provincia, e ahi encontrou o deputado Menezes, que acabava de ter uma conferência politica. Houve sincero prazer em ambos encontrando-se pela segunda vez e Menezes arrancou de Estevão a promessa de que iria a casa d’elle d’ahi a poucos dias. O ministro depressa despachou o joven medico. Chegando ao corredor, Estevão foi sorprendido com uma tremenda batega d’agua, que n’esse momento cahia, e começava a alargar a rua. O rapaz olhou a um e outro lado a ver se passava algum vehiculo vazio, mas procurou inutilmente; todos que passavam iam occupados. Apenas á porta estava um coupé vazio á espera de alguém, que o rapaz suppoz ser o deputado. D’ahi a alguns minutos desce com effeito o representante da nação, e admirou-se de ver o medico ainda á porta. — Que quer? disse-lhe Estevão; a chuva impedio-me de sahir; aqui fiquei a ver se passa um tilbury. — E natural que não passe, e n’esse caso offereço-lhe um lugar no meu coupé. Venha. — Perdão; mas é um incommodo... — Ora, incommodo! é um prazer. Vou deixal-o em casa. Onde mora? — Rua da Misericórdia nº... — Bem, suba. Estevão hesitou um pouco; mas não podia deixar de subir sem offender o digno homem que de tão boa vontade lhe fazia um obséquio. Subiram. Mas em vez de mandar o cocheiro para a rua da Misericórdia, o deputado gritou: — João, para casa! E entrou. Estevão olhou para elle admirado. — Já sei, disse-lhe Menezes; admira-se de ver que faltei á minha palavra; mas eu desejo apenas que fique conhecendo a minha casa afim de lá voltar quanto antes. O coupé rolava já pela rua fóra debaixo de uma chuva torrencial, Menezes foi o primeiro que rompeu o silencio de alguns minutos, dizendo ao joven amigo: — Espero que o romance da nossa amizade não termine no primeiro capitulo. Estevão, que já reparava nas maneiras solicitas do deputado, ficou inteiramente pasmado quando lhe ouviu fallar no romance da amizade. A razão era simples. O amigo que os havia apresentado no theatro Lyrico disse no dia seguinte: — Menezes é um misantropo, e um sceptico; não crê em nada, nem estima ninguém. Na politica como na sociedade faz um papel puramente negativo. Esta era a impressão com que Estevão, apezar da sympathia que o arrastava, fallou a segunda vez a Menezes, e admirava-se de tudo, das maneiras, das palavras, e do tom de affecto que ellas pareciam revelar. À linguagem do deputado o joven medico respondeu com igual franqueza. — Porque acabaremos no primeiro capitulo? perguntou elle; um amigo não e cousa que se despreze, acolhe-se como um presente de deoses. — Dos deoses! disse Menezes rindo; já vejo que e pagao. — Alguma cousa, é verdade; mas no bom sentido, respondeu Estevão rindo também. Minha vida assemelha-se um pouco á de Ulysses... — Tem ao menos uma Ithaca, sua patria, e uma Penelope, sua esposa. — Nem uma nem outra, — Então entender-nos-hemos. Dizendo isto o deputado voltou a cara para o outro lado, vendo a chuva que cabia na a vidraça da portinhola. Decorreram dous ou tres minutos, durante os quaes Estevão teve tempo de contemplar a seu gosto o companheiro de viagem. Menezes voltou-se e entrou em novo assumpto. Quando o coupé entrou na rua do Lavradio, Menezes disse ao medico: — Moro n’esta rua; estamos perto de casa. Promette-me que ha de vir ver-me algumas vezes? — Amanhã mesmo. — Bem. Como vai a sua clinica? — Apenas começo, disse Estevão; trabalho pouco; mas espero fazer alguma cousa. — O seu companheiro, na noite em que m’o apresentou, disse-me que o senhor é moço de muito merecimento. — Tenho vontade de fazer alguma cousa. D’ahi a dez minutos parava o coupé á porta de uma casa da rua do Lavradio. Apearam-se os dous e subiram. Menezes mostrou a Estevão o seu gabinete de trabalho, onde haviam duas longas estantes de livros. — É a minha familia, disse o deputado mostrando os livros. Historia, philosophia, poesia..... e alguns livros de politica. Aqui estudo e trabalho. Quando cá vier é aqui que o hei de receber. Estevão prometteu voltar no dia seguinte, e desceu para entrar no coupé que esperava por elle, e que o levou á rua da Misericórdia. Entrando em casa Estevão dizia comsigo: — Onde está a misanthropia d’aquelle homem? As maneiras de misanthropo são mais rudes do que as d’elle; salvo se elle, mais feliz do que Diogenes, achou em mim o homem que procurava. II Estevão era o typo do rapaz serio. Tinha talento, ambição e vontade de saber, tres armas poderosas nas mãos de um homem que tenha consciência de si. Desde os dezeseis annos a sua vida foi um estudo constante, aturado e profundo. Destinado ao curso medico, Estevão entrou na academia um pouco forçado; não queria desobedecer ao pai. A sua vocação era toda para as mathematicas. Que importa? disse elle ao saber da resolução paterna; estudarei a medicina e a mathematica. Com effeito teve tempo para uma e outra cousa; teve tempo ainda para estudar a litteratura, e as principaes obras da antiguidade e contemporâneas eram-lhe tão familiares como os tratados de operações e de hygiene. Para estudar tanto, foi-lhe preciso sacrificar uma parte da saude. Estevão aos vinte e quatro annos adquirira uma magreza, que não era a dos dezeseis; tinha a tez pallida e a cabeça pendia-lhe um pouco para a frente pelo longo habito da leitura. Mas esses vestigios de uma longa applicação intellectual não lhe alteraram a regularidade e harmonia das feições, nem os olhos perderam nos livros o brilho e a expressão. Era além d’isso naturalmente elegante, não digo enfeitado, que é cousa differente: era elegante nas maneiras, na attitude, no sorriso, no trajo, tudo mesclado de uma certa severidade que era o cunho do seu caracter. Podia-se notar-lhe muitas infracções ao codigo da moda; ninguém poderia dizer que elle faltasse nunca ás boas regras do gentleman. Perdera os pais aos vinte annos, mas ficára-lhe bastante juizo para continuar sósinho a viagem do mundo. O estudo servio-lhe de refugio e bordão. Não sabia nada do que era o amor. Occupara-se tanto com a cabeça que esquecera-se de que tinha um coração dentro do peito. Não se infira d’aqui que Estevão fosse puramente um positivista. Pelo contrario; a alma d’elle possuia ainda em todo a plenitude da graça e da força as duas azas que a natureza lhe dera. Não raras vezes rompia ella do cárcere da carne para ir correr os espaços do céo, em busca de não sei que ideal mal definido, obscuro, incerto. Quando voltava d’esses extasis, Estevão curava-se d’elles enterrando-se nos volumes á cata de uma verdade scientifica. Newton era-lhe o antidoto de Goethe. Além d’isso, Estevão tinha idéas singulares. Havia um padre, amigo d’elle, rapaz de trinta annos, da escola de Fenelon, que entrava com Telemaco na ilha de Calypso. Ora, o padre dizia muitas vezes a Estevão, que só uma cousa lhe faltava para ser completo: era casar-se. — Quando você tiver, dizia-lhe, uma mulher amada e amante ao pé de si, será um homem feliz e completo. Dividirá então o tempo entre as duas cousas mais elevadas que a natureza deu ao homem, a intelligencia e o coração. N’esse dia quero eu mesmo casal-o... — Padre Luiz, respondia Estevão, faça-me então O serviço completo: traga-me a mulher e a benção. O padre sorria-se ao ouvir a resposta do medico, e como o sorriso parecia a Estevão uma nova pergunta, o medico continuava: — Se encontrar uma mulher tão completa como eu exijo, affirmo-lhe que mc casarei. Dirá que as obras humanas são imperfeitas, e eu não contestarei, padre Luiz; mas n’esse caso deixe-me caminhar só com as minhas imperfeições. D’aqui engendrava-se sempre uma discussão, que se animava e crescia até o ponto em que Estevão concluia por este modo: — Padre Luiz, uma menina que deixa as bonecas para ir decorar mecanicamente alguns livros mal escolhidos; que interrompe uma lição para ouvir contar uma scena de namoro; que em matéria de arte só conhece os figurinos parisienses: que deixa as calças para entrar no baile, e que antes de suspirar por um homem, examina-lhe a correcção da gravata, e o apertado do botim; padre Luiz, esta menina póde vir a ser um esplendido ornamento de salão e até uma fecunda mãi de família, mas nunca será uma mulher. Esta sentença de Estevão tinha o defeito de certas regras absolutas. Por isso, o padre dizia-lhe sempre: — Tem você razão; mas eu não lhe digo que case com a regra; procure a excepção que ha de encontrar e leve-a ao altar, onde eu estarei para os unir. Taes eram os sentimentos de Estevão em relação ao amor e á mulher. A natureza dera-lhe em parte esses sentimentos; mas em parte adquirio-os elle nos livros. Exigia a perfeição intellectual e moral de uma Heloisa; e partia da excepção para estabelecer uma regra. Era intolerante para os erros veniaes. Não os reconhecia como taes. Não ha erro venial, dizia elle, em materia de costumes e de amor. Contribuíra para esta rigidez de animo o espectáculo da propria familia de Estevão. Até aos vinte annos foi elle testemunha do que era a santidade do amor mantido pela virtude domestica. Sua mãi, que morrera com trinta e oito annos, amou o marido até os últimos dias, e poucos mezes lhe sobreviveu. Estevão soube que fôra ardente e enthusiastico o amor de seus pais, na estação do noivado, durante a manhã conjugal: conheceu-o assim por tradição; mas na tarde conjugal a que elle assistio vio o amor calmo, solicito e confiante, cheio de dedicação e respeito, praticado como um culto; sem recriminações nem pezares, e tão profundo como no primeiro dia. Os pais de Estevão morreram amados e felizes na tranquilla serenidade do dever. No animo de Estevão, o amor que funda a familia devia ser aquillo ou não seria nada. Era justiça; mas a intolerância de Estevão começava na convicção que elle tinha de que com a d’elle morrera a ultima familia, e fôra com ella a derradeira tradição do amor. Que era preciso para derrubar todo este systema, ainda que momentâneo? Uma cousa pequenissima: um sorriso e dous olhos. Mas como esses dous olhos não appareciam. Estevão entregava-se na mór parte do tempo aos seus estudos scientificos, empregando as horas vagas em algumas distracções que o não prendiam por muito tempo. Morava só; tinha um escravo, da mesma idade que elle, e cria da casa do pai, — mais irmão do que escravo, na dedicação e no affecto. Recebia alguns amigos, a quem visitava de quando em quando, entre os quaes incluimos o joven padre Luiz, a quem Estevão chamava — Platão de sotaina. Naturalmente bom e affectuoso, generoso e cavalheiresco, sem odios nem rancores, enthusiasta por todas as cousas boas e verdadeiras, tal era o Dr. Estevão Soares, aos vinte e quatro annos de idade. Do seu retrato physico já dissemos alguma cousa. Bastará accrescentar que tinha uma bella cabeça, coberta de bastos cabellos castanhos, dous olhos da mesma cor, vivos e observadores; a pallidez do rosto fazia realçar o bigode naturalmente encaracolado. Era alto e tinha mãos admiráveis. III Estevão Soares visitou Menezes no dia seguinte. O deputado esperava-o, e recebeu-o como se fosse um amigo velho. Estevão marcára a hora da visita, que impossibilitava a presença de Menezes na camara; mas o deputado importou-se pouco com isso: não foi á camara. Mas teve a delicadeza de o não dizer a Estevão. Menezes estava no gabinete quando o criado annunciou-lhe a chegada do medico. Foi recebêl-o á porta. — Pontual como um rei, disse-lhe alegremente. — Era dever. Lembro-lhe que não me esqueci. — E agradeço-lh’o. Sentaram-se os dous. — Agradeço-lh’o porque eu receiava sobretudo que me houvesse comprehendido mal; e que os impulsos da minha sympathia não merecessem da sua parte nenhuma consideração... Estevão ia protestar. — Perdão, continuou Menezes, bem vejo que me enganei, e é por isso que lhe agradeço. Eu não sou rapaz; tenho 47 annos; e para a sua idade as relações de uni homem como eu já não têm valor. — A velhice, quando é respeitável, deve ser respeitada; e amada, quando é amavel. Mas V. Ex. não é velho; tem os cabellos apenas grisalhos: póde-se dizer que está na segunda mocidade. — Parece-lhe isso... — Parece e é. — Seja como for, disse Menezes, a verdade é que podemos ser amigos. Quantos annos tem? — Vinte e quatro. — Olhe lá; podia ser meu filho. Tem seus pais vivos? — Morreram ha quatro annos. — Lembra-me haver dito que era solteiro... — É verdade. — De maneira que os seus cuidados são todos para a sciencia? — É a minha esposa. — Sim, a sua esposa intellectual; mas essa não basta a um homem como o senhor.... Emfim, isso é como o tempo; está ainda moço. Durante este dialogo, Estevão contemplava e observava Menezes, em cujo rosto batia a claridade que entrava por uma das janellas. Era uma cabeça severa, cheia de cabellos já grisalhos, que lhe cahiam em gracioso desalinho. Tinha os olhos negros e um pouco amortecidos; adivinhava-se porém que deviam ter sido vivos e ardentes. As suiças também grisalhas eram como as de lord Palmerston, segundo dizem as gravuras. Não tinha rugas de velhice; tinha uma ruga na testa, entre as sobrancelhas, indicio de concentração de espirito, e não vestigio do tempo. A testa era alta, o queixo e as maçãs do rosto um pouco salientes. Adivinhava-se que devia ter sido formoso no tempo da primeira mocidade; e antevia-se já uma velhice imponente e augusta. Sorria de quando em quando; e o sorriso, embora aquelle rosto não fosse de um ancião, produzia uma impressão singular; parecia um raio de lua no meio de uma velha ruina. É que o sorriso era amavel, mas não era alegre. Todo aquelle conjunto impressionava e attrahia; Estevão sentia-se cada vez mais arrastado para aquelle homem, que o procurava, e lhe estendia a mão. A conversa continuou no tom affectuoso com que começara; a primeira entrevista da amizade é o opposto da primeira entrevista do amor; n’esta a mudez é a grande eloquência; n’aquella inspira-se e ganha-se a confiança, pela exposição franca dos sentimentos e das idéas. Não se fallou de politica. Estevão alludio de passagem ás funcções de Menezes; mas foi um verdadeiro incidente a que o deputado não prestou attenção. No fim de uma hora, Estevão levantou-se para sahir; tinha de ir ver um doente. — O motivo é sagrado; senão retinha-o. — Mas eu voltarei outras vezes. — Sem duvida alguma, e eu irei vel-o algumas vezes. Se no fim que quinze dias não se aborrecer… Olhe, venha de tarde; janta algum.as vezes comigo; depois da camara estou completamente livre. Estavão sahio promettendo tudo. Voltou lá, com effeito, e jantou duas vezes com o deputado, que também visitou Estevão em casa; foram ao theatro juntos; relacionaram-se intimamente com as familias conhecidas. No fim de um mez eram dous amigos velhos. Tinham observado reciprocamente o caracter e os sentimentos. Menezes gostava de ver a seriedade do medico e o seu bom senso; estimava-o com as suas intolerâncias, applaudindo-lhe a generosa ambição que o dominava. Pela sua parte o medico via em Menezes um homem que sabia ligar a austeridade dos annos á amabilidade de cavalheiro, modesto nas suas maneiras, instruido, sentimental, Da misanthropia anuunciada não encontrou vestigios. É verdade que em algumas occasiões Menezes parecia mais disposto a ouvir do que a fallar; e então o olhar tornava-se-lhe sombrio e parado, como se em vez de ver os objectos exteriores, estivesse contemplando a sua propria consciência. Mas eram rápidos esses momentos, e Menezes voltava logo aos seus modos habituaes. — Não é um misanthropo, pensava então Estevão; mas este homem tem um drama dentro de si. A observação de Estevão adquirio certo caracter de verosimilhança quando uma noite em que se achavam no theatro Lyrico, Estevão chamou a attenção de Menezes para uma mulher vestida de preto que se achava em um camarote da primeira ordem, — Vão conheço aquella mulher, disse Estevão. Sabe quem é? Menezes olhou para o camarote indicado, contemplou a mulher por alguns instantes e respondeu: — Não conheço. A conversa ficou ahi; mas o medico reparou que a mulher duas vezes olhou para Menezes, e este duas vezes para ella, encontrando-se os olhos de ambos. No fim de espectáculo, os dous amigos dirigiram-se pelo corredor do lado em que estivera a mulher de preto. Estevão teve apenas nova curiosidade, a curiosidade de artista: quiz vel-a de perto. Mas a porta do camarote estava fechada. Teria já sahido ou não? Era impossivel sabel-o. Menezes passou sem olhar. Ao chegarem ao patamar da escada que dá para o lado da rua dos Ciganos, pararam os dous porque havia grande affluencia de gente. D’ahi a pouco ouvio-se passo apressado; Menezes voltou o rosto; e dando o braço a Estevão desceu immediatamente, apezar da difficuldade. Estevão comprehendeu, mas nada vio. Pela sua parte, Menezes não deu signal algum. Apenas se desembaraçaram da multidão, o deputado encetou uma alegre conversa com o medico. — Que effeito lhe faz, perguntou elle, quando passa no meio de tantas damas elegantes, aquella confusão de sedas e de perfumes? Estevão respondeu distrahidamente, e Menezes continuou a conversa no mesmo estylo; d’ahi a cinco minutos a aventura do theatro tinha-se-lhe varrido da memoria. IV Um dia Estevão Soares foi convidado para um Baile em casa de um velho amigo de seu pai. A sociedade era luzida e numerosa; Estevão, embora vivesse muido arredado, achou alli grande numero de conhecidas. Não dansou; vio, conversou um pouco e sahio. Mas ao entrar levava o coração livre; ao sahir trouxe nelle uma flecha, para fallar a linguagem dos poetas da Arcadia; era a flecha do amor. Do amor? A fallar a verdade não se póde dar este nome ao sentimento experimentado por Estevão; não era ainda o amor, mas bem póde ser que viesse a sel-o. Por emquanto era um sentimento de fascinação doce e branda; uma mulher que lá estava produzira n’elle a impressão que as fadas produziam os principes errantes ou nas princezas perseguidas, segundo nos rezam os contos das velhas. A mulher em questão não era uma virgem; era uma viuva de trinta e quatro annos, bella como o dia, graciosa e terna. Estevão via-a pela primeira vez; pelo menos não se lembrava d’aquellas feições. Conversou com ella durante meia hora, e tão encantado ficou com as maneiras, a voz, a belleza de Magdalena, que ao chegar á casa não pôde dormir. Como verdadeiro medico que era, sentia em si os symptomas d’essa hypertrophia do coração que se chama amor e procurou combater a enfermidade nascente. Leu algumas paginas de mathematica, isto é, percorreu-as com os olhos; porque apenas começava a ler o espirito alheava do livro onde apenas ficavam os olhos: o espirito ia ter com a viuva. O cansaço foi mais feliz que Euclydes: sobre a madrugada Estevão Soares adormeceu. Mas sonhou com a viuva. Sonhou que a apertava em seus braços que a cobria de beijos, que era seu esposo perante a Igreja e perante a sociedade. Quando acordou e lembrou-se do sonho, Estevão sorrio. — Casar-me! disse elle. Era o que me faltava. Como poderia eu ser feliz com o espirito receioso e ambicioso que a natureza me deu? Acabemos com isto; nunca mais verei aquella mulher...... e boa noite. Começou a vestir-se. Trouxeram-lhe o almoço; Estevão comeu rapidamente, porque era tarde, e sahio para ir ver a alguns doentes. Mas ao passar pela rua do Conde lembrou-se que Magdalena lhe dissera morar alli; mas aonde? A viuva disse-lhe o numero; o medico porém estava tão embebido em ouvil-a fallar que não o decorou. Queria e não queria; protestava esquecel-a, e comtudo daria o que se lhe pedisse para saber o numero da casa n’aquelle momento. Como ninguém podia dizer-lhe, o rapaz tomou o partido de ir-se embora. No dia seguinte, porém, teve o cuidado de passar duas vezes pela rua do Conde a ver se descobria a encantadora viuva. Não descobrio nada; mas quando ia tomar um tilbury e voltar para casa encontrou o amigo de seu pai em cuja casa encontrára Magdalena. Estevão já tinha pensado n’elle; mas immediatamente tirou d’alli o pensamento, porque ir perguntar-lhe onde morava a viuva era uma cousa que podia trahil-o. Estevão já empregava o verbo trahir. O homem em questão, depois de comprimentar ao medico, e trocar com elle algumas palavras, disse-lhe que ia á casa de Magdalena, e despedio-se. Estevão estremeceu de satisfação. Acompanhou de longe o amigo e vio-o entrar em uma casa. — E alli, pensou elle. E afastou-se rapidamente. Quando entrou em casa achou uma carta para elle: a lettra, que lhe era desconhecida, estava traçada com elegancia e cuidado: a carta rescendia de sandalo, O medico rompeu o lacre. A carta dizia assim: « Amanhã toma-se chá em minha casa. Se quizer vir passar algumas horas comnosco dar-nos-ha summo prazer. — Magdalena C... » Estevão leu e releu o bilhete; teve idéa de leval-o aos lábios, mas envergonhado diante de si proprio por uma idéa que lhe parecia de fraqueza, cheirou simplesmente o bilhete e metteu-o no bolso. Estevão era um pouco fatalista. — Se eu não fosse áquelle baile não conhecia esta mulher, não andava agora com estes cuidados, e tinha conjurado uma desgraça ou uma felicidade, porque ambas as cousas podem nascer d’este encontro fortuito. Que será? Eis-me na duvida de Hamleto. Devo ir á casa d’ella? A cortezia pede que vá. Devo ir; mas irei encouraçado contra tudo. E preciso romper com estas idéas, e continuar a vida tranquilla que tenho tido. Estava n’isto quando Menezes lhe entrou por casa. Vinha buscal-o para jantar. Estevão sahio com o deputado. Em caminho fez-lhe perguntas curiosas. Por exemplo: — Acredita no destino, meu amigo? Pensa que ha um deos do bem e um deos do mal, em conflicto travado sobre a vida do homem? — O destino é a vontade, respondia Menezes; cada homem faz o seu destino. — Mas emfim nós temos presentimentos...... Ás vezes adivinhamos acontecimentos em que não tomamos parte; não lhe parece que é um deos bemfazejo que nol-os segreda — Falla como um pagão; eu não creio em nada d’isso. Creio que tenho estomago vazio, e o que melhor podemos fazer é jantar aqui mesmo no hotel de Europa em vez de ir á rua do Lavradio. Subiram ao hotel de Europa. Alli haviam vários deputados que conversavam de politica, e os quaes se reuniram a Menezes. Estevão ouvia e respondia, sem esquecer nunca a viuva, a carta e o sandalo. Assim, pois, davam-se contrastes singulares entre a conversa geral e o pensamento de Estevão. Dizia por exemplo um deputado: — O governo é reactor; as provindas não podem mais supportal-o. Os principios estão todos preteridos; na minha provincia foram demittidos alguns subdelegados pela circumstancia unica de serem meus parentes; meu cunhado, que era director das rendas, foi posto fóra do lugar, e este deu-se a um peralta contra-parente dos Valladares. Eu confesso que vou romper amanhã a opposição. Estevão olhava para o deputado; mas no interior estava dizendo isto: — Com effeito, Magdalena é bella, é admiravelmente bella. Tem uns olhos de matar. Os cabellos são lindissimos; tudo n’ella é fascinador. Se pudesse ser minha mulher, eu seria feliz; mas quem sabe?... Comtudo sinto que vou am al-a. Já é irresistível; é preciso amal-a; e ella? que quer dizer aquelle convite? Amar-me-ha? Estevão embebera-se tanto n’esta contemplação ideal, que, acontecendo perguntar-lhe um deputado se não achava a situação negra e carrancuda, Estevão entregue ao seu pensamento respondeu: — É lindíssima! — Ah! disse o deputado, vejo que o senhor é ministerialista. Estevão sorrio; mas Menezes franzio o sohr’olho. Comprehendera tudo. V Quando sahiram, o deputado disse ao medico: — Meu amigo, você é desleal comigo...... — Porque? perguntou Estevão meio serio e meio risonho, não comprehendendo a observação do deputado. — Sim, continuou Menezes; você esconde-me um segredo... — Eu? — É verdade: é um segredo de amor. — Ah!... disse Estevão; porque diz isso? — Reparei ha pouco que, ao passo que os mais conversavam em politica, você pensava em uma mulher, e mulher... lindíssima... Estevão comprehendeu que estava descoberto; não negou. — É verdade, pensava em uma mulher. — E eu serei o ultimo a saber? — Mas saber o que? Não ha amor, não ha nada. Encontrei uma mulher que me impressionou e ainda agora me preoccupa; mas é bem possivel que não passe d’isto. Ahi está. É um capitulo interrompido; um romance que fica na primeira pagina. Eu lhe digo ha de me ser difficil amar. — Porque? — Eu sei? custa-me a crer no amor. Menezes olhou fixamente para Estevão, sorrio, abanou a cabeça e disse: — Olhe, deixa a descrença para os que já soffreram as decepções; o senhor está moço, não conhece ainda nada d’esse sentimento. Na sua idade ninguém é sceptico... Demais, se a mulher é bonita, eu aposto que d’aqui a pouco ha de dizer-me o contrario. — Póde ser... respondeu Estevão. E ao mesmo tempo entrou a pensar nas palavras de Menezes, palavras que elle comparava ao episodio do theatro Lyrico. Entretanto, Estevão foi ao convite de Magdalena. Preparou-se e perfumou-se como se fosse fallar a uma noiva. Que sahiria d’aquelle encontro? Viria de lá livre ou captivo? Já seria amado? Estevão não deixou de pensal-o; aquelle convite parecia-lhe uma prova irrecusável. O medico entrando n’um tilbury começou a formar vários castellos no ar. Emfim chegou à casa. VI Magdalena estava na sala acompanhada de um filho. Ninguém mais. Eram nove horas e meia. — Viria eu cedo de mais? perguntou elle á dona da casa. — O senhor nunca vem cedo. Estevão inclinou-se. Magdalena continuou: — Se me acha só, é porque, tendo enfermado um pouco, mandei desavisar as poucas pessoas que eu havia convidado. — Ah! mas eu não recebi... — Naturalmente; eu não lhe mandei dizer nada. Era a primeira vez que o convidava; não queria por modo algum arredar de casa um homem tão distincto. Estas palavras de Magdalena não valiam cousa alguma, nem mesmo como desculpa, porque a desculpa é fraquissima. Estevão comprehendeu logo que havia algum motivo occulto. Seria o amor? Estevão pensou que era, e doeu-se, porque, apezar de tudo, sonhara uma paixão mais reservada e menos precipitada. Não queria, embora lhe agradasse, ser objecto d’aquella preferencia; e mais que tudo achava-se embaraçadissimo diante de uma mulher a quem começava a amar, e que talvez o amasse. Que lhe diria? Era a primeira vez que o medico achava-se em taes apuros. Ha toda a razão para suppôr que Estevão n’aquelle momento preferia estar cem léguas distante, e comtudo, longe que,estivesse pensaria n’ella. Magdalena era excessivamente bella, embora mostrasse no rosto signaes de longo soffrimento. Era alta, cheia, tinha um bellissimo collo, magnificos braços, olhos castanhos e grandes, boca feita para ninho de amores. N’aquelle momento trajava um vestido preto. A cor preta ia-lhe muito bem. Estevão contemplava aquella figura com amor e adoração; ouvia-a fallar e sentia-so encantado e dominado por um sentimento que não podia explicar. Era um mixto de amor e de receio. | Magdalena mostrou-se delicada e solicita. Fallou no merecimento do rapaz e na sua nascente reputação, e instou com elle para que fosse algumas vezes visital-a. As 10 horas e meia servio-se o chá na sala. Estevão conservou-se lá até ás 11 horas. Chegando á rua o medico estava completamente namorado. Magdalena tinha-o atado no seu carro, e o pobre rapaz nem vontade tinha de quebrar o jugo. Caminhando para casa ia elle formando projectos: via-se casado com ella, amado e amante, causando inveja a todos, e mais que tudo feliz no seu interior. Quando chegou á casa, lembrou-se de escrever uma carta que mandaria no dia seguinte a Menezes. Escreveu cinco e rasgou-as todas. A final redigio um simples bilhete n’estes termos: « Meu amigo. — Você tem razão; na minha idade crê-se; eu creio e amo. Nunca o pensei; mas é verdade. Amo... Quer saber a quem? Hei de apresental-o em casa d’ella. Ha de achal-a bonita… Se o é !... » A carta dizia muitas cousas mais; era tudo, porém, uma glosa do mesmo mote. Estevão voltou á casa de Magdalena e as suas visitas começaram a ser regulares e assiduas. A viuva usava para com elle de tanta solicitude que não era possivel duvidar do sentimento que a dirigia. Pelo menos Estevão assim o pensava. Achava-a quasi sempre só, e deliciava-se em ouvil-a. A intimidade começou a estabelecer-se. Logo na segunda visita, Estevão fallou-lhe em Menezes pedindo licença para apresental-o. A viuva disse que teria muito prazer em receber amigos de Estevão; mas pedia-lhe (que adiasse a apresentação.) Todos os pedidos e todas as razões de Magdalena eram dignas para o medico; não disse mais nada. Como era natural, ao passo que as visitas á viuva eram mais assiduas, as visitas ao amigo eram mais raras. Menezes não se queixou; comprehendeu, e disse-o ao rapaz. — Não se desculpe, accrescentou o deputado; é natural; a amizade deve ceder o passo ao amor. O que eu quero é que seja feliz. Um dia Estevão pedio ao amigo que lhe contasse o motivo que o tinha feito descrer do amor, e se algum grande infortúnio lhe havia acontecido. — Nada me aconteceu, disse Menezes. Mas ao mesmo tempo, comprehendendo que o medico merecia-lhe toda a confiança, e podia não acredital-o absolutamente, disse: — Porque negal-o? Sim, aconteceu-me um grande infortúnio; amei também, mas não encontrei no amor as doçuras e a dignidade do sentimento: emfim, é um drama intimo de que não quero fallar; limite-se a pateal-o. VII — Quando quizer que eu lhe apresente o meu amigo Menezes... dizia Estevão uma noite á viuva Magdalena. — Ah! é verdade; um dia d’estes. Vejo que o senhor é amigo d’elle. — Somos amigos intimos. — Verdadeiros? — Verdadeiros. Magdalena sorrio; e como estava brincando com os cabellos do filho deu-lhe um beijo na testa. A criança rio alegremente e abraçou a mãi. A idéa de vir a ser pai honorário do pequeno apresentou-se. ao espirito de Estevão. Contemplou-o, chamou por elle, acariciou-o e deu-lhe um beijo no mesmo lugar em que pousaram os lábios de Magdalena. Estevão tocava piano, e ás vezes executava algum pedaço de musica a pedido de Magdalena. N’essas e n’outras distracções lá passavam as horas. O amor não adiantava um passo… Podiam ser ambos duas crateras prestes a rebentar a lava; mas até então não davam o menor signal de si. Esta situação incommodava o rapaz, acanhava-o, e fazia-o soffrer; mas quando elle pensava em dar um ataque decisivo, era exactamente quando se mostrava mais cobarde e poltrão. Era o primeiro amor do rapaz: elle nem conhecia as palavras proprias d’esse sentimento. Um dia resolveu escrever á viuva. — É melhor, pensava elle; uma carta é eloquente e tem a grande vantagem de deixar a gente longe. Entrou para o gabinete e começou uma carta. Gastou n’isso uma hora; cada phrase occupava-lhe muito tempo. Estevão queria fugir á hypothese de ser classificado como tolo ou como sensual. Queria que a carta não respirasse sentimentos frivolos nem máos: queria revelar-se puro como era. Mas de que não dependem ás vezes os acontecimentos? Estevão estava relendo e emendando a carta quando lhe entrou por casa uma rapazola que tinha intimidade com elle. Chamava-se Oliveira e passava por ser o primeiro janota do Rio de Janeiro. Entrou com um rolo de papel na mão. Estevão escondeu rapidamente a carta. — Adeos, Estevão! disse o recem-chegado. Estavas escrevendo algum libello ou carta de namoro? — Nem uma nem outra cousa, respondeu Estevão seccamente. — Dou-te uma noticia. — Que é? — Entrei na litteratura. — Ah! — É verdade, e venho ler-te a primeira comedia, — Deos me livre! disse Estevão levantando-se. — Has de ouvir, meu amigo; ao menos algumas scenas; dar-se-ha caso que não me protejas nas lettras? Anda cá; ao menos duas scenas. Sim? É pouca cousa. Estevão sentou-se. O dramaturgo continuou: — Talvez prefiras ouvir a minha tragédia intitulada. — O punhal de Brito... — Não, não; prefiro a comedia: é menos sanguinaria. Vamos lá. O Oliveira abrio o rolo, arranjou as folhas, tossio e começou a ler o que se segue, com voz pausada e fanhosa: SCENA I. CESAR (entrando pela direita), JOÃO (pela esquerda). CESAR. « Fechada! A sinhá já se levantou? JOAO. « Já, sim senhor; mas está incommodada. CESAR. « O que tem? JOÃO. « Tem… está incommodada. CESAR. « Já sei. (comsigo). Os incommodos do costume. (A João). Qual é então o remedio hoje? JOAO. « O remedio? (Depois de uma pausa). Não sei. CESAR. « Está bom, vai-te! SCENA II CESAR, FREITAS (pela direita). CESAR. « Bom dia, Sr. procurador... FREITAS. « De causas perdidas. Só me occupo em procurar ás perdidas. Procurar o que se não perdeu é tolice. A minha constituinte? CESAR. « Disse-me o João que está incommodada. FREITAS. « Mesmo para V. S? CESAR (sentando-se). « Mesmo para mim. Porque me olha com esse olhar? Tem inveja? FREITAS. « Não é inveja, é admiração! De ordinário ninguém corresponde ao nome que recebeu na pia; mas o Sr. Cesar, benza-o Deos, não desmente que traz um nome significativo, e trata de ser nas paginas amorosas o que foi o outro nas batalhas campaes. CESAR. « Pois também os procuradores dizem cousas d’estas? FREITAS. « De vez em quando. (Indo sentar-se). V. S. admira-se? CESAR (tirando charutos). « Como não é de costume... Quer um charuto? FREITAS. « Obrigado... Eu tomo rapé (Tira a boceta). Quer uma pitada? CESAR. « Obrigado. FREITAS (sentando-se). « Pois a causa da minha constituinte vai as mil maravilhas. A parte contraria requereu assignação de dez dias, mas eu vou... CESAR. « Está bom, Sr. Freitas, eu dispenso o resto; ou então não me falle linguagem do fôro. Em resumo, ella vence? FREITAS. « Está claro. Tratando provar que... CESAR. « Vence, é quanto basta. FREITAS. « Pudera não vencer! Pois se eu ando n’isto... CESAR. « Tanto melhor! FREITAS. « Ainda não me lembro de ter perdido uma só causa: isto é, já perdi uma, mas é porque nas vésperas de ganhar disse-me o constituinte que desejava perdêl-a. Dito e feito. Provei o contrario do que já tinha provado, e perdi... ou antes, ganhei, porque perder assim é ganhar. CESAR. « É a phénix dos procuradores. FREITAS (modestamente). « São os seus bons olhos... CESAR. « Mas a consciência? FREITAS. « Quem é a consciência? CESAR. « A consciência, a sua consciência? FREITAS. « A minha consciência? Ah! essa também ganha. CESAR (levantando-se). « Ah! também?... FREITAS (o mesmo). « Tem V. S. alguma demandazinha? CESAR. « Não, não, não tenho; mas, quando tiver, fique descansado, vou bater á sua porta... FREITAS. « Sempre ás ordens de V. S. » VIII Estevão interrompeu violentamente a leitura, o que desgostou bastante ao poeta novel. O pobre candidato ás musas mal pôde balbuciar uma supplica; Estevão mostrou-se surdo, e o mais que lhe concedeu foi ficar com a comedia para lêl-a depois. Oliveira contentou-se com isso; mas não se retirou sem recitar-lhe de cór uma falla do protogonista da tragédia, em versos duros e compridos, dando-lhe por quebra uma estrophe de uma poesia lyrica, no estylo dos Djinns de Victor Hugo. Emfim sahio. Entretanto havia passado o tempo. Estevão releu a carta e quiz ainda mandal-a; mas a interrupção do poeta fòra proveitosa; relendo a carta, Estevão achou-a fria e nulla; a linguagem era ardente, mas não lhe correspondia ao fogo do coração. — É inútil, disse elle rasgando a carta em mil pedaços, a lingua humana ha de ser sempre impotente para exprimir certos affectos da alma; tudo aquillo era frio e indifferente no que eu sinto. Estou condemnado a não dizer nada ou a dizer mal. Ao pé d’ella não tenho forças, sinto-me fraco... Estevão parou diante da janella que dava para a rua, no momento em que passava um antigo collega d’elle, com a mulher de braço, a mulher que era bonita, e com quem se casára um mez antes. Os dous iam alegres e felizes. Estevão contemplou aquelle quadro com adoração e tristeza. O casamento já não era para elle aquelle impossivel de que fallava quando apenas tinha ideas e não sentimentos. Agora era uma ventura realisavel. O casal que passára dera-lhe nova força. — É preciso acabar com isto, dizia elle; eu não posso deixar de ir áquella mulher e dizer-lhe que a amo, que a adoro, que desejo ser seu marido. Ella amar-me-ha, se já me não ama: sim, ama-me... E começou a vestir-se. Quando calçava as luvas e lançava um olhar para o relogio, o criado trouxe-lhe uma carta. Era de Magdalena, « Espero, meu caro doutor, que não deixe de vir hoje; esperei-o hontem em vão. Desejo fallar-lhe. » Estevão acabou de ler este bilhete na escada, com tal pressa descia e tal urgência tinha de achar-se em casa da viuva. O que elle não queria era perder aquelle assomo de coragem. Partio. Quando chegou á casa de Magdalena achava-se esta á janella. Recebeu-o com a costumada affabilidade. Estevão desculpou-se como pôde por não ter podido vir na vespera, accrescentando que só com desgosto do seu coração havia faltado. Que melhor occasião do que era essa para lançar a bomba de uma declaração franca e apaixonada? Estevão hesitou alguns segundos; mas tomando animo, ia continuar o periodo, quando a viuva lhe disse: — Estava anciosa por vel-o para communicar-lhe uma cousa de certa importância, e que só a um homem de honra, como o senhor, se póde confiar. Estevão empallicedeu. — Sabe onde foi que eu o vi pela primeira vez? — No baile de***. — Não; foi antes d’isso; foi no theatro Lyrico. — Ah! — Lá o vi com o seu amigo Menezes. — Fomos algumas vezes lá! Magdelena entrou então em uma longa exposição, que o rapaz ouvio sem pestanejar, mas pallido e agitado por commoções intimas. As ultimas palavras da viuva foram estas: — Bem vè, senhor; cousas d’estas só uma grande alma póde ouvil-as. As pequenas não as comprehendem. Se lhe mereço alguma cousa, e se esta confiança pode ser paga com um beneficio, peço-lhe que faça o que lhe pedi. O medico passou a mão pelos olhos, e apenas murmurou: — Mas...... N’este momento entrava na sala o filhinho de Magdalena; a viuva levantou-se e trouxe-o pela mão até o lugar onde se achava Estevão Soares. — Se não por mim, disse ella, ao menos por esta criança innocente! A criança, sem nada comprehender, atirou-se aos braços de Estevão. O moço deu-lhe um beijo na testa, e disse para a viuva: — Se hesitei não foi porque duvidasse do que a senhora acaba de contar-me; foi porque a missão é espinhosa; mas prometto que hei de cumpril-a. IX Estevão sahio da casa da viuva agitado por diversos sentimentos, com passo tremulo e a vista turva. A conversa com a viuva fôra um longo combate; a ultima promessa foi um golpe decisivo e mortal. Estevão sabia d’alli como um homem que acabava de matar as suas esperanças em flôr; caminhava ao acaso, precisava de ar e queria metter-se em um quarto sombrio; quizera ao mesmo tempo estar solitário e no meio de immensa multidão. No caminho encontrou Oliveira, o poeta novel. Lembrou-se que a leitura da comedia impedira a remessa da carta, e portanto poupou-lhe um tristissimo desengano. Estevão involontariamente abraçou o poeta com toda a effusão d’alma. Oliveira correspondeu ao abraço, e quando pôde desligar-se do medico, disse-lhe: — Obrigado, meu amigo; estas manifestações são muito honrosas para mim ; sempre te conheci como um perfeito juiz litterario, e a prova que acabas de dar-me é uma consolação e uma animação; consola-me do que tenho soffrido, anima-me para novos commettimentos. Se Torquato Tasso... Diante d’esta ameaça de discurso, e sobretudo vendo a interpretação do seu abraço, Estevão resolveu-se a continuar caminho abandonando o poeta. — Adeos, tenho pressa. — Adeos, obrigado! Estevão chegou á casa e atirou-se á cama. Ninguém o soube nunca, só as paredes do quarto foram testemunhas; mas a verdade é que Estevão chorou lagrimas amargas. Emfim que lhe dissera Magdalena e que exigira d’elle? A viuva não era viuva; era mulher de Menezes; viera do Norte mezes antes do marido, que só veio como deputado; Menezes que a amava doudamente, e que era amado com igual delirio, accusava-a de infidelidade; uma carta e um retrato eram os indicios: ella negou, mas explicou-se mal; o marido separou- se e mandou-a para o Rio de Janeiro. Magdalena aceitou a situação com resignação e coragem: não murmurou nem pedio; cumprio a ordem do marido. Todavia Magdalena não era criminosa; o seu crime era uma apparencia; estava condemnada por fidelidade de honra. A carta e o retrato não lhe pertenciam; eram apenas um deposito imprudente e fatal, Magdalena podia dizer tudo, mas era trahir uma promessa; não quiz; preferio que a tempestade domestica cahisse unicamente sobre ella. Agora, porém, a necessidade do segredo expirára, Magdalena recebeu do Norte uma carta em que a amiga, no leito da morte, pedia que inutilisasse a carta e o retrato, ou os restituisse ao homem que lh’os dera. Esta carta era uma justificação, Magdalena podia mandar a carta ao marido, ou pedir-lhe uma entrevista; mas receiava tudo; sabia que seria inútil, porque Menezes era extremamente severo. Vira o medico uma noite no theatro em companhia de seu marido; indagára e soube que eram amigos; pedia-lhe pois que fosse mediador entre os dous, que a salvasse e que reconstruísse uma familia. Não era pois sómente o amor de Estevão que soffria; era também o seu amor-proprio. Estevão facilmente comprehendeu que não fora attrahido áquella casa para outra cousa. É verdade que a carta só chegara na vespera; mas a carta apenas vinha apressar a resolução. Naturalmente Magdalena pedir-lhe-hia, sem haver carta, algum serviço analogo áquelle. Se se tratasse de qualquer outro homem, Estevão recusaria o serviço que lhe pedia a viuva; mas tratava-se do seu amigo,, de um homem a quem elle devia estima e serviços de amizade. Aceitou, pois, a cruel missão. — Cumpra-se o destino, disse elle; hei de ir lançar a mulher que amo aos braços de outro; e por desgraça maior, em vez de gozar com este restabelecimento de concordia domestica, vejo-me na dura situação de amar a mulher do meu amigo, isto é, de fugir para longe... Estevão não sahio mais de casa n’esse dia. Quiz escrever ao deputado contando-lhe tudo: mas pensou que o melhor era fallar-lhe de viva voz. Embora lhe custasse mais, era de mais effeito para o desempenho da sua promessa. Adiou, porém, para 0 dia seguinte, ou antes para o mesmo dia, porque a noite não lhe interrompeu o tempo, visto que Estevão não dormio um minuto sequer. X Levantou-se da cama o pobre namorado sem ter conseguido dormir. Vinha nascendo o sol. Quiz ler os jornaes e pedio-os. Já os ia pondo de lado, por haver acabado de 1er, quando repentinamente vio o seu nome impresso no Jornal do Commercio. Era um artigo a pedido com o titulo de Uma obra prima. Dizia o artigo: « Temos o prazer de annunciar ao paiz o proximo apparecimento de uma excellente comedia, estréa de um joven litterato fluminense, de nome Antonio Carlos de Oliveira. « Este robusto talento, por muito tempo incognito, vai emfim entrar nos mares da publicidade, e para isso procurou logo ensaiar-se em uma obra de certo vulto. « Consta-nos que o autor, solicitado por seus numerosos amigos, leu ha dias a comedia em casa do Sr. Dr. Estevão Soares, diante de um luzido auditório, que applaudio muito e prophetisou no Sr. Oliveira um futuro Shakspeare. « O Sr. Dr. Estevão Soares levou a sua amabilidade a ponto de pedir a comedia para ler segunda vez, e hontem ao encontrar-se na rua com o Sr. Oliveira, de tal enthusiasmo vinha possuido que o abraçou estreitamente, com grande pasmo dos numerosos transeuntes. « Da parte de um juiz tão competente em matérias litterarias este acto é honroso para o Sr. Oliveira. « Estamos anciosos por ler a peça do Sr. Oliveira, e ficamos certo de que ella fará fortuna de qualquer theatro. « O AMIGO DAS LETTRAS. » Estevão, apezar dos sentimentos que o agitavam então, enfureceu-se com o artigo que acabava de ler. Não havia duvida que o autor d’elle era o proprio autor da comedia. O abraço da vespera fora mal interpretado, e o poetastro aproveitava-o em seu favor. Se ao menos não fallasse no nome de Estevão, este poderia desculpar a vaidadezinha do escriptor. Mas o nome alli estava como complice da obra. Pondo de lado o Jornal do Commercio, Estevão lembrou-se de protestar, e ia já escrever um artigo quando recebeu uma cartinha de Oliveira. Dizia a carta: « Meu Estevão. — Lembrou-se um amigo meu de escrever alguma cousa a proposito da minha peça. Expliquei-lhe como se dera a leitura em tua casa, e disse-lhe como é que, apezar do vivo desejo que linhas de ouvir lel-a, interrompeste-me para ir cuidar de um doente. Apezar de tudo isto, o meu referido amigo contou hoje no Jornal do Commercio a história alterando um pouco a verdade. Desculpa-o; é linguagem da amizade e da benevolencia. « Hontem entrei para casa tão orgulhoso com o teu abraço que escrevi uma ode, e assim manifestou-se em mim a veia lyrica, depois da cômica e da tragica. Ahi te mando o rascunho; se não prestar, rasga-a. » A carta tinha, por engano, a data da vespera. A ode era muito comprida; Estevão nem a leu; atirou-a para um canto. A ode começava assim: Sahe do teu monte, ó musa! Vem inspirar a lyra do poeta; Enche de luz a minha fronte ousada, E mandemos aos evos, Nas azas de uma estrophe ingente e altisona, Do caro amigo o animador abraço! Não canto os altos feitos De Achilles, nem traduzo os sons tremendos Dos rufos marciaes enchendo os campos! Outro assumpto me inspira. Não canto a espada que dá morte e campa; Canto o abraço que dá vida e gloria! XI Como havia promettido, Estevão foi logo procurar o deputado Menezes. Em vez de ir direito ao fim, quiz antes sondal-o a respeito do seu passado. Era a primeira vez que o moço tocava em tal. Menezes não desconfiou, mas estranhou; mas tal confiança tinha n’elle que não recusou nada. — Sempre imaginei, dissera-lhe Estevão, que ha na sua vida um drama. É talvez engano meu, mas a verdade é que ainda não perdi a idéa. — Ha, com effeito, um drama; mas um drama pateado. Não sorria; é assim. Que suppõe então? — Não supponho nada; imagino que... — Pede dramas a um homem politico? — Porque não? — Eu lhe digo. Sou politico e não sou. Não entrei na vida publica por vocação; entrei como se entra em uma sepultura: para dormir melhor. Porque o fiz? A razão é o drama de que me falla. — Uma mulher, talvez... — Sim, uma mulher. — Talvez mesmo, disse Estevão procurando sorrir, talvez uma esposa. Menezes estremeceu e olhou para o amigo, espantado e desconfiado. — Quem lh’o disse? — Pergunto. — Uma esposa, sim; mas não lhe direi mais nada. É a primeira pessoa que ouve tanta cousa de mim. Deixemos o passado que morreu: parce sepultis. — Conforme, disse Estevão; e se eu pertencer a uma seita philosophica que pretenda resuscitar os mortos, mesmo quando é um passado... — As suas palavras, ou querem dizer muito, ou nada. Qual é a sua intenção? — A minha intenção não é resuscitar o passado unicamente; é reparal-o, é restaural-o em todo o seu esplendor, com toda a legitimidade do seu direito; o meu fim é dizer-lhe, meu caro amigo, que a mulher condemnada é uma mulher innocente. Ouvindo estas palavras Menezes deu um pequeno grito. Depois levantando-se com rapidez pedio a Estevão que lhe dissesse o que sabia e como sabia. Estevão referio tudo. Quando concluio a sua narração, o deputado abanou a cabeça com aquelle ultimo symptoma de incredulidade que é ainda um écho das grandes catastrophes domesticas. Mas Estevão ia armado contra as objecções do marido. Protestou energicamente pela defesa da mulher; instou pelo cumprimento do dever. A ultima resposta de Menezes foi esta: — Meu caro Estevão, a mulher de Cesar nem deve ser suspeitada, Acredito em tudo; mas o que está feito, está feito. — O principio é cruel, meu amigo. — É fatal. Estevão sahio. Ficando só, Menezes cahio em profunda meditação; elle acreditava em tudo, e amava a mulher; mas não acreditava que os bellos dias pudessem voltar. Recusando, pensava elle, era ficar no tumulo em que tivera tão brando somno. Estevão, porém, não desanimou. Quando entrou em casa, escreveu uma longa carta ao deputado exhortando-o a que restaurasse a familia um momento separada e desfeita. Estevão era eloquente; o coração de Menezes com pouco se contentava. Emfim, n’esta missão diplomática, o medico houve-se com suprema habilidade. Ao fim de alguns dias dissipára-se a nuvem do passado, e o casal reunira-se. Como? Magdalena soube das disposições de Menezes e recebeu o annuncio de uma visita de seu marido. Quando o deputado preparava-se para sahir, vieram a dizer-lhe que uma senhora o procurava. A senhora era Magdalena. Menezes nem quiz abraçal-a; ajoelhou-se-lhe aos pés. Tudo estava esquecido. Quizeram celebrar a reconciliação, e Estevão foi convidado para lá passar o dia em companhia dos seus amigos, que lhe deviam a felicidade. Estevão não foi. Mas no dia seguinte Menezes recebeu este bilhete: « Desculpe, meu amigo, se não vou despedir-me pessoalmente. Sou obrigado a partir repentinamente para Minas. Voltarei d’aqui a alguns mezes. » Estimo que sejam felizes, e espero que não se esqueçam de mim. » Menezes foi apressadamente á casa de Estevão, e ainda o achou preparando as malas. Achou singular a viagem, e mais singular o bilhete; mas o medico não revelou por modo nenhum verdadeiro motivo da sua partida. Quando Menezes voltou, communicou á mulher as suas impressões; e perguntou se ella comprehendia aquillo. — Não, respondeu Magdalena. Mas tinha comprehendido emfim. — Nobre alma! disse ella comsigo. Nada disse ao marido; n’isso mostrava-se esposa, solicita pela tranquillidade conjugal; mas mostrava-se sobretudo mulher. Menezes não foi á camara durante muitos dias, e no primeiro paquete seguio para o Norte. A ausência transtornou algumas votações, e a sua partida logrou muitos cálculos. Mas o homem tem o direito de procurar a sua felicidade e a felicidade de Menezes era independente da politica. O SEGREDO DE AUGUSTA I São onze horas da manhã. D. Augusta Vasconcellos está reclinada sobre um sofá, com um livro na mão. Adelaide, sua filha, passa os dedos pelo teclado do piano. — Papai já acordou? pergunta Adelaide á sua mãi. — Não, responde esta sem levantar os olhos do livro. Adelaide levantou-se e foi ter com Augusta. — Mas é tão tarde, mamãi, disse ella.. São onze horas. Papai dorme muito. Augusta deixou cahir o livro no regaço, e disse olhando para Adelaide: — É que naturalmente recolheu-se tarde. — Reparei já que nunca me despeço de papal quando me vou deitar. Anda sempre fóra. Augusta sorrio. — És uma roceira, disse ella; dormes com as gallinhas. Aqui o costume é outro. Teu pai tem que fazer de noite. — É politica, mamai? perguntou Adelaide. — Não sei, respondeu Augusta. Comecei dizendo que Adelaide era filha de Augusta, e esta informação, necessária no romance, não o era menos na vida real em que se passou o episódio que vou contar, porque á primeira vista ninguém diria que havia alli mãi e filha pareciam duas irmãs, tão joven era a mulher de Vasconcellos. Tinha Augusta trinta annos e Adelaide quinze; mas comparativamente a mãi parecia mais moça ainda que a filha. Conservava a mesma frescura dos quinze annos, e tinha de mais o que faltava a Adelaide, que era a consciência da belleza e da mocidade, consciência que seria louvável se não tivesse como consequência uma immensa e profunda vaidade. A sua estatura era mediana, mas imponente. Era muito alva e muito corada. Tinha os cabellos castanhos, e os olhos garços. As mãos compridas e bem feitas, pareciam creadas para os afagos de amor. Augusta dava melhor emprego ás suas mãos; calçava-as de macia pellica. As graças de Augusta estavam todas em Adelaide, mas em embryão. Adivinhava-se que aos vinte annos Adelaide devia rivalisar com Augusta; mas por emquanto havia na menina uns restos da infancia que não davam realce aos elementos que a natureza puzera n’ella. Todavia, era bem capaz de apaixonar um homem, sobretudo se elle fosse poeta, e gostasse das virgens de quinze annos, até porque era um pouco pallida, e os poetas em todos os tempos tiveram sempre quéda para as creaturas descoradas. Augusta vestia com suprema elegancia; gastava muito, é verdade; mas aproveitava bem as enormes; despezas, se acaso é isso aproveital-as. Deve-se fazer-lhe uma justiça; Augusta não regateava nunca; pagava o preço que lhe pediam por qualquer cousa. Punha n’isso a sua grandeza, e achava que o procedimento contrario era ridiculo e de baixa esphera. N’este ponto Augusta partilhava os sentimentos e servia aos interesses de alguns mercadores, que entendem ser uma deshonra abater alguma cousa no preço das suas mercadorias. O fornecedor de fazendas de Augusta, quando fallava a este respeito, costumava dizer-lhe: — Pedir um preço e dar a fazenda por outro preço menor, é confessar que havia intenção de esbulhar o freguez. O fornecedor preferia fazer a cousa sem a confissão. Outra justiça que devemos reconhecer era que Augusta não poupava esforços para que Adelaide fosse tão elegante como ella. Não era pequeno o trabalho. Adelaide desde a idade de cinco annos fora educada na roça em casa de uns parentes de Augusta, mais dados ao cultivo do café que ás despezas do vestuário. Adelaide foi educada n’esses hábitos e n’essas idéas. Por isso quando chegou á corte, onde se reunio á familia, houve para ella uma verdadeira transformação. Passava de uma civilisação para outra viveu n’uma longa serie de annos. O que lhe valeu é que tinha em sua mãi uma excellente mestra. Adelaide reformou-se, e no dia em que começa esta narração já era outra; todavia estava ainda muito longe de Augusta. No momento em que Augusta respondia á curiosa pergunta de sua filha acerca das occupações de Vasconcellos, parou um carro á porta. Adelaide correu á janella. — É D. Carlota, mamãi, disse a menina voltando-se para dentro. D’ahi a alguns minutos entrava na sala a. D. Carlota em questão. Os leitores ficaram conhecendo esta nova personagem com a simples indicação de que era um segundo volume de Augusta; bella, como ella; elegante, como ella; vaidosa, como ella. Tudo isto quer dizer que eram ambas as mais affaveis inimigas que podem haver n’este mundo. Carlota vinha pedir a Augusta para ir cantar um concerto que ia dar em casa, imaginado por ella para o fim de inaugurar um magnifico vestido novo. Augusta de boa vontade accedeu ao pedido. — Como está seu marido? perguntou ella a Carlota. — Foi para a praça; e o seu? — O meu dorme. — Como um justo? perguntou Carlota sorrindo maliciosamente — Parece, respondeu Augusta N’este momento, Adelaide, que por pedido de Carlota tinha ido tocar um nocturno ao piano, voltou para o grupo. A amiga de Augusta perguntou-lhe: — Aposto que já tem algum noivo em vista? A menina corou muito, e balbuciou: — Não falle n’isso. — Ora, lia de ter! Ou então approxima-se da época em que ha de ter um noivo, e eu já lhe prophetiso que ha de ser bonito... — É muito cedo, disse Augusta. — Cedo! — Sim, está muito criança; casar-se-ha quando for tempo, e o tempo está longe... — Já sei, disse Carlota rindo, quer preparal-a bem... Approvo-lhe a intenção. Mas n’esse caso não lhe tire as bonecas. — Já não as tem. — Então é difficil impedir os namorados. Uma ousa substitue a outra. Augusta sorrio, e Carlota levantou-se para sahir. — Já? disse Augusta. — É preciso; adeos! — Adeos! Trocaram-se alguns beijos e Carlota sahio logo. Logo depois chegaram dous caixeiros: um com alguns vestidos e outro com um romance: eram encommendas feitas na vespera. Os vestidos eram carissimos, e o romance tinha este titulo: Fanny, por Ernesto Feydeau. II Pela uma hora da tarde do mesmo dia levantou-se Vasconcellos da cama. Vasconcellos era um homem de quarenta annos, bem apessoado, dotado de um maravilhoso par de suiças grisalhas, que lhe davam um ar de diplomata, cousa de que estava afastado umas boas cem léguas. Tinha a cara risonha e expansiva; todo elle respirava uma robusta saude. Possuia uma boa fortuna e não trabalhava, isto é, trabalhava muito na destruição da referida fortuna, obra em que sua mulher collaborava conscienciosamente. A observação de Adelaide era veridica; Vasconcellos recolhia-se tarde; acordava sempre depois do meio-dia; e sabia ás ave-marias para voltar na madrugada seguinte. Quer dizer que fazia com regularidade algumas pequenas excursões á casa da familia... Só uma pessoa tinha o direito de exigir de Vasconcellos mais alguma assiduidade em casa: era Augusta; mas ella nada lhe dizia. Nem por isso se davam mal, porque o marido em compensação da tolerância de sua esposa não lhe negava nada, e todos os caprichos d’ella eram de prompto satisfeitos. Se acontecia que Vasconcellos não pudesse acompanhal-a a todos os passeios e bailes, incumbia-se d’isso um irmão d’elle, commendador de duas ordens, politico de opposição, excellente jogador de voltarete, e homem amavel nas horas vagas, que eram bem poucas. O irmão Lourenço era o que se póde chamar um irmão terrivel. Obedecia a todos os desejos da cunhada, mas não poupava de quando em quando um sermão ao irmão. Boa semente que não pegava. Acordou, pois, Vasconcellos, e acordou de bom humor. A filha alegrou-se muito ao vél-o, e elle mostrou-se de uma grande affabilidade com a mulher, que lhe retribuio do mesmo modo. — Porque acorda tão tarde? perguntou Adelaide acariciando as suiças de Vasconcellos. — Porque me deito tarde. — Mas porque se deita tarde? — Isso agora é muito perguntar! disse Vasconcellos sorrindo. E continuou: — Deito-me tarde porque assim o pedem as necessidades politicas. Tu não sabes o que é politica; e uma cousa muito feia, mas muito necessária. — Sei o que é política, sim! disse Adelaide. — All! explica-me lá então o que é. — Lá na roça, quando quebraram a cabeça ao juiz e paz, disseram que era por política; o que eu achei exquisito, porque a política seria não quebrar cabeça... Vasconcellos rio muito com a observação da filha, foi almoçar, exactamente quando entrava o irmão, que não pôde deixar de exclamar: — A boa hora almoças tu! — Ahi vens tu com as tuas reprimendas. Eu almoço quando tenho fome... Vê se me queres agora escravisar ás horas e ás denominações. Chama-lhe almoço ou lunch, a verdade é que estou comendo. Lourenço respondeu com uma careta. Terminado o almoço, annunciou-se a chegada do Dr. Baptista. Vasconcellos foi recebei-o no gabinete particular. Baptista era um rapaz de vinte e cinco annos; era o typo acabado do pândego; excellente companheiro [] uma ceia de sociedade equivoca, nullo conviva [] uma sociedade honesta. Tinha chiste e certa intelligencia, mas era preciso que estivesse em clima proprio para que se lhe desenvolvessem essas qualidades. No mais era bonito; tinha um lindo bigode; alçava botins do Campas, e vestia no mais apurado []osto; fumava tanto como um soldado e tão bem como um lord. — Aposto que acordaste agora? disse Baptista entrando no gabinete do Vasconcellos. — Ha tres quartos de hora; almocei n’este instante. Toma um charuto. Baptista aceitou o charuto, e estirou-se n’uma cadeira americana, emquanto Vasconcellos acendia um phosphore. — Viste o Gomes? perguntou Vasconcellos. — Vi-o hontem. Grande noticia: rompeu com a sociedade. — Deveras? — Quando lhe perguntei por que motivo ninguém o via ha um mez, respondeu-me que estava passando por uma transformação, e que do Gomes que foi só ficará lembrança. Parece incrivel; mas o rapaz falla com convicção. — Não creio; aquillo é alguma caçoada que nos quer fazer. Que novidades ha? — Nada; isto é, tu é que deves saber alguma cousa. — Eu, nada... — Ora essa! não foste hontem ao Jardim? — Fui, sim; houve uma ceia... — De familia, sim. Eu fui ao Alcazar. A que horas acabou a reunião? — As quatro da manhã... Vasconcellos estendeu-se n’uma rede, e a conversa continuou por esse tom, até que um moleque veiu dizer a Vasconcellos que estava na sala o Sr. Gomes. — Eis o homem! disse Baptista. — Manda subir, ordenou Vasconcellos. O moloque desceu para dar o recado; mas só um quarto de hora depois é que Gomes appareceu, por demorar-se algum tempo em baixo conversando com Augusta e Adelaide. — Quem é vivo sempre apparece, disse Vasconcellos ao avistar o rapaz. — Não me procuram... disse elle. — Perdão; eu já lá fui duas vezes, e disseram-me que havias sahido. — Só por grande fatalidade, porque eu quasi nunca saio. — Mas então estás completamente ermitão? — Estou chrysalida; vou reapparecer borboleta, disse Gomes sentando-se. — Temos poesia... Guarda debaixo, Vasconcellos... O novo personagem, o Gomes tão desejado e tão escondido, representava ter cerca de trinta annos. Elle, Vasconcellos e Baptista eram a trindade do prazer e da dissipação, ligada por uma indissolúvel amizade. Quando Gomes, cerca de um mez antes, deixou de apparecer nos circulos do costume, todos repararam n’isso, mas só Vasconcellos e Baptista sentiram devéras. Todavia, não insistiram muito em arrancal-o á solidão, sómente pela consideração de que talvez houvesse n’isso algum interesse do rapaz. Gomes foi portanto recebido como um filho pródigo. — Mas onde te metteste? que é isso de chrysalida e de borboleta? Cuidas que eu sou do mangue? — É o que lhes digo, meus amigos. Estou creando azas. — Azas! disse Baptista suffocando uma risada. — Só se são azas de gavião para cahir... — Não, estou fallando serio. E com effeito Gomes apresentava um ar serio e convencido. Vasconcellos e Baptista olharam um para o outro. — Pois se é verdade isso que dizes, explica-nos lá que azas são essas, e sobretudo para onde é que queres voar. A' estas palavras de Vasconcellos, accrescentou Baptista: — Sim, deves dar-nos uma explicação, e se nós que somos o teu conselho de familia, acharmos que a explicação é boa, approvamol-a; senão, ficas sem azas, e ficas sendo o que sempre foste... — Apoiado, disse Vasconcellos. — Pois é simples; estou creando azas de anjo, e quero voar para o céo do amor. — Do amor! disseram os dous amigos de Gomes, — É verdade, continuou Gomes. Que fui eu até hoje? Um verdadeiro estroina, um perfeito pândego gastando ás mãos largas a minha fortuna e o meu coração. Mas isto é bastante para encher a vida? Parece que não... — Até ahi concordo... isso não basta; é preciso que haja outra cousa; a differença está na maneira de... — E exacto, disse Vasconcellos; é exacto; é natural que vocês pensem de modo diverso, mas eu acho que tenho razão em dizer que sem o amor casto e puro a vida é um puro deserto. Baptista deu um pulo... Vasconcellos fitou os olhos em Gomes: — Aposto que vais casar? disse-lhe. — Não sei se vou casar; sei que amo, e espero acabar por casar-me com a mulher a quem amo. — Casar! exclamou Baptista. E soltou uma estridente gargalhada. Mas Gomes fallava tão seriamente, insistia com tanta gravidade n’aquelles projectos de regeneração, que os dous amigos acabaram por ouvil-o com igual seriedade. Gomes fallava uma linguagem estranha, e inteiramente nova na boca de um rapaz que era o mais doudo e ruidoso nos festins de Baccho e de Cythera. — Assim, pois, deixas-nos? perguntou Vasconcellos. — Eu? Sim e não; encontrar-me-hão nas salas; nos hotéis e nas casas equivocas, nunca mais. — De profundis... cantarolou Baptista. — Mas afinal de contas, disse Vasconcellos, onde está a tua Marion? Póde-se saber quem ella é? — Não é Marion, é Virginia... Pura sympathia ao principio, depois affeição pronunciada, hoje paixão verdadeira. Lutei emquanto pude; mas abati as armas diante de uma força maior. O meu grande medo era não ter uma alma capaz de offerecer a essa gentil creatura. Pois tenho-a, e tão fogosa, e tão virgem como o tempo dos meus dezoito annos. Só o casto olhar de uma virgem poderia descobrir no meu lodo essa pérola divina. Renasço melhor do que era... — Está claro, Vasconcellos, o rapaz está doudo; mandemol-o para a Praia Vermelha; e como póde ter algum accesso, eu vou-me embora... Baptista pegou no chapéo. — Onde vais'^ disse-lhe Gomes. — Tenho que fazer; mas logo apparecerei em tua casa; quero ver se ainda é tempo de arrancar-te a esse abysmo. E sahio. III Os dous ficaram sós. — Então é certo que estás apaixonado? — Estou. Eu bem sabia que vocês difficilmente acreditariam n’isto; eu proprio não creio ainda, e comtudo é verdade. Acabo por onde tu começaste. Será melhor ou peior? Eu creio que é melhor. — Tens interesse em occultar o nome da pessoa? — Occulto-o por ora a todos, menos a ti. — É uma prova de confiança... Gomes sorrio. — Não, disse elle, é uma condição sine qua non; antes de todos tu deves saber quem é a escolhida do meu coração; trata-se de tua filha. — Adelaide? perguntou Vasconcellos espantado. — Sim, tua filha. A revelação de Gomes cahio como uma bomba. Vasconcellos nem por sombras suspeitava semelhante cousa. — Este amor é da tua approvação? perguntou-lhe Gomes. Vasconcellos reflectia, e depois de alguns minutos de silencio, disse: — O meu coração approva a tua escolha; és meu amigo, estás apaixonado, e uma vez que ella te ame... Gomes ia fallar, mas Vasconcellos continuou sorrindo: — Mas a sociedade? — Que sociedade? — A sociedade que nos tem em conta de libertinos, a ti e a mim, é natural que não approve o meu acto. — Já vejo que é uma recusa, disse Gomes entristecendo. — Qual recusa, pateta! É uma objecção, que tu poderás destruir dizendo: a sociedade é uma grande calumniadora e uma famosa indiscreta. Minha filha é tua, com uma condição. — Qual? — A condição da reciprocidade. Ama-te ella? — Não sei, respondeu Gomes. — Mas desconfias... — Não sei; sei que a amo e que daria a minha vida por ella, mas ignoro se sou correspondido. — Has de ser... Eu me incumbirei de apalpar o terreno. D’aqui a dous dias dou-te a minha resposta. Ah! se ainda tenho de ver-te meu genro! A resposta de Gomes foi cahir-lhe nos braços. A scena já roçava pela comedia quando deram tres horas. Gomes lembrou-se que tinha rendez-vous com um amigo; Vasconcellos lembrou-se que tinha de escrever algumas cartas. Gomes sahio sem fallar ás senhoras. Pelas quatro horas Vasconcellos dispunha-se a sahir, quando vieram annunciar-lhe a visita do Sr. José Brito. Ao ouvir este nome o alegre Vasconcellos franzio o sobr’olho. Pouco depois entrava no gabinete o Sr. José Brito. O Sr. José Brito era para Vasconcellos um verdadeiro phantasma, um écho do abysmo, uma voz da realidade: era um credor. — Não contava hoje com a sua visita, disse Vasconcellos. — Admira, respondeu o Sr. José Brito com uma placidez de apunhalar, porque hoje são 21. — Cuidei que eram 19, balbuciou Vasconcellos. — Ante-hontem, sim: mas hoje são 21. Olhe, continuou o credor pegando no Jornal do Commercio que se achava n’uma cadeira: quinta-feira 21. — Vem buscar o dinheiro? — Aqui está a lettra, disse o Sr. José Brito tirando a carteira do bolso e um papel da carteira — Porque não veio mais cedo? perguntou Vasconcellos, procurando assim espaçar a questão principal. — Vim ás oito horas da manhã, respondeu o credor, estava dormindo; vim ás nove, idem; vim ás dez, idem; vim ás onze, idem; vim ao meio-dia, idem. Quiz vir á uma hora, mas tinha de mandar um homem para a cadea, e não me foi possível acabar cedo. Ás tres jantei, e ás quatro aqui estou. Vasconcellos puxava o charuto a ver se lhe occorria alguma idéa hoa de escapar ao pagamento com que elle não contava. Não achava nada; mas o proprio credor forneceu-lhe ensejo. — Além de que, disse elle, a hora não importa nada, porque eu estava certo de que o senhor me vai pagar. — Ah! disse Vasconcellos, é talvez um engano; eu não contava com o senhor hoje, e não arranjei o dinheiro... — Então; como ha de ser? perguntou o credor com ingenuidade. Vasconcellos sentio entrar-lhe n’alma a esperança. — Nada mais simples, disse; o senhor espera até amanhã... — Amanhã, quero assistir á penhora de um indivíduo que mandei processar por uma larga divida; não posso... — Perdão, eu levo-lhe o dinheiro á sua casa... — Isso seria bom se os negocios commerciaes se arranjassem assim. Se fossemos dous amigos é natural que eu me contentasse com a sua promessa, e tudo acabaria amanhã; mas eu sou seu credor, e só tenho em vista salvar o meu interesse... Portanto, acho melhor pagar hoje... Vasconcellos passou a mão pelos cabellos. — Mas se eu não tenho! disse elle. — É uma cousa que o deve incommodar muito, mas que a mim não me causa a menor impressão... isto é, deve causar-me alguma, porque o senhor está hoje em situação precaria. — Eu? — É verdade; as suas casas da rua da Imperatriz estão hypothecadas; a da rua de S. Pedro foi vendida, e a importância já vai longe; os seus escravos têm ido a um e um, sem que o senhor o perceba, e as despezas que o senhor ha pouco fez para montar uma casa a certa dama da sociedade equivoca são immensas. Eu sei tudo; sei mais do que o senhor... Vasconcellos estava visivelmente aterrado, o credor dizia a verdade. — Mas emfim, disse Vasconcellos, o que havemos de fazer? — Uma cousa simples; duplicamos a divida, e o senhor passa-me agora mesmo um deposito. — Duplicar a divida! mas isto é um... — Isto é uma taboa de salvação; sou moderado. Vamos lá, aceite. Escreva-me ahi o deposito, e rasga-se a lettra. Vasconcellos ainda quiz fazer objecção; mas era impossivel convencer o S. José Brito. Assignou o deposito de dezoito contos. Quando o credor sahio, Vasconcellos entrou a meditar seriamente na sua vida. Até então gastára tanto e tão cegamente que não reparára no abysmo que elle proprio cavara a seus pés. Veio porém advertil-o a voz de um dos seus algozes. Vasconcellos reflectio, calculou, recapitulou as suas despezas e as suas obrigações, e vio que da fortuna que possuia linha na realidade menos da quarta parte. Para viver como até alli vivera, aquillo era nada menos que a miséria. Que fazer em tal situação? Vasconcellos pegou no chapéo e sahio. Vinha cahindo a noite. Depois de andar algum tempo pelas ruas entregue ás suas meditações, Vasconcellos entrou no Alcazar. Era um meio de distrahir-se. Alli encontraria a sociedade do costume. Baptista veio ao encontro amigo. — Que cara é essa? disse-lhe. — Não é nada, pisaram-me um callo, respondeu Vasconcellos, que não encontrava melhor resposta. Mas um pedicura que se achava perto de ambos ouvio o dito, e nunca mais perdeu de vista o infeliz Vasconcellos, a quem a cousa mais indifferente incommodava. O olhar persistente do pedicura aborreceu-o tanto, que Vasconcellos sahio. Entrou no hotel de Milão, para jantar. Por mais preoccupado que elle estivesse, a exigencia do estômago não se demorou. Ora, no meio do jantar lembrou-lhe aquillo que não devia ter-lhe sabido da cabeça: o pedido de casamento feito n’essa tarde por Gomes. Foi um raio de luz. — Gomes é rico, pensou Vasconcellos; o meio de escapar a maiores desgostos é este; Gomes casa-se com Adelaide, e como é meu amigo não me negará o que eu precisar. Pela minha parte procurarei ganhar o perdido... Que boa fortuna foi aquella lembrança do casamento! Vasconcellos comeu alegremente; voltou depois ao Alcazar, onde alguns rapazes e outras pessoas fizeram esquecer completamente os seus infortúnios. Às tres horas da noite Vasconcellos entrava para casa com a tranquillidade e regularidade do costume. IV No dia seguinte o primeiro cuidado de Vasconcellos foi consultar o coração de Adelaide. Queria porém fazel-o na ausência de Augusta. Felizmente esta precisava de ir ver á rua da Quitanda umas fazendas novas, e sahio com o cunhado, deixando a Vasconcellos toda a liberdade. Como os leitores já sabem, Adelaide queria muito ao pai, e era capaz de fazer por elle tudo. Era, além d’isso, um excellente coração. Vasconcellos contava com essas duas forças. — Vem cá, Adelaide, disse elle entrando na sala; sabes quantos annos tens? — Tenho quinze. — Sabes quantos annos tem tua mãi? — Vinte e sete, não? — Tem trinta; quer dizer que tua mãi casou-sc com quinze annos. Vasconcellos parou, afim de ver o effeito que produziam estas palavras; mas foi inútil a expectiva; Adelaide não comprehendeu nada. O pai continou: — Não pensaste no casamento? A menina corou muito, hesitou em fallar, mas como o pai instasse, respondeu: — Qual, papai! eu não quero casar... — Não queres casar? É boa! porque? — Porque não tenho vontade, e vivo bem aqui. — Mas tu podes casar e continuar a viver aqui... — Bem; mas não tenho vontade. — Anda lá... Amas alguém, confessa. — Não me pergunte isso, papai... eu não amo ninguem. A linguagem de Adelaide era tão sincera, que Vasconcellos não podia duvidar, — Ella falla a verdade, pensou elle; é inútil tentar por esse lado… Adelaide sentou-se ao pé d’elle, e disse: — Portanto, meu paizinho, não fallemos mais n’isso... — Fallemos, minha filha; tu és criança, não sabes calcular. Imagina que eu e tua mãi morremos amanhã. Quem te ha de amparar? Só um marido. — Mas se eu não gosto de ninguém... — Por ora; mas has de vir a gostar se o noivo for um bonito rapaz, de bom coração... Eu já escolhi um que te ama muito, e a quem tu has de amar. Adelaide estremeceu. — Eu? disse ella. Mas... quem é? — É o Gomes. — Não o amo, meu pai... — Agora, creio; mas não negas que elle é digno de ser amado. Dentro de dous mezes estás apaixonada por elle. Adelaide não disse palavra. Curvou a cabeça e começou a torcer nos dedos uma das suas tranças bastas e negras. O seio arfava-lhe com força; a menina tinha os olhos cravados no tapete. — Vamos, está decidido, não? perguntou Vasconcellos. — Mas, papai, e se eu for infeliz?... — Isso é impossivel, minha filha; has de ser muito feliz; e has de amar muito a teu marido. — Oh! papai, disse-lhe Adelaide com os olhos rasos de agua, peço-lhe que não me case ainda... — Adelaide, o primeiro dever de uma filha e obedecer a seu pai, e eu sou teu pai. Quero que te cases com o Gomes; has de casar. Estas palavras, para terem todo o effeito, deviam ser seguidas de uma retirada rapida. Vasconcellos comprehendeu isso, e sahio da sala deixando Adelaide na maior desolação. Adelaide não amava ninguém. A sua recusa não tinha por ponto de partida nenhum outro amor; tambem não era resultado de aversão que tivesse pelo seu pretendente. A menina sentia simplesmente uma total indifferença pelo rapaz. N’estas condições o casamento não deixava de ser uma odiosa imposição. Mas que faria Adelaide? a quem recorreria? Recorreu ás lagrimas. Quanto a Vasconcellos, subio o gabinete e escreveu seguintes linhas ao futuro genro: « Tudo caminha hem; autoriso-te a vires fazer corte á pequena, e espero que dentro de dous mezes casamento esteja concluido. » Fechou a carta e mandou-a. Pouco depois voltaram de fóra Augusta e Lourenço. Emquanto Augusta subio para o quarto da toilette para mudar de roupa, Lourenço foi ter com Adelaide, que estava no jardim. Reparou que ella tinha os olhos vermelhos, e inquirio a causa; mas a moça negou que fosse de chorar. Lourenço não acreditou nas palavras da sobrinha, instou com ella para que lhe contasse o que havia. Adelaide tinha grande confiança no tio, até por causa da sua rudeza de maneiras. No fim de alguns minutos de instâncias, Adelaide contou a Lourenço a scena com o pai. — Então, é por isso que estás chorando, pequena? — Pois então? Como fugir ao casamento? — Descansa, não te casarás; eu te prometto que não te has de casar... A moça sentio um estremecimento de alegria. — Promette, meu tio, que ha de convencer a papai? — Hei de vencêl-o ou convencel-o, não importa; tu não te has de casar. Teu pai é um tolo. Lourenço subio ao gabinete de Vasconcellos, exactamente no momento em que este se dispunha a sabir. — Vais sabir? perguntou-lhe Lourenço. — Vou. — Preciso fallar-te. Lourenço sentou-se, e Vasconcellos, que já tinha o chapéo na cabeça, esperou de pé que elle fallasse. — Senta-te, disse Lourenço. Vasconcellos sentou-se. — Ha dezeseis annos... — Começas de muito longe; ve se abrevias uma meia duzia de annos, sem o que não prometto ouvir o que me vais dizer. — Ha dezeseis annos, continuou Lourenço, que és casado; mas a differença entre o primeiro dia e o dia de hoje é grande. — Naturalmente, disse Vasconcellos. Tempora mutantur et... — N’aquelle tempo, continuou Lourenço, dizias que encontraras um paraiso, o verdadeiro paraiso, e foste durante dous ou tres annos o modelo dos maridos. Depois mudaste completamente; e o paraiso tornar-se-hia verdadeiro inferno se tua mulher não fosse tão indifferente e fria como é, evitando assim as mais terriveis scenas domesticas. — Mas, Lourenço, que tens com isso? — Nada; nem é d’isso que vou fallar-te. O que me interessa é que não sacrifiques tua filha por um capricho, entregando-a a um dos teus companheiros de vida solta... Vasconcellos levantou-se: — Estás doudo! disse elle. — Estou calmo, e dou-te o prudente conselho de não sacrificares tua filha a um libertino. — Gomes não é libertino; teve uma vida de rapaz, é verdade, mas gosta de Adelaide, e reformou-se completamente. É um bom casamento, e por isso acho que todos devemos aceital-o. É a minha vontade, e n’esta casa quem manda sou eu. Lourenço procurou fallar ainda, mas Vasconcellos já ia longe. — Que fazer? pensou Lourenço. V A opposição de Lourenço não causava grande impressão a Vasconcellos. Elle podia, é verdade, suggerir á sobrinha idéas de resistencia; mas Adelaide, que era um espirito fraco, cederia ao ultimo que lhe fallasse, e os conselhos de um dia seriam vencidos pela imposição do dia seguinte. Todavia era conveniente obter o apoio de Augusta. Vasconcellos pensou em tratar d’isso o mais cedo que lhe fosse possivel. Entretanto, urgia organizar os seus negocios, e Vasconcellos procurou um advogado a quem entregou todos os papéis e informações, encarregando-o de oriental-o em todas as necessidades da situaçao, quaes os meios que poderia oppòr em qualquer caso de reclamação por divida ou hypotheca. Nada d’isto fazia suppor da parte de Vasconcellos uma reforma de costumes. Preparava-se apenas para continuar a vida anterior. Dous dias depois da conversa com o irmão, Vasconcellos procurou Augusta, para tratar francamente do casamento de Adelaide. Já n’esse intervallo o faturo noivo, obedecendo ao conselho de Vasconcellos, fazia côrte prévia á filha. Era possivel que se casamento não lhe fosse imposto, Adelaide acabasse por gostar do rapaz. Gomes era um homem bello e elegante; e, além d’isso, conhecia todos os recursos de que se deve usar para impressionar uma mulher. Teria Augusta notado a presença assidua do moço? Vasconcellos fazia essa pergunta ao seu espirito no momento em que entrava na toilette da mulher. — Vais sahir? perguntou elle. — Não; tenho visitas. — Ah! quem? — A mulher do Seabra, disse ella. Vasconcellos sentou-se, e procurou um meio de encabeçar a conversa especial que alli o levava. — Estás muito bonita hoje! — Devéras? disse ella sorrindo. Pois estou hoje como sempre, e é singular que o digas hoje... — Não; realmente hoje estás mais bonita do que a ponto que sou capaz de ter ciúmes... — Qual! disse Augusta com um sorriso ironico. Vasconcellos coçou a cabeça, tirou o relogio, deu-lhe corda; depois entrou a puxar as barbas, pegou n’uma folha, leu dous ou tres annuncios, atirou a folha ao chão, e a final, depois de um silencio já prolongado, Vasconcellos achou melhor atacar a praça de frente. — Tenho pensado ultimamente em Adelaide, disse elle. — Ah! porque? — Está moça... — Moça! exclamou Augusta, é uma criança... — Está mais velha do que tu quando te casaste... Augusta franzio ligeiramente a testa. — Mas então... disse ella. — Então é que eu desejo fazel-a feliz e feliz pelo casamento. Um rapaz, digno d’ella a todos os respeitos, pedio-m’a ha dias, e eu disse-lhe que sim. Em sabendo quem é, approvarás a escolha; é o Gomes. Casamol-a, não? — Não! respondeu Augusta. — Como, não? — Adelaide é uma criança; não tem juizo nem idade propria... Casar-se-ha quando for tempo. — Quando for tempo? Estás certa se o noivo esperará até que seja tempo? — Paciência, disse Augusta. — Tens alguma cousa que notar no Gomes? — Aada. É um moço distincto; mas não convem a Adelaide. Vasconcellos hesitava em continuar; parecia-lhe que nada se podia arranjar; mas a idéa da fortuna deu-lhe forças, e elle perguntou: — Porque? — Estás certo de que elle convenha a Adelaide? perguntou Augusta, illudindo a pergunta do marido. — Affirmo que convem. — Convenha ou não, a pequena não deve casar já. — E se ella amasse?... — Que importa isso? esperaria! — Entretanto, Augusta, não podemos prescindir n’este casamento... É uma necessidade fatal. — Fatal? não comprehendo. — Vou explicar-me. O Gomes tem uma boa fortuna. — Também nós temos uma... — É o teu engano, interrompeu Vasconcellos. — Como assim? Vasconcellos continuou: — Mais tarde ou mais cedo havias de sabel-o, e eu estimo ter esta occasião de dizer-te toda a verdade. A verdade é que, se não estamos pobres, estamos arruinados. Augusta ouvio estas palavras com os olhos espantados. Quando elle acabou, disse: — Não é possivel! — Infelizmente é verdade! Seguio-se algum tempo de silencio. — Tudo está arranjado, pensou Vasconcellos. Augusta rompeu o silencio. — Mas, disse ella, se a nossa fortuna está abalada, creio que o senhor tem cousa melhor para fazer do que estar conversando; é reconstruil-a. Vasconcellos fez com a cabeça urn movimento de espanto, e como se fosse aquillo uma pergunta, Augusta apressou-se a responder: — Não se admire d’isto: creio que o seu dever é reconstruir a fortuna. — Não me admira esse, dever; admira-me que m’o lembres por esse modo. Dir-se-hia que a culpa é minha... — Bom! disse Augusta, vais dizer que fui eu... — A culpa, se culpa ha, é de nós ambos. — Porque? é também minha? — Também. As tuas despezas loucas contribuiram em grande parte para este resultado; eu nada te recusei nem recuso, e é n’isso que sou culpado. Se é isso que me lanças em rosto, aceito. Augusta levantou os hombros com um gesto de despeito; e deitou a Vasconcellos um olhar de tamanho desdem que bastaria para intentar uma acção de divorcio. Vasconcellos vio o movimento e o olhar. — O amor do luxo e do supérfluo, disse elle, ha de sempre produzir estas consequências. São terriveis, mas explicáveis. Para conjural-as era preciso viver com moderação. Nunca pensaste d’isso. No fim de seis mezes de casada entraste a viver no turbilhão da moda, e o pequeno regato das despezas tornou-se um rio immenso de desperdicios. Sabes o que me disse uma vez meu irmão. Disse-me que a idea de mandar Adelaide para a roça foi-te suggerida ela necessidade de viver sem cuidados de natureza alguma. Augusta tinha-se levantado, e deu alguns passos; estava tremula e pallida. Vasconcellos ia por diante nas suas recriminações, mando a mulher o interrompeu, dizendo: — Mas porque motivo não impedio o senhor as despezas que eu fazia? — Queria a paz domestica. — Não! clamou ella; o senhor queria ter por sua parte uma vida livre e independente; vendo que eu me entregava a essas despezas imaginou comprar a minha tolerância com a sua tolerância. Eis o unico motivo; a sua vida não será igual á minha; mas é peior... Se eu fazia despezas em casa o senhor as fazia na rua... E inútil negar, porque eu sei tudo; conheço, de nome, as rivaes que successivamente o senhor me deu, e nunca lhe disse uma única palavra, nem agora lh’o censuro, porque seria inútil e tarde. A situação tinha mudado. Vasconcellos começara constituindo-se juiz, e passara a ser co-réo. Negar era impossível; discutir era arriscado e inútil. Prefirio sophismar. — Dado que fosse assim (e eu não discuto esse ponto), em todo caso a culpa será de nós ambos, e não vejo razão para que m’a lances em rosto. Devo reparar a fortuna, concordo; ha um meio, é o casamento de Adelaide com o Gomes. — Não, disse Augusta. — Bem; seremos pobres, ficaremos peiores do que estamos agora; venderemos tudo... — Perdão, disse Augusta, eu não sei por que razão não ha de o senhor, que é forte, e tem a maior parte no desastre, empregar esforços para a reconstrucção da fortuna destruida. — É trabalho longo; e d’aqui até lá a vida continua e gasta-se. O meio, já lh’o disse, é este: casar Adelaide com o Gomes. — Não quero! disse Augusta, não consinto em semelhante casamento. Vasconcellos ia responder, mas Augusta, logo depois de proferir estas palavras, tinha sahido precipitadamente do gabinete. Vasconcellos sahio alguns minutos depois. VI Lourenço não teve conhecimento da scena entre o irmão e a cunhada, e depois da teima de Vasconcellos resolveu nada mais dizer; entretanto, como queria muito á sobrinha, e não queria vèl-a entregue a um homem de costumes que elle reprovava, Lourenço esperou que a situação tomasse caracter mais decisivo para assumir mais activo papel. Mas, afim de não perder tempo, e poder usar alguma arma poderosa, Lourenço tratou de instaurar uma pesquiza mediante a qual pudesse colher informações minuciosas acerca de Gomes. Este cuidava que o casamento era cousa decidida, e não perdia um só dia na conquista de Adelaide. Notou, porém, que Augusta tornava-se mais fria e indifferente, sem causa que elle conhecesse, e entrou-lhe no espirito a suspeita de que viesse d’alli alguma opposição. Quanto a Vasconcellos, desanimado pela scena da toilette, esperou melhores dias, e contou sobretudo com o império da necessidade. Um dia, porém, exactamente quarenta e oito horas depois da grande discussão com Augusta, Vasconcellos fez dentro de si esta pergunta: — Augusta recusa a mão de Adelaide para o Gomes; porque? De pergunta em pergunta, de deducção em deducção, abrio-se no espirito de Vasconcellos campo par uma suspeita dolorosa. — Amal-o-ha ella? perguntou elle a si proprio Depois, como se o abysmo attrahisse o abysmo e uma suspeita reclamasse outra, Vasconcellos perguntou: — Ter-se-hiam elles amado algum tempo? Pela primeira vez, Vasconcellos sentio morder-lhe no coração a serpe do ciume. Do ciume digo eu, por euphemismo; não sei se aquillo era ciume; era amor-proprio offendido. As suspeitas de Vasconcellos teriam razão? Devo dizer a verdade; não tinham. Augusta era vaidosa, mas era fiel ao infiel marido; e isso por dous motivos: um de consciência, outro de temperamento. Ainda que ella não estivesse convencida do seu dever de esposa, é certo que nunca trahiria o juramento conjugal. Não era feita para as paixões, a não serem as paixões ridiculas que a vaidade impõe. Ella amava antes de tudo a sua propria belleza; o seu melhor amigo era o que dissesse que ella era mais bella entre as mulheres; mas se lhe dava a sua amizade, não lhe daria nunca o coração; isso a salvava. A verdade é esta; mas quem o diria a Vasconcellos? Uma vez suspeitoso de que a sua honra estava affectada, Vasconcellos começou a recapitular toda a sua vida. Gomes frequentava a sua casa ha seis annos, e tinha n’ella plena liberdade. A trahição era facil. Vasconcellos entrou a recordar as palavras, os gestos, os olhares, tudo que antes lhe foi indifferente, e que n’aquelle momento tomava um caracter suspeitoso. Dous dias andou Vasconcellos cheio d’este pensamento. Não sahia de casa. Quando Gomes chegava, Vasconcellos observava a mulher com desusada persistência; á propria frieza com que ella recebia o rapaz era aos olhos do marido uma prova do delicto. Estava n’isto, quando na manhã do terceiro dia Vasconcellos já se levantava cedo; entrou-lhe no gabinete o irmão, sempre com o ar selvagem do costume. A presença de Lourenço inspirou a Vasconcellos a idéa de contar-lhe tudo. Lourenço era um homem de bom senso, e em caso de necessidade era um apoio. O irmão ouvio tudo quanto Vasconcellos contou, e concluindo este, rompeu o seu silencio com estas palavras: — Tudo isso é uma tolice; se tua mulher recusa casamento, será por qualquer outro motivo que não esse. — Mas é o casamento com o Gomes que ella recusa. — Sim, porque lhe fallaste no Gomes; falla-lhe em outro, talvez recuse do mesmo modo. Ha de haver outro motivo; talvez Adelaide lhe contasse, talvez lhe pedisse para oppôr-se, porque tua filha não ama o rapaz, e não póde casar com elle. — Não casará. — Não só por isso, mas até porque... — Acaba. — Até porque este casamento é uma especulação do Gomes. — Uma especulação? perguntou Vasconcellos. — Igual á tua, disse Lourenço. Tu dás-lhe a filha com os olhos na fortuna d’elle; elle aceita-a com os olhos na tua fortuna... — Mas elle possue... — Não possue nada; está arruinado como tu. Indaguei e soube da verdade. Quer naturalmente continuar a mesma vida dissipada que teve até hoje, e a tua fortuna é um meio... — Estás certo d’isso? — Certíssimo!... Vasconcellos ficou aterrado. No meio de todas as suspeitas, ainda lhe restava a esperança de ver a sua honra salva, e realisado aquelle negocio que lhe daria uma excellente situação. Mas a revelação de Lourenço matou-o. — Se queres uma prova, manda chamal-o, e dize-lhe que estás pobre, e por isso lhe recusas a filha; observa-o bem, e verás o effeito que as tuas palavras lhe hão de produzir. Não foi preciso mandar chamar o pretendente. D’ahi a uma hora apresentou-se elle em casa de Vasconcellos. Vasconcellos mandou-o subir ao gabinete. VII Logo depois dos primeiros comprimentos Vasconcellos disse: — Ia mandar chamar-te. — Ah! para que? perguntou Gomes. — Para conversarmos ácerca do... casamento. — Ah! ha algum obstáculo? — Conversemos. Gomes tornou-se mais serio; entrevia alguma difficuldade grande. Vasconcellos tomou a palavra. — Ha circumstancias, disse elle, que devem ser bem definidas, para que se possa comprehender bem... — É a minha opinião. — Amas minha filha? — Quantas vezes queres que t’o diga? — O teu amor está acima de todas as circumstancias? — De todas, salvo aquellas que entenderem com felicidade d’ella. — Devemos ser francos; além de amigo que sempre foste, és agora quasi meu filho... A discrição entre nós seria indiscreta... — Sem duvida! respondeu Gomes. — Vim a saber que os meus negocios param mal; as despezas que fiz alteraram profundamente a economia da minha vida, de modo que eu não te minto dizendo que estou pobre. Gomes reprimio uma careta. — Adelaide, continuou Vasconcellos, não tem fortuna, não terá mesmo dote; é apenas uma mulher que eu te dou. O que te afianço é que é um anjo, que ha de ser excellente esposa. Vasconcellos calou-se, e o seu olhar cravado no rapaz parecia querer arrancar-lhe das feições as impressões da alma. Gomes devia responder; mas durante alguns minutos houve entre ambos um profundo silencio. Emfim o pretendente tomou a palavra. — Aprecio, disse elle, a tua franqueza, e usarei de franqueza igual. — Não peço outra cousa... — Não foi por certo o dinheiro que me inspirou fito amor; creio que me farás a justiça de crer que estou acima d’essas considerações. Além de que, no dia em que eu te pedi a querida do meu coração, acreditava estar rico. — Acreditavas? — Escuta. Só hontem é que o meu procurador que communicou o estado dos meus negocios. — Máo? — Se fosse isso apenas! Mas imagina que ha seis mezes estou vivendo pelos esforços inauditos que o meu procurador fez para apurar algum dinheiro, pois que elle não tinha animo de dizer-me a verdade. Hontem soube tudo! — Ah! — Calcula qual é o desespero de um homem que acredita estar bem, e reconhece um dia que não tem nada! — Imagino por mim! — Entrei alegre aqui, porque a alegria que eu ainda tenho reside n’esta casa; mas a verdade é que estou á beira de um abysmo. A sorte castigou-nos a um tempo... Depois d’esta narração, que Vasconcellos ouvio sem pestanejar, Gomes entrou no ponto mais difficil da questão. — Aprecio a tua franqueza, e aceito uma filha sem fortuna; também eu não tenho, mas ainda me restam forças para trabalhar. — Aceitas? — Escuta. Aceito D. Adelaide, mediante uma condição; é que ella queira esperar algum tempo, afim de que eu comece a minha vida. Pretendo ir ao governo e pedir um lugar qualquer, se é que ainda me lembro do que aprendi na escola... Apenas tenha começado a vida, cá virei huscal-a. Queres? — Se ella consentir, disse Vasconcellos abraçando esta taboa de salvação, é cousa decidida. Gomes continuou: — Bem, fallarás n’isso amanhã, e mandar-me-has resposta. Ah! seen tivesse ainda a minha fortuna! Era agora que eu queria provar-te a minha estima — Bem, ficamos n’isto. — Espero a tua resposta. E despediram-se. Vasconcellos ficou fazendo esta reflexão: — De tudo quanto elle disse só acredito que já não tem nada. Mas é inútil esperar: duro com duro não faz bom muro. Pela sua parte Gomes desceu a escada dizendo comsigo: — O que acho singular é que estando pobre viesse dizer-m’o assim tão anticipadamente quando eu estava cabido. Mas esperarás debalde: duas metades de cavallo não fazem um cavallo. Vasconcellos desceu. A sua intenção era communicar a Augusta o resultado da conversa com o pretendente. Uma cousa porém, o embaraçava: era a insistência de Augusta em não consentir no casamento de Adelaide, sem dar nenhuma razão da recusa. Ia pensando n’isto, quando, ao atravessar a sala de espera, ouvio vozes na sala de visitas. Era Augusta que conversava com Carlota. Ia entrar quando estas palavras lhe chegaram ao ouvido: — Mas Adelaide é muito criança. Era a voz de Augusta. — Criança! disse Carlota. — Sim; não está em idade de casar. — Mas eu no teu caso não punha embargos ao casamento, ainda que fosse d’aqui a alguns mezes, porque o Gomes não me parece máo rapaz... — Não é; mas emfim eu não quero que Adelaide se case. Vasconcellos collou o ouvido á fechadura, e temia perder uma só palavra do dialogo. — O que eu não comprehendo, disse Carlota, é a tua insistência. Mais tarde ou mais cedo Adelaide ha de vir a casar-se. — Oh! o mais tarde possivel, disse Augusta. Houve um silencio. Vasconcellos estava impaciente. — Ah! continuou Augusta, se soubesses o terror que me dá a idéa do casamento de Adelaide. — Porque, meu Deos? — Porque, Carlota? Tu pensas em tudo, menos n’uma cousa. Eu tenho medo por causa dos filhos d’ella que serão meus netos! A idéa de ser avó é horrivel, Carlota. Vasconcellos respirou, e abrio a porta. — Ah! disse Augusta. Vasconcellos comprimentou Carlota, e apenas esta sahio, voltou-se para a mulher, e disse: — Ouvi a tua conversa com aquella mulher... — Não era segredo; mas... que ouviste? Vasconcellos respondeu sorrindo: — Ouvi a causa dos teus terrores. Não cuidei nunca que o amor da propria belleza pudesse levar tamanho egoismo. O casamento com o Gomes não se realisa; mas se Adelaide amar alguém, não sei como lhe recusaremos o nosso consentimento... — Até lá... esperemos, respondeu Augusta. A conversa parou n’isto; porque aquelles dous consortes distanciavam-se muito; um tinha a cabeça nos prazeres ruidosos da mocidade, ao passo que a outra meditava exclusivamente em si. No dia seguinte Gomes recebeu uma carta de Vasconcellos concebida n’estes termos: « Meu Gomes. — Occorre uma circumstancia inesperada; é que Adelaide não quer casar. Gastei a linha lógica, mas não alcancei convencel-a. — Teu Vasconcellos. » Gomes dobrou a carta e acendeu com ella um charuto, e começou a fumar fazendo esta reflexão profunda: — Onde acharei eu uma herdeira que me queira por marido? Se alguém souber avise-o em tempo, depois do que acabamos de contar, Vasconcellos e Gomes encontram-se ás vezes na rua ou no Alcazar; conversam, fumam, dão o braço um ao outro, exactamente como dous amigos, que nunca foram, como dous velhacos que são. CONFISSÕES DE UMA VIUVA MOÇA I Ha dois annos tomei uma resolução singular: fui residir em Petropolis em pleno mez de Junho. Esta resolução abrio largo campo ás conjecturas. Tu mesma nas cartas que me escreveste para aqui, deitaste o espirito a adivinhar e figuraste mil razões, cada qual mais absurda. A estas cartas, em que a tua solicitude trahia a um tempo dous sentimentos, a affeição da amiga e a curiosidade de mulher, a essas cartas não respondi e nem podia responder. Não era opportune abrir-te o meu coração nem desfiar-te a serie de motivos que me arredou da corte, onde as operas do theatro lyrico, as tuas partidas e os serões familiares do primo Barros deviam distrahir-me da recente viuvez. Esta circumstancia de viuvez recente acreditavam muitos que fosse o unico motivo da minha fuga. Era a versão menos equivoca. Deixei-a passar como todas as outras e conservei-me em Petropolis. Logo no verão seguinte vieste com teu marido para cá, disposta a não voltar para a corte sem levar osegredo que eu teimava em não revelar. A palavra não fez mais do que a carta. Fui discreta como um tumulo, indecifrável como a Sphynge. Depuzeste as armas e partiste. Desde então não me trataste senão por tua Sphynge. Era Sphynge, era. E se, como Edipo, tivesses respondido ao meu enigma a palavra « homem » descobrirías o meu segredo, e desfarias o meu encanto. Mas não anticipemos os acontecimentos, como se diz nos romances. É tempo de contar-te este episodio da minha vida. Quero fazel-o por cartas e não por hoca. Talvez corasse de ti. D’este modo o coração abre-se melhor e a vergonha não vem tolher a palavra nos lábios. Depara que eu não fallo em lagrimas, o que é um symptoma de que a paz voltou ao meu espirito. As minhas cartas irão de oito em oito dias, de maneira que a narrativa póde fazer-te o effeito de um folhetim de periodico semanal. Dou-te a minha palavra de que has de gostar e aprender. E oito dias depois da minha ultima carta irei abraçar-te, beijar-te, agradecer-te. Tenho necessidade de viver. Estes dous annos são nullos na conta de minha vida: foram dous annos de tedio, de desespero intimo, de orgulho abatido de amor abafado. Lia, é verdade. Mas só o tempo, a ausência, a idéa do meu coração enganado, da minha dignidade offendida, puderão trazer-me a calma necessária, a calma de hoje. E sabe que não ganhei só isto. Ganhei conhecer um homem cujo retrato trago no espirito e que me parece singularmente parecido com outros muitos. Já não é pouco; e a lição ha de servir-me, como a ti, como ás nossas amigas inexperientes. Mostra-lhes estas cartas; são folhas de um roteio que se eu tivera antes, talvez, não houvesse perdido uma illusão e dous annos de vida. Devo terminar esta. É o prefacio do meu romance, estudo, conto, o que quizeres. Não questiono sobre a designação, nem consulto para isso os mestres d’arte. Estudo ou romance, isto é simplesmente um livro de verdades, um episodio singelamente constado, na confabulação intima dos espiritos, na plena confiança de dous corações que se estimam e se merecem. Adeos. II Era no tempo de meu marido. A corte estava então animada e não tinha esta cruel monotonia que eu sinto aqui através das tuas cartas e dos jornaes de que sou assignante. Minha casa era um ponto de reunião de alguns rapazes conversados e algumas moças elegantes. Eu, rainha eleita pelo voto universal... de minha casa, presidia aos serões familiares. Fóra de casa, tinhamos os theatros animados, as partidas das amigas, mil outras distracções que davam á minha vida certas alegrias exteriores em falta das intimas, que são as únicas verdadeiras e fecundas. Se eu não era feliz, vivia alegre. E aqui vai o começo do meu romance. Um dia meu marido pedio-me como obséquio especial que eu não fosse á noite ao theatro Lyrico. Dizia elle que não podia acompanhar-me por ser vespera de sabida de paquete. Era razoavel o pedido. Não sei, porém, que espirito não susurrou-me ao ouvido e eu respondi peremptoriamente que havia de ir ao theatro, e com elle. Insistio no pedido, insisti na recusa. Pouco bastou para que eu julgasse a minha honra empenhada n’aquillo. Hoje vejo que era a minha vaidade ou o meu destino. Eu tinha certa superioridade sobre o espirito de meu marido. O meu tom imperioso não admittia recusa; meu marido cedeu a despeito de tudo, e á noite fomos ao theatro Lyrico. Havia pouca gente e os cantores estavam endefluxados. No fim do primeiro acto meu marido, com um sorriso vingativo, disse-me estas palavras rindo-se: — Estimei isto. — Isto? perguntei eu franzindo a testa. — Este espectáculo deplorável. Fizeste da vinda hoje ao theatro um capitulo de honra; estimo ver que o espectáculo não correspondeu á tua espectativa. — Pelo contrario, acho magnifico. — Está bom. Deves comprehender que eu tinha interesse em me não dar por vencida; mas acreditas facilmente que no fundo eu estava perfeitamente aborrecida do espectáculo e da noite. Meu marido, que não ousava retorquir, calou-se com ar de vencido, e adiantando-se um pouco á frente do camarote percorreu com o binoculo as linhas dos poucos camarotes fronteiros em qua havia gente. Eu recuei a minha cadeira, e, encostada á divisão do camarote, olhava para o corredor vendo a gente que passava. No corredor, exactamente em frente á porta do nosso camarote, estava um sujeito encostado, fumando e com os olhos fitos em mim. Não reparei ao principio, mas a insistência obrigou-me a isso. Olhei para elle a ver se era algum conhecido nosso que esperava ser descoberto afim de vir então comprimentar-nos. A intimidade podia explicar este brinco. Mas não conheci. Depois de alguns segundos, vendo que elle não tirava os olhos de mim, desviei os meus e cravei-os no panno da boca e na platéa. Meu marido, tendo acabado o exame dos camarotes, deu-me o binoculo e sentou-se ao fundo diante de mim. Trocamos algumas palavras. No fim de um quarto de hora a orchestra começou os prelúdios para o segundo acto. Levantei-me, meu marido approximou a cadeira para a frente, e n’esse interim lancei um olhar furtivo para o corredor. O homem estava lá. Disse a meu marido que fechasse a porta. Começou o segundo acto. Então, por um espirito de curiosidade, procurei ver se o meu observador entrava para as cadeiras. Queria conhecel-o melhor no meio da multidão. Mas, ou porque não entrasse, ou porque eu não tivesse reparado bem, o que é certo é que o não vi. Correu o segundo acto mais aborrecido do que o primeiro. No intervallo recuei de novo a cadeira, e meu marido, a pretexto de que fazia calor, abrio a porta do camarote. Lancei um olhar para o corredor. Não vi ninguém; mas d’ahi a poucos minutos chegou o mesmo individuo, collocando-se no mesmo lugar, e fitou em mim os mesmos olhos impertinentes. Somos todas vaidosas da nossa belleza e desejamos que o mundo inteiro nos admire. É por isso que muitas vezes temos a indiscrição de admirar a corte mais ou menos arriscada de um bomem. Ha, porém, uma maneira de fazel-a que nos irrita e nos assusta; irrita-nos por impertinente, assusta-nos por perigosa. É o que se dava n’aquelle caso. O meu admirador insistia de modo tal que me levava a um dilemma: ou elle era victima de uma paixão louca, ou possuia a da audacia mais disfarçada. Em qualquer dos casos não era conveniente que eu animasse as suas adorações, Fiz estas reflexões emquanto decorria o tempo do intervallo. Ia começar o terceiro acto. Esperei que o mudo perseguidor se retirasse e disse a meu marido; — Vamos? — Ah! — Tenho somno simplesmente: mas o espectáculo está magnífico. Meu marido ousou exprimir um sophisma. — Se está magnífico como te faz somno? Não lhe dei resposta. Sahimos. Ao corredor encontrámos a familia do Azevedo que voltava de uma visita a um camarote conhecido. Demorei-me um pouco para abraçar as senhoras. Disse-lhes que tinha uma dor de cabeça e que me retirava por isso. Chegámos á poria da rua dos Ciganos. Ahi esperei o carro por alguns minutos. Quem me havia de apparecer alli, encostado ao portal fronteiro? O mysterioso. Enraivecí. Cobri o rosto o mais que pude com o meu capuz e esperei o carro, que chegou logo. O mysterioso lá ficou tão insensível e tão mudo como o portal a que estava encostado. Durante a viagem a idéa d'aquelle incidente me sahio da cabeça. Fui despertada da minha distracção quando o carro parou á porta da casa em Matacavallos. Fiquei envergonhada de mim mesma e decidi não pensar mais no que se havia passado. Mas acreditarás tu, Carlota? Dormi meia mais tarde do que suppunha, tanto a minha imaginação teimava em reproduzir o corredor, o portal, o meu admirador platonico. No dia seguinte pensei menos. No fim de oito dias tinha-me varrido do espirito aquella scena, eu dava graças a Deos por haver-me salvo de uma preoccupação que podia ser-me fatal. Quiz acompanhar o auxilio divino, resolvendo não ir ao theatro durante algum tempo. Sujeitei-me á vida intima e limitei-me á distracção das reuniões á noite. Entretanto estava proximo o dia dos annos da [ ] filhinha. Lembrei-me que para tomar parte na festa de familia, tinha começado um mez antes um trabalhozinho. Cumpria rematal-o. Uma quinta-feira de manhã mandei vir os preparos da obra e ia continual-a, quando descobri d’entre uma meada de lã um envolucro azul fechando uma carta. Estranhei aquillo. A carta não tinha indicação. Estava collada e parecia esperar que a abrisse a pessoa a quem era endereçada. Quem seria? Seria meu marido? Acostumada a abrir todas as cartas que lhe eram dirigidas, não hesitei. Rompi o envolucro e descobri o papel côr de rosa que vinha dentro. Dizia a carta: « Não se sorprenda, Eugenia; este meio é o do desespero, este desespero é o do amor. Amo-a e muito. Até certo tempo procurei fugir-lhe e abalar este sentimento; não posso mais. Não me vio no theatro Lyrico? Era uma força occulta e interior que me levava alli. Desde então não a vi mais. Quando a verei? Não a veja embora, paciência; mas que o seu coração palpite por mim um minuto em cada dia, é quanto basta a um amor que não busca nem as venturas do gozo, nem as galas da publicidade. Se a offendo, perdoe um peccador; se póde amar-me, faça-me um deos. » Li esta carta com a mão tremula e os olhos anuviados; e ainda durante alguns minutos depois não sabia o que era de mim. Cruzavam-se e confundiam-se mil idéas na rainha cabeça, como estes passaros negros que perpassam em bandos no céo nas horas próximas da tempestade. Seria o amor que movera a mão d’aquelle incognito? Seria simplesmente aquillo um meio de seductor calculado? Eu lançava um olhar vago em derredor e tremia ver entrar meu marido. Tinha o papel diante de mim e aquellas lettras mysteriosas pareciam-me outros tantos olhos de uma serpente infernal. Com um movimento nervoso e involuntário amarrotei a carta nas mãos. Se Eva tivesse feito outro tanto á cabeça da serpente que a tentava não houvera peccado. Eu não podia estar certa do mesmo resultado, porque esta que me apparecia alli e cuja cabeça eu esmagava, podia, como a hydra de Lerna, brotar muitas outras cabeças. Não cuides que eu fazia então esta dupla evocação bellica e pagã. N’aquelle momento, não reflectia, desvairava; só muito depois pude ligar duas idéas. Dous sentimentos actuavam em mim: primeiramente, uma especie de terror que infundia o abysmo, abysmo profundo que eu presentia atrás d’aquella carta; depois uma vergonha amarga de ver que eu não estava tão alta na consideração d’aquelle desconhecido, que pudesse demovél-o do meio que empregou. Quando o meu espirito se acalmou é que eu pude fazer a reflexão que devia acudir-me desde o principio. Quem poria alli aquella carta? Meu primeiro movimento foi para chamar todos os meus fâmulos. Mas deteve-me logo a idéa de que por uma simples interrogação nada poderia colher e ficava divulgado o achado da carta. De que valia isto? Não chamei ninguém. Entretanto, dizia eu comigo, a empreza foi audaz; podia falhar a cada tramite; que movel impellio áquelle homem a dar este passo? Seria amor ou seducção? Voltando a este dilemma, meu espirito, apezar dos perigos, comprazia-se em aceitar a primeira hypothese: era a que respeitava a minha consideração de mulher casada e a minha vaidade de mulher formosa. Quiz adivinhar lendo a carta de novo: li-a, não ama, mas duas, tres, cinco vezes. Uma curiosidade indiscreta prendia-ine áquelle papel. Fiz um esforço e resolvi aniquilal-o, protestando que ao segundo caso nenhum escravo ou criado me ficaria em casa. Atravessei a sala com o papel na mão, dirigi-me para o meu gabinete, onde acendi uma vela e queimei aquella carta que me queimava as mãos e a cabeça. Quando a ultima faisca do papel ennegreceu e voou, senti passos atrás de mim. Era meu marido. Tive um movimento espontâneo: atirei-me em seus braços. Elle abraçou-me com certo espanto. E quando o meu abraço se prolongava senti que elle me repellia com brandura dizendo-me: — Está bom, olha que me afogas! Recuei. Entristeceu-me ver aquelle homem, que podia e devia salvar-me, não comprehender, por instincto ao menos, que se eu o abraçava tao estreitamente era como se me agarrasse á idéa do dever. Mas este sentimento que me apertava o coração passou um momento para dar lugar a um sentimento de medo. As cinzas da carta ainda estavam no chão, a vela conservava-se acesa em pleno dia; era bastante para que elle me interrogasse. Nem por curiosidade o fez! Deu dous passos no gabinete e sabio. Senti uma lagrima rolar-me pela face. Não era a primeira lagrima de amargura. Seria a primeira advertencia do peccado? III Decorreu um mez. Não houve durante esse tempo mudança alguma em casa. Nenhuma carta appareceu mais, e a minha vigilancia, que era extrema, tornou-se de todo inútil. Não me podia esquecer o incidente da carta. Se fosse só isto! As primeiras palavras voltavam-me incessantemente á memória; depois, as outras, as outras, todas. Eu tinha a carta de cor! Lembras-te? Uma das minhas vaidades era ter a memória feliz. Até n’este dote era castigada. Aquellas palavras atordoavam-me, faziam-me arder a cabeça, porque? Ah! Carlota! é que eu achava n’ellas um encanto indefinivel, encanto doloroso, porque era acompanhado de um remorso, mas encanto de que eu me não podia libertar. Não era o coração que se empenhava, era a imaginação. A imaginação perdia-me; a lucta do dever da imaginação é cruel e perigosa para os espiritos fracos. Eu era fraca. O mysterio fascinava a minha fantasia. Emfim os dias e as diversões puderam desviar meu espirito d’aquelle pensamento unico. No fim de um mez, se eu não tinha esquecido inteiramente o mysterioso e a carta d’elle, estava, todavia, bastante calma para rir de mim e dos meus temores. Na noite de uma quinta-feira, achavam-se algumas pessoas em minha casa, e muitas das minhas amigas, menos tu. Meu marido não tinha voltado, e a ausência d’elle não era notada nem sentida, visto que, apezar de franco cavalleiro como era, não tinha o dom particular de um conviva para taes reuniões. Tinha-se cantado, tocado, conversado: reinava em todos a mais franca e expansiva alegria; o tio da Amelia Azevedo fazia rir a todos com as suas excentricidades; a Amélia arrebatava bravos a todos com as notas da sua garganta celeste; estavamos em um intervallo, esperando a hora do chá. Annunciou-se meu marido. Não vinha só. Vinha ao lado d’elle um homem alto, magro, elegante. Não pude conhecel-o. Meu marido adiantou-se, e no meio do silencio geral veio apresentar-m’o. Ouvi de meu marido que o nosso conviva chamava-se Emilio***. Fixei n’elle um olhar e retive um grito. Era elle! O meu grito foi substituido por um gesto de sorpresa. Ninguém percebeu. Elle pareceu perceber menos que ninguém. Tinha os olhos fixos em mim, e com um gesto gracioso dirigio-me algumas palavras de lisongeira cortezia. Respondi como pude. Seguiram-se as apresentações, e durante dez minutos houve um silencio de acanhamento em todos. Os olhos voltavam-se todos para o recem-chegado. Eu tambem voltei os meus e pude reparar ii aquella figura em que tudo estava disposto para attrahir as attenções: cabeça formosa e altiva, olhar profundo e magnético, maneiras elegantes e delicadas, certo ar distincto e proprio que fazia contraste com o ar affectado e prosaicamente medido dos outros rapazes. Este exame de minha parte foi rápido. Eu não podia, nem me convinha encontrar o olhar de Emilio. Tornei a abaixar os olhos e esperei anciosa que a conversação voltasse de novo ao seu curso. Meu marido encarregou-se de dar o tom. Infelizmente era ainda o novo conviva o motivo da conversa geral. Soubemos então que Emilio era um provinciano filho de pais opulentos, que recebera uma esmerada educação na Europa, onde não houve um só recanto que não visitasse. Voltara ha pouco tempo ao Brasil, e antes de ir para a provincia tinha determinado passar algum tempo no Rio de .Janeiro. Foi tudo quanto soubemos. Vieram as mil perguntas sobre as viagens de Emilio, e este, com a mais amavel solicitude, satisfazia a curiosidade geral. Só eu não era curiosa. É que não podia articular palavra. Pedia interiormente a explicação d’este romance mysterioso, começado em um corredor do theatro, continuado em uma carta anonyma e na apresentação em minha casa por intermédio de meu proprio marido. De quando em quando levantava os olhos para Emilio e achava-o calmo e frio, respondendo polidamente ás interrogações dos outros e narrando elle proprio, com uma graça modesta e natural, alguma das suas aventuras de viagem. Occorreu-me uma idéa. Seria realmente elle o mysterioso do theatro e da carta? Pareceu-me ao principio que sim, mas eu podia ter-me enganado; eu não tinha as feições do outro bem presentes á memória; parecia-me que as duas creaturas eram uma e a mesma; mas não podia explicar-se o engano por uma semelhança miraculosa? De reflexão em reflexão, foi-me correndo o tempo, e eu assistia á conversa de todos como se não estivesse presente. Veio a hora do chá. Depois cantou-se e tocou-se ainda. Emilio ouvia tudo com attenção religiosa e mostrava-se tão apreciador do gosto como era conversador discreto e pertinente. No fim da noite tinha captivado a todos. Meu marido, sobretudo, estava radiante. Via-se que elle se considerava feliz por ter feito a descoberta de mais um amigo para si e um companheiro para as nossas reuniões de familia. Emilio sahio promettendo voltar algumas vezes. Quando eu me achei a sós com meu marido, perguntei-lhe: — D’onde conheces este homem? — É uma pérola, não é? Foi-me apresentado no escriptorio ha dias; sympathisei logo; parece ser dotado de boa alma, é vivo de espirito e discreto como o bom senso. Não ha ninguém que não goste d’elle... E como eu o ouvisse séria e calada, meu marido interrompeu-se e perguntou-me: — Fiz mal em trazel-o aqui? — Mal, porque? perguntei eu. — Por cousa nenhuma. Que mal havia de ser? É um homem distincto... Puz termo ao novo louvor do rapaz, chamando um escravo para dar algumas ordens. E retirei-me ao meu quarto. O somno d’essa noite não foi o somno dos justos, pódes crer. O que me irritava era a preoccupação constante em que eu andava depois d’estes acontecimentos. Já eu não podia fugir inteiramente a essa preoccupação: era involuntária, subjugava-me, arrasava-me. Era a curiosidade do coração, esse primeiro signal das tempestades em que succumbe a nossa vida e o nosso futuro. Parece que aquelle homem lia na minha alma e sabia apresentar-se no momento mais proprio a occupar-me a imaginação como uma figura poética e imponente. Tu, que o conheceste depois, dize-me se, dadas as circumstancias anteriores, não era para produzir esta impressão no espirito de uma mulher como eu! Como eu, repito. Minhas circumstancias eram especiaes, se não o soubeste nunca, suspeitaste-o ao menos. Se meu marido tivesse em mim uma mulher e se eu tivesse n’elle um marido, minha salvarão era certa. Mas não era assim. Entrámos no nosso lar nupcial como dons viajantes estranhos em uma hospedaria, e aos quaes a calamidade do tempo e a hora avançada da noite obrigam a aceitar pousada sob o tecto do mesmo aposento. Meu casamento foi resultado de um calculo e de uma conveniência. Não inculpo meus pais. Elles cuidavam fazer-me feliz e morreram na convicção de que o era. Eu podia, apezar de tudo, encontrar no marido que me davam um objecto de felicidade para todos os meus dias. Bastava para isso que meu marido visse em mim uma alma companheira da sua alma, um coração socio do seu coração. Não se dava isto; meu marido entendia o casamento ao modo da maior parte da gente; via n’elle a obediência as palavras do Senhor no Genesis. Fóra d’isso, fazia-me cercar de certa consideração e dormia tranquillo na convicção de que havia cumprido o dever. O dever! esta era a minha taboa de salvação. Eu sabia que as paixões não eram soberanas e que a nossa vontade póde triumphar d’ellas. A este respeito eu tinha em mim forças bastantes para repellir idéas más. Mas não era o presente que me abafava e atemorisava: era o futuro. Até então aquelle romance influia no meu espirito pela circumstancia do mysterio em que vinha envolto; a realidade havia de abrir-me os olhos; consolava-me a esperança de que eu triumpharia de um amor culpado. Mas, poderia n’esse futuro, cuja proximidade eu não calculava, resistir convenientemente á paixão e salvar intactas a minha consideração e a minha consciência? Esta era a questão. Ora, no meio d’estas oscillações, eu não via a mão de meu marido estender-se para salvar-me. Pelo contrario, quando na occasião de queimar a carta, atirava-me a elle, lembras-te que elle me repellio com uma palavra de enfado. Isto pensei, isto senti, na longa noite que se seguio á apresentação de Emilio. No dia seguinte estava fatigada de espirito; mas, ou fosse calma ou fosse prostração, senti que os pensamentos dolorosos que me haviam torturado durante a noite esvaeceram-se á luz da manhã, como verdadeiras aves da noite e da solidão. Então abrio-se ao meu espirito um raio de luz. Era a repetição do mesmo pensamento que me voltava no meio das preoccupações d’aquelles últimos dias. Porque temer? dizia eu comigo. Sou uma triste mediosa; e fatigo-me em crear montanhas para cahir extenuada no meio da planície. Eia! nenhum obstáculo se oppõe ao meu caminho de mulher virtuosa e considerada. Este homem, se é o mesmo, não passa de um máo leitor de romances realistas. O mysterio é que lhe dá algum valor; visto de mais perto ha de ser vulgar ou hediondo. IV Não te quero fatigar com a narração minuciosa e diaria de todos os acontecimentos. Emilio continuou a frequentar a nossa casa, mostrando sempre a mesma delicadeza e gravidade, e encantando a todos por suas maneiras distinctas sem affectação, amaveis sem fingimento. Não sei porque meu marido revelava-se cada vez mais amigo de Emilio. Este conseguira despertar nelle um enthusiasmo novo para mim e para todos, que capricho era esse da natureza? Muitas vezes interroguei meu marido ácerca d’esta amizade tão súbita e tão estrepitosa; quiz até inventar suspeitas no espirito d’elle; meu marido era inabalavel. - Que queres? respondia-me elle. Não sei porque sympathiso extraordinariamente com este rapaz. Sinto que é uma bella pessoa, e eu não posso dissimular o enthusiasmo de que me possuo quando estou perto d’elle. — Mas sem conhecel-o... objectava eu. — Ora essa! Tenho as melhores informações; e demais, vè-se logo que é uma pessoa distincta... — As maneiras enganam muitas vezes. — Conhece-se... Confesso, minha amiga, que eu podia impor a meu marido o afastamento de Emilio; mas quando esta idéa me vinha á cabeça, não sei porque ria-me dos meus temores e declarava-me com forças de resistir a tudo o que pudesse sobrevir. Demais, o procedimento de Emilio autorisava-me a desarmar. Elle era para mim de um respeito inalterável, tratava-me como a todas as outras, sem deixar entrever a menor intenção occulta, o menor pensamento reservado. Succedeu o que era natural. Diante de tal procedimento não me ficava bem proceder com rigor e responder com a indifferença á amabilidade. As cousas marchavam de tal modo que eu cheguei a persuadir-me de que tudo o que succédera antes não tinha relação alguma com aquelle rapaz, e que não havia entre ambos mais do que um phenomeno da semelhança, o que aliás eu não podia affirmar, porque, como te disse já, não pudera reparar bem no homem do theatro. Aconteceu que dentro de pouco tempo estavamos na maior intimidade, e eu era para elle o mesmo que todas as outras: admiradora e admirada. Das reuniões passou Emilio ás simples visitas de dia, nas horas em que meu marido estava presente, mais tarde, mesmo quando elle se achava ausente. Meu marido de ordinário era quem o trazia. Emilio vinha então no seu carrinho que elle proprio dirigia, com a maior graça e elegancia. Demorava-se horas e horas em nossa casa, tocando piano ou conversando. A primeira vez que o recebi só, confesso que estremeci; mas foi um susto pueril; Emilio procedeu sempre do modo mais indifferente em relação às minhas suspeitas. N’esse dia, se algumas suspeitas me ficaram, desvaneceram-se todas. N’isto passaram-se dous mezes. Um dia, era de tarde, eu estava só ; esperava-te para irmos visitar teu pai enfermo. Parou um carro na porta. Mandei ver. Era Emilio. Recebi-o como de costume. Disse-lhe que iamos visitar um doente, e elle quiz logo sahir. Disse-lhe que ficasse até á tua chegada. Picou como se outro motivo o detivesse além de um dever de cortezia. Passou-se meia hora. Nossa conversa foi sobre assumptos indifferentes. Em um dos intervallos de conversa Emilio levantou-se e foi á janella. Eu levantei-me igualmente para ir ao piano buscar um leque. Voltando para o sofá reparei pelo espelho que Emilio me olhava com um olhar estranho. Era uma transfiguração. Parecia que n’aquelle olhar estava concentrada toda a alma d’elle. Estremeci. Todavia fiz um esforço sobre mim e fui sentar-me então mais seria que nunca. Emilio encaminhou-se para mim. Olhei para elle. Era o mesmo olhar. Baixei os meus olhos. — Assustou-se? perguntou-me elle. Não respondi nada. Mas comecei a tremer de novo e parecia-me que o coração me queria pular fora do peito. É que n’aquellas palavras havia a mesma expressão do olhar; as palavras faziam-me o effeito das palavras da carta. — Assustou-se? repetio elle. — De que? perguntei eu procurando rir para não dar maior gravidade á situação. — Pareceu-me. Houve um silencio. — D. Eugenia, disse elle sentando-se; não quero por mais tempo occultar o segredo que faz o tormento da minha vida. Fôra um sacrifício inútil. Feliz ou infeliz, prefiro a certeza da minha situação. D. Eugenia, eu amo-a. Não te posso descrever como fiquei, ouvindo estas palavras. Senti que empallidecia; minhas mãos estavam geladas. Quiz fallar: não pude. Emilio continuou: — Oh! eu hem sei a que me exponho. Vejo como este amor é culpado. Mas que quer? É fatalidade. Andei tantas léguas, passei á ilharga de tantas bellezas, sem que o meu coração pulsasse. Estava-me reservada a ventura rara ou o tremendo infortúnio de ser amado ou desprezado pela senhora. Curvo-me ao destino. Qualquer que seja a resposta que eu possa obter, não recuso, aceito. Que me responde? Emquanto elle fallava, eu podia, ouvindo-lhe as palavras, reunir algumas idéas. Quando elle acabou levantei os olhos e disse: — Que resposta espera de mim? — Qualquer. — Só póde esperar uma... — Não me ama? — Não! Nem posso e nem amo, nem amaria se pudesse ou quizesse... Peço que se retire. E levantei-me. Emilio levantou-se. — Retiro-me, disse elle; e parto com o inferno no coração. Levantei os hombros em signal de indifferença. — Oh! eu bem sei que isso lhe é indifferente. E isso o que eu mais sinto. Eu preferia o odio; o odio, sim; mas a indifferença, acredite, é o peior castigo. Mas eu recebo resignado. Tamanho crime deve ter tamanha pena. E tomando o chapéo chegou-se a mim de novo. Eu recuei dous passos. — Oh! não tenha medo. Causo-lhe medo? — Medo? retorqui eu com altivez. — Asco? perguntou elle. — Talvez... murmurei. — Uma unica resposta, tornou Emilio; conserva aquella carta? — Ah! disse eu. Era o autor da carta? — Era. E aquelle mysterioso do corredor do theatro Lyrico. Era eu. A carta? — Queimei-a. — Provenio o meu pensamento. E comprimentando-me friamente dirigio-se para a porta. Quasi a chegar á porta senti que elle vacillava e levava a mão ao peito. Tive um momento de piedade. Mas era necessário que elle se fosse, quer soffresse quer não. Todavia, dei um passo para elle e perguntei-lhe de longe: — Quer dar-me uma resposta? Elle parou e voltou-se. — Pois não! — Como é que para praticar o que praticou fingio-se amigo de meu marido? — Foi um acto indigno, eu sei; mas o meu amor é d’aquelles que não recuam ante a indignidade. É o unico que eu comprehendo. Mas, perdão; não quero enfadal-a mais. Adeos! Para sempre! E sahio. Pareceu-me ouvir um soluço. Fui sentar-me ao sofá. D’ahi a pouco ouvi o rodar do carro. O tempo que mediou entre a partida d’elle e a tua chegada não sei como se passou. No lugar em que fiquei ahi me achaste. Até então eu não tinha visto o amor senão nos livros. Aquelle homem parecia-me realisar o amor que eu sonhára e vira descripto. A idéa de que o coracção de Emilio sangrava n’aquelle momento, despertou em mim um sentimento vivo de piedade. A piedade foi um primeiro passo. — Quem sabe, dizia eu comigo mesma, o que elle está agora soffrendo? E que culpa é a d’elle, a final de contas? Ama-me, disse-m’o: o amor foi mais forte do que a razão; não vio que eu era sagrada para elle revelou-se. Ama, é a sua desculpa. Depois repassava na memória todas as palavras d’elle e procurava recordar-me do tom em que elle as proferira. Lembrava-me também do que eu dissera e o tom com que respondera ás suas confissões. Fui talvez severa de mais. Podia manter a minha dignidade sem abrir-lhe uma chaga no coração. Se eu fallasse com mais brandura podia adquirir d’elle o respeito e a veneração. Agora ha de amar-me ainda, mas não se recordará do que se passou sem um sentimento de amargura. Estava n’estas reflexões quando entraste. Lembras-te que me achaste triste e perguntaste a causa d’isso. Nada te respondi. Fomos á casa da tua tia, sem que eu nada mudasse do ar que tinha antes. Á noite quando meu marido me perguntou por Emilio, respondi sem saber o que respondia. — Não veio cá hoje. — Devéras? disse elle. Então está doente. — Não sei. — Lá vou amanhã. — Lá onde? — Á casa d’elle. — Para que? — Talvez esteja doente. — Não creio; esperemos até ver... Passei uma noite angustiosa. A ideia de Emilio perturbava-me o somno. Afigurava-se-me que elle estaria áquella hora chorando lagrimas de sangue no desespero do amor não aceito. Era piedade? Era amor? Carlota, era uma e outra cousa. Que podia ser mais? Eu tinha posto o pé em uma senda fatal; uma força me attrahia. Eu fraca, podendo ser forte. Não me inculpo senão a mim. Até domingo. V Na tarde seguinte, quando meu marido voltou perguntei por Emilio. — Não o procurei, respondeu-me elle; tomei o conselho; se não vier hoje, sim. Passou-se, pois, um dia sem ter noticias d’elle. No dia seguinte, não tendo apparecido, meu marido foi lá. Serei franca comtigo, eu mesma lembrei isso a meu marido. Esperei anciosa a resposta. Meu marido voltou pela tarde. Tinha um certo ar triste. Perguntei o que havia. — Não sei. Fui encontrar o rapaz de cama. Disse-lhe que era uma ligeira constipação; mas eu creio que não é isso só.... — Que será então? perguntei eu, fitando um olhar em meu marido. — Alguma cousa mais. O rapaz fallou-me em embarcar para o norte. Está triste, distraindo, preoccupado. Ao mesmo tempo que manifesta a esperança de ver os pais, revela receios de não tornar a vêl-os. Tem idéas de morrer na viagem. Não sei que lhe aconteceu, mas foi alguma cousa. Talvez... — Talvez? — Talvez alguma perda de dinheiro. Está resposta transtornou o meu espirito. Posso affirmar-te que esta resposta entrou por muito nos acontecimentos posteriores. Depois de algum silencio perguntei: — Mas que pretende fazer? — Abrir-me com elle. Perguntar o que é, e acudir-lhe se fôr possivel. Em qualquer caso não o deixarei partir. Que achas? — Acho que sim. Tudo o que ia acontecendo contribuia poderosamente para tornar a idéa de Emilio cada vez mais presente á minha memória, e, é com dor que o confesso, não pensava já n’elle em pulsações do coração. Na noite do dia seguinte estavamos reunidas algumas pessoas. Eu não dava grande vida a reunião. Estava triste e desconsolada. Estava com raiva de mim propria. Fazia-me algoz de Emilio e doia-me a idéa de que elle, padecesse ainda mais por mim. Mas, seriam nove horas, quando meu marido appareceu trazendo Emilio pelo braço. Houve um movimento geral de sorpresa. Realmente porque Emilio não apparecia alguns dias já todos começavam a perguntar por elle; depois, porque o pobre moço vinha pallido de cêra. Não te direi o que se passou n’essa noite. Emilio parecia soffrer, não estava alegre como d’antes; ao contrario, era n’aquella noite de uma taciturnidade, de uma tristeza que incommodava a todos, mas que me mortificava atrozmente, a mim que me fazia causa das suas dores. Pude fallar-lhe em uma occasião, a alguma distancia das outras pessoas. — Desculpe-me, disse-lhe eu, se alguma palavra dura lhe disse. Comprehende a minha posição. Ouvindo bruscamente o que me disse não pude pensar no que dizia. Sei que soffreu; peço-lhe que não soffra mais que esqueça... — Obrigado, murmurou elle. — Meu marido fallou-me de projectos seus... — De voltar á minha provincia, é verdade. — Mas doente... — Esta doença ha de passar. E dizendo isto lançou-me um olhar tão sinistro que eu tive medo. — Passar? passar como? — De algum modo. — Não diga isso... — Que me resta mais na terra? E voltou os olhos para enxugar uma lagrima. — Onde é isso? disse eu. Está chorando? — As ultimas lagrimas. — Oh! se soubesse como me faz soffrer! Não chore; eu lh’o peço. Peço-lhe mais. Peço-lhe que viva. — Oh! — Ordeno-lhe. — Ordena-me? E se eu não obedecer? Se eu não puder?... Acredita que se possa viver com um espinho no coração? Isto que te escrevo é feio. A maneira por que elle fallava é que era apaixonada, dolorosa, commovente. Eu ouvia sem saber de mim. Approximavam-se algumas pessoas. Quiz pôr termo á conversa e disse-lhe: — Ama-me? disse-eu. Só o amor pode ordenar? Pois é o amor que lhe ordena que viva! Emilio fez um gesto de alegria. Levantei-me para ir fallar ás pessoas que se approximavam. — Obrigado, murmurou-me elle aos ouvidos. Quando, no fim do serão, Emilio se despedio de mim, dizendo-me, com um olhar em que a gratidão e o amor irradiavam juntos: — Até amanhã! — não sei que sentimento de confusão e de amor, de remorso e de ternura se apoderou de mim. — Bem; Emilio está mais alegre, dizia-me meu marido. Eu olhei para elle sem saber o que responder. Depois retirei-me precipitadamente. Parecia-me que via n’elle a imagem da minha consciência. No dia seguinte recebi de Emilio esta carta: Eugenia. Obrigado. Torno-me á vida, e á senhora o devo. Obrigado! fez de um cadaver um homem, faça agora de um homem um deos. Animo! animo! Li esta carta, reli, e... dir-t’o-hei, Carlota? beijei-a. Beijei-a repetidas vezes com alma, compaixão, com delirio. Eu amava! eu amava! Então houve em mim a mesma lucta, mas estava mudada a situação dos meus sentimentos. Antes era o coração que fugia á razão, agora a razão fugia ao coração. Era um crime, eu bem o via, bem o sentia; mas não sei qual era a minha fatalidade, qual era a minha natureza, eu achava nas delicias do crime desculpa ao meu erro, e procurava com isso legitimar a minha paixão. Quando o meu marido se achava perto de mim eu me sentia melhor e mais corajosa... Paro aqui d’esta vez. Sinto uma oppressão no peito. E a recordação de todos estes acontecimentos, Até domingo. VI Seguiram-se alguns dias ás scenas que eu te contei na minha carta passada. Activou-se entre mim e Emilio uma correspondência. Ao fim de quinze dias eu só vivia do pensamento d’elle. Ninguem dos que frequentavam a nossa casa, nem mesmo tu, pôde descobrir este amor. Éramos dous namorados discretos a ultimo ponto. É certo que muitas vezes me perguntavam porque é que eu me distrahia tanto e andava tão melancólica; isto chamava-me á vida real e eu mudava logo de parecer. Meu marido sobretudo parecia soffrer com as minhas tristezas. A sua solicitude, confesso, incommodava-me. Muitas vezes lhe respondia mal, não já porque eu o odiasse, mas porque de todos era elle o unico a quem eu não quizera ouvir d’estas interrogações. Um dia voltando para casa á tarde chegou-se elle a mim e disse: — Eugenia, tenho uma noticia a dar-te. — Qual? — E que te ha de agradar muito. — Vejamos qual é. — É um passeio. — Aonde? — A idéa foi minha. Já fui ao Emilio e elle applaudio muito. O passeio deve ser domingo á Gavia; iremos d’aqui muito cedinho. Tudo isto, é preciso notar, não está decidido. Depende de ti. O que dizes? — Approvo a idéa. — Muito bem. A Carlota póde ir. — E deve ir, accrescentei eu; e algumas outras amigas. Pouco depois recebias tu e outras um bilhete de convite para o passeio. Lembras-te que lá fomos. O que não sabes é que n’esse passeio, a favor da confusão e a distracção geral, houve entre mim e Emilio um dialogo que foi para mim a primeira amargura de amor. — Eugenia, dizia elle dando-me o braço, estás certa de que me amas? — Estou. — Pois bem. O que te peço, nem sou eu que te peço, é o meu coração, é o teu coração que te pedem, um movimento nobre capaz de nos engrandecer aos nossos proprios olhos. Não haverá um recanto no mundo em que possamos viver, longe de todos e perto do céo? — Fugir? — Sim! — Oh! isso nunca! — Não me amas. — Amo, sim; é já um crime, não quero ir além. — Recusas a felicidade? — Recuso a deshonra. — Não me amas. — Oh! meu Deos, como respondel-o? Amo, sim; mas desejo ficar a seus olhos a mesma mulher amorosa é verdade, mas até certo ponto... pura. — O amor que calcula, não é amor. Não respondi. Emilio disse estas palavras com uma expressão tal de desdem e com uma intenção de ferir-me que eu senti o coração bater-me apressado, e suhir-me o sangue ao rosto. O passeio acabou mal. Esta scena tornou Emilio frio para mim; eu soffria com isso; procurei tornal-o ao estado anterior; mas não consegui. Um dia em que nos achavamos a sós, disse-lhe: — Emilio, se eu amanhã te acompanhasse, o que farias? — Cumpria essa ordem divina. — Mas depois? — Depois? perguntou Emilio com ar de quem estranhava a pergunta. — Sim, depois, continuei eu; depois quando o tempo volvesse não me havias de olhar com desprezo. — Desprezo? Não vejo... — Como não? Que te merecia eu depois? — Oh! esse sacrifício seria feito por minha causa, eu fôra cobarde se te lançasse isso em rosto. — Dil-o-has no teu intimo. — Juro que não. — Pois a meus olhos é assim; eu nunca me perdoaria esse erro. Emilio poz o rosto nas mãos e pareceu chorar. Eu que até alli fallava com esforço, fui a elle e tirei-lhe o rosto das mãos. — Que é isto? disse eu. Não vês que me fazes chorar também? Elle olhou para mim com os olhos razos de lágrimas. Eu tinha os meus húmidos. — Adeos, disse elle repentinamente. Vou partir. E deu um passo para a porta. — Se me promettes viver, disse-lhe, parte; se tens alguma idéa sinistra, fica. Não sei o que vio elle no meu olhar, mas tomando a mão que eu lhe estendia beijou-a repetidas vezes (eram os primeiros beijos) e disse-me com fogo: — Fico, Eugenia! Ouvímos um ruido fóra. Mandei ver. Era meu marido que chegava enfermo. Tinha tido um ataque no escriptorio. Tornára a si, mas achava-se mal. Alguns amigos o trouxeram dentro de um carro. Corri para a porta. Meu marido vinha pallido e desfeito. Mal podia andar ajudado pelos amigos. Fiquei desesperada, não cuidei de mais cousa alguma, o medico que acompanhára meu marido mandou logo fazer algumas applicações de remedios. Eu estava impaciente; perguntava a todos se meu marido estava salvo. Todos me tranquillisavam. Emilio mostrou-se pezaroso com o acontecimento. Foi a meu marido e apertou-lhe a mão. Quando Emilio quiz sahir, meu marido disse-lhe: — Olhe, sei que não póde estar aqui sempre; peço-lhe, porém, que venha, se puder, todos os dias. — Pois não, disse Emilio. E sahio. Meu marido passou mal o resto d’aquelle dia e a noite. Eu não dormi. Passei a noite no quarto. No dia seguinte estava exhausta. Tantas commoções diversas e uma vigilia tão longa deixaram-me prostrada: cedia a força maior. Mandei chamar a prima Elvira e fui deitar-me. Fecho esta carta n’este ponto. Pouco falta para chegar ao termo da minha triste narração. Ate domingo. VII A moléstia de meu marido durou poucos dias. De dia para dia aggravava-se. No fim de oito dias os médicos desenganaram o doente. Quando eu recebi esta fatal nova fiquei como louca. Era meu marido, Carlota, e apezar de tudo eu não podia esquecer que elle tinha sido o companheiro da minha vida e a idéa salvadora nos desvios do meu espirito. Emilio achou-me n’um estado de desespero. Procurou consolar-me. Eu não lhe occultei que esta morte era um golpe profundo para mim. Uma noite estavamos juntos todos, eu, a prima Elvira, uma parenta de meu marido e Emilio. Faziamos companhia ao doente. Este, depois de um longo silencio, voltou-se para mim e disse-me: — A tua mão. E apertando-me a mão com uma energia suprema voltou-se para a parede. Expirou. …………………………………………………………………………………….. Passaram-se quatro mezes depois dos factos que te contei. Emilio acompanhou-me na dòr e foi dos mais assiduos em todas as ceremonias fúnebres que se fizeram ao meu finado marido. Todavia, as vistas começaram a escassear. Era, parecia-me, por motivo de uma delicadeza natural. No fim do prazo de que te fallei, soube, por boca de um dos amigos de meu marido, que Emilio ia partir. Não pude crer. Escrevi-lhe uma carta. Eu amava-o então, como d’antes, mais ainda, agora que estava livre. Dizia a carta: Emilio. Constou-me que ias partir. Será possivel? Eu mesma não posso accreditar nos meus ouvidos! Bem sabes se eu te amo. Não é tempo de coroar os nossos votos; mas não faltará muito para que o mundo nos releve uma união que o amor nos impõe. Vem tu mesmo responder-me por boca. Tua Eugenia. » Emilio veio em pessoa. Asseverou-me que, se ia partir, era por negocio de pouco tempo, mas que voltaria logo. A viagem devia ter lugar d’ahi a oito dias. Pedi-lhe que jurasse o que dizia, e elle jurou. Deixei-o partir. D’ahi a quatro dias recebia eu a seguinte carta d’elle: Menti, Eugenia; vou partir já. Menti ainda, eu não volto. Não volto porque não posso. Uma união comtigo seria para mim o ideal da felicidade se eu não fosse homem de hábitos oppostos ao casamento. Adeos. Desculpa-me, e reza para que eu faça boa viagem. Adeos. Emílio. » Avalias facilmente como fiquei depois de ler esta a carta. Era um castello que se desmoronava. Em troca do meu amor, do meu primeiro amor, recebia d’este modo a ingratidão e o desprezo. Era justo: aquelle amor culpado não podia ter bom fim; eu fui castigada pelas consequências mesmo do meu crime. Mas, perguntava eu, como é que este homem, que parecia amar-me tanto, recusou aquella de cuja honestidade podia estar certo, visto que pôde oppôr uma resistência aos desejos de seu coração? Isto me pareceu um mysterio. Hoje vejo que não era; Emilio era um seductor vulgar e só se differençava dos outros em ter um pouco mais de habilidade que elles. Tal é a minha historia. Imagina o que soffri n’estes dous annos. Mas o tempo é um grande medico: estou curada. O amor offendido e o remorso de haver de algum modo trahido a confiança de meu esposo fizeram-me doer muito. Mas eu creio que caro paguei o meu crime e acho-me rehabilitada perante a minha consciência. Achar-me-hei perante Deos? E tu? É o que me lias de explicar amanhã; vinte e quatro horas depois de partir esta carta eu serei comtigo. Adeos! LINHA RECTA E LINHA CURVA I Era em Petropolis, no anno de 186.... Já se vê que a minha historia não data de longe. É tomada dos annaes contemporaneos e dos costumes actuaes. Talvez algum dos leitores conheça até as personagens que vão figurar n’este pequeno quadro. Não será raro que, encontrando uma d’ellas amanhã, Azevedo, por exemplo, um dos meus leitores exclame: — Ah! cá vi uma historia em que se fallou de ti. Não te tratou mal o autor. Mas a semelhança era tamanha, houve tão pouco cuidado em disfarçar a physionomia, que eu, á proporção que voltava a pagina, dizia comigo: É o Azevedo, não ha duvida. Feliz Azevedo! Á hora em que começa essa narrativa é elle um marido feliz, inteiramente feliz. Casado de fresco, possuindo por mulher a mais formosa dama da sociedade, e a melhor alma que ainda se incarnou ao sol da America, dono de algumas propriedades liem situadas e perfeitamente rendosas, acatado, querido, descansado, tal e o nosso Azevedo, a quem por cumulo de ventura coroam os mais hellos vinte e seis annos. Deu-lhe a fortuna um emprego suave: não fazer nada. Possue um diploma de bacharel em direito; mas esse diploma nunca lhe servio; existe guardado no fundo da lata classica em que o trouxe da faculdade de São Paulo. De quando em quando Azevedo faz uma visita ao diploma, aliás ganho legitimamente, mas é para não se ver mais senão d’ahi a longo tempo. Não é um diploma, é uma reliquia. Quando Azevedo sahio da faculdade de São Paulo e voltou para a fazenda da provincia de Minas-Geraes, tinha um projecto: ir á Europa. No fim de alguns mezes o pai consentio na viagem, e Azevedo preparou-se para realisal-a. Chegou á côrte no proposito firme de tomar lugar no primeiro paquete que sahisse; mas nem tudo depende da vontade do homem. Azevedo foi a um baile antes de partir; ahi estava armada uma rede em que elle devia ser colhido. Que rede! Vinte annos, uma figura delicada, esbelta, franzina, uma d’essas figuras vaporosas que parecem desfazer-se ao primeiro raio do sol. Azevedo não foi senhor de si: apaixonou-se; d’ahi a um mez casou-se, e d’ahi a oito dias partio para Petropolis. Que casa encerraria aquelle casal tão bello, tão amante e tão feliz? Não podia ser mais propria a casa escolhida; era um edifício leve, delgado, elegante, mais de recreio que de morada; um verdadeiro ninho para aquellas duas pombas fugitivas. A nossa historia começa exactamente tres mezes depois da ida para Petropolis. Azevedo e a mulher amavam-se ainda como no primeiro dia. O amor tomava então uma força maior e nova; é que... devo dizel-o, ó casaes de tres mezes? é que apontava no horizonte o primeiro filho. Também a terra e o céo se alegram quando aponta no horizonte o primeiro raio do sol. A figura não vem aqui por simples ornato de estylo; é uma deducção logica: a mulher de Azevedo chamava-se Adelaide. Era, pois, em Petropolis, n’uma tarde de Dezembro do anno de 186... Azevedo e Adelaide estavam no jardim que ficava em frente da casa onde occultavam a sua felicidade. Azevedo lia alto, Adelaide ouvia-o ler, mas como se ouve um écho do coração, tanto a voz do marido e as palavras da obra correspondiam ao sentimento interior da moça. No fim de algum tempo Azevedo deteve-se e perguntou: — Queres que paremos aqui? — Como quizeres, disse Adelaide. — É melhor, disse Azevedo fechando o livro. As cousas boas não se gozam de uma assentada. Guardemos um pouco para a noite. Demais, era já tempo que eu passasse do idyllio escripto para o idyllio vivo. Deixa-me olhar para ti. Adelaide olhou para elle e disse: — Parece que começamos a lua de mel. — Parece e é, accrescentou Azevedo; e se o casamento não fosse eternamente isto, o que poderia ser? A ligação de duas existencias para meditar discretamente na melhor maneira de comer o machiche e o repolho? Ora, pelo amor de Deos! Eu penso que o casamento deve ser um namoro eterno. Não pensas como eu? — Sinto, disse Adelaide. — Sentes, é quanto basta. — Mas que as mulheres sintam é natural, os homens… — Os homens, são homens. — O que nas mulheres é sentimento, nos homens é pieguice; desde pequena me dizem isto. — Enganam-te desde pequena, disse Azevedo rindo. — Antes isso! — É a verdade. E desconfia sempre dos que mais fallam, sejam homens ou mulheres. Tens perto um exemplo. A Emilia falla muito da sua insenção. Quantas vezes se casou? Até aqui duas, e está nos vinte e cinco annos. Era melhor calar-se mais e casar-se menos. — Mas n’ella é brincadeira, disse Adelaide. — Pois não. O que não é brincadeira é que os tres mezes do nosso casamento parecem-me tres minutos... — Tres mezes! exclamou Adelaide. — Como foge o tempo! disse Azevedo. — Dirás sempre o mesmo? perguntou Adelaide com um gesto de incredulidade. Azevedo abraçou-a e perguntou: — Duvidas? — Receio. É tão bom ser feliz! — Sêl-o-has sempre e do mesmo modo. De outro não entendo eu. N’este momento ouviram os dous uma voz que partia da porta do jardim. — O que é que não entendes? dizia essa voz. Olharam. A porta do jardim estava um homem alto, bem parecido, trajando com elegancia, luvas côr de palha, chicotinho na mão. Azevedo pareceu ao principio não conhecel-o. Adelaide olhava para um e para outro sem comprehender nada. Tudo isto, porém, não passou de um minuto; no fim d’elle Azevedo exclamou: — É o Tito! Entra, Tito! Tito entrou galhardamente no jardim; abraçou Azevedo e fez um comprimento gracioso a Adelaide. — E minha mulher, disse Azevedo apresentando Adelaide ao recem-chegado. — Já o suspeitava, respondeu Tito; e aproveito a occasião para dar-te os meus parabens. — Recebeste a nossa carta de participação? — Em Valparaiso. — Anda sentar-te e conta-me a tua viagem. — Isso é longo, disse Tito sentando-se. O que te posso contar é que desembarquei hontem no Rio. Tratei de indagar a tua morada. Disseram-me que estavas temporariamente em Petropolis. Descansei, mas logo hoje tomei a barca da Prainha e aqui estou. Eu já suspeitava que com o teu espirito de poeta irias esconder tua felicidade em algum recanto do mundo. Com effeito, isto é verdadeiramente uma nesga do paraiso. Jardim, caramanchões, uma casa leve e elegante, um livro. Bravo! Maria de Dirceu... É completo! Tityrae, tu patolae. Caio no meio de um idyllio. Pastorinha, onde está o cajado? Adelaide ri ás gargalhadas. Tito continúa: — Ri mesmo como uma pastorinha alegre. E tu, Theocrito, que fazes? Deixas correr os dias como as aguas do Parahyba? Feliz creatura! — Sempre o mesmo! disse Azevedo. — O mesmo doudo? Acha que elle tem razão, minha senhora? — Acho, se o não offendo… — Qual offender! Se eu até me honro com isso; sou um doudo inoffensivo, isso é verdade. Mas é que realmente são felizes como poucos. Ha quantos mezes se casaram? — Tres mezes fazem domingo, respondeu Adelaide. — Disse ha pouco que me pareciam tres minutos, accrescentou Azevedo. Tito olhou para ambos e disse sorrindo: — Tres mezes, tres minutos! Eis toda a verdade da vida. Se os puzessem sobre uma grelha, como São Lourenço, cinco minutos eram cinco mezes. E ainda se falla em tempo! Ha lá tempo! O tempo está nas nossas impressões. Ha mezes para os infelizes e minutos para os venturosos! — Mas que ventura! exclama Azevedo. — Completa, não? Imaginação! Marido de um seraphim, nas graças e no coração, não reparei que estava aqui... mas não precisa corar!... D’isto me ha de ouvir vinte vezes por dia; o que penso, digo. Como não te hão de invejar os nossos amigos! — Isso não sei. — Pudera! Encafuado n’este desvão do mundo, de nada pódes saber. E fazes bem. Isto de ser feliz á vista de todos é repartir a felicidade. Ora, para respeitar o principio devo ir-me já embora... Dizendo isto, Tito levantou-se. — Deixa te d’isso: fica comnosco. — Os verdadeiros amigos tambem são a felicidade, disse Adelaide. — Ah! — É até bom que aprendas em nossa escola a sciencia do casamento, accrescentou Azevedo. — Para que? perguntou Tito meneando o chicotinho. — Para te casares. — Hum!... fez Tito. — Não pretende? perguntou Adelaide. — Estás ainda o mesmo que em outro tempo? — O mesmissimo, respondeu Tito. Adelaide fez um gesto de curiosidade e perguntou: — Tem horror ao casamento? — Não tenho vocação, respondeu Tito. É puramente um caso de vocação. Quem a não tiver não se metta n’isso, que é perder o tempo e o socego. Desde muito tempo estou convencido d’isto. — Ainda te não bateu a hora. — Nem bate, disse Tito. — Mas, se bem me lembro, disse Azevedo offerecendo-lhe um charuto, houve um dia em que fugiste ás theorias do costume: andavas então apaixonado… — Apaixonado, é engano. Houve um dia em que a Providencia trouxe uma confirmação aos meus instinctos solitarios. Metti-me a pretender uma senhora... — É verdade: foi um caso engraçado. — Como foi o caso? perguntou Adelaide. — O Tito vio em um baile uma rapariga. No dia seguinte apresenta-se em casa d’ella, e, sem mais nem menos, pede-lhe a mão. Ella responde... que te respondeu ? — Respondeu por escripto que eu era um tolo e me deixasse d’aquillo. Não disse positivamente tolo, mas vinha a dar na mesma. É preciso confessar que semelhante resposta não era propria. Voltei atras e nunca mais amei. — Mas amou n’aquella occasião? perguntou Adelaide. — Não sei se era amor, respondeu Tito, era uma cousa... Mas note. isto foi ha uns bons cinco annos. D’ahi para cá ninguem mais me fez bater o coração. — Peior para ti. — Eu sei! disse Tito levantando os hombros. Se não tenho gozos intimos do amor, não tenho nem os dissabores, nem os desenganos. E já uma grande fortuna! — No verdadeiro amor não ha nada d’isso, disse sentenciosamente a mulher de Azevedo. — Não ha? Deixemos o assumpto; eu podia fazer um discurso a proposito, mas prefiro... — Ficar comnosco, Azevedo atalhou-o. Está sabido. — Não tenho essa intenção. — Mas tenho eu. Has de ficar. — Mas se eu já mandei o criado tomar alojamento no hotel de Bragança... — Pois manda contra-ordem. Fica comigo. — Insisto em não perturbar a tua paz. — Deixa-te d’isso. — Fique! disse Adelaide. — Ficarei. — E amanhã, continuou Adelaide, depois de ter descansado, ha de nos dizer qual é o segredo da isenção de que tanto se ufana. — Não ha segredo, disse Tito. O que ha é isto. Entre um amor que se offerece e... uma partida de voltarete, não hesito, atiro ao voltarete. A proposito, Ernesto, sabes que encontrei no Chile um famoso parceiro de voltarete? Fez a casca mais temeraria que tenho visto... sabe o que é uma casca, minha senhora? — Não, respondeu Adelaide. — Pois eu lhe explico. Azevedo olhou para fóra e disse: — Ahi chega a D. Emilia. Com effeito á porta do jardim parava uma senhora dando o braço a um velho de cincoenta annos. D. Emilia era uma moça a que se póde chamar uma bella mulher; era alta na estatura e altiva de caracter. O amor que pudesse infundir seria por imposição. De suas maneiras e das suas graças inspirava um não sei que de rainha que dava vontade de leval-a um throno. Trajava com elegancia e simplicidade. Ella tinha essa elegancia natural que é outra elegancia diversa da elegancia dos enfeites, a proposito do qual já tive occasião de escrever esta maxima: « Que ha pessoas elegantes, e pessoas enfeitadas. » Olhos negros e rasgados, cheios de luz e de grandeza, cabellos castanhos e abundantes, nariz recto como o de Sapho, boca vermelha e breve, faces de setim, collo e braços como os da estatuas, taes eram os traços da belleza de Emilia. Quanto ao velho que lhe dava o braço, era, como disse, um homem de cincoenta annos. Era o que se chama em portuguez chão e rude, — um velho gaiteiro. Pintado, espartilhado, via-se n’elle uma como que ruina do passado reconstruida por mãos modernas, de modo a ter esse aspecto baslardo que não é nem a austeridade da velhice, nem a frescura da mocidade. Não havia duvida de que o velho devia ter sido um bello rapaz em seus tempos; mas presentemente, se algumas conquistas tivesse leito, só podia contentar-se com a lembrança d’ellas. Quando Emilia entrou no jardim todos se achavam de pé. A recem-chegada apertou a mão a Azevedo e foi beijar Adelaide. Ia sentar-se na cadeira que Azevedo lhe offerecera quando reparou em Tito que se achava a um lado. Os dous comprimentaram-se, mas com ar differente. Tito parecia tranquillo e friamente polido; mas Emilia, depois de comprimental-o, conservou os olhos fitos n’elle, como que avocando uma memória do passado. Feitas as apresentações necessarias, e a Diogo Franco (é o nome do velho braceiro), todos tomaram assentos. A primeira que fallou foi Emilia: — Ainda hoje não vinha se não fosse a obsequiosidade do Sr. Diogo. Adelaide olhou para o velho e disse: — O Sr. Diogo é uma maravilha. Diogo impertigou-se e murmurou com certo tom de modestia: — Nem tanto, nem tanto. — É, é, disse Emilia. Não é talvez uma, porém duas maravilhas. Ah! sabes que me vai fazer um presente? — Um presente! exclamou Azevedo. — É verdade, continuou Emilia, um presente que mandou vir da Europa e lá dos confins; recordações das suas viagens de adolescente... Diogo estava radiante. — É uma insignificância, disse elle olhando ternamente para Emilia. — Mas o que é? perguntou Adelaide. — É... adivinhem? É um urso branco! — Um urso branco! — Devéras? — Está para chegar, mas só hontem é que me deu noticia d’elle. Que amavel lembrança! — Um urso! exclamou ainda Azevedo. Tito inclinou-se ao ouvido do amigo, e disse em voz baixa: — Com elle fazem dous. Diogo jubiloso pelo effeito que causava a noticia do presente, mas illudido no caracter d’esse effeito disse: — Não vale a pena. É um urso que eu mandei vir; é verdade que eu pedi dos mais bellos. Não sabem o que é um urso branco. Imaginem que é todo branco. — Ah! disse Tito. — É um animal admiravel! tornou Diogo. — Acho que sim, disse Tito. Ora imagina tu o que não será um urso branco que é todo branco. Que faz este sujeito? perguntou elle em seguida [a] Azevedo. — Namora a Emilia; tem cincoenta contos. — E ella? — Não faz caso d’elle. — Diz ella? — E é verdade. Emquanto os dous trocavam estas palavras, Diogo [brincava] com os sinetes do relogio e as duas senhoras [conversavam]. Depois das ultimas palavras entre Azevedo e Tito, Emilia voltou-se para o marido de Adelaide e perguntou: — Dá-se isto, Sr. Azevedo? Então faz-se annos [n’esta] casa e não me convidam? — Mas a chuva? disse Adelaide. — Ingrata! Bem sabes que não ha chuva em [casos] taes. — Demais, accrescentou Azevedo, fez-se a festa [tão] á capucha. — Fosse como fosse, eu sou de casa. — É que a lua de mel continua apezar de cinco mezes, disse Tito. — Ahi vens tu com os teus epigrammas, disse Azevedo. — Ah! isso é máo, Sr. Tito! — Tito? perguntou Emilia a Adelaide em voz baixa. — Sim. — D. Emilia não sabe ainda quem é o nosso amigo Tito, disse Azevedo. Eu até tenho medo de dizel-o. — Então é muito feio o que tem para dizer? — Talvez, disse Tito com indifferença. — Muito feio! exclamou Adelaide. — O que é então? perguntou Emilia. — É um homem incapaz de amar, continuou Adelaide. Não póde haver maior indifferença para o amor... Em resumo, prefere a um amor... o que? um voltarete. — Disse-te isso? perguntou Emilia. — E repito, disse Tito. Mas note bem, não por ellas, é por mim. Acredito que todas as mulheres sejam credoras da minha adoração; mas eu é que sou feito de modo que nada mais lhes posso conceder do que uma estima desinteressada. Emilia olhou para o moço e disse: — Se não é vaidade, é doença. — Ha de me perdoar, mas eu creio que não é doença, nem vaidade. É natureza: uns aborrecem as laranjas, outros aborrecem os amores: agora se o aborrecimento vem por causa das cascas, não sei; o que é certo é que é assim. — É ferino! disse Emilia olhando para Adelaide. — Ferino, eu? disse Tito levantando-se. Sou uma seda, uma dama, um milagre de brandura... Dóe-me, devéras, que ou não possa estar na linha dos outros homens, e não seja, como todos, propenso a receber as impressões amorosas, mas que quer? a culpa não é minha. — Anda lá, disse Azevedo, o tempo te ha de mudar. — Mas quando? Tenho vinte e nove annos feito. — Já vinte e nove? perguntou Emilia. — Completei-os pela Paschoa. — Não parece. — São os seus bons olhos. A conversa continuou por este modo, até que se annunciou o jantar. Emilia e Diogo tinham jantado, ficaram apenas para fazer companhia ao casal Azevedo e a Tito, que declarou desde o principio estar cahindo de fome. A conversa durante o jantar versou sobre causas indifferentes. Quando se servia o café appareceu á porta um criado do hotel em que morava Diogo; trazia uma carta para este, com indicação no sobrescripto de que era urgente. Diogo recebeu a carta, leu-a e pareceu mudar de côr. Todavia continuou a tomar parte na conversa geral. Aquella circumstancia, porém, deu lugar a que Adelaide perguntasse Emilia: — Quando te deixará este eterno namorado? — Eu sei cá! respondeu Emilia. Mas a final de contas, não é máo homem. Tem aquella mania de me dizer no fim de todas as semanas que nutre por mim uma ardente paixão. — Emfim, se não passa de declaração semanal. — Não passa. Tem a vantagem de ser um braceiro infallivel para a rua e um realejo menos máo dentro de casa. Já me contou umas cincoenta vezes as batalhas amorosas em que entrou. Todo o seu desejo é acompanhar-me a uma viagem á roda do globo. Quando me falla n’isto, se é á noite, e é quasi sempre á noite, mando vir o chá, excellente meio de aplacar-lhe os ardores amorosos. Gosta do chá que se pella. Gosta tanto como de mim! Mas aquella do urso branco? E se realmente mandou vir um urso? — Aceita. — Pois eu hei de sustentar um urso? Não me faltava mais nada! Adelaide sorrio-se e disse: — Quer me parecer que acabas por te apaixonar... — Por quem? Pelo urso? — Não, pelo Diogo. N'este momento achavam-se as duas perto de uma janella. Tito conversava no sofá com Azevedo. Diogo reflectia profundamente estendido n’uma poltrona. Emilia tinha os olhos em Tito. Depois de um silencio, disse ella para Adelaide: — Que achas ao tal amigo do teu marido? Parece um presumido. Nunca se apaixonou! É crivel? — Talvez seja verdade. — Não acredito. Pareces criança! Diz aquillo dos dentes para fóra... — E verdade que não tenho maior conhecimento d’elle... — Quanto a mim, pareceu-me não ser estranha aquella cara... mas não me lembro! — Parece ser sincero... mas dizer aquillo é ja atrevimento. — Está claro… — De que te ris? — Lembra-me um do mesmo genero que este, disse Emilia. Foi já ha tempos. Andava sempre a gabar-se da sua isenção. Dizia que todas as mulheres eram para elle vasos da China: admirava-as e nada mais. Coitado! Cahio em menos de um mez. Adelaide, vi-o beijar-me a ponta dos sapatos... depois do que desprezei-o. — Que fizeste? — Ah! não sei o que fiz. Santa Astucia foi quem operou o milagre. Vinguei o sexo e abati um orgulhoso. — Bem feito. — Não era menos do que este. Mas fallemos de cousas serias... Recebi as folhas francezas de modas... — Que ha de novo? — Muita cousa. Amanhão t’as mandarei. Repara em um novo córte de mangas. É lindissimo. Já mandei encommendas para a côrte. Em artigos de passeios ha fartura e do melhor. — Para mim quasi que é inutil mandar. — Porque? — Quasi nunca saio de casa. — Nem ao menos irás jantar comigo no dia de anno bom! — Oh! com toda a certeza! — Pois vai... Ah! irá o homem? O Sr. Tito? — Se estiver cá... e quizeres... — Pois que vá, não faz mal... saberei contel-o... Creio que não será sempre tão... incivil. Nem sei como pódes ficar com esse sangue-frio! a mim faz-me mal aos nervos! — É-me indifferente. — Mas a injuria ao sexo... não te indigna? — Pouco. — És feliz. — Que queres que eu faça a um homem que diz aquillo? Se não fosse casada era possivel que me indignasse mais. Se fosse livre era provável que lhe fizesse o que fizeste ao outro. Mas eu não posso cuidar d’essas cousas... — Nem ouvindo a preferencia do voltarete? Pôr-nos abaixo da dama de copas! E o ar com que elle diz aquillo! Que calma, que indifferença! — É máo! é máo! — Merecia castigo... — Merecia. Queres tu castigal-o? Emilia fez um gesto de desdem e disse: — Não vale a pena. — Mas tu castigaste o outro. — Sim... mas não vale a pena. — Dissimulada! — Porque dizes isso? — Porque já te vejo meia tentada a uma nova vingança... — Eu? Ora qual! — Que tem? Não é crime... — Não é, de certo; mas... veremos. — Ah! serás capaz? — Capaz? disse Emilia com um gesto de orgulho offendido. — Beijar-te-ha elle a ponta do sapato? Emilia ficou silenciosa por alguns momentos; depois apontando com o leque para a botina que lhe calçava o pé, disse: — E hão de ser estes. Emilia e Adelaide se dirigiram para o lado em que se achavam os homens. Tito, que parecia conversar intimamente com Azevedo, interrompeu a conversa para dar attenção ás senhoras. Diogo continuava mergulhado na sua meditação. — Então o que é isso, Sr. Diogo? perguntou Tito. Está meditando? — Ah! perdão, estava distrahido! — Coitado! disse Tito baixo a Azevedo. Depois, voltando-se para as senhoras: — Não as incommoda o charuto? — Não senhor, disse Emilia. — Então, posso continuar a fumar? — Póde, disse Adelaide. — É um máo vicio, mas é o meu unico vicio. Quando fumo parece que aspiro a eternidade. [En*evo-me] todo e mudo de ser. Divina invenção! — Dizem que é excellente para os desgostos amorosos, disse Emilia com intenção. — Isso não sei. Mas não é só isto. Depois da invenção do fumo não ha solidão possivel. É a melhor companhia d’este mundo. Demais, o charuto é um verdadeiro Memento homo: convertendo-se pouco a pouco em cinzas, vai lembrando ao homem o fim real e infallivel de todas as cousas: é o aviso plilosophico, é a sentença funebre que nos acompanha em toda a parte. Já é um grande progresso... Mas estou eu a aborrecer com uma dissertação tão pesada. Hão de desculpar... que foi descuido. Ora, a fallar a verdade, eu já vou desconfiando; Vossa Excellencia olha com olhos tão singulares... Emilio, a quem era dirigida a palavra, respondeu: — Não sei se não singulares, mas são os meus. — Penso que não são os do costume. Está talvez Vossa Excellencia a dizer comsigo que eu sou um exquisito, um singular, um... — Um vaidoso, é verdade. — Setimo mandamento: não levantar falsos testemunhos. — Falsos, diz o mandamento. — Não me dirá em que sou eu vaidoso? — Ah! a isso não respondo eu. — Porque não quer? — Porque... não sei. É uma cousa que se sente, mas que se não póde descobrir. Respira-lhe a vaidade em tudo: no olhar, na palavra, no gesto... mas não se atina com a verdadeira origem de tal doença. — É pena. Eu tinha grande prazer em ouvir da sua boca o diagnostico da minha doença. Em compensação póde ouvir da minha o diagnostico da sua... A sua doença é... Digo? — Póde dizer. — E um despeitozínho. — Devéras? — Vamos ver isso, disse Azevedo rindo-se. Tito continuou: — Despeito pelo que eu disse ha pouco. — Puro engano! disse Emilia rindo-se. — É com toda a certeza. Mas é tudo gratuito. Eu não tenho culpa de cousa alguma. A natureza é que me fez assim. — Só a natureza? — E um tanto de estudo. Ora vou expôr-lhe as minhas razões. Veja se posso amar ou pretender: primeiro, não sou bonito... — Oh!... disse Emilia. — Agradeço o protesto, mas continuo na mesma opinião: não sou bonito, não sou... — Oh!... disse Adelaide. — Segundo: não sou curioso, e o amor, se o reduzirmos ás suas verdadeiras proporções, não passa de uma curiosidade; terceiro: não sou paciente, e nas conquistas amorosas a paciencia é a principal virtude; quarto, finalmente: não sou idiota, porque, se com todos estes defeitos pretendesse amar, mostraria a maior falta de razão. Aqui está o que eu sou por natural e por industria. — Emilia, parece que é sincero. — Acreditas? — Sincero como a verdade, disse Tito. — Em ultimo caso, seja ou não seja sincero, que tenho eu com isso? — Eu creio que nada, disse Tito. II No dia seguinte áquelle em que se passaram as scenas descriptas no capitulo anterior, entendeu o céo que devia regar com as suas lagrimas o solo da formosa Petropolis. Tito, que destinava esse dia a ver toda a cidade, foi obrigado a conservar-se em casa. Era um amigo que não incommodava, porque quando era de mais sabía escapar-se discretamente, e quando o não era, tornava-se o mais delicioso dos companheiros. Tito sabia juntar muita jovialidade a muita delicadeza; sabia fazer rir sem saltar fóra das conveniencias. Accrescia que, voltando de uma longa e pittoresca viagem, trazia as algibeiras da memoria (deixem passar a phrase) cheias de vivas reminiscências. Tinha feito uma viagem de poeta e não peralvilho. Soube ver e sabia contar. Estas duas qualidades, indispensaveis ao viajante, por desgraça são as mais raras. A maioria das pessoas que viajam nem sabem ver, nem sabem contar. Tito tinha andado por todas as republicas do mar Pacifico, tinha vivido no Mexico e em alguns Estados americanos. Tinha depois ido á Europa no paquete da linha de New-York. Vio Londres e Pariz. Foi á Hespanha, onde viveu a vida de Almaviva, dando serenatas ás janellas das Rosinas de hoje. Trouxe de lá alguns leques e mantilhas. Passou á Italia e levantou o espirito á altura das recordações da arte classica. Vio a sombra de Dante nas ruas de Florença; vio as almas dos doges pairando saudosas sobre as aguas viuvas do mar Adriatico; a terra de Raphael, de Virgilio e Miguel Angelo foi para elle uma fonte viva de recordações do passado e de impressões para o futuro. Foi á Grécia, onde soube evocar o espirito das gerações extinctas que deram ao genio da arte c da poesia um fulgor que atravessou as sombras dos seculos. — Do amor, dizia elle, eu só sei que é uma palavra de quatro lettras, um tanto euphonica, é verdade, mas nuncia de luctas e desgraças. Os bons amores são cheios de felicidade, porque têm a virtude de não alçarem olhos para as estrellas do céo; contentam-se com cêas á meia-noite e alguns passeios a cavallo ou por mar. Esta era a linguagem constante de Tito. Exprimia ella a verdade, ou era uma linguagem de convenção? Todos acreditavam que a verdade estava na primeira hypothese, até porque essa era de accordo com o espirito jovial e folgazão de Tito. No primeiro dia da residencia de Tito em Petropolis, a chuva, como disse acima, impedio que os diversos personagens d’esta historia se encontrassem. Cada qual ficou na sua casa. Mas o dia immediato foi mais benigno; Tito aproveitou o bom tempo para ir ver a risonha cidade da serra. Azevedo e Adelaide quizeram acompanhal-o; mandaram apparelhar tres ginetes proprios para o ligeiro passeio. Na volta foram visitar Emilia. Durou poucos minutos a visita. A bella viuva recebeu-os com graça e cortezia de princeza. Era a primeira vez que Tito lá ia; e fosse por isso, ou por outra circumstancia, foi elle quem mereceu as principaes attenções da dona da casa. Diogo, que então fazia a sua centesima declaração de amor a Emilia, e a quem Emilia acabava de offerecer uma chicara de chá, não vio com bons olhos a demasiada attenção que o viajante merecia da dama dos seus pensamentos. Essa, e talvez outras circumstancias, faziam com que o velho Adonis assistisse á conversação com a cara fechada. Á despedida Emilia offereceu a casa a Tito, com a declaração de que teria a mesma satisfação em recebel-o muitas vezes. Tito aceitou cavalheiramente o offerecimento: feito o que, sahiram todos. Cinco dias depois d'esta visita Emilia foi á casa de Adelaide. Tito não estava presente; andava a passeio. Azevedo tinha sahido para um negocio, mas voltou d’ahi a alguns minutos. Quando, depois de uma hora de conversa, Emilia já de pé preparava-se para voltar á casa, entrou Tito. — Ia sahir quando entrou, disse Emilia. Parece que nos contrariamos em tudo. — Não é por minha vontade, respondeu Tito; pelo contrario, meu desejo é não contrariar pessoa alguma, e portanto não contrariar Vossa Excellencia. — Não parece. — Porque? Emilia sorrio e disse com uma inflexão de censura: — Sabe que me daria prazer se utilisasse do offerecimento de minha casa; ainda se não utilizou, foi esquecimento? — Foi. — E muito amavel... — Sou muito franco. Eu sei que Vossa Excellencia preferia uma delicada mentira; mas eu não conheço nada mais delicado que a verdade. Emilia sorrio. N’esse momento entrou Diogo. — la sahir, D. Emilia? perguntou elle. — Esperava o seu braço. — Aqui o tem. Emilia despedio-se de Azevedo e de Adelaide. Quanto a Tito, no momento em que elle curvava-se respeitosamente, Emilia disse-lhe com a maior placidez da alma: — Ha alguem tão delicado como a verdade: é o Sr. Diogo. Espero dizer o mesmo... — De mim? interrompeu Tito. Amanhã mesmo. Emilia sahio pelo braço de Diogo. No dia seguinte, com effeito, Tito foi á casa de Emilia. Ella o esperava com certa impaciencia. Como não soubesse a hora em que elle devia apresentar-se lá, a bella viuva esperou-o a todos os momentos, desde manhã. Só ao cahir da tarde é que Tito dignou-se apparecer. Emilia morava com uma tia velha. Era um boa senhora, amiga da sobrinha, e inteiramente escrava da sua vontade. Isto quer dizer que não havia em Emilia o menor receio que a boa tia não assignasse de antemão. Na sala em que Tito foi recebido não estava ninguém. Elle teve portanto tempo de sobra para examinal-a á vontade. Era uma sala pequena, mas mobiliada e adornada com gosto. Moveis leves, elegantes e ricos; quatro íntissimas estatuetas, copiadas de Pradier, um piano de Erard, tudo disposto e arranjado com vida. Tito gastou o primeiro quarto do hora no exame da sala e dos objectos que a enchiam. Esse exame devia enfluir muito no estudo que elle quizesse fazer do espirito da moça. Dize-me como moras, dir-te-hei quem és. Mas o primeiro quarto de hora correu sem que apparecesse viva alma, nem que se ouvisse rumor de natureza alguma. Tito começou o impacientar-se. Já sabemos que espirito brusco era elle, apezar da suprema delicadeza que todos lhe reconheciam. Parece, porém, que a sua rudeza, quasi sempre exercida contra Emilia, era antes estudada que natural. O que é certo é que no fim de meia hora, aborrecido pela demora, Tito murmurou comsigo: — Quer tomar desforra! E tomando o chapéo que havia posto n’uma cadeira ia dirigindo-se para a porta quando ouvio um farfalhar de sedas. Voltou a cabeça; Emilia entrava. — Fugia? — É verdade. — Perdôe a demora. — Não ha que perdoar; não podia vir, era natural que fosse por algum motivo serio. Quanto a mim não tenho igualmente de que pedir perdão. Esperei, estava cansado, voltaria em outra occasião. Tudo isto é natural. Emilia offereceu uma cadeira a Tito e sentou-se n’um sofá. — Realmente, disse ella accommodando o balão, o Sr. Tito é um homem original. — É a minha gloria. Não imagina como eu aborreço as cópias. Fazer o que muita gente faz, que mérito ha n’isso? Não nasci para esses trabalhos de imitação. — Já uma cousa fez como muita gente. — Qual foi? — Prometteu-me hontem esta visita e veio cumprir a promessa. — Ah! minha senhora, mão lance isto á conta das minhas virtudes. Podia não vir; vim; não foi vontade, foi... acaso. — Em todo caso, agradeço-lhe. — É o meio de me fechar a sua porta. — Porque? — Porque eu não me dou com esses agradecimentos; nem creio mesmo que elles possam accrescentar nada á minha admiração pela pessoa de Vossa Excellencia. Fui visitar muitas vezes as estatuas dos museos da Europa, mas se ellas se lembrassem de me agradecer um dia, dou-lhe a minha palavra que não voltava lá. A estas palavras seguio-se um silencio de alguns segundos. Emilia foi quem fallou primeiro. — Ha muito tempo que se dá com o marido de Adelaide? — Desde criança, respondeu Tito. — Ah! foi criança? — Ainda hoje sou. — E exactamente o tempo das minhas relação com Adelaide. Nunca me arrependi. — Nem eu. — Houve um tempo, proseguio Emilia, em que estivemos separadas; mas isso não trouxe mudança alguma ás nossas relações. Foi no tempo do meu primeiro casamento. — Ah! foi casada duas vezes? — Em dous annos. — E porque enviuvou da primeira? — Porque meu marido morreu, disse Emilia rindo-se. — Mas eu pergunto outra coisa. Porque se fez viuva, mesmo depois da morte de seu primeiro marido? Creio que poderia continuar casada. — De que modo? perguntou Emilia com espanto. — Ficando mulher do finado. Se o amor acaba na sepultura acho que não vale a pena de procural-o n’este mundo. — Realmente o Sr. Tito é um espirito fóra do commum. — Um tanto. — É preciso que o seja para desconhecer que a nossa vida não importa essas exigencias da eterna fidelidade. E demais, póde-se conservar a lembrança dos que morrem sem renunciar ás condições da nossa existencia. Agora é que eu lhe pergunto porque me olha com olhos tão singulares?... — Não sei se são singulares, mas são os meus. — Então, acha que eu commetti uma bigamia? — Eu não acho nada. Ora, deixe-me dizer-lhe a ultima razão da minha incapacidade para os amores. — Sou toda ouvidos. — Eu não creio na fidelidade. — Em absoluto? — Em absoluto. — Muito obrigada. — Ah! eu sei que isto não é delicado; mas em primeiro lugar, eu tenho a coragem das minhas opiniões, e em segundo foi Vossa Excellencia quem me provocou. É infelizmente verdade, eu não creio nos amores leaes e eternos. Quero fazel-a minha confidente. Houve um dia em que eu tentei amar; concentrei todas as forças vivas do meu coração; dispuz-me a reunir o meu orgulho e a minha illusão na cabeça do objecto amado. Que lição mestra! O objecto amado, depois de me alimentar as esperanças, casou-se com outro que não era nem mais bonito, nem mais amante. — Que prova isso? perguntou a viuva. — Prova que me aconteceu o que póde acontecer e acontece diariamente aos outros. — Ora... — Ha de me perdoar, mas eu creio que é uma coisa já mettida na massa do sangue. — Não diga isso. É certo que póde acontecer casos d’esses; mas serão todos assim? Não admitte uma excepção? Aprofunde mais os corações alheios se quizer encontrar a verdade... e ha de encontrar — Qual! disse Tito abaixando a cabeça e batendo com a bengala na ponta do pé. — Posso affirmal-o, disse Emilia. — Duvido. — Tenho pena de uma creatura assim, continuou a viuva. Não conhecer o amor é não conhecer a vida! Ha nada igual á união de duas almas que se adoram? Desde que o amor entra no coração, tudo se transforma, tudo muda, a noite parece dia, a dôr assemelha-se ao prazer... Se não conhece nada d’isto, póde morrer, porque é o mais infeliz dos homens. — Tenho lido isso nos livros, mas ainda não me convenci... — Já reparou na minha sala? — Já vi alguma cousa. — Reparou n’aquella gravura? Tito olhou para a gravura que a viuva lhe indicava. — Se me não engano, disse elle, aquillo é o amor domando as féras. — Veja e convença-se. — Com a opinião do desenhista? perguntou Tito. Não é possivel. Tenho visto gravuras vivas. Tenho servido de alvo a muitas settas; crivam-me todo, mas eu tenho a fortaleza de S. Sebastião; affronto. não me curvo. — Que orgulho! — O que póde fazer dobrar uma altivez d’estas? A belleza? Nem Cleopatra. A castidade? Nem Suzana. Resuma, se quizer, todas as qualidades em uma só creatura, e eu não mudarei... É isto e nada mais. Emilia levantou-se e dirigio-se para o piano. — Não aborrece a musica? perguntou ella abrindo o piano. — Adoro-a, respondeu o moço sem se mover; agora quanto aos executantes só gosto dos bons. Os máos dá-me impetos de enforcal-os. Emilia executou ao piano os preludios de uma symphonia. Tito ouvia-a com a mais profunda attenção. Realmente a bella viuva tocava divinamente. — Então, disse ella levantando-se, devo ser enforcada? — Deve ser coroada. Toca perfeitameme. — Outro ponto em que não é original. Toda a gente me diz isso. — Ah! eu também não nego a luz do sol. N’este momento entrou na sala a tia de Emilia. Esta apresentou-lhe Tito. A conversa tomou então um tom pessoal e reservado; durou pouco, aliás porque Tito, travando repentinamente do chapéu, declarou que tinha que fazer. — Até quando? — Até sempre. Despedio-se e sahio. Emilia ainda o acompanhou com os olhos por algum tempo, da janella da casa. Mas dito, como se o caso não fosse com elle, seguio sem olhar para trás. Mas, exactamente no momento em que Emilia voltava para dentro, Tito encontrava o velho Diogo. Díogo ia na direcção da casa da viuva. Tinha um ar pensativo. Tão distrahido ia que chegou quasi a esbarrar com Tito. — Onde vai tão distrahido? perguntou Tito. — Ah! é o senhor? Vem da casa de D. Emilia? — Venho. — Eu para lá vou. Coitada! ha de estar muito impaciente com a minha demora. — Não está, não senhor, respondeu Tito com o maior sangue-frio. Diogo lançou-lhe um olhar de despeito. À isso seguio-se um silencio de alguns minutos, durante o qual Diogo brincava com a corrente do relogio, e Tito lançava ao ar novellos de fumaça de um primoroso havana. Um d’esses novellos foi desenrolar-se na cara de Diogo. O velho tossio e disse a Tito: — Apre lá, Sr. Tito! É de mais! — O que, meu caro senhor? perguntou o rapaz. — Até a fumaça! — Foi sem reparar. Mas eu não comprehendo as suas palavras... — Eu me faço explicar, disse o velho tomando um ar risonho. Dê-me o seu braço... — Pois não! E os dous seguiram conversando como dous amigos velhos. — Estou prompto a ouvir a sua explicação. — Lá vai. Sabe o que eu quero? É que seja franco. Não ignora que eu suspiro aos pés da viuva. Peço-lhe que não discuta o facto, admitta-o simplesmente, até aqui tudo ia caminhando bem, quando o senhor chegou a Petropolis. — Mas... — Ouça-me silenciosamente. Chegou o senhor a Petropolis, e sem que eu lhe tivesse feito mal algum entendeu de si para si que me havia de tirar do lance. Desde então começou a côrte... — Meu caro Sr. Diogo, tudo isso é uma fantasia. Eu não faço a côrte a D. Emilia, nem pretendo fazer-lh’a. Vê-me acaso frequentar a casa d’ella? — Acaba de sahir de lá. — É a primeira vez que a visito. — Quem sabe? — Demais, ainda hontem não ouvio em casa de Azevedo as expressões com que ella se despedio de mim? Não são de mulher que... — Ah! isso não prova nada. As mulheres, e sobretudo aquella, nem sempre dizem o que sentem... — Então acha que aquella sente alguma cousa por mim?.... — Se não fosse isso, não lhe fallaria. — Ah! ora eis-ahi uma novidade. — Suspeito apenas. Ella só me falla do senhor; indaga-me vinte vezes por dia de sua pessoa, dos seus hábitos, do seu passado e das suas opiniões... Eu, como ha de acreditar, respondo o tudo que não sei, mas vou criando um odio ao senhor, do qual não me poderá jamais criminar. — E’ culpa minha se ella gosta de mim? Ora, va descansado Sr. Diogo. Nem ella gosta de mim, nem eu gosto d’ella. Trabalhe desassombradamente e seja feliz. — Feliz! se eu pudesse ser! Mas não... não creio; a felicidade não se fez para mim. Olhe, Sr. Tito, amo aquella mulher como se póde amar a vida. Um olhar d’ella vale mais para mim que um anno de glorias e de felicidade. É por ella que eu tenho deixado os meus negocios á tôa. Não vio outro dia que uma carta me chegou ás mãos, cuja leitura me fez entristecer? perdi uma causa. Tudo porque? por ella! — Mas, ella não lhe dá esperanças? — Eu sei o que é aquella moça! Ora trata-me de modo que eu vou ao sétimo céo; ora é tal a sua indifferença que me atira ao inferno. Hoje um sorriso, amanhã um gesto de desdem. Ralha-me de não visilal-a; vou visital-a, occupa-se tanto de mim como de Ganimedes; Ganimedes é o nome de um cãozinho felpudo que eu lhe dei. Importa-se tanto comigo como com o cachorro... É de proposito. É um enigma aquella moça. — Pois não serei eu quem o decifre, Sr. Diogo. Desejo-lhe muita felicidade. Adeos. E os dous separaram-se. Diogo seguio para a casa de Emilia, Tito para a casa de Azevedo. Tito acabava de saber que a viuva pensava n’ella; todavia, isso não lhe dera o menor abalo. Porque? É o que saberemos mais adiante. O que é preciso dizer desde já, é que as mesmas suspeitas despertadas no espirito de Diogo, tivera a mulher de Azevedo. A intimidade de Emilia dava lugar a uma banca interrogação e a uma confissão franca. Adelaide, no dia seguinte áquelle em que se passou a scena que referi acima, disse a Emilia o que pensava. A resposta da viuva foi uma risada. — Não te comprehendo, disse a mulher de Azevedo . — É simples, disse a viuva. Julgas-me capaz de apaixonar-me pelo amigo de teu marido? Enganaste. Não, eu não o amo. Sómente, como te disse no dia em que o vi aqui pela primeira vez, empenho-me em têl-o a meus pés. Se bem me recordo foste tu mesma quem me deu conselho. Aceitei-o. Hei de vingar o nosso sexo. É um pouco de vaidade minha, embora; mas eu creio que aquillo que nenhuma fez, fal-o-hei eu. — Ah! cruelzinha! É isso? — Nem mas, nem menos. — Achas possivel? — Porque não? — Reflecte que a derrota será dupla... — Será, mas não ha de haver. Esta conversa foi interrompida por Azevedo. Um signal de Emilia fez calar Adelaide. Ficou convencionado que nem mesmo Azevedo saberia de cousa alguma. E, com effeito, Adelaide nada communicou a seu marido. III Tinham-se passado oito dias depois do que acabo de narrar. Tito, como o temos visto até aqui, estava no terreno do primeiro dia. Passeava, lia, conversava e parecia inteiramente alheio aos planos que se tramavam em roda d’elle. Durante esse tempo foi apenas duas vezes á casa de Emilia, uma com a familia de Azevedo, outra com Diogo. N’estas visitas era sempre o mesmo, frio, indifferente, impassivel. Não havia olhar, por mais seductor e significativo, que o abalasse; nem a idéa de que andava no pensamento da viuva era capaz de animal-o. — Porque, ao menos, se não é capaz de amar, não procura entreter um d’esses namoros de sala, que tanto lisongeiram a vaidade dos homens? Esta pergunta era feita por Emilia a si mesma, sob a impressão da estranheza que lhe causava a indifferença do rapaz. Ella não comprehendia que Tito pudesse conservar-se de gelo diante dos seus encantos. Mas infelizmente era assim. Cansada de trabalhar em vão, a viuva determinou dar um golpe mais decisivo. Encaminhou a conversa para as doçuras do casamento e lamentou o estado de sua viuvez. O casal Azevedo era para ella o typo da perfeita felicidade conjugal. Apresentava-o aos olhos de Tito como um incentivo para quem queria ser venturoso na terra. Nada, nem a these, nem a hypothese, nada moveu a frieza de Tito. Emilia jogava um jogo perigoso. Era preciso decidir entre os seus desejos de vingar o sexo e as conveniencias da sua posição; mas ella era de um caracter imperioso; respeitava muito os princípios de sua moral severa, mas não acatava do mesmo modo as conveniencias de que a sociedade cercava essa moral. A vaidade impunha no espirito d’ella, com força prodigiosa. Assim que a bella viuva foi usando todos os meios que era licito empregar para fazer apaixonar Tito. Mas, apaixonado elle, o que faria ella? A pergunta é ociosa; desde que ella o tivesse aos pés, trataria de conserval-o ahi fazendo parelha ao velho Diogo. Era o melhor trophéo que uma belleza altiva póde ambicionar. Uma manhã, oito dias depois das scenas referidas no capitulo anterior, appareceu Diogo em casa de Azevedo. Tinhão ahi acabado de almoçar; Azevedo subira para o gabinete, afim de aviar alguma correspondencia para a côrte; Adelaide achava-se na sala do pavimento terreo. Diogo entrou com uma cara contristada, como nunca se lhe vira, Adelaide correu para elle. — Que é isso? perguntou ella. — Ah! minha senhora... sou o mais infeliz dos homens! — Porque? Venha sentar-se... Diogo sentou-se, ou antes deixou-se cahir na cadeira que Adelaide lhe offereceu. Esta tomou lugar ao pé d’elle, animou-o a contar as suas mágoas. — Então que ha? — Duas desgraças, respondeu elle. A primeira em forma de sentença. Perdi mais uma demanda. É uma desgraça isto, mas não é nada... — Pois ha maior?... — Ha. A segunda desgraça foi em fórma de carta. — De carta? perguntou Adelaide. — De carta. Veja isto. Diogo tirou da carteira uma cartinha côr de rosa, cheirando á essencia de magnolia. Adelaide leu a carta para si. Quando ella acabou, perguntou-lhe o velho: — Que me diz a isto? — Não comprehendo, respondeu Adelaide. — Esta carta é d’ella. — Sim, e depois? — É para elle. — Elle quem? — Elle! o diabo! o meu rival! o Tito! — Ah! — Dizer-lhe o que senti quando apanhei esta carta, é impossivel. Nunca tremi na minha vida! Mas quando li isto, não sei que vertigem se apoderou de mim. Ando tonto! A cada passo como que desmaio... Ah! — Animo! disse Adelaide. — É isto mesmo que eu vinha buscar... é uma consolação, uma animação. Soube que estava aqui e estimei achal-a só... Ah! quanto sinto que o estimável seu marido esteja vivo... porque a melhor consolação era aceitar Vossa Excellencia um coração tão mal comprehendido. — Felizmente elle está vivo. Diogo soltou um suspiro e disse: — Felizmente! E depois de um silencio continuou: — Tive duas ideas: uma foi o desprezo; mas desprezal-os é pôl-os em maior liberdade e ralar-me de dôr e de vergonha; a segunda foi o duello... é melhor... eu mato... ou… — Deixe-se d’isso. — É indispensável que um de nós seja riscado do numero dos vivos. — Póde ser engano... — Mas não é engano, é certeza. — Certeza de que? Diogo abrio o bilhete e disse: — Ora, ouça: « Se ainda não me comprehendeu é bem curto de penetração. Tire a mascara e eu me explicarei. Esta noite tomo chá sosinha. O importuno Diogo não me incommodará com as suas tolices. Dê-me a felicidade de vêl-o e admiral-o. — Emilia. » — Mas que é isto? — Que é isto? Ah! se fosse mais do que isto já eu estava morto! Pude pilhar a carta, e a tal entrevista não se deu... — Quando foi escripta a carta? — Hontem. — Tranquillise-se. É capaz de guardar um segredo? O que lhe vou dizer é grave. Mas só a sua afflicção me faz fallar. Posso affirmar-lhe que esta carta é uma pura caçoada. Trata-se de vingar o nosso sexo ultrajado; trata-se de fazer com que Tito se apaixone... nada mais. Diogo estremeceu de alegria. — Sim? perguntou elle. — É pura verdade. Mas veja lá, isto é segredo. Se lh’o descobri foi por vel-o afflicto. Não nos comprometta. — Isso é serio? insistio Diogo. — Como quer que lh’o diga? — Ah! que peso me tirou! Póde estar certa de que o segredo cahio n’um poço. Oh! muito me hei de rir... muito me hei de rir... Que boa inspiração tive em vir fallar-lhe! Diga-me, posso dizer a D. Emilia que sei tudo? — Não! — E então melhor que não me dê por achado... — Sim. — Muito bem! Dizendo estas palavras o velho Diogo esfregava as mãos e piscava os olhos. Estava radiante. Que! ver o supposto rival sendo victima dos laços da viuva! Que gloria! que felicidade! N’isto estava quando á porta do interior appareceu Tito. Acabava de levantar-se da cama. — Bom dia, D. Adelaide, disse elle dirigindo-se para a mulher de Azevedo. Depois sentando-se e voltando a cara para Diogo: — Bom dia, disse. Está hoje alegre... Tirou a sorte grande? — A sorte grande? perguntou Diogo... Tirei… tirei... — Dormio bem? perguntou Adelaide a Tito. — Como um justo que sou. Tive sonhos cor de rosas: sonhei com o Sr. Diogo. — Ah! sonhou comigo? murmurou entre dentes o velho namorado. Coitado! tenho pena d’elle! — Mas onde está Azevedo? perguntou Tito a Adelaide. — Anda de passeio. — Já? — Pois então. Onze horas. — Onze horas! É verdade acordei muito tarde. Tinha duas visitas para fazer; uma a D. Emilia... — Ah! disse Diogo. — De que se espanta, meu caro? — De nada! de nada! — Bom; vou mandar pôr o seu almoço, disse Adelaide. Os dous ficaram sós. Tito acendeu um cigarro de palha; Diogo affectava grande distracção, mas olhava sorrateiramente para o moço. Este, apenas soltou duas fumaças, voltou-se para o velho e disse: — Como vão os seus amores? — Que amores? — Os seus, a Emilia... Já lhe fez comprehender toda a immensidade da paixão que o devora? — Qual... Preciso de algumas lições... Se m’as quizesse dar?... — Eu? Está sonhando! — Ah! eu sei que o senhor é forte... E modesto, mas é forte... é até fortissimo! Ora, eu sou realmente um aprendiz... Tive ha pouco a idéa de desafial-o. — A mim? — É verdade, mas foi uma loucura de que me arrependi... — Além de que não é uso em nosso paiz... — Em toda a parte é uso vingar a honra. — Bravo, D. Quixote! — Ora, eu acreditava-me offendido na honra. — Por mim? — Mas emendei a mão; reparei que era antes eu quem offendia pretendendo lutar com um mestre, eu simples aprendiz... — Mestre de que? — Dos amores! Oh! eu sei que é mestre... — Deixe-se d’isso... eu não sou nada... o Sr. Diogo, sim; o senhor vale um urso, vale mesmo dous. Como havia de eu... Ora!... Aposto que teve ciúmes? — Exactamente. — Mas era preciso não me conhecer: não sabe das minhas idéas? — Homem, ás vezes é peior. — Peior, como? — As mulheres não deixam uma affronta sem castigo... As suas idéas são affrontosas... Qual será o castigo? Paro aqui... paro aqui... — Onde vai? — Vou sahir. Adeos. Não se lembre mais da minha desastrada idéa do duello... — Que está acabado... Ah! o senhor escapou de boa! — De que? — De morrer. Eu enfiava-lhe a espada por esse abdomen... com um gosto... com um gosto só comparável ao que tenho de abraçal-o vivo e são! Diogo rio-se com um riso amarello. — Obrigado, obrigado. Até logo! — Venha cá, onde vai? Não se despede de D. Adelaide? — Eu já volto, disse Diogo travando do chapéo e sahindo precipitadamente. Tito ainda o acompanhou com os olhos. — Este sujeito, disse o moço comsigo quando se vio só, não tem nada de original. Aquella opinião a respeito das mulheres não é d’elle... Melhor... já se conspira; é o que me convem. Has de vir! has devir! Um criado allemão veio annunciar a Tito que o almoço estava preparado. Tito ia entrando quando assomou á porta a figura de Azevedo. — Ora, graças a Deos! O meu amigo não se levanta com o sol. Estás com olhos de quem acaba de dormir. — É verdade, e vou almoçar. Dirigiram-se os dous para dentro, onde a mesa estava posta á espera de Tito. — Almoças outras vez? perguntou Tito. — Não. — Pois então vais ver como se come. Tito sentou-se á mesa; Azevedo estirou-se n’um sofá. — Onde foste? perguntou Tito. — Fui passear... Comprehendi que é preciso ver e admirar o que é indifferente, para appreciar e ver aquillo que faz a felicidade intima do coração. — Ah! sim? Bem vès que até a felicidade por igual fatiga! A final sempre a razão do meu lado. — Talvez. Apezar de tudo, quer-me parecer que já intentas entrar na familia dos casados. — Eu? — Tu, sim. — Porque? — Mas, dize, é ou não verdade? — Qual, verdade! — O que sei, é que uma d’estas tardes em que adormeceste lendo, não sei que livro, ouvi-te pronnunciar em sonhos, com a maior ternura, o nome de Emilia. — Deveras? perguntou Tito mastigando. — É exacto. Conclui que se sonhavas com ella é que a tinhas no pensamento, e se a tinhas no pensamento é que se a amavas. — Concluiste mal. — Mal? — Concluiste como um marido de cinco mezes. Que prova um sonho? — Não prova nada! Pareces velha supersticiosa... — Mas emfim, alguma cousa ha por força... Serás capaz de me dizeres o que é? — Homem, podia dizer-te alguma cousa se não fosses casado... — Que tem que eu seja casado? — Tem tudo. Seria indiscreto sem querer e até sem saber. Á noite, entre um beijo e um bocejo, o marido e a mulher abrem um para o outro a bolsa das confidencias. Sem pensares, podes deitar tudo a perder. — Não digas isso. Vamos lá. Ha novidade? — Não ha nada. — Confirmas as minhas suspeitas. Gostas da Emilia. — Odio não lhe tenho, é verdade. — Gostas. E ella merece. E uma boa senhora, de não vulgar belleza possuindo as melhores qualidades. Talvez preferisses que não fosse viuva?... — Sim; é natural que se embale dez vezes por dia na lembrança dos dous maridos que já exportou para o outro mundo... á espera de exportar o terceiro... — Não é d’essas... — Afianças? — Quasi que posso afiançar. — Ali! meu amigo, disse Tito levantando-se da mesa e indo acender um charuto, toma o conselho de um tolo: nunca afiances nada, principalmente em taes assumptos. Entre a prudência discreta, e a cuja confiança não é licito duvidar, a escolha está decidida nos proprios termos da primeira. O que podes tu afiançar a respeito de Emilia? Não a conheces melhor do que eu. Ha quinze dias que nos conhecemos, e eu já lhe leio no interior; estou longe dé attribuir-lhe máos sentimentos, mas tenho a certeza de que não possue as rarissimas qualidades que são necessárias á excepção. Que sabes tu? — Realmente, eu não sei nada. — Não sabes nada! disse Tito comsigo. — Fallo pelas minhas impressões. Parecia-me que um casamento entre vocês ambos não vinha fóra de propósito. — Se me fallas outro vez em casamento, saio. — Pois só a palavra? — A palavra, a idéa, tudo. — Entretanto, admiras e applaudes o meu casamento... — Ah! eu applaudo nos outros muitas cousas de que não sou capaz de usar. Depende da vocação... Adelaide appareceu á porta da sala de jantar. A conversa cessou entre os dous rapazes. — Trago-lhe uma noticia. — Que noticia? perguntaram-lhe os dous. — Recebi um bilhete de Emilia... Pede-nos que vamos lá amanhã, porque... — Porque? perguntou Azevedo. — Talvez dentro de oito dias se retire para a cidade. — Ah! disse Tito com a maior indifferença d’este mundo. — Aprompta as tuas malas, disse Azevedo a Tito. — Porque? — Não segues os passos da deosa? — Não zombes, cruel amigo! Quando não...! — Anda lá... Adelaide sorrio ouvindo estas palavras. D’ahi a meia hora Tito subio para o gabinete em que Azevedo tinho os livros. Lá, dizia ler as Confissões de santo Agostinho. — Que repentina viagem é esta? perguntou Azevedo á sua mulher. — Tens muito empenho em saber? — Tenho. — Pois bem. Olha que é segredo. Eu não sei positivamente, mas creio que é uma estratégia. — Estratégia? Não entendo. — Eu te digo. Trata-se de prender o Tito. — Prender? — Estás hoje tão bronco! Prender pelos laços do amor... — Ah! — Emilia julgou que deve fazel-o. É só para brincar. No dia em que elle se declarar vencido fica ella vingada do que elle disse contra o sexo. — Não está máo... E tu entras n’esta estratégia... — Como conselheira. — Torna-se então contra um amigo, um alter ego. — Tá, tá, tá. Cala a boca. Não vás fazer abortar o plano. Azevedo rio-se a bandeiras despregadas. No fundo achava engraçada a punição premeditada ao pobre Tito. A visita que Tito disse ter de fazer a viuva n’a-quelle dia, não se realisou. Diogo, que apenas sahira do casa de Azevedo, sciente das intenções da viuva, fòra para casa d’esta esperar o rapaz, embalde lá esteve durante o dia, embalde jantou, embalde aborreceu a tarde inteira tanto a Emilia como á tia, Tito não appareceu. Mas, á noite, á hora em que Diogo, já vexado de tanta demora na casa da moça, tratava de sahir, annunciou-se a chegada de Tito. Emilia estremeceu; mas esse movimento escapou a Diogo. Tito entrou na sala onde se achavam Emilia, a tia, e Diogo. — Não contava com a sua visita, disse a viuva. — Eu sou assim; appareço quando não me esperam. Sou como a morte e a sorte grande. — Agora é a sorte grande, disse Emilia. — Que numero é o seu bilhete, minha senhora? — Numero doze, isto é, doze horas que tenho tido o prazer de ter hoje aqui o Sr. Diogo... — Doze horas! exclamou Tito voltando-se para o velho. — Sem que ainda o nosso bom amigo nos contasse uma historia... — Doze horas! repetio Tito. — Que admira, meu caro senhor? peguntou Diogo. — Acho um pouco estirado... — As horas contam-se quando são aborrecidas… Peço para me retirar... E dizendo isto, Diogo travou do chapéo para sahir lançando um olhar de despeito e ciume para a viuva. — Que é isso? perguntou esta. Onde vai? — Dou azas á horas, respondeu Diogo ao ouvido de Emilia; vão correr depressa agora. — Perdôo-lhe e peço que se sente. Diogo sentou-se. A tia de Emilia pedio licença para retirar-se alguns minutos. Ficaram os tres. — Mas então, disse Tito, nem ao menos uma historia contou? — Nenhuma. Emilia lançou um olhar a Diogo como para tranquillisal-o. Este, mais calmo então, lembrou-se do que Adelaide lhe havia dito e voltou as boas. — Afinal de contas, disse elle comsigo, o caçoado é elle. Eu sou apenas o meio de prendel-o… Contribuamos para que se lhe tire a prôa. — Nenhuma historia, continuou Emilia. — Pois olhe, e sei muitas, disse Diogo com inttenção. — Conte uma de tantas que sabe, disse Tito. — Nada! Porque não conta o senhor? — Se faze empenho... — Muito... muito, disse Diogo piscando os olhos. Conte lá, por exemplo, a historia do taboqueado, a historia das imposturas do amor, a historia dos viajantes encouraçados; vá, vá. — Não, vou contar a historia de um homem e de um macaco. — Oh! disse a viuva. — É muito interessante, disse Tilo. Ora, oução... — Perdão, interrompeu Emilia, será depois do chá. — Pois sim. D’ahi a pouco servia-se o chá aos tres. Findo elle, Tito tomou a palavra e começou a historia: « Não longe da villa***, no interior do Brazil morava ha uns vinte annos um homem de trinta e cinco annos, cuja vida mysteriosa era o objecto das conversas das villas próximas e o objecto do terror que experimentavam os viajantes que passavam na estrada a dous passos da casa. « A propria casa era já de causar apprehensões ao espirito menos timorato Vista de longe nem parecia casa, tão baixinha era. Mas quem se approximasse conheceria aquella construcção singular. Metade do edifício estava ao nivel do chão e metade abaixo da terra. Era entretanto uma casa solidamente construída. Não tinha porta nem janellas. Tinha um vão quadrado que servia ao mesmo tempo de janella e de porta. Era por alli que o mysterioso morador entrava e sahia. « Pouca gente o via sahir, não só porque elle raras vezes o fazia, como porque o fazia em horas impróprias. Era nas horas da lua cheia que o solitario deixava a residência para ir passear nos arredores. Levava sempre cosmigo um grande macaco, que acudia pelo nome de Caligula. « O macaco e o homem, o homem e o macaco, eram dous amigos inseparáveis, dentro e fóra de casa, na lua nova. « Mil visões corriam a respeito d’este mysterioso solitário. A mais geral é que era um feiticeiro. Havia uma que o dava por doudo; outra por simplesmente atacado de misanthropia. « Esta ultima versão tinha por si duas circumstancias: a primeira era não constar nada de positivo que fizesse reconhecer no homem habitos de feiticeiro ou alienado; a segunda era a amizade que elle parecia votar ao macaco e o horror com que fugia ao olhar dos homens. Quando a gente se aborrece dos homens toma sempre a affeição dos animaes, que tem a vantagem de não discorrer, nem intrigar. « O mysterioso... É preciso dar-lhe um nome: chamemol-o Daniel. Daniel preferia o macaco, e não fallava a mais homem algum. Algumas vezes os viajantes que passavam pela estrada ouviam partir de dentro da casa gritos do macaco e do homem, era o homem que afagava o macaco. « Como se alimentavam aquellas duas creaturas? Houve quem visse um dia de manhã abrir-se a porta, sahir o macaco e voltar pouco depois com um embrulho na boca. O tropeiro que presenciava esta scena quiz descobrir onde ia o macaco buscar aquelle embrulho que levava sem duvida os alimentos dos dous solitários. Na manhã seguinte introduzio-se no matto; o macaco chegou á hora do costume, e dirigio-se para um tronco da arvore; havia sobre esse tronco um grande galho, que o bicho atirou ao chão. Depois, introduzindo as mãos no interior do velho tronco, tirou um embrulho igual ao da vespera e partio. « O tropeiro persignou-se, e tão apprehendido ficou com a scena que acabava de presenciar que não a contou a ninguém. « Durava esta existência tres annos. « Durante esse tempo o homem não envelhecera. Era o mesmo que no primeiro dia. Longas barbas ruivas e cabellos grandes cabidos para trás. Usava um grande casaco de baeta, tanto no inverno, como no verão. Calçava botas e não usava chapéo. « Era impossivel aos passageiros e aos moradores das vizinhanças penetrar na casa do solitário. Não o será de certo para nós, minha bella senhora, e meu caro amigo. « A casa divide-se em duas salas e um quarto. Uma sala é para jantar; a outra é... a de visitas. O quarto é occupado pelo dous moradores. Daniel e Caligula. « As duas salas são de iguaes dimensões; o quarto é uma metade da sala. A mobilia da primeira sala compõe-se de dous sujos bancos encostados á parede, uma mesa baixa no centro. O chão é assoalhado. Pendem das paredes dous retratos: um de moça, outro de velho. A moça é uma figura angélica e deliciosa. O velho inspirava respeito e admiração. Das outras duas paredes pendem, de um lado uma faca de cabo de marfim, e do outro uma mão de defunto, amarella e secca. « A sala de jantar tem apenas uma mesa e dous bancos. « A mobilia do quarto resume-se n’um grabato em que dorme Daniel. Caligula estende-se no chão, junto á cabeceira do dono. « Tal é a mobilia da casa. « A casa, que de fóra parece não ter capacidade; para conter um homem em pé, é comtudo sufficiente, visto estar, como disse, entranhada no chão. « Que vida terão passado ahi dentro o macaco e o homem, no espaço de tres annos? Não saberei dizêl-o. « Quando Caligula traz de manhã o embrulho, Daniel divide a comida em duas porções, uma para to almoço, outra para jantar. Depois homem e macaco sentam-se em face um do outro na sala de jantar e comem irmãmente as duas refeições. « Quando chega a lua cheia sabem os dous solitarios, como já disse, todas as noites, até a época em que a lua passa a ser minguante. Sahem ás dez horas, pouco mais ou menos, e voltam pouco mais ou menos ás duas horas de madrugada. Quando entram Daniel tira a mão do finado que pende da parede e dá com ella duas bofetadas em si proprio. Feito isto, vai deitar-se; Caligula acompanha-o. « Uma noite, era no mez de Junho, época de lua cheia, Daniel preparou-se para sahir. Caligula deu um pulo e saltou á estrada. Daniel fechou a porta, e la se foi com o macaco estrada acima. « A lua, inteiramente cheia, projectava os seus reflexos pallidos e melancólicos na vasta floresta que cobria as collinas próximas, e clareava toda a vasta campina que rodeava a casa. « Só se ouvia ao longe o murmúrio de uma cachoeiro, e ao perto o piar de algumas corujas, e o chilrar de uma infinidade de grilhos espalhados na planicie. « Daniel caminhava pausadamente levando um páo debaixo do braço, e acompanhado do macaco, que saltava do chão aos hombros de Daniel e dos hombros de Daniel para o chão. « Mesmo sem a forma lugubre que tinha aquelle lugar por causa da residência do solitário, qualquer pessoa que encontrasse áquella hora Daniel e o macaco corria risco de morrer de medo. Daniel, extremamente magro e alto, tinha em si um ar lugubre. Os cabellos da barba e da cabeça, crescidos em abundancia, faziam a sua cabeça ainda maior do que era. Sem chapéo era uma cabeça verdadeiramente satanica. « Caligula, que nos outros dias era um macaco ordinário, tomava, n’aquellas horas de passeio nocturno, um ar tão lugubre e tão mysterioso como o de Daniel. « Havia já uma hora que os dous solitários tinham sabido de casa. A casa ficará já um pouco longe. Nada mais natural do que chegar a policia n’essa occasião, tomar a entrada do casa e reconhecer o mysterio. Mas a policia, apezar dos meios que tinha á sua disposição, não se animava a investigar no mysterio que o povo reputava diabolico. Também a policia é humana, e nada do que é humano lhe é desconhecido. « Havia uma hora, disse eu, que os dons passeadores tinham sahido de casa. Começavam então a subir uma pequena collina... » Tito foi interrompido por um bocejo do velho — Diogo. — Quer dormir? perguntou o rapaz. — É o que vou fazer. — Mas a historia? — A historia é muito divertida. Até aqui so temos visto duas cousas, um homem e um macaco; perdão… temos mais dous, um macaco e um homem. É muito divertida! Mas, para variar, o homem vai sahir e fica o macaco. Dizendo estas palavras com uma raiva cômica, Diogo travou do chapéo e sahio. Tito soltou uma gargalhada. — Mas vamos ao fim da historia... — Que fim, minha senhora? Eu já estava em talas por não saber como continuar... Era um meio de servil-a. Vejo que é um velho aborrecido... — Não é, está enganado. — Ah! não? — Diverto-me com elle. O que não impede que a presença do senhor me dê infinito prazer… — Vossa Excellencia disse agora uma falsidade. — Qual foi? — Disse que lhe era agradavel a minha conversa, isso é falso como tudo quando é falso... — Quer um elogio? — Não, fallo franco. Eu nem sei como Vossa Excellencia me attura; desabrido, massante, chocarreiro, sem fé em cousa alguma, sou um conversador muito pouco digno de ser desejado. É preciso ter uma grande somma de bondade para ter expressões tão benevolas... tão amigas... — Deixe esse ar de mofa, e... — Mofa, minha senhora? — Hontem eu e minha tia tomámos chá sósinhas! sósinhas!... — Ah! — Contava que o senhor viesse aborrecer-se uma hora comnosco... — Qual aborrecer... Eu lhe digo: o culpado foi o Ernesto. — Ah! foi elle? — É verdade; deu comigo ahi em casa de uns amigos, éramos quatro ao todo, rolou a conversa sobre o voltarete e acabamos por formar mesa. Ah! mas foi uma noite completa! Aconteceu-me o que me acontece sempre: ganhei! — Está bom. — Pois olhe, ainda assim eu não jogava com pichotes; eram mestres de primeira força: um principalmente: até ás onze horas a fortuna pareceu desfavorecer-me, mas d’essa höre em diante desandou a roda para elles e eu comecei a assombrar… póde ficar certa de que os assombrei. Ah! é que eu tenho diploma... mas que é isso, está chorando? Emilia tinha com effeito o lenço nos olhos. Chorava? É certo que quando tirou o lenço dos olhos, tinha-os húmidos. Voltou-se contra a luz e disse ao moço: — Qual... póde continuar. — Não ha mais nada; foi só isto, disse Tito. — Estimo que a noite lhe corresse feliz... — Alguma cousa... — Mas a uma carta responde-se; porque não respondeu á minha? disse a viuva. — À sua qual? — Á carta que lhe escrevi pedindo que viesse tomar chá comnosco? — Não me lembro. — Não se lembra? — Ou, se recebi essa carta, foi em occasião que a não pude ler, e então esqueci, esqueci-a em algum lugar... — É possivel: mas é a ultima vez... — Não me convida mais para tomar chá? — Não. Póde arriscar-se a perder distracções melhores. — Isso não digo: a senhora trata bem a gente, e em sua casa passam-se bem as horas... Isto é com franqueza. Mas então tomou chá sósinha? E o Diogo? — Descartei-me d’elle. Acha que elle seja divertido? — Parece que sim... É um homem delicado; um tanto dado ás paixões, é verdade, mas sendo esse um defeito commum, acho que n’elle não é muito digno de censura. — O Diogo está vingado. — De que, minha senhora? Emilia olhou fixamente para Tito e disse: — De nada! E levantando-se dirigio-se para o piano. — Vou tocar, disse ella; não o aborrece? — De modo nenhum. Emilia começou a tocar; mas era uma musica tão triste que infundia certa melancolia no espirito do moço. Este, depois de algum tempo, interrompeu com estas palavras: — Que musica triste! — Traduzo a minha alma, disse a viuva. — Anda triste? — Que lhe importam as minhas tristezas? — Tem razão, não me importam nada. Em todo o caso não é comigo? Emilia levantou-se e foi para elle. — Acha que lhe hei de perdoar a desfeita que me fez? disse ella. — Que desfeita, minha senhora? — A desfeita de não vir ao meu convite? — Mas eu já lhe expliquei... — Paciência! O que sinto é que também n’esse voltarete estivesse o marido de Adelaide. — Elle retirou-se ás dez horas, e entrou um parceiro novo, que não era de todo máo. — Pobre Adelaide! — Mas se eu lhe digo que elle se retirou ás dez horas... — Não devia ter ido. Devia pertencer sempre á sua mulher. Sei que estou fallando a um descrido; não pode calcular a felicidade e os deveres do lar domestico. Viverem duas creaturas uma para a outra, confundidas, unificadas; pensar, aspiar, sonhar a mesma cousa; limitar o horizonte nos olhos de cada uma, sem outra ambição, sem inveja de mais nada. Sabe o que é isto? — Sei... É o casamento por fóra. — Conheço alguém que lhe provava aquillo tudo... — Deveras? Quem é essa phenix? — Se lh’o disser, ha de mofar; não digo. — Qual mofar! Diga lá, eu sou curioso. — Não acredita que haja alguém que possa amal-o? — Póde ser... — Não acredita que alguém, por despeito, por outra cousa que seja, tire da originalidade do seu espirito os influxos de um amor verdadeiro, mui diverso do amor ordinário dos salões; um amor capaz de sacrifício, capaz de tudo? Não acredita! — Se me affirma, acredito; mas... — Existe a pessoa e o amor. — São então duas phenix. — Não zombe. Existem... Procure... — Ah! isso ha de ser mais difficil: não tenho tempo. E supponho que achasse, de que me servia? Para mim é perfeitamente inútil. Isso é bom para outros; para o Diogo, por exemplo... — Para o Diogo? A bella viuva pareceu ter um assomo de colera. Depois de um silencio disse. — Adeos! Desculpe, estou incommodada. — Então, até amanhã! Dizendo o que, Tito apertou a mão de Emilia e sahio tão alegre e descuidoso como se sahisse de um jantar de annos. Emilia, apenas ficou só, cahio n’uma cadeira e cobrio o rosto. Estava n’essa posição havia cinco minutos, quando assomou á porta a figura do velho Diogo. O rumor que o velho fez entrando despertou a viuva. — Ainda aqui! — É verdade, minha senhora, disse Diogo approximando-se, é verdade. Ainda aqui, por minha infelicidade... — Não entendo... — Não sahi para casa. Um demonio occulto me impellío para commetter um acto infame. Commetti-o, mas tirei d’elle um proveito; estou salvo. Sei que me não ama. — Ouvio? — Tudo. E percebi. — Que percebeu, meu caro senhor? — Percebi que a senhora ama o Tito. — Ah! — Retiro-me, portanto, mas não quero fazel-o sem que ao menos fique sabendo de que saio com sciencia de que não sou amado; e que saio antes de me mandarem embora. Emilia ouvio as palavras de Diogo com a maior tranquillidade. Emquanto elle fallava teve tempo de reflectir no que devia dizer. Diogo estava já a fazer o seu ultimo comprimento, quando a viuva lhe dirigio a palavra. — Ouça-me, Sr. Diogo. Ouvio bem, mas percebeu mal. Já que pretende ter sabido... — Já sei; vem dizer que ha um plano assentado de zombar com aquelle moço... — Como sabe? — Disse-m’o D. Adelaide. — É verdade. — Não creio. — Porque? — Haviam lagrimas nas suas palavras. Ouvi-as com a dor n’alma. Se soubesse como eu soffria! A bella viuva não pôde deixar de sorrir ao gesto comico de Diogo. Depois, como elle parecesse mergulhado em meditação sombria, disse: — Engana-se, tanto que volto para a cidade. — Devéras? — Pois acredita que um homem como aquelle possa inspirar qualquer sentimento serio? Nem por sombras! Estas palavras foram ditas no tom com que Emilia costumava persuadir aquelle eterno namorado. Isso e mais um sorriso, foi quanto bastou para acalmar o animo de Diogo. D’ahi a alguns minutos estava elle radiante. — Olhe, e para desenganal-o de uma vez vou escrever um bilhete ao Tito... — Eu mesmo o levarei, disse Diogo louco de contente. — Pois sim! — Adeos, até amanhã. Tenha sonhos còr de rosa, e desculpe os meus máos modos. Até amanhã. O velho beijou graciosamente a mão de Emilia e sahio. IV No dia seguinte, ao meio-dia, Diogo apresentou-se ao Tito, e depois de fallar sobre differentes cousas, tirou do bolso uma cartinha, que fingira ter esquecido até então, e á qual mostrava não dar grande apreço. — Que bomba! disse elle comsigo, na occasião em que Tito rasgou a sobrecarta. Eis o que dizia a carta: « Dei-lhe o meu coração. Não quiz acceital-o, desprezou-o mesmo. A sua bota magoou-o de mais para que elle possa palpitar ainda. Está morto. Não o censuro; não se deve fallar de luz aos cegos; a culpada fui eu. Suppuz que pudesse dar-lhe uma felicidade, recebendo outra. Enganei-me. « Tem a gloria de retirar-se com todas as honras da guerra. Eu é que fico vencida. Paciência! Póde zombar de mim; não lhe contesto o direito que tem para isso. « Entretanto, devo dizer-lhe que eu bem o conhecia; nunca lh’o disse, mas conheci-o; desde o dia em que o vi pela primeira vez em casa de Adelaide, reconheci na sua pessoa o mesmo homem que um um dia veio atirar-se aos meus pés... Era zombaria então, como hoje. Eu já devia conhecel-o. Caro pago meu engano. Adeos, adeos para sempre. » Lendo esta carta, Tito olhava repetidas vezes para Diogo. Como é que o velho se prestára áquillo? Era authentica ou apocrypha a tal carta? Sobre não trazer assignatura, tinha a lettra disfarçada. Seria uma arma de que o velho usára para descartar-se do rapaz? Mas, se fosse assim, era preciso que elle soubesse do que se passára na vespera. Tito releu a carta muitas vezes; e, despedindo-se do velho, disse-lhe que a resposta iria depois. Diogo retirou-se esfregando as mãos de contente. E que a carta cuja leitura os leitores fizeram ao mesmo tempo que o nosso heróe, não era a que Emilio lera a Diogo. Na minuta apresentada ao velho a viuva declarava simplesmente que se retirava para a corte, e accrescentava que entre as recordações que levava de Petropolis figurava Tito, pela figura que elle havia representado diante d’elle. Mas essa minuta, por uma destreza puramente feminina, não foi a que Emilia mandou a Tito, como viram os leitores. A carta de Emilia respondeu Tito nos seguintes termos: « Minha senhora, « Li e reli a sua carta; e não lhe occultarei o sentimento de pezar que ella me inspirou. Realmente, rainha senhora, é esse o estado do seu coração? Está assim tão perdido por mim? « Diz Vossa Excellencia que eu com a minha bota machuquei o seu coração. Penalisa-me o facto, sem que eu entretanto o confirme. Não me lembra até hoje que tivesse feito estrago algum d’esta natureza. Mas, emfim, Vossa Excellencia o diz, e eu devo crèl-o. « Lendo esta carta Vossa Excellencia dirá comsigo que eu sou o mais audaz cavalheiro que ainda pisou a terra de Santa Cruz. Será um engano de observação. Isto em mim não é audacia, é franqueza, lastimo que as cousas chegassem a este ponto, mas não posso dizer-lhe nada mais que a verdade. « Devo confessar que não sei se a carta a que respondo é de Vossa Excellencia. A sua lettra, de que eu já vi uma amostra no album de D. Adelaide, não se parece com a da carta; está evidentemente disfarçada; e de qualquer mão. Demais, não traz assignatura. « Digo isto porque a primeira duvida que nasceu em meu espirito proveio do piortador escolhido. Pois que! Vossa Excellencia não achou outro senão o proprio Diogo? Confesso que de tudo o que tenho visto em minha vida, é isto o que mais me faz rir. « Mas eu não devo rir, minha senhora. Vossa Excellencia abrio-me o seu coração de um modo que inspira antes compaixão. Esta compaixão não lhe é desairosa, porque não vem por sentido ironico. É pura e sincera. Sinto não poder dar-lhe essa felicidade que me pede; mas é assim. « Não devo estender-me, e comtudo custa-me arrancar a penna de cima do papel. É que poucos terão a posição que eu occupo agora, a posição de requestado. Mas devo acabar e acabo aqui, mandando-lhe os meus pezames e rogando a Deos para que encontre um coração menos frio que o meu. « A lettra vai disfarçada como a sua, e; como na sua carta, deixo a assignatura em branco. » Esta carta foi entregue á viuva na mesma tarde. À noite Azevedo e Adelaide foram visital-a. Não puderam dissuadil-a da idea da viagem para a corte. Emilia usou mesmo de uma certa reserva para com Adelaide, que não pôde descobrir os motivos de semelhante procedimento, e retirou-se um tanto triste. No dia seguinte, com effeito, Emilia e a tia apromptaram-se e sahiram para voltar para a côrte. Diogo ficou em Petropolis ainda, cuidando em apromptar as malas... Não queria, dizia elle, que o publico, vendo-o partir em companhia das duas senhoras, suppuzesse cousas desairosas á viuva. Todos estes passos admiravam Adelaide, que, como disse, via na insistência de Emilia e nos seus modos reservados um segredo que não comprehendia. Que ella por aquelle meio de viagem attrahir Tito? N’esse caso era calculo errado; visto que o rapaz, n’aquelle dia como nos outros, acordou tarde e almoçou alegremente. — Sabe, disse Adelaide, que a esta hora deve ter partido para a cidade a nossa amiga Emilia? — Já tinha ouvido dizer. — Porque será — Ah! isso é que eu não sei. Altos segredos do espirito de mulher! Porque sopra hoje a briza d’este lado e não d’aquelle? Interessa-me tanto saber uma cousa como outra. No fim do almoço Tito, como quasi sempre, retirou-se para ler durante duas horas. Adelaide ir dar algumas ordens quando vio com pasmo entrar-lhe em casa a viuva, acompanhada de um criado. — Ah! não partiste! disse Adelaide correndo a abraçal-a. — Não me ves aqui? O criado sahio a um signal de Emilia. — Mas que ha? perguntou a mulher de Azevedo, vendo, os modos estranhos da viuva. — Que ha? disse esta. Ha o que não previamos… Es quasi minha irmã... posso fallar francamente. Ninguem nos ouve? — Ernesto está fóra e o Tito lá em cima. Mas que ar é esse? — Adelaide! disse Emilia com os olhos rasos de lagrimas, eu o amo! — Que me dizes? — Isto mesmo. Amo-o doudamente, perdidamente completamente. Procurei até agora vencer esta paixão, mas não pude; e quando, por vãos preconceitos, tratava de occultar-lhe o estado do meu coração, não pude, as palavras sahiram-me dos lábios insensivelmente... — Mas como se deu isto? — Eu sei! Parece que foi castigo; quiz fazer fogo e queimei-me nas mesmas chammas. Ah! não é de hoje que me sinto assim. Desde que os seus desdens em nada cederam, comecei a sentir não sei o que; ao principio despeito, depois um desejo de triumphar, depois uma ambição de ceder tudo, comtanto que tudo ganhasse; a final não fui senhora de mim. Era eu quem me sentia doudamente apaixonada e lh’o manifestava, por gestos, por palavras, por tudo, e mais crescia n’elle a indifferença, mais crescia o amor em mim. — Mas estás fallando serio? — Olha antes para mim. — Quem pensára?... — A mim própria parece impossivel; porém é mais que verdade... — E elle?... — Elle disse-me quatro palavras indifferentes nem sei o que foi, e retirou-se. — Resistirá? — Não sei. — Se eu adivinhára isto não te insinuaria n’aquella malfadada idea. — Não me comprehendeste. Cuidas que eu deploro o que acontece? Oh! não! sinto-me feliz, sinto-me orgulhosa... É um d’estes amores que brotam por si para encher a alma de satisfação: devo antes abençoar-te... — É uma verdadeira paixão... Mas acreditas impossivel a conversão delle! — Não sei; mas seja ou não impossivel, nao e a conversão que eu peço; basta-me que seja menos indifferente e mais compassivo. — Mas que pretendes fazer? perguntou Adelaide sentindo que as lagrimas também lhe rebentavao dos olhos. Houve alguns instantes de silencio. — Mas e que tu não sabes, continuou Emilia, e que elle não é para mim um simples estranho. Já o conhecia antes de casada. Foi elle quem me pedio em casamento antes de Raphael... — Ah! — Sabias? — Elle já me havia contado a historia, mas não nomeára a santa. Eras tu? — Era eu. Ambos nos conheciamos, sem dizermos nada um ao outro... — Porque? A resposta a esta pergunta foi dada pelo proprio Tito, que assomára á porta do interior, tendo visto entrar a viuva de uma das janellas. Tito desceu abaixo o ouvir a conversa d’ella com Adelaide. A estranheza que lhe causava a volta inesperada de Emilia podia desculpar a indiscrição do rapaz. — Porque? repetio elle. É o que lhes vou dizer — Mas antes de tudo, disse Adelaide, não sei se sabe que uma indifferença, tão completa, como a sua, póde ser fatal a quem lhe é menos indifferente? — Refere-se á sua amiga? perguntou Tito. Eu corto tudo com uma palavra. E voltando-se para Emilia, disse, estendendo-lhe a mão: — Aceita a minha não de esposo? Um grito de alegria suprema ia sahindo do peito de Emilia; mas não sei se um resto de orgulho, ou qualquer outro sentimento, converteu essa manifestação em uma simples palavra, que aliás foi pronunciada com lagrimas na voz: — Sim! disse ella. Tito beijou amorosamente a mão da viuva. Depois accrescentou: — Mas é preciso medir toda a minha generosidade; eu devia dizer: acceito a sua mão. Devia ou não devia? Sou um tanto original e gosto de fazer inversão em tudo. — Pois sim; mas de um ou outro modo sou feliz. Comtudo um remorso me surge na consciência. Dou-lhe uma felicidade tão completa como a que recebo? — Remorso; se é sujeita aos remorsos deve ter um, mas por motivo diverso. A senhora está passando n’este momento pelas forcas caudinas. Fil-a soffrer, não? Ouvindo o que vou dizer concordará que eu já antes soffria, e muito mais. — Temos romance? perguntou Adelaide a Tito. — Realidade, minha senhora, respondeu Tito, realidade em prosa. Um dia, ha já alguns annos, tive eu a felicidade de ver uma senhora, e amei-a. O amor foi tanto mais indomável quanto que me nasceu de subito. Era então mais ardente que hoje não conhecia muito os usos do mundo. Resolvi declarar-lhe a minha paixão e pedil-a em casamento. Tive em resposta este bilhete... — Já sei, disse Emilia. Essa senhora fui eu. Estou humilhada; perdão! — Meu amor a perdoa; nunca deixei de amal-a. Eu estava certo de encontral-a um dia e procedi de modo a fazer-me o desejado. — Escreva isto e dirão que é um romance, disse alegremente Adelaide. — A vida não é outra cousa... accrescentou Tito. D’ahi a meia hora entrava Azevedo. Admirado da presença de Emilia quando a suppunha a rodar no trem de ferro, e mais admirado ainda das maneiras cordiaes por que se tratavam Tito e Emilia, o marido de Adelaide inquirio a causa d’isso. — A causa é simples, respondeu Adelaide; Emilia voltou porque vai casar-se com Tito. Azevedo não se deu por satisfeito; explicaram-lhe tudo. — Percebo, disse elle Tito não tendo alcançado nada caminhando em linha recta, procurou ver se alcançava caminho por linha curva. Ás vezes é o caminho mais curto. — Como agora, accrescentou Tito. Emilia jantou em casa de Adelaide. A tarde appareceu alli o velho Diogo, que ia despedir-se porque devia partir para a côrte no dia seguinte de manhã. Grande foi a sua admiração quando vio a viuva! — Voltou? — É verdade, respondeu Emilia rindo. — Pois eu ia partir, mas já não parto. Ah! recebi uma carta da Europa: foi um capitão da galera Macedonia quem a trouxe! Chegou o urso! — Pois vá fazer-lhe companhia, respondeu Tito. Diogo fez uma careta. Depois, como desejasse saber o motivo da súbita volta da viuva, esta explicou-lhe que se ia casar com Tito. Diogo não acreditou. — É ainda um laço, não? disse elle piscando os olhos. E não só não acreditou então, como não acreditou d’ahi em diante, apezar de tudo. D’ahi a alguns dias partiram todos para a corte. Diogo ainda se não convencia de nada. Mas, quando entrando um dia em casa de Emilia vio a festa do noivado, o pobre velho não pode negar a realidade e soffreu um forte abalo. Todavia, teve ainda coração para assistir ás festas do noivado. Azevedo e a mulher servirão de testemunhas. « E preciso confessar, escrevia dous mezes depois o feliz noivo ao esposo de Adelaide; — é preciso confessar que eu entrei n’um jogo arriscado. Podia perder; felizmente ganhei. » FREI SIMÃO I Frei Simão era um frade da ordem dos Benedictinos. Tinha, quando morreu, cincoenta annos em apparencia, mas na realidade trinta e oito. A causa d’esta velhice prematura derivava da que o levou ao claustro na idade de trinta annos, e, tanto quanto se póde saber por uns fragmentos de Memorias que elle deixou, a causa era justa. Era frei Simão de caracter taciturno e desconfiado. Passava dias inteiros na sua cella, d’onde apenas sahia na hora do refeitório e dos officios divinos. Não contava amizade alguma no convento, porque não era possivel entreter com elle os preliminares que fundam e consolidam as affeições. Em um convento, onde a communhão das almas deve ser mais prompta e mais profunda, frei Simão parecia fugir á regra geral. Um dos noviços pôz-lhe alcunha de urso, que lhe ficou, mas só entre os noviços, bem entendido. Os frades professos, esses, apezar do desgosto que o genio solitario de frei Simão lhes inspirava, sentiam por elle certo respeito e veneração. Um dia annuncia-se que frei Simão adoecera gravemente. Chamaram-se os soccoros e prestou-se ao enfermo todos os cuidados necessarios. A molestia era mortal: depois de cinco dias frei Simão expirou. Durante estes cinco dias de molestia, a cella de frei Simão esteve cheia de frades. Frei Simão não disse uma palavra durante esses cinco dias; só no ultimo, quando se approximava o minuto fatal, sentou-se no leito, fez chamar para mais perto o abbade, e disse-lhe ao ouvido com voz suffocada e em tom estranho: — Morro odiando a humanidade! O abbade recuou até a parede ao ouvir estas palavras, e no tom em que foram ditas. Quanto a frei Simão, cahio sobre o travesseiro e passou á eternidade. Depois de feitas ao irmão finado as honras que se lhe deviam, a communidade perguntou ao seu chefe que palavras ouvira tão sinistras que o assustaram. O abbade referio-as, persignando-se. Mas os frades nao viram n’essas palavras senão um segredo do passado, sem duvida importante, mas não tal que pudesse lançar o terror no espirito do abbade. Este explicou-lhe a idéa que tivera quando ouvio as palavras de frei Simão, no tom em que foram ditas, e acompanhadas do olhar com que o fulminou: acreditára que frei Simão, estivesse doudo; mais ainda, que tivesse entrado já doudo para a ordem. Os habitos da solidão e taciturnidade a que se votára o frade pareciam symptomas de uma alienação mental de caracter brando e pacifico; mas durante oito annos parecia impossivel aos frades que frei Simão não tivesse um dia revelado de modo positivo a sua loucura; objectaram isso ao abbade, mas este persistia na sua crença. Entretanto procedeu-se ao inventario dos objectos que pertenciam ao finado, e entre elles achou-se um rolo de papeis convenientemente enlaçados, com este rotulo: « Memorias que ha de escrever frei Simão de Santa Agueda, frade benedictino. » Este rolo de papeis foi um grande achado para a communidade curiosa. Iam finalmente penetrar alguma cousa no véo mysterioso que envolvia o passado de frei Simão, e talvez confirmar as suspeitas do abbade. O rolo foi aberto e lido para todos. Eram, pela maior parte, fragmentos incompletos, apontamentos truncados e notas insufficientes; mas de tudo junto pôde-se colher que realmente frei Simão estivera louco durante certo tempo. O autor d’esta narrativa despreza aquella parte das Memorias que não tiver absolutamente importancia; mas procura aproveitar a que for menos inutil ou menos obscura. II As notas de frei Simão nada dizem do lugar do seu nascimento nem do nome de seus pais. O que se pôde saber dos seus princípios é que, tendo concluido os estudos preparatorios, não pôde seguir a carreira das lettras, como desejava, e foi obrigado a entrar como guarda-livros na casa commercial de seu pai. Morava então em casa de seu pai uma prima de Simão, orphã de pai e mãi, que haviam por morte deixado ao pai de Simão o cuidado de a educarem e manterem. Parece que os cabedaes d’este deram para isto. Quanto ao pai da prima orphã, tendo sido rico, perdêra tudo ao jogo e nos azares do commercio, ficando reduzido á ultima miseria. A orphã chamava-se Helena; era bella, meiga e extremamente boa. Simão, que se educára com ella, e juntamente vivia debaixo do mesmo tecto, não pôde resistir ás elevadas qualidades e á belleza de sua prima. Amaram-se. Em seus sonhos de futuro contavam ambos o casamento, cousa que parece mais natural do mundo para corações amantes. Não tardou muito que os pais de Simão descobrissem o amor dos dous. Ora é preciso dizer, apezar de não haver declaração formal d’isto nos apontamentos do frade, é preciso dizer que os referidos pais eram de um egoismo descommunal. Davam de boa vontade o pão da subsistencia a Helena; mas lá casar o filho com a pobre orphã é que não podiam consentir. Tinham posto a mira em uma herdeira rica, e dispunham de si para si que o rapaz se casaria com ella. Uma tarde, como estivesse o rapaz a adiantar a escripturação do livro mestre, entrou no escriptorio o pai com ar grave e risonho ao mesmo tempo, e disse ao filho que largasse o trabalho e o ouvisse. O rapaz obedeceu. O pai fallou assim: — Vais partir para a provincia de***. Preciso mandar umas cartas ao meu correspondente Amaral, e como sejam ellas de grande importancia, não queiro confial-as ao nosso deleixado correio. Queres ir no vapor ou preferes o nosso brigue? Esta pergunta era feita com grande tino. Obrigado a responder-lhe, o velho commerciante não dera lugar a que seu filho apresentasse objecções. O rapaz enfiou, abaixou os olhos e respondeu. — Vou onde meu pai quizer. O pai agradeceu mentalmente a submissão do filho, que lhe poupava o dinheiro da passagem no vapor, e foi muito contente dar parte á mulher de que o rapaz não fizera objecção alguma. Nessa noite os dous amantes tiveram occasião de encontrar-se sós na sala de jantar. Simão contou a Helena o que se passára. Choraram ambos algumas lagrimas furtivas, e ficaram na esperança de que a viagem fosse de um mez, quando muito. A mesa do chá, o pai de Simão conversou sobre a viagem do rapaz, que devia ser de poucos dias. Isto reanimou as esperanças dos dous amantes. O resto da noite passou-se em conselhos da parte do velho ao filho sobre a maneira de portar-se na casa do correspondente. Ás dez horas, como de costume, todos se recolheram aos aposentos. Os dias passaram-se de pressa. Finalmente raiou aquelle em que devia partir o brigue. Helena sahio de seu quarto com os olhos vermelhos de chorar. Interrogada bruscamente pela tia, disse que era uma inflammação adquirida pelo muito que lera na noite anterior. A tia prescreveu-lhe abstenção da leitura e banhos de agua de malvas. Quanto ao tio, tendo chamado Simão, entregou-lhe uma carta para o correspondente, e abraçou-o. A mala e um criado estavam promptos. A despedida foi triste. Os dous pais sempre choraram alguma cousa, a rapariga muito. Quanto a Simão, levava os olhos seccos e ardentes. Era refractario ás lagrimas; por isso mesmo padecia mais. O brigue partio. Simão, emquanto pôde ver terra, não se retirou de cima; quando finalmente se fecharam de todo as paredes do cárcere que anda, na phrase pittoresca de Ribeyrolles, Simão desceu ao seu camarote, triste e com o coração apertado. Havia como um presentimento que lhe dizia interiormente ser impossivel tornar a ver sua prima. Parecia que ia para um degredo. Chegando ao logar do seu destino, procurou Simão o correspondente de seu pai e entregou-lhe a carta. O Sr. Amaral leu a carta, fitou o rapaz, e, depois de algum silencio, disse-lhe, volvendo a carta: — Bem, agora é preciso esperar que eu cumpra esta ordem de seu pai. Entretanto venha morar para a minha casa. — Quando poderei voltar? perguntou Simão. — Em poucos dias, salvo se as cousas se complicarem. Este salvo, posto na boca de Amaral como incidente, era a oração principal. A carta do pai de Simão versava assim: « Meu caro Amaral, « Motivos ponderosos me obrigam a mandar meu filho d’esta cidade. Retenha-o por lá como puder. O pretexto da viagem é ter eu necessidade de ultimar alguns negócios com você, o que dirá ao « pequeno, fazendo-lhe sempre crer que a demora « é pouca ou nenhuma. Você, que teve na sua adolescencia a triste idéa de engendrar romances, vá inventando circumstancias e occurrencias imprevistas, de modo que o rapaz não me torne cá antes de segunda ordem. Sou, como sempre, » etc. III Passaram-se dias e dias, e nada de chegar o momento de voltar á casa paterna. O ex-romancista era na verdade fertil, e não se cansava de inventar pretextos que deixavam convencido o rapaz. Entretanto, como o espirito dos amantes não é menos engenhoso que o dos romancistas, Simao e Helena acharam meio de se escreverem, e d’este modo podiam consolar-se da ausencia, com presença das lettras e do papel. Bem diz Heloisa que a arte de escrever foi inventada por alguma amante separada do seu amante. N’estas cartas juravam-se os dous sua eterna fidelidade. No fim de dous mezes de espera baldada e de activa correspondencia, a tia de Helena sorprendeu uma carta de Simão. Era a vigesima, creio eu. Houve grande temporal em casa. O tio, que estava no escriptorio, sahio precipitadamente e tomou conhecimento do negocio. O resultado foi proscrever de casa tinta, pennas e papel, e instituir vigilancia rigorosa sobre a infeliz rapariga. Começaram pois a escassear as cartas ao pobre deportado. Inquirio a causa d’isto em cartas choradas e compridas; mas como o rigor fiscal da casa de seu pai adquiria proporções descommunaes, acontecia que todas as cartas de Simão iam parar ás mãos do vellio, que, depois de apreciar o estylo amoroso de seu filho, fazia queimar as ardentes epistolas. Passaram-se dias e mezes. Carta de Helena, nenhuma. O correspondente ia esgotando a veia inventadora, e já não sabia como reter finalmente o rapaz. Chega uma carta a Simão. Era lettra do pai. Só differençava das outras que recebia do velho em ser esta mais longa, muito mais longa. O rapaz abrio a carta, e leu tremulo e pallido. Contava n’esta carta o honrado commerciante que a Helena, a boa rapariga que elle destinava a ser sua filha casando-se com Simão, a boa Helena tinha morrido. O velho copiára algum dos ultimos necrologios que vira nos jornaes, e ajuntára algumas consolações de casa. A ultima consolação foi dizer-lhe que embarcasse e fosse ter com elle. O periodo final da carta dizia: « Assim como assim, não se realisam os meus negocios; não te pude casar com Helena, visto que Deus a levou. Mas volta, filho, vem; poderás consolar-te casando com outra, a filha do conselheiro***. Está moça feita e é um bom partido. Não te desalentas; lembra-te de mim. » O pai de Simão não conhecia bem o amor do filho, nem era grande aguia para avalial-o, ainda que o conhecesse. Dôres taes não se consolidam com uma carta nem com um casamento. Era melhor mandal-o chamar, e depois preparar-lhe a noticia; mas dada assim friamente em uma carta, era expôr o rapaz a uma morte certa. Ficou Simão vivo em corpo e morto moralmente, tão morto que por sua propria idéa foi d’alli procurar uma sepultura. Era melhor dar aqui alguns dos papeis escriptos por Simão relativamente ao que soffreu depois da carta; mas ha muitas falhas, e eu não quero corrigir a exposição ingênua e sincera do frade. A sepultura que Simão escolheu foi um convento. Respondeu ao pai que agradecia a filha do conselheiro, mas que d’aquelle dia em diante pertencia ao serviço de Deos. O pai ficou maravilhado. Nunca suspeitou que o filho pudesse vir a ter semelhante resolução. Escreveu ás pressas para ver se o desviava da idéa; mas não pôde conseguir. Quanto ao correspondente, para quem tudo se embrulhava cada vez mais, deixou o rapaz seguir para o claustro, disposto a não figurar em um negocio do qual nada realmente sabia. IV Frei Simão de Santa Agueda foi obrigado a ir á provincia natal em missão religiosa, tempos depois dos factos que acabo de narrar. Preparou-se e embarcou. A missão não era na capital, mas no interior. Entrando na capital, pareceu-lhe dever ir visitar seus pais. Estavam mudados physica e moralmente. Era com certeza a dôr e o remorso de terem precipitado seu filho á resolução que tomou. Tinham vendido a casa commercial e viviam de suas rendas. Receberam o filho com alvoroço e verdadeiro amor. Depois das lagrimas e das consolações, vieram ao fim da viagem de Simão. — A que vens tu, meu filho? — Venho cumprir uma missão de sacerdocio que abracei. Venho prégar, para que o rebanho do Senhor não se arrede nunca do bom caminho. — Aqui na capital? — Mão no interior. Começo pela villa de***. Os dous velhos estremeceram; mas Simão nada vio. No dia seguinte partio Simão, não sem algumas instancias de seus pais para que ficasse. Notaram elles que seu filho nem de leve tocara em Helena. Também elles não quizeram magoal-o fallando em tal assumpto. D’ahi a dias, na villa de que fallára frei Simão, era um alvoroço para ouvir as prédicas do missionario. A velha igreja do lugar estava apertada de povo. Á hora annunciada, frei Simão subio ao pulpito e começou o discurso religioso. Metade do povo sahio aborrecido no meio do sermão. A razão era simples. Avezado á pintura viva dos caldeirões de Pedro Botelho e outros pedacinhos de ouro da maioria dos pregadores, o povo não podia ouvir com prazer a linguagem simples, branda, persuasiva, a que serviam de modelo as conferencias do fundador da nossa religião. O pregador estava a terminar, quando entrou apressadamente na igreja um par, marido e mulher: elle, honrado lavrador, meio remediado com o sitio que possuia e a boa vontade de trabalhar, ella, senhora estimada por suas virtudes, mas de uma melancolia invencivel. Depois de tomarem agua benta, collocaram-se ambos em lugar d’onde pudessem ver facilmente o prégador. Ouvio-se então um grito, e todos correram para a recem-chegada, que acabava de desmaiar. Frei Simão teve de parar o seu discurso, emquanto se punha termo ao incidente. Mas, por uma aberta que a turba deixava, pôde elle ver o rosto da desmaiada. Era Helena. No manuscripto do frade ha uma serie de reticências dispostas em oito linhas. Elle proprio não sabe o que se passou. Mas o que se passou foi que, mal conhecera Helena, continuou o frade o discurso. Era então outra cousa: era um discurso sem nexo, sem assumpto, um verdadeiro delirio. A consternação foi geral. V O delirio de frei Simão durou alguns dias. Graças aos cuidados, pôde melhorar, e pareceu a todos que estava bom, menos ao medico, que queria continuar a cura. Mas o frade disse positivamente que se retirava ao convento, e não houve forças humanas que o detivessem. O leitor comprehende naturalmente que o casamento de Helena fôra obrigado pelos tios. A pobre senhora não resistio á commoção. Dous mezes depois morreu, deixando inconsolavel o marido, que a amava com veras. Frei Simão, recolhido ao convento, tornou-se mais solitário e taciturno. Restava-lhe ainda um pouco da alienação. Já conhecemos o acontecimento de sua morte e a impressão que ella causara ao abbade. A cella de frei Simão de Santa Agueda esteve muito tempo religiosamente fechada. Só se abrio, algum tempo depois, para dar entrada a um velho secular, que por esmola alcançou do abbade acabar os seus dias na convivencia dos medicos da alma. Era o pai de Simão. A mãi tinha morrido. Foi crença, nos últimos annos da vida deste velho, que elle não estava menos doudo que frei Simão de Santa Agueda. FIM INDICE Miss Dollar.................................................................1 Luiz Soares.................................................................45 A mulher de preto.......................................................81 O segredo de Augusta.................................................133 Confissões de uma viuva moça...................................179 Linha recta e linha curva.............................................221 Frei Simão...................................................................295