HISTORIAS DA MEIA NOITE MACHADO DE ASSIS HISTORIAS DA MEIA NOITE A PARASITA AZUL AS BODAS DE LUIZ DUARTE ERNESTO DE TAL AURORA SEM DIA O RELOGIO DE OURO PONTO DE VISTA RIO DE JANEIRO B. L. GARNIER LIVREIRO-EDITOR DO INSTITUTO HISTORICO 69, Rua do Ouvidor, 69 [1876] ADVERTENCIA Vão aqui reunidas algumas narrativas, escriptas ao correr da penna, sem outra pretenção que não seja a de occupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o genero seja menos digno da attenção delle, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estylo. O que digo é que éstas páginas, reunidas por um editor benevolo, são as mais desambiciosas do mundo. Aproveito a occasião que se me offerece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, ha tempos dado á luz. Trabalhos de genero diverso me impediram até agora de concluir outro, que apparecerá a seu tempo. 10 de novembro de 1873. M. A. HISTORIAS DA MEIA NOITE A PARASITA AZUL I VOLTA AO BRAZIL Ha cêrca de deseseis annos, desembarcava no Rio de Janeiro, vindo da Europa, o sr. Camillo Seabra, goyano de nascimento, que alli fôra estudar medicina e voltava agora com o diploma na algibeira e umas saudades no coração. Voltava depois de uma ausencia de oito annos, tendo visto e admirado as principaes cousas que um homem póde ver e admirar por Ia, quando não lhe falta gôsto nem meios. Ambas as cousas possuia, e se tivesse tambem, não digo muito, mas um pouco mais de juizo, houvera gozado melhor do que gozou, e com justiça poderia dizer que vivêra. Não abonava muito os seus sentimentos patrioticos o rosto com que entrou a barra da capital brazileira. Trazia-o fechado e merencorio, como quem abafa em si alguma cousa que não é exactamente a bemaventurança terrestre. Arrastou um olhar aborrecido pela cidade, que se ia desenrolando á proporção que o navio se dirigia ao ancoradouro. Quando veiu a hora de desembarcar fel-o com a mesma alegria com que o reu transpõe os umbraes do carcere. O escaler affastou-se do navio em cujo mastro fluctuava uma bandeira tricolor; Camillo murmurou comsigo: — Adeus, França! Depois envolveu-se n'um magnifico silencio e deixou-se levar para terra. O espectaculo da cidade, que elle não via ha tanto tempo, sempre lhe prendeu um pouco a attenção. Não tinha porêm dentro da alma o alvorôço de Ulysses ao ver a terra da sua patria. Era antes pasmo e tedio. Comparava o que via agora com o que víra durante longos annos, e sentia a mais e mais apertar-lhe o coração a dolorosa saudade que o minava. Encaminhou-se para o primeiro hotel que lhe pareceu conveniente, e alli determinou passar alguns dias, antes de seguir para Goyaz. Jantou solitario e triste com a mente cheia de mil recordações do mundo que acabava de deixar, e para dar ainda maior desafôgo á memoria, apenas acabado o jantar, estendeu-se n'um canape, e começou a desfiar comsigo mesmo um rosario de crueis desventuras. Na opinião d'elle, nunca houvera mortal que mais dolorosamente experimentasse a hostilidade do destino Nem no martyrologio christão, nem nos tragicos gregos, nem no livro de Job havia sequer um pallido esbôço dos seus infortunios. Vejamos alguns traços patheticos da existencia do nosso heroe. Nascêra rico, filho de um proprietario de Goyaz, que nunca víra outra terra alêm da sua provincia natal. Em 1828 estivera alli um naturalista francez, com quem o commendador Seabra travou relações, e de quem se fez tão amigo, que não quiz outro padrinho para o seu unico filho, que então contava um anno de edade. O naturalista, muito antes de o ser, commettêra umas venialidades poeticas que mereceram alguns elogios em 1810, mas que o tempo, —velho trapeiro da eternidade,— levou comsigo para o infinito depósito das cousas inuteis. Tudo lhe perdoára o ex-poeta, menos o esquecimento de um poema em que elle metrificára a vida de Furio Camillo, poema que ainda então lia com sincero enthusiasmo. Como lembrança d'esta obra da juventude, chamou elle ao afilhado Camillo, e com esse nome o baptisou o padre Maciel, a grande aprazimento da familia e seus amigos. — Compadre, disse o commendador ao naturalista, se este pequeno vingar, hei de mandal-o para sua terra, a aprender medicina ou qualquer outra cousa em que se faça homem. No caso de lhe achar geito para andar com plantas e mineraes, como o senhor, não se acanhe; dê-lhe o destino que lhe parecer como se fôra seu pae, que o é, espiritualmente fallando. — Quem sabe se eu viverei n'esse tempo? disse o naturalista. — Oh! ha de viver! protestou Seabra. Esse corpo não engana; a sua têmpera é de ferro. Não o vejo eu andar todos os dias por esses mattos e campos, indifferente a soes e a chuvas, sem nunca ter a mais leve dôr de cabeça? Com metade dos seus trabalhos ja eu estava defunto. Ha de viver e cuidar do meu rapaz, apenas elle tiver concluido ca os seus primeiros estudos. A promessa de Seabra foi pontualmente cumprida. Camillo seguiu para París, logo depois de alguns preparatorios, e alli o padrinho cuidou d'elle como se realmente fôra seu pae. O commendador não poupava dinheiro para que nada faltasse ao filho; a mezada que lhe mandava podia bem servir para duas ou tres pessoas em eguaes circumstancias. Alêm da mezada, recebia elle por occasião da Paschoa e do Natal amendoas e festas que a mãe lhe mandava, e que lhe chegavam ás mãos debaixo da fórma de alguns excellentes mil francos. Até aqui o unico ponto negro na existencia de Camillo, era o padrinho, que o trazia peado, com receio de que o rapaz viesse a perder-se nos precipicios da grande cidade. Quiz, porêm, a sua boa estrella que o ex-poeta de 1810 fosse repousar no nada ao lado das suas producções extinctas, deixando na sciencia alguns vestigios da sua passagem por ella. Camillo apressou-se a escrever ao pae uma carta cheia de reflexões philosophicas. O periodo final dizia assim: « Em summa, meu pae, se lhe parece que eu tenho o necessario juizo para concluir aqui os meus estudos, e se tem confiança na boa inspiração que me ha de dar a alma d'aquelle que Ia se foi d'este valle de lagrymas para gozar a infinita bemaventurança, deixe-me ca ficar até que eu possa regressar ao meu paiz como um cidadão esclarecido e apto para o servir, como é do meu dever. Caso a sua vontade seja contrária a isto que lhe peço, diga-o com franqueza, meu pae, porque então não me demorarei um instante mais n'esta terra, que ja foi meia patria para mim, e que hoje (hélas!) é apenas uma terra de exilio. » O bom velho não era homem que pudesse ver por entre as linhas d'esta lacrymosa epistola o verdadeiro sentimento que a dictára. Chorou de alegria ao ler as palavras do filho, mostrou a carta a todos os seus amigos, e apressou-se a responder ao rapaz que podia ficar em París todo o tempo necessario para completar os seus estudos, e que, alêm da mezada que lhe dava, nunca recusaria tudo quanto lhe fosse indispensavel em circumstancias imprevistas. Além d'isto, approvava de coração os sentimentos que elle manifestava em relação á sua patria e á memoria do padrinho. Transmittia-lhe muitas recommendações do tio Jorge, do padre Maciel, do coronel Veiga, de todos os parentes e amigos, e concluia deitando-lhe a benção. A resposta paterna chegou ás mãos de Camillo no meio de um almôço, que elle dava no Cafe de Madrid a dous ou tres estroinas de primeira qualidade. Esperava aquillo mesmo, mas não resistiu ao desejo de beber á saude do pae, acto em que foi acompanhado pelos elegantes milhafres seus amigos. N'esse mesmo dia planeou Camillo algumas circumstâncias imprevistas (para o commendador) e o proximo correio trouxe para o Brazil uma extensa carta em que elle agradecia as boas expressões do pae, dizia-lhe as suas saudades, confiava-lhe as suas esperanças, e pedia-lhe respeitosamente, em post-scriptum, a remessa de uma pequena quantia de dinheiro. Graças a éstas facilidades atirou-se o nosso Camillo a uma vida sôlta e dispendiosa, não tanto, porêm, que lhe sacrificasse os estudos. A intelligencia que possuia, e certo amor proprio que não perdêra, muito o ajudaram n'este lance; concluido o curso, foi examinado, approvado e doutorado. A notícia do acontecimento foi transmittida ao pae com o pedido de uma licença para ir ver outras terras da Europa. Obteve a licença, e sahiu de París para visitar a Italia, a Suissa, a Allemanha e a Inglaterra. No fim de alguns mezes estava outra vez na grande capital, e ahi reatou o fio da sua antiga existencia, ja livre então de cuidados extranhos e aborrecidos. A escala toda dos prazeres sensuaes e frivolos foi percorrida por este esperançoso mancebo com uma sofreguidão que parecia antes suicidio. Seus amigos eram numerosos, solicitos e constantes; alguns não duvidavam dar-lhe a honra de o constituir seu credor. Entre as môças de Corintho era o seu nome verdadeiramente popular; não poucas o tinham amado até o delirio. Não havia pateada célebre em que a chave dos seus aposentos não figurasse, nem corrida, nem ceiata, nem passeio, em que não occupasse um dos primeiros logares cet aimable brésilien. Desejoso de o ver, escreveu-lhe o commendador pedindo que regressasse ao Brazil; mas o filho, parisiense até á medula dos ossos, não comprehendia que um homem pudesse sahir do cerebro da França para vir internar-se em Goyaz. Respondeu com evasivas e deixou-se ficar. O velho fez vista grossa a ésta primeira desobediencia. Tempos depois insistiu em chamal-o; novas evasivas da parte de Camillo. Irritou-se o pae e a terceira carta que lhe mandou foi ja de amargas censuras. Camillo cahiu em si e dispoz-se com grande magua a regressar á patria, não sem esperanças de voltar a acabar os seus dias no boulevard dos Italianos ou á porta do Cafe Helder. Um incidente, porêm, demorou ainda d'esta vez o regresso do joven médico. Elle, que até alli vivêra de amores faceis e paixões de uma hora, veiu a enamorar-se repentinamente de uma linda princeza russa. Não se assustem; a princeza russa de quem fallo, affirmavam algumas pessoas que era filha da rua do Bac e trabalhára n'uma casa de modas, até á revolução de 1848. No meio da revolução apaixonou-se por ella um major polaco, que a levou para Varsovia, d'onde acabava de chegar transformada em princeza, com um nome acabado em ine ou em off, não sei bem. Vivia mysteriosamente, zombando de todos os seus adoradores, excepto de Camillo, dizia ella, por quem sentia que era capaz de aposentar as suas roupas de viuva. Tão depressa, porêm, soltava éstas expressões irreflectidas, como logo protestava com os olhos no ceu: — Oh! não! nunca, meu caro Alexis, nunca deshonrarei a tua memoria unindo-me a outro. Isto eram punhaes que dilaceravam o coração de Camillo. O joven médico jurava por todos os santos do calendario latino e grego que nunca amára a ninguem como á formosa princeza. A barbara senhora parecia ás vezes disposta a crer nos protestos de Camillo; outras vezes porêm abanava a cabeça e pedia perdão á sombra do venerando principe Alexis. N'este meio tempo chegou uma carta decisiva do commendador. O velho goyano intimava pela ultima vez ao filho que voltasse, sob pena de lhe suspender todos os recursos e trancar-lhe a porta. Não era possivel tergiversar mais. Imaginou ainda uma grave molestia; mas a ideia de que o pae podia não acreditar n'ella e suspender-lhe realmente os meios, aluiu de todo este projecto. Camillo nem ânimo teve de ir confessar a sua posição á bella princeza; receiava alêm disso que ella, por um rasgo de generosidade,—natural em quem ama,—quizesse dividir com elle as suas terras de Novogorod. Acceital-as sería humiliação, recusal-as poderia ser offensa. Camillo preferiu sahir de París deixando á princeza uma carta em que lhe contava singelamente os acontecimentos e promettia voltar algum dia. Taes eram as calamidades com que o destino quizera abater o ânimo de Camillo. Todas ellas repassou na memoria o infeliz viajante, até que ouviu bater oito horas da noite. Sahiu um pouco para tomar ar, e ainda mais se lhe accenderam as saudades de Paris. Tudo lhe parecia lugubre, acanhado, mesquinho. Olhou com desdem olympico para todas as lojas da rua do Ouvidor, que lhe pareceu apenas um becco muito comprido e muito illuminado. Achava os homens deselegantes, as senhoras desgraciosas. Lembrou-se, porêm, que Santa Luzia, sua cidade natal, era ainda menos parisiense que o Rio de Janeiro, e então, abatido com ésta importuna ideia correu para o hotel e deitou-se a dormir. No dia seguinte, logo depois do almôço, foi á casa do correspondente de seu pae. Declarou-lhe que tencionava seguir dentro de quatro ou cinco dias para Goyaz, e recebeu d'elle os necessarios recursos, segundo as ordens ja dadas pelo commendador. O correspondente accrescentou que estava incumbido de lhe facilitar tudo o que quizesse no caso de desejar passar algumas semanas na côrte. — Não, respondeu Camillo; nada me prende á corte, e estou ancioso por me ver a caminho. — Imagino as saudades que ha de ter. Ha quantos annos? — Oito. — Oito! Ja é uma ausencia longa. Camillo ia-se dispondo a sahir, quando viu entrar um sujeito alto, magro, com alguma barba em baixo do queixo e bigode, vestido com um paletó de brim pardo e trazendo na cabeça um chapeu de Chile. O sujeito olhou para Camillo, estacou, recuou um passo, e depois de uma razoavel hesitação, exclamou: — Não me engano! é o sr. Camillo! — Camillo Seabra, com effeito, respondeu o filho do commendador, lançando um olhar interrogativo ao dono da casa. — Este senhor, disse o correspondente, é o sr. Soares, filho do negociante do mesmo nome, da cidade de Santa Luzia. — Que! é o Leandro que eu deixei apenas com um buço… — Em carne e osso, interrompeu Soares; é o mesmo Leandro que lhe apparece agora todo barbado, como o senhor, que tambem está com uns bigodes bonitos! — Pois não o conhecia... — Conheci-o eu apenas o vi, apezar de o achar muito mudado do que era. Está agora um moço apurado. Eu é que estou velho. Ja ca estão vinte e seis… Não se ria: estou velho. Quando chegou? — Hontem. — E quando segue viagem para Goyaz? — Espero o primeiro vapor de Santos. — Nem de proposito! Iremos juntos. — Como está seu pae? Como vae toda aquella gente? O padre Maciel? O Veiga? Dê-me noticias de todos e de tudo. — Temos tempo para conversar á vontade. Por agora so lhe digo que todos vão bem. O vigario é que esteve dous mezes doente de uma febre maligna e ninguem pensava que arribasse; mas arribou. Deus nos livre que o homem adoeça, agora que estamos com o Espirito Santo á porta. — Ainda se fazem aquellas festas? — Pois então! O imperador este anno, é o coronel Veiga; e diz que quer fazer as cousas com todo o brilho. Ja prometteu que daria um baile. Mas nós temos tempo de conversar, ou aqui ou em caminho. Onde está morando? Camillo indicou o hotel em que se achava, e despediu-se do comprovinciano, satisfeito de haver encontrado um companheiro que de algum modo lhe diminuisse os tedios de tão longa viagem. Soares chegou á porta e acompanhou com os olhos o filho do commendador até perdêl-o de vista. — Veja o senhor o que é andar por essas terras extrangeiras, disse elle ao correspondente, que tambem chegava á porta. Que mudança fez aquelle rapaz, que era pouco mais ou menos como eu! II PARA GOYAZ D'ahi a dias seguiam ambos para Santos, de Ia para S. Paulo e tomavam a estrada de Goyaz. Soares, á medida que ia rehavendo a antiga intimidade com o filho do commendador, contava-lhe as memorias da sua vida, durante os oito annos de separação, e, á falta de cousa melhor, era isto o que entretinha o médico nas occasiões e logares em que a natureza lhe não offerecia algum espectaculo dos seus. Ao cabo de umas quantas leguas de marcha estava Camillo informado das rixas eleitoraes de Soares, das suas aventuras na caça, das suas proezas amorosas, e de muitas cousas mais, umas graves, outras futeis, que Soares narrava com egual enthusiasmo e interesse. Camillo não era espirito observador; mas a alma de Soares andava-lhe tão patente nas mãos, que era impossivel deixar de a ver e examinar. Não lhe pareceu mau rapaz; notou-lhe porêm, certa fanfarronice, em todo o genero de cousas, na politica, na caça, no jôgo, e até nos amores. N'este último capítulo havia um paragrapho serio; era o que dizia respeito a uma moça, que elle amava loucamente, de tal modo que promettia anniquilar a quem quer que ousasse levantar olhos para ella. — É o que lhe digo, Camillo, confessava o filho do commerciante, se alguwm tiver o atrevimento de pretender essa moça póde contar que ha no mundo mais dois desgraçados, elle e eu. Não ha de acontecer assim felizmente; Ia todos me conhecem; sabem que não cochilo para executar o que prometto. Ha poucos mezes o major Valente perdeu a eleição so porque teve o atrevimento de dizer que ia arranjar a demissão do juiz municipal. Não arranjou a demissão, e por castigo tomou taboca; sahio na lista dos supplentes. Quem lhe deu o golpe fui eu. A cousa foi... — Mas porque não se casa com essa moça? perguntou Camillo desviando cautelosamente a narração da última victória eleitoral de Soares. — Não me caso porque... tem muita curiosidade de o saber? — Curiosidade... de amigo e nada mais. — Não me caso porque ella não quer. Camillo estacou o cavallo. — Não quer? disse elle espantado. Então porque motivo pretende impedir que ella... — Isso é uma história muito comprida. A Isabel... — Isabel?... interrompeu Camillo. Ora espere, sera a filha do Dr. Mattos, que foi juiz de direito ha dez annos? — Essa mesma. — Deve estar uma moça? — Tem seus vinte annos bem contados. — Lembra-me que era bonitinha aos doze. — Oh! mudou muito... para melhor! ninguem a ve que não fique logo com a cabeça voltada. Tem regeitado ja uns poucos de casamentos. O último noivo recusado fui eu. A causa porque me recusou foi ella mesma que me veio dizer. — E que causa era? — « Olhe, Sr. Soares, disse-me ella. O senhor merece bem que uma moça o acceite por marido; eu era capaz d'isso, mas não o faço porque nunca seriamos felizes. » — Que mais? — Mais nada. Respondeu-me apenas isto que lhe acabo de contar. — Nunca mais se fallaram? — Pelo contrario, fallâmo-nos muitas vezes. Não mudou commigo; trata-me como dantes. A não serem aquellas palavras que ella me disse, e que ainda me doem ca dentro, eu podia ter esperanças. Vejo, porêm, que seriam inuteis; ella não gosta de mim. — Quer que lhe diga uma cousa com franqueza? — Diga. — Parece-me um grande egoista. — Póde ser; mas sou assim. Tenho ciumes de tudo, até do ar que ella respira. Eu, se a visse gostar de outro, e não pudesse impedir o casamento, mudava de terra. O que me vale é a convicção que tenho de que ella não ha de gostar nunca de outro, e assim pensam todos os mais. — Não admira que não saiba amar, reflexionou Camillo pondo os olhos no horizonte como se estivesse alli a imagem da formosa subdita do tzar. Nem todas receberam do ceu esse dom, que é o verdadeiro distinctivo dos espiritos selectos. Algumas ha porêm, que sabem dar a vida e a alma a um ente querido, que lhe enchem o coração de profundos affectos, e d'este modo fazem jus a uma perpétua adoração. São raras, bem sei as mulheres d'esta casta; mas existem… Camillo terminou esta homenagem á dama dos seus pensamentos abrindo as azas a um suspiro que, se não chegou ao seu destino, não foi por culpa do auctor. O companheiro não comprehendeu a intenção do discurso, e insistiu em dizer que a formosa goyana estava longe de gostar de ninguem, e elle ainda mais longe de lh'o consentir. O assumpto agradava aos dois comprovincianos; fallaram d'elle longamente até o approximar da tarde. Pouco depois chegaram a um — pouso, — onde deviam pernoitar. Tirada a carga aos animaes, cuidaram os criados primeiramente do cafe, e depois do jantar. N'essas occasiões ainda mais pungiam ao nosso heróe as saudades de París. Que differença entre os seus jantares dos restaurants dos boulevards e aquella refeição ligeira e tosca, n'um miseravel — pouso de estrada, — sem os acepipes da cosinha franceza, sem a leitura do Figaro ou da Gazette des Tribunaux! Camillo suspirava comsigo mesmo; tornava-se então ainda menos communicativo. Não se perdia nada porque o seu companheiro fallava por dois. Acabada a refeição, accendeu Camillo um charuto e Soares um cigarro de palha. Era ja noite. A fogueira do jantar allumiava um pequeno espaço em roda; mas nem era precisa, porque a lua, começava a surgir de traz de um morro, pallida e luminosa, brincando nas folhas do arvoredo e nas aguas tranquillas do rio que serpeava alli ao pe. Um dos tropeiros saccou a viola e começou a gargantear uma cantiga, que a qualquer outro encantaria pela rude singeleza dos versos e da toada, mas que ao filho do commendador apenas fez lembrar com tristeza as volatas da Opera. Lembrou-lhe mais; lembrou-lhe uma noite em que a bella moscovita, mollemente sentada n'um camarote dos Italianos, deixava de ouvir as ternuras do tenor, para contemplal-o de longe cheirando um raminho de violetas. Soares atirou-se á rede e adormeceu. O tropeiro cessou de cantar, e dentro de pouco tempo tudo era silêncio no pouso. Camillo ficou sosinho diante da noite, que estava realmente formosa e solemne. Não faltava ao joven goyano a intelligencia do bello; e a quasi novidade d'aquelle espectaculo, que uma longa ausencia lhe fizera esquecer, não deixava de o impressionar immensamente. De quando em quando chegavam aos seus ouvidos urros longinquos, de alguma fera que vagueava na solidão. Outras vezes eram aves nocturnas, que soltavam ao perto os seus pios tristonhos. Os grillos, e tambem as rãs e os sapos formavam o coro d'aquella opera do sertão, que o nosso heróe admirava de certo, mas á qual preferia indubitavelmente a opera comica. Assim esteve longo tempo, cêrca de duas horas, deixando vagar o seu espirito ao sabor das saudades, e levantando e desfazendo mil castellos no ar. De repente foi chamado a si pela voz do Soares, que parecia víctima de um pesadelo. Afiou o ouvido e escutou éstas palavras soltas e abafadas que o seu companheiro murmurava: — Isabel... querida Isabel... Que é isso?... Ah! meu Deus! Acudam! As últimas syllabas eram ja mais afflictas que as primeiras. Camillo correu ao companheiro e fortemente o sacudiu. Soares acordou espantado, sentou-se, olhou em roda de si e murmurou: — Que é? — Um pesadelo. — Sim, foi um pesadelo. Ainda bem! Que horas são? — Ainda é noite. — Ja está levantado? — Agora é que me vou deitar. Durmamos que é tempo. — Amanhã lhe contarei o sonho. No dia seguinte effectivamente, logo depois das primeiras vinte braças de marcha, referiu Soares o terrivel sonho da vespera. — Estava eu ao pe de um rio, disse elle, com a espingarda na mão, espiando as capivaras. Olho casualmente para a ribanceira que ficava muito acima, do lado opposto, e vejo uma moça montada n'um cavallo preto, vestida de preto, e com os cabellos, que tambem eram pretos, cahidos sobre os hombros… — Era tudo uma escuridão, interrompeu Camillo. — Espere; admirei-me de ver alli, e por aquelle modo, uma moça que me parecia franzina e delicada. Quem pensava o senhor que era? — A Isabel. — A Isabel. Corri pela margem adiante, trepei acima de uma pedra fronteira ao logar onde ella estava, e perguntei-lhe o que fazia alli. Ella esteve algum tempo calada. Depois, apontando para o fundo do grotão, disse: « — O meu chapeu cahiu la em baixo. « — Ah! « — O senhor ama-me? disse ella passados alguns minutos. « — Mais que a vida! « — Fara o que eu lhe pedir? « — Tudo. « — Bem, va buscar o meu chapeu. « — Olhei para baixo. Era um immenso grotão em cujo fundo fervia e roncava uma agua barrenta e grossa. O chapeu, em vez de ir com a corrente por alli abaixo até perder-se de todo, ficára espetado na ponta de uma rocha, e Ia do fundo parecia convidar-me a descer. Mas era impossivel. Olhei para todos os lados, a ver se achava algum recurso. Nenhum havia… — Veja o que é imaginação escaldada ! observou Camillo. — Ja eu procurava algumas palavras com que dissuadisse Isabel da sua terrivel ideia, quando senti pousar-me uma mão no hombro. Voltei-me; era um homem; era o senhor. — Eu? — É verdade. O senhor olhou para mim com um ar de desprezo, sorriu para ella e depois olhou para o abysmo. Repentinamente, sem que eu possa dizer como, estava o senhor em baixo e estendia a mão para tirar o chapelinho fatal. — Ah ! — A agua porêm, engrossando subitamente, ameaçava submergil-o. Então Isabel, soltando um grito de angústia, esporeou o cavallo e atirou-se pela ribanceira abaixo. Gritei... chamei por soccorro; tudo foi inutil. Ja a agua os enrolava em suas dobras... quando fui acordado pelo senhor. Leandro Soares concluiu esta narração do seu pesadelo parecendo ainda assustado do que lhe acontecêra… imaginariamente. Convem dizer que elle acreditava nos sonhos. — Veja o que é uma digestão mal feita! exclamou Camillo quando o comprovinciano terminou a narração. Que porção de tolices! O chapeu, a ribanceira, o cavallo, e mais que tudo a minha presença n'esse melodrama fantastico, tudo isso é obra de quem digeriu mal o jantar. Em París ha theatros que representam pesadelos assim, — peiores do que o seu porque são mais compridos. Mas o que eu vejo tambem é que essa moça não o deixa nem dormindo. — Nem dormindo! Soares disse éstas duas palavras quasi como um echo, sem consciencia. Desde que concluíra a narração, e logo depois das primeiras palavras de Camillo, entrára a fazer comsigo uma serie de reflexões que não chegaram ao conhecimento do auctor d'esta narrativa. O mais que lhes posso dizer é que não eram alegres, porque a fronte lhe descahiu, enrugou-se-lhe a testa, e elle, cravando os olhos nas orelhas do animal, recolheu-se a um inviolavel silêncio. A viagem, d'aquelle dia em diante, foi menos supportavel para Camillo de que ate alli. Alêm de uma leve melancolia que se apoderára do companheiro, ia-se-lhe tornando enfadonho aquelle andar leguas e leguas que pareciam não acabar mais. Afinal voltou Soares á sua habitual verbosidade, mas ja então nada podia vencer o tedio mortal que se apoderára do misero Camillo. Quando porêm avistou a cidade, perto da qual estava a fasenda, onde vivêra as primeiras auroras da sua mocidade, Camillo sentia abalar-se-lhe fortemente o coração. Um sentimento serio o dominava. Por algum tempo, ao menos, París com os seus esplendores cedia o logar á pequena e honesta patria dos Seabras. III O encontro Foi um verdadeiro dia de festa aquelle em que o commendador cingiu ao peito o filho que oito annos mandára a terras extranhas. Não pôde reter as lagrymas o bom velho, — não pôde, que ellas vinham de um coração ainda viçoso de affectos e exhuberante de ternura. Não menos intensa e sincera foi a alegria de Camillo. Beijou repetidamente os mãos e a fronte do pae, abraçou os parentes, os amigos de outro tempo, e durante alguns dias, — não muitos,— parecia completamente curado dos seus desejos de regressar á Europa. Na cidade e seus arredores não se fallava em outra cousa. O assumpto, não principal, mas exclusivo das palestras e commentanos era o filho do commendador. ninguem se fartava de o elogiar. Admiravam-lhe as maneiras e a elegancia. A mesma superioridade com que elle fallava a todos achava enthusiastas sinceros. Durante muitos dias foi totalmente impossivel que o rapaz pensasse em outra cousa que não fosse contar as suas viagens aos amaveis conterraneos. Mas pagavam-lhe a massada, porque a menor cousa que elle dissesse tinha aos olhos dos outros uma graça indefinivel. O padre Maciel, que o baptisára vinte e sete annos antes, e que o via ja homem completo, era o primeiro pregoeiro da sua transformação. — Póde gabar-se, Sr. commendador, dizia elle ao pae de Camillo, póde gabar-se de que o ceu lhe deu um rapaz de truz! Santa Luzia vae ter um médico de primeira ordem, se me não engana o affecto que tenho a esse que era ainda hontem um pirralho. E não so medico, mas até bom philosopho; é verdade, parece-me bom philosopho. Sondei-o hontem n'ésse particular, e não lhe achei ponto fraco ou duvidoso. O tio Jorge andava a perguntar a todos o que pensavam do sobrinho Camillo. O tenente coronel Veiga agradecia á Providencia a chegada do Dr. Camillo nas proximidades do Espirito Santo. — Sem elle, o meu baile seria incompleto. O Dr. Mattos não foi o último que visitou o filho do commendador. Era um velho alto e bem feito, ainda que um tanto quebrado pelos annos. — Venha, doutor, disse o velho Seabra apenas o viu assomar á porta; venha ver o meu homem. — Homem, com effeito, respondeu Mattos contemplando o rapaz. Está mais homem do que eu suppunha; tambem ja la vão oito annos! Venha de la esse abraço! O moço abriu os braços ao velho. Depois, como era costume fazer a quantos o iam ver, contou-lhe alguma cousa das suas viagens e estudos. É perfeitamente inutil dizer que o nosso heroe omittiu sempre tudo quanto pudesse abalar o bom conceito em que estava no ânimo de todos. A dar-lhe credito, vivêra, quasi como um anachoreta; e ninguem ousava pensar o contrario. Tudo eram pois alegrias na boa cidade e seus arredores; e o joven médico, lisonjeado com a inesperada recepção que teve, continuou a não pensar muito em París. Mas o tempo corre, e as nossas sensações com elle se modificam. No fim de quinze dias tinha Camillo esgotado a novidade das suas impressões; a fazenda começou a mudar de aspecto; os campos ficaram monotonos, as árvores monotonas, os rios monotonos, a cidade monotona, elle proprio monotono. Invadiu-o então uma cousa a que podemos chamar — nostalgia do exilio. — Não, dizia elle comsigo, não posso ficar aqui mais trez mezes. París ou o cemiterio, tal é o dilemma que se me offerece. D'aqui a trez mezes, estarei morto ou em caminho da Europa. O aborrecimento de Camillo não escapou aos olhos do pai, que quasi vivia a olhar para elle. — Tem razão, pensava o commendador. Quem viveu por essas terras que dizem ser tão bonitas e animadas, não póde estar aqui muito alegre. É preciso dar-lhe alguma occupação... a politica, por exemplo. — Politica! exclamou Camillo, quando, o pai lhe fallou n'esse assumpto. De que me serve a politica, meu pai? — De muito. Seras primeiro deputado provincial; podes ir depois para a camara no Rio de Janeiro. Um dia interpellas o ministerio, e se elle cahir, podes subir ao governo. Nunca tiveste ambição de ser ministro? — Nunca. — É pena! — Porque? — Porque é bom ser ministro. — Governar os homens, não é? disse Camillo rindo; é um sexo ingovernável; prefiro o outro. Seabra riu-se do repente, mas não perdeu a esperança de convencer o herdeiro. Havia ja vinte dias que o médico estava em casa do pai, quando se lembrou da história que lhe contar a Soares e do sonho que este tivera no pouso. A primeira vez que foi á cidade e esteve com o filho do negociante, perguntou-lhe: — Diga-me, como vai a sua Isabel, que ainda a não vi? Soares olhou para elle com o sobr'olho carregado a levantou os hombros resmungando um sêcco: — Não sei. Camillo não insistiu. — A molestia ainda está no periodo agudo, disse elle comsigo. Teve porêm curiosidade de ver a formosa Isabelinha, que tão por terra deitára aquelle verboso cabo eleitoral. A todas as moças da localidade, em dez leguas em redor, havia ja fallado o joven médico. Isabel era a unica esquiva até então. Esquiva não digo bem. Camillo fôra uma vez á fazenda do Dr. Mattos; mas a filha estava doente. Pelo menos foi isso o que lhe disseram. — Descance, dizia-lhe um visinho a quem elle mostrára impaciencia de conhecer a amada de Leandro Soares; ha de vel-a no baile do coronel Veiga, ou na festa do Espirito Santo, ou em outra qualquer occasião. A belleza da moça, que elle não julgava pudesse ser superior nem sequer egual á da viuva do príncipe Alexis, a paixão incuravel de Soares, e o tal ou qual mysterio com que se fallava de Isabel, tudo isso excitou ao último ponto a curiosidade do filho do commendador. No domingo proximo, oito dias antes do Espirito Santo, sahiu Camillo da fazenda para ir á missa na egreja da cidade, como ja fizera nos domingos anteriores. O cavallo ia a passo lento, a compasso com o pensamento do cavalleiro, que se espreguiçava pelo campo fora em busca de sensações que ja não tinha e que anciava ter de novo. Mil singulares ideias atravessavam o cerebro de Camillo. Ora, almejava alar-se com cavallo e tudo, rasgar os ares e ir cahir defronte do Palais-Royal, ou em outro qualquer ponto da capital do mundo. Logo depois fazia a si mesmo a descripção de um cataclisma tal, que elle viesse a achar-se almoçando no café Tortoni, dois minutos depois de chegar ao altar o padre Maciel. De repente, ao quebrar uma volta da estrada, descobriu ao longe duas senhoras a cavallo acompanhadas por um pagem. Picou de esporas e dentro de pouco tempo estava junto dos tres cavalleiros. Uma das senhoras voltou a cabeça, sorriu e parou. Camillo aproximou-se, com a cabeça descoberta, e estendeu-lhe a mão, que ella apertou. A senhora a quem comprimentára era a esposa do tenente-coronel Veiga. Representava ter quarenta e cinco annos, mas estava assaz conservada. A outra senhora, sentindo o movimento da companheira, fez parar tambem o cavallo, e voltou egualmente a cabeça. Camillo não olhava então para ella. Estava occupado em ouvir D. Gertrudes, que lhe dava notícias do tenente-coronel. — Agora so pensa na festa, dizia ella; ja deve estar na egreja. Vae á missa, não? — Vou. — Vamos juntos. Trocadas éstas palavras, que foram rapidas, Camillo procurou com os olhos a outra cavalleira. Ella porêm ia ja alguns passos adiante. O médico collocou-se ao lado de D. Gertrudes, e a comitiva continuou a andar. Iam assim conversando havia ja uns dez minutos, quando o cavallo da senhora que ia adiante estacou. — Que é, Isabel? perguntou D. Gertrudes. — Isabel! exclamou Camillo, sem dar attenção ao incidente que provocára a pergunta da esposa do coronel. A moça voltou a cabeça e levantou os hombros respondendo seccamente: — Não sei. A causa era um rumor que o cavallo sentíra por traz de uma espessa moita de taquaras que ficava á esquerda do caminho. Antes porêm que o pagem ou Camillo fosse examinar a causa da reluctancia do animal, a moça fez um esforço supremo, e chicoteando vigorosamente o cavallo, conseguiu que este vencesse o terror, e deitasse a correr a galope adiante dos companheiros. — Isabel! disse Camillo a D. Gertrudes. Aquella moça sera a filha do Dr. Mattos? — É verdade. Não a conhecia? — Ha oito annos que a não vejo. Está uma flor! Ja me não admira que se falle aqui tanto na sua belleza. Disseram-me que estava doente… — Esteve; mas as suas doenças são cousas de pequena monta. São nervos; assim se diz, creio eu, quando se não sabe do que uma pessoa padece… Isabel parára ao longe, e voltada para a esquerda da estrada, parecia admirar o espectaculo da natureza. D'ahi a alguns minutos estavam perto d'ella os seus companheiros. A moça ia proseguir a marcha, quando D. Gertrudes lhe disse: — Isabel! A moça voltou o rosto. D. Gertrudes aproximou-se d'ella. — Não te lembras do Dr. Camillo Seabra? — Talvez não se lembre, disse Camillo. Tinha doze annos quando eu sahi d'aqui, e ja la vão oito! — Lembro-me, respondeu Isabel curvando levemente a cabeça, mas sem olhar para o médico. E chicoteando de mansinho o cavallo, seguiu para diante. Por mais singular que fosse aquella maneira de reatar um conhecimento antigo, o que mais impressionou então o filho do commendador foi a belleza de Isabel, que lhe pareceu estar na altura da reputação. Tanto quanto se podia julgar á primeira vista, a esbelta cavalleira devia ser mais alta que baixa. Era morena, — mas de um moreno assetinado e macio, com uns delicadissimos longes côr de rosa, — o que sería effeito da agitação, visto que affirmavam ser extremamente pallida. Os olhos, — não lhes pôde Camillo ver a côr, mas sentiu-lhes a luz que valia mais talvez, apezar de o não terem fitado, e comprehendeu logo que com olhos taes a formosa goyana houvesse fascinado o misero Soares. Não averiguou, — nem pôde, as restantes feições da moça; mas o que pôde contemplar á vontade, o que ja vinha admirando de longe, era a elegancia nativa do busto e o gracioso desgarro com que ella montava. Vira muitas amazonas elegantes e destras. Aquella porêm tinha alguma cousa em que se avantajava ás outras; era talvez o desalinho do gesto, talvez a expontaneidade dos movimentos, outra cousa talvez, ou todas essas juntas que davam á interessante goyana incontestavel supremacia. Isabel parava de quando em quando o cavallo e dirigia a palavra á esposa do coronel, a respeito de qualquer accidente, — de um effeito de luz, de um passaro que passava, de um som que se ouvia, — mas em nenhuma occasião encarava ou sequer olhava de esguelha o filho do commendador. Absorvido na contemplação da moça, Camillo deixou cahir a conversa, e havia ja alguns minutos que elle e D. Gertrudes iam cavalgando, sem dizer palavra, ao lado um do outro. Foram interrompidos em sua marcha silenciosa por um cavalleiro, que vinha atraz da comitiva a trote largo. Era Soares. O filho do negociante vinha bem differente do que até alli andava. Comprimentou-os sorrindo e jovial como estivera nos primeiros dias de viagem do médico. Não era porêm difficil conhecer que a alegria de Soares era um artificio. O pobre namorado fechava o rosto de quando em quando, ou fazia um gesto de desespêro que felizmente escapava aos outros. Elle receiava o triumpho de um homem que, physica e intelectualmente lhe era superior; que, alêm d'isso, gosava n'aquella occasião a grande vantagem de dominar a attenção publica, que era o urso da aldea, o acontecimento do dia, o homem da situação. Tudo conspirava para derrubar a última esperança de Soares, que era a esperança de ver morrer a moça isenta de todo o vínculo conjugal. O infeliz namorado tinha o sestro, alias commum, de querer quebrada ou inutil, a taça que elle não podia levar labios. Cresceu porêm seu receio quando, estando escon[...] no taquaral de que fallei acima, para ver passar Isa[...] como costumava fazer muitas vezes, descobriu a pe[...] de Camillo na comitiva. Não pôde reter uma exclama[...] de sorpreza, e chegou a dar um passo na direcção [...] estrada. Deteve-se a tempo. Os cavalleiros, como vir[...] passaram adiante, deixando o cioso pretendente a j[...] aos ceus e á terra que tomaria desforra do seu atre[...] rival, se o fosse. Não era rival, bem sabemos; o coração de Cam[...] guardava ainda fresca a memoria da Arthemisa mos[...]vita, cujas lagrymas, apezar da distância, o rapaz se[...] que eram ardentes e afflitivas. Mas quem poderia c[...]vencer a Leandro Soares que o elegante moço da [...]ropa, como lhe chamavam, não ficaria enamorad[...] esquiva goyana? Isabel, entretanto, apenas víra o infeliz pretende[...] deteve o cavallo e estendeu-lhe affectuosamente a m[...] Um adoravel sorriso acompanhou este movimento. [...] era bastante para dissipar as dúvidas do pobre m[...] Diversa foi porêm a impressão de Camillo. — Ama-o, ou é uma grande velhaca, pensou elle[...] Casualmente, — e pela primeira vez, — olhava Isa[...] para o filho do commendador. Perspicacia ou advin[...]ção, leu-lhe no rosto esse pensamento occulto; fra[...] [1][2][3]levemente a testa com uma expressão tão viva de extranheza, que o médico ficou perplexo e não pôde deixar de acrescentar, ja então com os labios, á meia voz fallando para si. — Ou falla com o diabo. — Talvez, murmurou a moça com os olhos fitos no chão. Isto foi dito assim, sem que os outros dois percebessem. Camillo não podia desviar os olhos da formosa Isabel, meio espantado, meio curioso, depois da palavra murmurada por ella em tão singulares condições. Soares olhava para Camillo com a mesma ternura com que um gavião espreita uma pomba. Isabel brincava com o chicotinho. D. Gertrudes, que temia perder a missa do padre Maciel e receber um reparo amigavel do marido, deu voz de marcha, e a comitiva seguiu immediatamente. IV A Festa No sabbado seguinte a cidade revestíra desusado aspecto. De toda a parte corrêra uma chusma de povo que ia assistir á festa annual do Espirito Santo. Vão rareando os logares em que de todo se não apagou o gôsto d'essas festas classicas, resto de outras eras, que os escriptores do seculo futuro hão de estudar com curiosidade, para pintar aos seus contemporaneos um Brazil que elles ja não hão de conhecer. No tempo em que ésta história se passa uma das mais genuinas festas do Espirito Santo era a da cidade de Santa Luzia. O tenente-coronel Veiga, que era então o imperador do divino, estava em uma casa que possuia na cidade. Na noite de sabbado foi alli ter o bando dos pastores, composto de homens e mulheres, com o seu pittoresco vestuario, e acompanhado pelo classico velho, que era um sujeito de calção e meia, sapato razo, casaca esguia, collete comprido e grande bengala na mão. Camillo estava em casa do coronel, quando alli appareceu o bando dos pastores, com alguns musicos á frente, e muita gente atraz. Formaram logo, alli mesmo na rua, um circulo; um pastor e uma pastora, iniciaram a dansa classica. Dansáram, cantáram e tocaram todos, á porta e na sala do coronel, que estava litteralmente a lamber-se de gôsto. É ponto duvidoso, e provavelmente nunca sera liquidado, se o tenente-coronel Veiga preferia n'aquella occasião ser ministro de Estado a ser imperador do Espirito Santo. E todavia aquillo era apenas uma amostra da grandeza do tenente-coronel. O sol do domingo devia allumiar maiores cousas. Parece que ésta razão determinou o rei da luz a trazer n'esse dia os seus melhores raios. O ceu nunca se mostrára mais limpidamente azul. Algumas nuvens grossas, durante a noite, chegaram a emmurchecer as esperanças dos festeiros; felizmente sobre a madrugada soprára um vento rijo que varreu o ceu e purificou a atmosphera. A população correspondeu á solicitude da natureza. Logo cedo appareceu ella com os seus vestidos domingueiros, —jovial, risonha, palreira, — nada menos que feliz. O ar atroava com foguetes; os sinos convidavam alegremente o povo à ceremonia religiosa. Camillo passára a noite na cidade em casa do padre Maciel, e foi acordado, mais cedo do que suppuzera, com os repiques e foguetada e mais demonstrações da cidade alegre. Em casa do pae continuára o moço os seus habitos de París, em que o commendador julgou não dever perturbal-o. Accordava portanto às 11 horas da manhã, excepto os domingos, em que ia á missa, para de todo em todo não offender os habitos da terra. — Que diabo é isto, padre ? gritou Camillo do quarto onde estava, e no momento em que uma girandola lhe abria definitivamente os olhos. — Que ha de ser? respondeu o padre Maciel, mettendo a cabeça pela porta: é a festa. — Então a festa começa de noite? — De noite! exclamou o padre. É dia claro. Camillo não pôde conciliar o somno, e viu-se obrigado a levantar-se. Almoçou com o padre, contou duas anecdotas, confessou ao hóspede que París era o ideal das cidades, e sahiu para ir ter á casa do imperador do divino. O padre sahiu com elle. Em caminho viram de longe Leandro Soares. — Não me dira, padre, perguntou Camillo, por que razão a filha do Dr. Mattos não attende àquelle pobre rapaz que gosta tanto d'ella? Maciel concertou os oculos e expoz a seguinte reflexão: — Você parece tolo. — Não tanto, como lhe pareço, replicou o filho do commendador, por que mais de uma pessoa tem feito a mesma pergunta. — Assim é, na verdade, disse o padre; mas ha cousas que outros dizem e a gente não repete. A Isabelinha não gosta do Soares simplesmente porque não gosta. — Não lhe parece que essa moça é um tanto exquisita? — Não, disse o padre, parece-me uma grande finoria. — Ah! porque? — Suspeito que tem muita ambição; não acceita o amor do Soares, a ver se pilha algum casamento que lhe abra a porta das grandezas políticas. — Ora, disse Camillo levantando os hombros. — Não acredita? — Não. — Pode ser que me engane; mas creio que é isto mesmo. Aqui cada qual dá uma explicação á isenção de Isabel; todas as explicações porêm me parecem absurdas; a minha é a melhor. Camillo faz algumas objecções á explicação do padre, e despediu-se d'ellle para ir á casa do tenente-coronel. O festivo imperador estava litteralmente fóra de si. Era a primeira vez que exercia aquelle cargo honorifico e timbrava em fazel-o brilhantemente, e até melhor que os seus predecessores. Ao natural desejo de não ficar por baixo, accrescia o elemento da inveja política. Alguns adversarios seus diziam pela boca pequena que o brioso coronel não era capaz de dar conta da mão. — Pois verão se sou capaz, foi o que elle disse ao ouvir de alguns amigos a malicia dos adversarios. Quando Camillo entrou na sala, acabava o tenente-coronel de explicar umas ordens relativas ao jantar que se devia seguir á festa, e ouvia algumas informações que lhe dava um irmão definidor acerca de uma ceremonia da sacristia. — Não ouso fallar-lhe, coronel, disse o filho do commendador, quando o Veiga ficou so com elle; não ouso interrompel-o. — Não interrompe, acudiu o imperador do divino; agora deve tudo estar acabado. O commendador vem? — Ja ca deve estar. — Ja viu a egreja? — Ainda não. — Está muito bonita. Não é por me gabar; creio que a festa não desmerecerá das outras, e até em algumas cousas ha de ir melhor. Era absolutamente impossivel não concordar com ésta opinião, quando aquelle que a exprimia fazia assim o seu proprio louvor. Camillo encareceu ainda mais o merito da festa. O coronel ouvia-o com um riso de satisfação íntima, e dispunha-se a provar que o seu joven amigo ainda não apreciava bem a situação, quando este, desviou a conversa, perguntando: — Ainda não veio o Dr. Mattos? — Ja. — Com a familia? — Sim, com a familia. N'este momento foram interrompidos pelo som de muitos foguetes e de uma musica que se aproximava. — São elles! disse Veiga; vem buscar-me. Ha de dar-me licença. O coronel estava até então de calça preta e rodaque de brim. Correu a preparar-se com o traje e as insignias do seu elevado cargo. Camillo chegou á janella para ver o cortejo. Não tardou que este apparecesse composto de uma banda de musica, da irmandade do Espirito Santo e dos pastores da vespera. Os irmãos vestiam as suas opas encarnadas, e vinham a passo grave, cercados do povo, que enchia a rua e se agglomerava á porta do tenente-coronel para vel-o sahir. Quando o cortejo parou em frente da casa do tenente-coronel cessou a musica de tocar e todos os olhos se voltaram curiosamente para as janellas. Mas o imperador estreante estava ainda por completar a sua edição, e os curiosos tiveram de contentar-se com a pessoa do Dr. Camillo. Entretanto quatro ou seis irmãos mais graduados destacaram-se do grupo e subiram as escadas do tenente-coronel. Minutos depois comprimentava Camillo os ditos irmãos graduados, um dos quaes, mais graduado que os outros, não o era so no cargo, mas tambem, e sobretudo, no tamanho. E a estatura do major Braz sería a cousa mais notavel da sua pessoa, se lhe não pedisse meças a magreza do proprio major. A opa do major, apezar disto, ficava-lhe bem, porque nem ia até abaixo da curva da perna como a dos outros, nem lhe ficava na cintura, como devêra, no caso de ter sido feita pela mesma medida. Era uma opa termo-medio. Ficava-lhe entre a cintura e a curva, e foi feita assim de proposito para conciliar os principios da elegancia com a estatura do major. Todos os irmãos graduados estenderam a mão ao filho do commendador e perguntaram anciosamente pelo tenente-coronel. — Não tarda; foi vestir-se, respondeu Camillo. — A egreja está cheia, disse um dos irmãos graduados; so se espera por elle. — É justo esperar, opinou o major Braz. — Apoiado, disse o côro dos irmãos. — Demais, continuou o immenso official, temos tempo; e não vamos para longe. Os outros irmãos apoiaram com o gesto esta opinião do major, que, acto continuo, começou a dizer a Camillo os mil trabalhos que a festa lhes dera, a elle e aos cavalheiros que o acompanhavam n'aquella occasião, não menos que ao tenente-coronel. — Como recompensa dos nossos debeis esforços (Camillo fez um signal negativo a éstas palavras do major Braz), temos a consciencia de que a cousa não sahirá de todo mal. Ainda éstas palavras não tinham bem sahido dos labios do digno official, quando assomou á porta da sala o tenente-coronel em todo o esplendor da sua transformação. Camillo perdêra de todo as noções que tinha a respeito do traje e insignias de um imperador do Espirito-Santo. Não foi pois sem grande pasmo que viu assomar á porta da sala a figura do tenente-coronel. Alêm da calça preta, que ja tinha no corpo quando alli chegou Camillo, o tenente-coronel envergára uma casaca, que pela regularidade e elegancia do córte podia rivalisar com as dos mais apurados membros do Cassino Fluminense. Até ahi tudo ia bem. Ao peito rutilava uma vasta commenda da ordem da Rosa, que lhe não ficava mal. Mas o que excedeu a toda a expectação, o que pintou no rosto do nosso Camillo a mais completa expressão de assombro, foi uma brilhante e vistosa coroa de papelão forrado de papel dourado, que o tenente-coronel trazia na cabeça. Camillo recuou um passo e cravou os olhos na insignia imperial do tenente-coronel. Ja lhe não lembrava aquelle accessorio indispensavel em occasiões semelhantes, e tendo vivido oito annos no meio de uma civilisação diversa, não imaginava que ainda existissem costumes que elle julgava enterrados. O tenente-coronel apertou a mão a todos os amigos e declarou que estava prompto a acompanhal-os. — Não façamos esperar o povo, disse elle. Immediatamente, desceram á rua. Houve no povo um movimento de curiosidade, quando viu apparecer á porta a opa encarnada de um dos irmãos que haviam sabido. Logo atraz appareceu outra opa, e não tardou que as restantes opas apparecessem tambem flanqueando o vistoso imperador. A coroa dourada, apenas o sol lhe bateu de chapa, entrou a despedir faíscas quasi inverosimeis. O tenente-coronel olhou a um lado e outro, fez algumas inclinações leves de cabeça a uma ou outra pessoa da multidão, e foi occupar o seu lugar de honra no cortejo. A musica rompeu logo uma marcha, que foi executada pelo tenente-coronel, a irmandade e os pastores, na direcção da egreja. Apenas da egreja avistaram o cortejo, o sineiro que ja estava á espreita, poz em obra as lições mais complicadas do seu officio, em quanto uma girandola, entremeada de alguns foguetes soltos, annunciava ás nuvens do ceu que o imperador do divino era chegado. Na egreja houve um reboliço geral apenas se annunciou que era chegado o imperador. Um mestre de cerimonias activo e desempenado ia abrindo alas, com grande difficuldade, porque o povo, ancioso por ver a figura do tenente-coronel, agglomerava-se desordenadamente e desfazia a obra do mestre de cerimonias. Afinal aconteceu o que sempre acontece n'essas occasiões; as alas foram-se abrindo por si mesmas, e ainda que com algum custo, o tenente-coronel atravessou a multidão, precedido e acompanhado pela irmandade, até chegar ao throno que se levantava ao lado do altar-mor. Subiu com firmeza os degraus do throno, e sentou-se n'elle, tão orgulhoso como se governasse d'alli todos os imperios junctos do mundo. Quando Camillo chegou á egreja, ja a festa havia começado. Achou um lugar soffrivel, ou antes inteiramente bom, porque dalli podia dominar um grande grupo de senhoras, entre as quaes descobriu a formosa Isabel. Camillo estava ancioso por fallar outra vez a Isabel. O encontro na estrada e a singular perspicacia de que a moça dera prova n'essa occasião, não lhe haviam sahido da cabeça. A moça pareceu não dar por elle: mas Camillo era tão versado em tratar com o bello sexo, que não lhe foi difficil perceber que ella o tinha visto e intencionalmente não voltava os olhos para o lado d'elle. Ésta circumstância, ligada aos incidentes do domingo anterior, fez-lhe nascer no espirito a seguinte pergunta: — Mas que tem ella contra mim? A festa proseguiu sem novidade. Camillo não tirava os olhos de sua bella charada, nome que ja lhe dava, mas a charada parecia refractaria a todo o sentimento de curiosidade. Uma vez porêm, quasi no fim, encontraram-se os olhos de ambos. Pede a verdade que se diga que o rapaz sorprehendeu a moça a olhar para elle. Comprimentou-a; foi correspondido; nada mais. Acabada a festa foi a irmandade levar o tenente-coronel até a casa. No meio da lufa-lufa da sahida, Camillo, que estava embebido a olhar para Isabel, ouviu uma voz desconhecida que lhe dizia ao ouvido: — Veja o que faz! Camillo voltou-se e deu com um homem baixinho e magro, de olhos miudos e vivos, pobre mas aceiadamente trajado. Encararam-se alguns segundos sem dizer palavra. Camillo não conhecia aquella cara e não se atrevia a pedir a explicação das palavras que ouvira, com quanto ardesse por saber o resto. — Ha um mysterio, continuou o desconhecido. Quer descobril-o? Houve algum tempo de silêncio. — O logar não é proprio, disse Camillo; mas se tem alguma cousa que me dizer... — Não; descubra o senhor mesmo. E dizendo isto desappareceu no meio do povo o homem baixinho e magro, de olhos vivos e miudos. Camillo acotovelou umas dez ou doze pessoas, pisou uns quinze ou vinte callos, pediu outras tantas vezes perdão da sua imprudencia, até que se achou na rua sem ver nada que se parecesse com o desconhecido. — Um romance! disse elle; estou em pleno romance. N'isto sahiam da igreja Isabel, D. Gertrudes e o Dr. Mattos. Camillo aproximou-se do grupo e comprimentou-os. Mattos deu o braço a D. Gertrudes; Camillo offereceu timidamente o seu a Isabel. A moça hesitou; mas não era possivel recusar. Passou o braço no do joven médico e o grupo dirigiu-se para a casa onde o tenente-coronel ja estava e mais algumas pessoas importantes da localidade. No meio do povo havia um homem que tambem se dirigia para a casa do coronel e que não tirava os olhos de Camillo e de Isabel. Esse homem mordia o labio até fazer sangue. Sera preciso dizer que era Leandro Soares? V Paixão A distância da egreja á casa era pequena; e a conversa entre Isabel e Camillo não foi longa nem seguida. E todavia, leitor, se alguma sympathia te merece a princeza moscovita, deves sinceramente lastimal-a. A aurora de um novo sentimento começava a dourar as cumiadas do coração de Camillo; ao subir as escadas, confessava o filho do commendador de si para si, que a interessante patricia tinha qualidades superiores ás da bella princesa russa. Hora e meia depois, isto é, quasi no fim do jantar, o coração de Camillo confirmava plenamente ésta descoberta do seu investigador espirito. A conversa, entretanto, não passou de cousas totalmente indifferentes; mas Isabel fallava com tanta doçura e graça, posto não alterasse nunca a sua habitual reserva; os olhos eram tão bonitos de ver ao perto, e os cabellos tambem, e a boca igualmente, e as mãos do mesmo modo, que o nosso ardente mancebo, so mudando de natureza, poderia resistir ao influxo de tantas graças junctas. O jantar correu sem novidade apreciavel. Reuniram-se á mesa do tenente coronel todas as notabilidades do lugar, o vigario, o juiz municipal, o negociante, o fazendeiro, reinando sempre de uma ponta a outra da mesa a maior cordialidade e harmonia. O imperador do divino, ja então restituido ao seu vestuario commum, fazia as honras da meza com verdadeiro enthusiasmo. A festa era o objecto da geral conversa, entremeada, é verdade, de reflexões politicas, em que todos estavam de accordo, porque eram do mesmo partido, homens e senhoras. O major Braz tinha por costume fazer um ou dous brindes longos e eloquentes em cada jantar de certa ordem a que assistisse. A facilidade com que elle se exprimia, não tinha rival em toda a provincia. Alêm d'isso, como era dotado de descommunal estatura, dominava de tal modo o auditorio, que o simples levantar-se era ja meio triumpho. Não podia o major Braz deixar passar incolume o jantar do tenente-coronel; ia-se entrar na sobremesa quando o eloquente major pediu licença para dizer algumas palavras singelas e toscas. Um murmurio, equivalente aos não-apoiados das camaras, acolheu ésta declaração do orador, e o auditorio preparou o ouvido para receber as perolas que lhe iam cahir da boca. — O illustre auditorio que me escuta, disse elle, desculparà a minha ousadia; não vos falla o talento, senhores; falla-vos o coração. « Meu brinde é curto; para celebrar as virtudes e a capacidade do illustre tenente-coronel Veiga não é preciso fazer um longo discurso. Seu nome diz tudo; a minha voz nada adiantaria... » O auditorio revelou por signaes que applaudia sem restricções o primeiro membro d'esta última phrase, e com restricções o segundo; isto é, comprimentou o tenente-coronel e o major; e o orador que, para ser coherente com o que acabava de dizer, devia limitar-se a esvasiar o copo, proseguiu da seguinte maneira: — O immenso acontecimento que acabamos de presenciar, senhores, creio que nunca se apagará da vossa memoria. Muitas festas do Espirito-Santo tem havido n'esta cidade e em outras; mas nunca o povo teve o júbilo de contemplar um esplendor, uma animação, um triumpho egual ao que nos proporcionou o nosso illustre correligionario e amigo, o tenente-coronel Veiga, honra da classe a que pertence, e glória do partido a que se filiou… — E no qual pretendo morrer, completou o tenente-coronel. — Nem outra cousa era de esperar de V. Ex., disse o orador mudando de voz para dar a éstas palavras um tom de parenthesis. Apesar da declaração feita no princípio, de que era inutil acrescentar nada aos meritos do tenente-coronel, o intrepido orador fallou cêrca de vinte e cinco minutos com grande magua do padre Maciel, que namorava de longe um fofo e tremulo podim de pão, e do juiz municipal que estava ancioso por ir fumar. A peroração d'esse memoravel discurso foi pouco mais ou menos assim: — Eu faltaria, portanto, aos meus deveres de amigo, de correligionario, de subordinado e de admirador, se não levantasse a voz n'esta occasião, e não vos dissesse em linguagem tosca, sim, (signaes de desaprovação), mas sincera, os sentimentos que me tumultuam dentro do peito, o enthusiasmo de que me sinto possuido, quando contemplo o venerando e illustre tenente-coronel Veiga, e se vos não convidasse a beber commigo á saude de S. Ex. O auditorio acompanhou com enthusiasmo o brinde do major, ao qual respondeu o tenente-coronel com éstas poucas, mas sentidas palavras: — Os elogios que me acaba de fazer o distincto major Braz, são verdadeiros favores de uma alma grande e generosa; não os mereço senhores; devolvo-os intactos ao illustre orador que me precedeu. No meio da festa e da alegria que reinava ninguem reparou nas attenções que Camillo prestava á bella filha do Dr. Mattos. ninguem, digo mal; Leandro Soares, que fôra convidado ao jantar, e assistíra a elle, não tirava os olhos do elegante rival e da sua formosa e esquiva dama. Ha de parecer milagre ao leitor a indifferença e até o ar alegre com que Soares via aos attaques dos adversarios. Não é milagre; Soares tambem interrogava o olhar de Isabel e lia n'elle a indifferença, talvez o desdem, com que tratava o filho do commendador. — Nem eu, nem elle, dizia comsigo o pretendente. Camillo estava apaixonado; no dia seguinte amanheceu peior; cada dia que passava augmentava a chamma que o consumia. París e a, princesa tudo havia desapparecido do coração e da memoria do rapaz. Um so ente, um lugar unico mereciam agora as suas attenções: Isabel e Goyaz. A esquivança e os desdens da moça não contribuiram pouco para ésta tranformação. Fazendo de si proprio melhor ideia que do rival, Camillo dizia comsigo: — Se ella não me dá attenção, muito menos deve importar-se com o filho de Soares. Mas porque razão se mostra commigo tão esquiva? Que motivo ha para que eu seja derrotado como qualquer pretendente vulgar? N'essas occasiões lembrava-se do desconhecido que lhe fallára na egreja e das palavras que lhe dissera. — Algum mysterio havera; dizia elle; mas como descobril-o? Indagou das pessoas da cidade quem era o sujeito baixo, de olhos miudos e vivos. ninguem lh'o soube dizer. Parecia incrivel que não chegasse a descobrir n'aquellas paragens um homem que naturalmente alguem devia conhecer; redobrou de esforços; ninguem sabia quem era o mysterioso sujeito. Entretanto Camillo frequentava fazenda do Dr. Mattos e alli ia jantar algumas vezes. Era difficil fallar a Isabel com a liberdade que permittem mais adiantados costumes; fazia entretanto o que podia para communicar á bella moça os seus sentimentos. Isabel parecia cada vez mais extranha ás communicações do rapaz. Suas maneiras não eram positivamente desdenhosas, mas frias; dissera-se que alli dentro morava um coração de neve. Ao amor desprezado, veio junctar-se o orgulho offendido, o despeito e a vergonha, e tudo isto, junto a uma epidemia que então reinava na comarca, deu com o nosso Camillo na cama, onde por agora o deixaremos, entregue aos medicos seus collegas. VI Revelação Não ha mysterios para um autor que sabe investigar todos os recantos do coração. Em quanto o povo de Santa Luzia faz mil conjecturas a respeito da causa verdadeira da isenção que até agora tem mostrado a formosa Isabel, estou habilitado para dizer ao leitor impaciente que ella ama. — E a quem ama? pergunta vivamente o leitor. Ama... uma parasita. Uma parasita? É verdade, uma parasita. Deve ser então uma flor muito linda, — um milagre de frescura e de aroma. Não, senhor, é uma parasita muito feia, um cadaver de flor, sêcco, mirrado, uma flor que devia ter sido lindissima ha muito tempo, no pe, mas que hoje na cestinha em que ella a traz, nenhum sentimento inspira, a não ser de curiosidade. Sim, porque é realmente curioso que uma moça de vinte annos, em toda a fôrça das paixões, pareça indifferente aos homens que a cercam, e concentre todos os seus affectos nos restos descorados e seccos de uma flor. Ah! mas aquella flor foi colhida em circumstâncias especiaes. Dera-se o caso alguns annos antes. Um moço da localidade gostava então muito de Isabel, porque era uma creança engraçada, e costumava chamal-a sua mulher, gracejo innocente que o tempo não sanccionou. Isabel tambem gostava do rapaz, a ponto de fazer nascer no espirito do pae da moça a seguinte ideia: — Se d'aqui a alguns annos as cousas não mudarem por parte d'ella, e se elle vier a gostar seriamente da pequena, creio que os posso casar. Isabel ígnorava completamente esta ideia do pae; mas continuava a gostar do moço, o qual continuava a achal-a uma creança interessantissima. Um dia viu Isabel uma linda parasita azul, entre os galhos de uma arvore. — Que bonita flor! disse ella. — Aposto que você a quer? — Queria, sim... disse a menina que, sem aprender, conhecia ja esse fallar obliquo e disfarçado. O moço despiu o paleto com a sem-cerimonia de quem trata com uma creança e trepou pela arvore acima. Isabel ficou embaixo offegante e anciosa pelo resultado. Não tardou que o complacente moço deitasse a mão á flor e delicadamente a colhesse. — Apanhe! disse elle de cima. Isabel aproximou-se da arvore e recolheu a flor no regaço. Contente por ter satisfeito o desejo da menina, tratou o rapaz de descer, mas tão desastradamente o fez, que no fim de dous minutos jazia no chão aos pes de Isabel. A menina deu um grito de angústia e pediu soccorro; o rapaz procurou tranquilisal-a dizendo que nada era, e tentando levantar-se alegremente. Levantou se com effeito, com a camisa salpicada de sangue; tinha ferido a cabeça. A ferida foi declarada leve; dentro de poucos dias estava o valente moço completamente restabelecido. A impressão que Isabel recebeu n'aquella occasião foi profunda. Gostava até então do rapaz; d'ahi em diante passou a adoral-o. A flor que elle lhe colhêra veio naturalmente a seccar; Isabel guardou-a como se fora uma reliquia; beijava-a todos os dias; e de certo tempo em diante até chorava sobre ella. Uma especie de culto supersticioso prendia o coração da moça áquella mirrada parasita. Não era ella porêm tão mau coração que não ficasse vivamente impressionada quando soube da doença de Camillo. Fez indagar com assiduidade do estado do moço, e cinco dias depois foi com o pae visital-o á fazenda do commendador. A simples visita da moça, se não curou o doente, deu em resultado consolal-o e animal-o; viçaram-lhe algumas esperanças, que ja estavam mais seccas e mirradas que a parasita cuja historia acima narrei. — Quem sabe se me não amará agora? pensou elle. Apenas ficou restabelecido foi o seu primeiro cuidado ir á fazenda do Dr. Mattos; o commendador quiz acompanhal-o. Não o acharam em casa; estavam apenas a irmã e a filha. A irmã era uma pobre velha, que alêm d'esse achaque, tinha mais dous: era surda e gostava de política. A occasião era boa; em quanto a tia de Isabel confiscava a pessoa e a attenção do commendador, Camillo teve tempo de dar um golpe decisivo e rapido, dirigindo á moça éstas palavras: — Agradeço-lhe a bondade que mostrou a meu respeito durante a minha molestia. Essa mesma bondade anima-me a pedir-lhe uma cousa mais... Isabel franziu a testa. — Reviveu-me uma esperança ha dias, continuou Camillo, esperança que ja estava morta. Sera illusão minha? Uma sua palavra, um gesto seu resolverá ésta dúvida. Isabel ergueu os hombros. — Não comprehendo, disse ella. — Comprehende, disse Camillo em tom amargo. Mas eu serei mais franco, se o exige. Amo-a; disse-lh'o mil vezes; não fui attendido. Agora porêm… Camillo concluiria de boa vontade este pequeno discurso, se tivesse diante de si a pessoa que elle desejava o ouvisse. Isabel, porêm, não lhe deu tempo de chegar ao fim. Sem dizer palavra, sem fazer um gesto, atravessou a extensa varanda e foi sentar-se na outra extremidade onde a velha tia punha á prova os excellentes pulmões do commendador. O desapontamento de Camillo estava alêm de toda a descripção. Pretextando um calor que não existia sahiu para tomar ar, e ora vagaroso, ora apressado, conforme triumphava n'elle a irritação ou o desânimo, o misero pretendente deixou-se ir sem destino. Construiu mil planos de vingança, ideou mil maneiras de ir lançar-se aos pes da moça, rememorou todos os factos que se haviam dado com ella, e ao cabo de uma longa hora chegou á triste conclusão de que tudo estava perdido. N'esse momento deu accordo de si: estava ao pé de um riacho que atravessava a fazenda do Dr. Mattos. O lugar era agreste e singularmente feito para a situação em que elle se achava. A uns duzentos passos viu uma cabana, onde pareceu que alguem entoava uma cantiga do sertão. Importuna cousa é a felicidade alheia quando somos víctima de algum infortunio. Camillo sentiu-se ainda mais irritado, e ingenuamente perguntou a si mesmo se alguem podia ser feliz estando elle com o coração a sangrar de desespêro. D'ahi a nada apparecia á porta da cabana um homem e sahia na direção do riacho. Camillo estremeceu; pareceu-lhe reconhecer o mysterioso que lhe fallára no dia do Espirito-Santo. Era a mesma estatura e o mesmo ar; aproximou-se rapidamente e parou a cinco passos de distancia. O homem voltou o rosto : era elle! Camillo correu ao desconhecido. — Emfim! disse elle. O desconhecido sorriu-se complacentemente e apertou a mão que Camillo lhe offerecia. — Quer descançar? perguntou-lhe. — Não, respodeu o médico. Aqui mesmo, ou mais longe se lhe apraz, mas desde ja, por favor, desejo que me explique as palavras que me disse outro dia na egreja. Novo sorriso do desconhecido. — Então? disse Camillo vendo que o homem não respondia. — Antes de mais nada, diga-me; gosta deveras da moça? — Oh! muito! — Jura que a faria feliz? — Juro! — Então ouça. O que vou contar a V. S. é verdade, porque o soube por minha mulher que foi mucama de D. Isabel. É aquella que alli está. Camillo olhou para a porta da cabana e viu uma mulatinha alta e elegante, que olhava para elle com curiosidade. — Agora, continuou o desconhecido, affastemo-nos um pouco; para que ella nos não ouça, porque eu não desejo venha a saber-se de quem V. S. ouviu ésta história. Affastaram-se com effeito costeando o riacho. O desconhecido narrou então a Camillo toda a história da parasita, e o culto que até então a moça votava á flor ja sêcca. Um leitor menos sagaz imagina que o namorado ouviu essa narração triste e abatido. Mas o leitor que souber ler adivinha logo que a confidência do desconhecido despertou na alma de Camillo os mais incriveis sobresaltos de alegria. — Aqui está o que ha, disse o desconhecido ao concluir creio que V. S. com isto pode saber em que terreno pisa. — Oh! sim! sim! disse Camillo. Sou amado! sou amado! Sabedor d'aquella novidade ardia o médico por voltar a casa, donde sahíra havia tanto tempo. Metteu a mão na algibeira, abriu a carteira e tirou uma nota de vinte mil reis. — O serviço que me acaba de prestar é immenso, disse elle; não tem preço. Isto porêm é apenas uma lembrança… Dizendo éstas palavras, estendeu-lhe a nota. O desconhecido riu-se desdenhosamente sem responder palavra. Depois, estendeu a mão á nota que Camillo lhe offerecia, e, com grande pasmo d'este, atirou-a ao riacho. O fio d'agua que ia murmurando e saltando por cima das pedras, levou comsigo o bilhete, de envolta com uma folha que o vento lhe levára tambem. — D'este modo, disse o desconhecido, nem o senhor fica devendo um obsequio, nem eu recebo a paga d'elle. Não pense que tive tenção de servir a V. S.; não. Meu desejo é fazer feliz a filha do meu bemfeitor. Sabia que ella gostava de um moço, e que esse moço era capaz de a fazer feliz; abri caminho para que elle chegue até onde ella está. Isto não se paga; agradece-se apenas. Acabando de dizer éstas palavras, o desconhecido voltou as costas ao médico, e dirigiu-se para a cabana. Camillo acompanhou com os olhos aquelle homem rustico. Pouco tempo depois estava em casa de Isabel, onde ja era esperado com alguma anciedade. Isabel viu-o entrar alegre e radiante. — Sei tudo, disse-lhe Camillo pouco antes de sahir. A moça olhou espantada para elle. — Tudo? repetiu ella. — Sei que me ama, sei que esse amor nasceu ha longos annos, quando era creança, e que ainda hoje… Foi interrompido pelo commendador que se aproximava. Isabel estava pallida e confusa; estimou a interrupção, porque não saberia que responder. No dia seguinte escreveu-lhe Camillo uma extensa carta apaixonada, invocando o amor que ella conservára no coração, e pedindo-lhe que o fizesse feliz. Dous dias esperou Camillo a resposta da moça. Veio no terceiro dia. Era breve e sêcca. Confessava que o amára durante aquelle longo tempo, e jurava não amar nunca a outro. « Apenas isso, concluia Isabel. Quanto a ser sua esposa, nunca. Eu quizera entregar a minha vida a quem tivesse um amor egual ao meu. O seu amor é de hontem; o meu é de nove annos: a differença de edade é grande de mais; não póde ser bom consorcio. Esqueça-me e adeus. » Dizer que ésta carta não fez mais do que augmentar o amor de Camillo, é escrever no papel aquillo que o leitor ja adivinhou. O coração de Camillo so esperava uma confissão escripta da moça para transpor o limite que o separava da loucura. A carta transtornou-o completamente. VII Precipitam-se os acontecimentos O commendador não perdêra a ideia de metter o filho na politica. Justamente n'esse anno havia eleição; o commendador escreveu ás principaes influências da provincia para que o rapaz entrasse na respectiva assemblea. Camillo teve notícia d'esta premeditação do pae; limitou-se a erguer os hombros, resolvido a não acceitar cousa nenhuma que não fôsse a mão de Isabel. Em vão o pae, o padre Maciel, o tenente-coronel lhe mostravam um futuro explendido e todo semeado de altas posições. Uma so posição o contentava: casar com a moça. Não era facil, de certo: a resolução de Isabel parecia inabalavel. — Ama-me, porêm, dizia o rapaz comsigo; é meio caminho andado. E como o seu amor era mais recente que o d'ella, comprehendeu Camillo que o meio de ganhar a differença da edade, era mostrar que o tinha mais violento e capaz de maiores sacrificios. Não poupou manifestações de toda a sorte. Chuvas e temporaes arrastou para ir vel-a todos os dias; fez-se escravo dos seus menores desejos. Se Isabel tivesse a curiosidade infantil de ver na mão a estrella d'alva, é muito provavel que elle achasse meio de lh'a trazer. Ao mesmo tempo cessára de a importunar com epistolas ou palavras amorosas. A última que lhe disse foi: — Esperarei! N'esta esperança andou elle muitas semanas, sem que a sua situação melhorasse sensivelmente. Alguma leitora menos exigente, ha de achar singular a resolução de Isabel, ainda depois de saber que era amada. tambem eu penso assim; mas não quero alterar o caracter da heroina, porque ella era tal qual a apresento n'estas páginas. Entendia que ser amada casualmente, pela unica razão de ter o moço voltado de París, em quanto ella gastára largos annos a lembrar-se d'elle e a viver unicamente d'essa recordação, entendia, digo eu, que isto a humilhava, e porque era immensamente orgulhosa, resolvêra não casar com elle nem com outro. Sera absurdo; mas era assim. Fatigado de assediar inutilmente o coração da moça; e por outro lado, convencido de que era necessario mostrar uma d'essas paixões invenciveis a ver se a convencia e lhe quebrava a resolução, planeou Camillo um grande golpe. Um dia de manhã desappareceu da fazenda. A princípio ninguem se abalou com a ausencia do moço, porque elle costumava dar longos passeios, quando por ventura acordava mais cedo. A cousa porêm começou a assustar á proporção que o tempo ia passando. Sahiram emissarios para todas as partes, e voltaram sem dar novas do rapaz. O pae estava atterrado; a notícia do acontecimento correu por toda a parte em dez leguas ao redor. No fim de cinco dias de infructiferas pesquizas soube-se que um moço, com todos os signaes de Camillo, fôra visto a meia legua da cidade, a cavallo. Ia so e triste. Um tropeiro asseverou depois ter visto um moço juncto de uma ribanceira, parecendo sondar com o olhar que probabilidade de morte lhe traria uma quéda. O commendador entrou a offerecer grossas quantias a quem lhe désse notícia segura do filho. Todos os seus amigos despacharam gente a investigar as matas e os campos, e n'esta inutil labutação correu uma semana. Sera necessario dizer a dor que soffreu a formosa Isabel quando lhe foram dar notícia do desapparecimento de Camillo? A primeira impressão foi apparentemente nenhuma; o rosto não revelou a tempestade que immediatamente rebentára no coração. Dez minutos depois a tempestade subiu aos olhos e transbordou n'um verdadeiro mar de lagrymas. Foi então que o pae teve conhecimento da paixão tão longo tempo incubada. Ao ver aquella explosão não duvidou que o amor da filha pudesse vir a ser-lhe funesto. Sua primeira ideia foi que o rapaz desapparecêra para fugir a um enlace indispensavel. Isabel tranquilisou-o dizendo que, pelo contrário, era ella quem se negára a acceitar o amor de Camillo. — Fui eu que o matei! exclamava a pobre moça. O bom velho não comprehendeu muito como é que uma moça apaixonada por um mancebo, e um mancebo apaixonado por uma moça, em vez de caminharem para o casamento, tratassem de se separar um do outro. Lembrou-se que o seu procedimento fôra justamente o contrario, logo que travou o primeiro namôro. No fim de uma semana foi o Dr. Mattos procurado na sua fazenda pelo nosso ja conhecido morador da cabana, que alli chegou offegante e alegre. — Está salvo! disse elle. — Salvo! exclamaram o pae e a filha. — É verdade, disse Miguel (era o nome do homem); fui encontral-o no fundo de uma ribanceira, quasi sem vida, hontem de tarde. — E porque não vieste dizer-nos?... perguntou o velho. — Porque era preciso cuidar d'elle em primeiro logar. Quando voltou a si quiz ir outra vez tentar contra os seus dias; eu e minha mulher impedimol-o de fazer tal. Está ainda um pouco fraco; por isso não veio commigo. O rosto de Isabel estava radiante. Algumas lagrymas, poucas e silenciosas, ainda lhe correram dos olhos; mas eram ja de alegria e não de magua. Miguel sahiu com a promessa de que o velho iria la [bu]scar o filho do commendador. — Agora, Isabel, disse o pae apenas ficou so com [el]la, que pretendes fazer? — O que me ordenar, meu pae! — Eu so ordenarei o que te disser o coração. Que te [di]z elle? — Diz... — O que? — Que sim. — É o que devia ter dito ha muito tempo, porque… O velho estacou. — Mas se a causa d'esle suicidio for outra? pensou [el]le. Indagarei tudo. Communicada a notícia ao commendador, não tardou [qu]e este se apresentasse em casa do Dr. Mattos, onde [po]uco depois chegou Camillo. O misero rapaz trazia [es]cripta no rosto a dor de haver escapado á morte [tr]agica que procurára; pelo menos, assim o disse muitas [ve]zes em caminho, ao pae de Isabel. — Mas a causa d'essa resolução? perguntou-lhe [o] doutor. — A causa... balbuciou Camillo que espreitava a [pe]rgunta; não ouso confessal-a... — É vergonhosa? perguntou o velho com um sorriso [be]nevolo. — Oh! não!... — Mas que causa é? — Perdoa-me, se eu lh'a disser? — Porque não? — Não, não ouso... disse resolutamente Camillo. — É inutil, porque eu ja sei. — Ah! — E perdôo a causa, mas não lhe perdôo a resolução; o senhor fez uma cousa de criança. — Mas ella despresa-me! — Não... ama-o! Camillo fez aqui um gesto de sorpresa perfeitamente imitado, e acompanhou o velho até a casa, onde encontrou o pae, que não sabia se devia mostrar-se severo ou satisfeito Camillo comprehendeu logo ao entrar o effeito que o seu desastre causára no coração de Isabel. — Ora pois! disse o pae da moça. Agora que o resuscitamos é preciso prendêl-o á vida com uma cadeia forte. E sem esperar a formalidade do costume nem attender ás etiquetas normaes da sociedade, o pae de Isabel deu ao commendador a novidade de que era indispensavel casar os filhos. O commendador ainda não voltára a si da surpresa de ter encontrado o filho, quando ouviu esta notícia; e se toda a tribu dos Chavantes viesse cahir em cima d'elle armada de arco e flexa não sentiría espanto maior. Olhou alternadamente para todos os circumstantes como se lhes pedisse a razão de um facto alias mui natural. Afinal explicaram-lhe a paixão de Camillo e Isabel, causa unica do suicidio meio executado pelo filho. O commendador approvou a escolha do rapaz, e levou a sua galanteria a dizer que no caso d'elle teria feito o mesmo, se não contasse com a vontade da moça. — Serei [enfi]m digno do seu amor? perguntou o médico a Isabel quando se achou so com ella. — Oh! sim!... disse ella. Se morresse, eu morreria tambem! Camillo apressou-se a dizer que a Providencia velára por elle; e não se soube nunca o que é que elle chamava Providencia. Não tardou que o desenlace do episodio tragico fosse publicado na cidade e seus arredores. Apenas Leandro Soares soube do casamento projectado entre Isabel e Camillo ficou litteralmente fóra de si. Mil projectos lhe acudiram á mente, cada qual mais sanguinario: em sua opinião eram dous perfidos que o haviam trahido; cumpria tirar uma solemne desforra de ambos. Nenhum despota sonhou nunca mais terriveis supplicios do que os que Leandro Soares engendrou na sua escaldada imaginação. Dous dias e duas noites passou o pobre namorado em conjecturas estereis. No terceiro dia resolveu ir simplesmente procurar o venturoso rival, lançar-lhe em rosto a sua vilania e assassinal-o depois. Muniu-se de uma faca e partiu. Sahia da fazenda o feliz noivo, descuidado da sorte que o esperava. Sua imaginação ideava agora uma vida cheia de bemaventuranças e deleites celestes; a imagem da moça dava a tudo o que o rodeava uma côr poetica. Ia todo engolfado n'estes devaneios quando viu em frente de si o preterido rival. Esquecera-se d'elle no meio da sua felicidade; comprehendeu o perigo e preparou-se para elle. Leandro Soares fiel ao programma que se havia imposto desfiou um rosario de improperios que o médico ouviu calado. Quando Soares acabou e ia dar á pratica o ponto final sanguinolento, Camillo respondeu: — Attendi a tudo o que me disse; peço-lhe agora que me ouça. É verdade que vou casar com essa moça; mas tambem é verdade que ella o não ama. Qual é o nosso crime n'este caso? Ora, ao passo que o senhor nutre a meu respeito sentimentos de odio, eu pensava na sua felicidade. — Ah! disse Soares com ironia. — É verdade. Disse commigo que um homem das suas aptidões não devia estar eternamente dedicado a servir de degrau aos outros; e então, como meu pai quer á força fazer-me deputado provincial, disse-lhe que acceitava o lugar para o dar ao senhor. Meu pai concordou; mas eu tive de vencer resistencias políticas e ainda agora trato de quebrar algumas. Um homem que assim procede creio que lhe merece alguma estima, — pelo menos não lhe merece tanto odio. Não creio que a lingua humana possua palavras assaz energicas para pintar a indignação que se manifestou no rosto de Leandro Soares. O sangue subiu-lhe todo ás faces, em quanto os olhos pareciam despedir chispas de fogo. Os labios tremulos como que ensaiavam baixinho uma imprecação eloquente contra o feliz rival. Emfim, o pretendente infeliz rompeu n’estes termos: — A acção que o senhor praticou era ja bastante infame; não precisava juntar-lhe o escarneo… — O escarneo! interrompeu Camillo. — Que outro nome darei eu ao que me acaba de dizer? Grande estima, na verdade, é a sua, que depois de me roubar a maior, a unica felicidade, que eu podia ter, vem offerecer-me uma compensação política! Camillo conseguiu explicar que não lhe offerecia nenhuma compensação; pensára n’aquillo por conhecer as tendencias políticas de Soares e julgar que d’este modo lhe sería agradavel. — Ao mesmo tempo, concluiu gravemente noivo, fui levado pela idéa de prestar um serviço á provincia. Creia que em nenhum caso, ainda que me devesse custar a vida, proporia cousa desvantajosa á provincia e ao paiz. Eu cuidava servir a ambos apresentando a sua candidatura, e póde crer que a minha opinião sera a de todos. — Mas o senhor fallou de resistencias… disse Soares cravando no adversario um olhas inquisitorial. — Resistencias, não por opposição pessoal, mas por conveniencias políticas, explicou Camillo. Que vale isso? Tudo se desfaz com a razão e os verdadeiros principios do partido que tem a honra de o possuir entre seus membros, Leandro Soares não tirava os olhos de Camillo; nos labios pairava-lhe agora um sorriso ironico e cheio de ameaças. Contemplou-o ainda alguns instantes sem dizer palavra, até que de novo rompeu o silêncio. — Que faria o senhor no meu caso? perguntou elle dando ao seu ironico sorriso um ar verdadeiramente lugubre. — Eu recusava, respondeu affoutamente Camillo. — Ah! — Sim, recusava, porque não tenho vocação política. Não acontece o mesmo com o senhor, que a tem, e é por assim dizer o apoio do partido em toda ésta comarca. — Tenho essa convicção, disse Soares com orgulho. — Não é o unico: todos lhe fazem justiça. Soares entrou a passear de um lado para outro. Esvoaçavam-lhe na mente terriveis inspirações, ou a humanidade reclamava alguma moderação no genero de morte que daria ao rival? Decorreram cinco minutos. Ao cabo d’elles, Soares parou em frente de Camillo e ex-abrupto lhe perguntou: — Jura-me uma cousa? — O que? — Que a fara feliz? — Ja o jurei a mim mesmo: é o meu mais doce dever. — Sería meu esse dever se a sorte se não houvesse pronunciado contra mim: não importa; estou disposto a tudo. — Creia que eu sei avaliar o seu grande coração, disse Camillo estendendo-lhe a mão. — Talvez. O que não sabe, o que não conhece, é a tempestade que me fica na alma, a dor immensa que me ha de acompanhar até á morte. Amores d'estes vão até á sepultura. Parou e sacudiu a cabeça, como para expellir uma ideia sinistra. — Que pensamento é o seu? perguntou Camillo vendo o gesto de Soares. — Descance, respondeu este; não tenho projecto nenhum. Resignar-me-hei á sorte: e se acceito essa candidatura política que me offerece é unicamente para affogar n'ella a dôr que me abafa o coração. Não sei se este remedio eleitoral servirá para todos os casos de doença amorosa. No coração de Soares produziu uma crise salutar, que se resolveu em favor do doente. Os leitores adivinham bem que Camillo nada havia dito em favor de Soares; mas empenhou-se logo n'esse sentido, e o pae com elle, e afinal conseguiu-se que Leandro Soares fosse incluido n'uma chapa e apresentado aos eleitores na proxima campanha. Os adversarios do rapaz, sabedores das circumstâncias em que lhe foi offerecida a candidatura, não deixaram de dizer em todos os tons, que elle vendêra o direito de primogenitura por um prato de lentilhas. Havia ja um anno que o filho do commendador estava casado, quando appareceu na sua fazenda um viajante francez. Levava cartas de recomendação de um dos seus professores de París. Camillo recebeu-o alegremente e pediu-lhe notícias da França, que elle ainda amava, dizia, como a sua patria intellectual. O viajante disse-lhe muitas cousas, e saccou por fim da mala um maço de jornaes. Era o Figaro. — O Figaro! exclamou Camillo lançando-se aos jornaes. Eram atrazados, mas eram parisienses. Lembravam-lhe a vida que elle tivera durante longos annos, e posto nenhum desejo sentisse de trocar por ella a vida actual, havia sempre uma natural curiosidade em despertar recordações de outro tempo. No quarto ou quinto numero que abriu deparou-se-lhe uma notícia que elle leu com espanto. Dizia assim: » Uma celebre Leontina Caveau, que se dizia viuva de um tal principe Alexis, subdito do tzar, foi hontem recolhida á prisão. A bella dama (era bella!) não contente de illudir alguns moços incautos, alapardou-se com todas as joias de uma sua vizinha, M[...] B... A roubada queixou-se a tempo de impedir a fuga da pretendida princeza. » Camillo acabava de ler pela quarta vez ésta notícia, quando Isabel entrou na sala. — Estás com saudades de París? perguntou ella vendo-o tão attento a ler o jornal francez. — Não, disse o marido, passando-lhe o braço á roda da cintura; estava com saudades de ti. FIM DA PARASITA AZUL. AS BODAS DE LUIZ DUARTE Na manhã de um sabbado, 25 de abril, andava tudo em alvoroço em casa de José Lemos. Preparava-se o apparelho de jantar dos dias de festa, lavavam-se as escadas e os corredores, enchiam-se os leitões e os perús para serem assados no forno da padaria de fronte; tudo era movimento; alguma cousa grande ia acontecer n'esse dia. O arranjo da sala ficou a cargo de José Lemos. O respeitavel dono da casa, trepado n'um banco, tratava de pregar á parede duas gravuras compradas na vespera em casa do Bernasconi; uma representava a Morte de Sardanapalo; outra a Execução de Maria Stuart. Houve alguma lucta entre elle e a mulher a respeito da collocação da primeira gravura. D. Beatriz achou que era indecente um grupo de homem abraçado com tantas mulheres. Alêm d'isso, não lhe pareciam proprios dous quadros funebres em dia de festa. José Lemos que tinha sido membro de uma sociedade litteraria, quando era rapaz, respondeu triumphantemente que os dous quadros eram historicos, e que a história está bem em todas as familias. Podia accrescentar que nem todas as familias estão bem na história; mas este trocadilho era mais lugubre que os quadros. D. Beatriz, com as chaves na mão, mas sem a melena desgrenhada do soneto de Tolentino, andava litteralmente da sala para a cozinha, dando ordens, apressando as escravas, tirando toalhas e guardanapos lavados e mandando fazer compras, em summa, occupada nas mil cousas que estão a cargo de uma dona de casa, maxime n'um dia de tanta magnitude. De quando em quando, chegava D. Beatriz á escada que ia ter ao segundo andar, e gritava: — Meninas, venham almoçar. Mas parece que as meninas não tinham pressa, porque so depois das nove horas acudiram ao oitavo chamado da mãe, ja disposta a subir ao quarto das pequenas, o que era verdadeiro sacrificio da parte de uma senhora tão gorda. Eram duas moreninhas de truz as filhas do casal Lemos. Uma representava ter vinte annos, outra dezesete; ambas eram altas e um tanto refeitas. A mais velha estava um pouco pallida; a outra, coradinha e alegre, desceu cantando não sei que romance do Alcazar, então em moda. Parecia que das duas a mais feliz sería a que cantava; não era; a mais feliz era a outra que n'esse dia devia ligar-se pelos laços matrimoniaes ao joven Luiz Duarte, com quem nutríra longo e porfiado namôro. Estava pallida por ter tido uma insomnia terrivel, doença de que até então não padecêra nunca. Ha doenças assim. Desceram as duas pequenas, tomaram a benção á mãe, que lhes fez um rapido discurso de reprehensão e foram á sala para fallar ao pae. José Lemos, que pela setima vez trocava a posição dos quadros, consultou as filhas sôbre se era melhor que a Stuart ficasse do lado do sofá ou do lado opposto. As meninas disseram que era melhor deixal-a onde estava, e ésta opinião poz termo ás dúvidas de José Lemos que deu por concluida a tarefa e foi almoçar. Alêm de José Lemos, sua mulher D. Beatriz, Carlota (a noiva) e Luiza, estavam á meza Rodrigo Lemos e o menino Antonico, filhos tambem do casal Lemos. Rodrigo tinha dezoito annos e Antonico seis; o Antonico era à miniatura do Rodrigo; distinguiam-se ambos por uma notavel preguiça, e n'isso eram perfeitamente irmãos. Rodrigo desde as oito horas da manhã gastou o tempo em duas cousas: ler os annuncios do Jornal e ir á cozinha saber em que altura estava o almoço. Quanto ao Antonico, tinha comido ás seis horas um bom prato de mingau, na fórma do costume, e so se occupou em dormir tranquillamente até que a mucama o foi chamar. O almôço correu sem novidade. José Lemos era homem que comia calado; Rodrigo contou o enrêdo da comedia que víra na noite antecedente no Gymnasio; e não se fallou em outra cousa durante o almôço. Quando este acabou, Rodrigo levantou-se para ir fumar; e José Lemos encostando os braços na mesa perguntou se o tempo ameaçava chuva. Effectivamente o ceu estava sombrio, e a Tijuca não apresentava bom aspecto. Quando o Antonico ia levantar-se, impetrada a licença, ouviu da mãe este aviso: — Olha la, Antonico, não faças logo ao jantar o que fazes sempre que ha gente de fóra. — O que é que elle faz? perguntou José Lemos. — Fica envergonhado e mette o dedo no nariz. So os meninos tolos é que fazem isto: eu não quero semelhante cousa. O Antonico ficou envergonhado com a reprimenda e foi para a sala lavado em lagrymas. D. Beatriz correu logo atraz para acalentar o seu Benjamim, e todos os mais se levantaram da mesa. José Lemos indagou da mulher se não faltava nenhum convite, e depois de certificar-se que estavam convidados todos os que deviam assistir á festa, foi vestir-se para sahir. Immediatamente foi incumbido de várias cousas: recommendar ao cabelleireiro que viesse cedo, comprar luvas para a mulher e as filhas, avisar de novo os carros, encommendar os sorvetes e os vinhos, e outras cousas mais em que poderia ser ajudado pelo joven Rodrigo, se este homonymo do Cid não tivesse ido dormir para descançar o almôço. Apenas José Lemos poz a sola dos sapatos em contacto com as pedras da rua, D. Beatriz disse a sua filha Carlota que a acompanhasse á sala, e apenas alli chegaram ambas, proferiu a boa senhora o seguinte speech: — Minha filha, hoje termina a tua vida de solteira, e amanhã começa a tua vida de casada. Eu, que ja passei pela mesma transformação, sei praticamente que o caracter de uma senhora casada traz comsigo responsabilidades gravissimas. Bom é que cada qual aprenda á sua custa; mas eu sigo n'isto o exemplo de tua avó, que na vespera da minha união com teu pae, expoz em linguagem clara e simples a significação do casamento e a alta responsabilidade d'essa nova posição… D. Beatriz estacou; Carlota que atribuiu o silêncio da mãe ao desejo de obter uma resposta, não achou melhor palavra do que um beijo amorosamente filial. Entretanto, se a noiva de Luiz Duarte tivesse espiado tres dias antes pela fechadura do gabinete de seu pae, adivinharia que D. Beatriz recitava um discurso composto por José Lemos, e que o silêncio era simplesmente um eclipse de memoria. Melhor fôra que D. Beatriz, como as outras mães, tirasse alguns conselhos do seu coração e da sua experiencia. O amor materno é a melhor rhetorica d'este mundo. Mas o Sr. José Lemos, que conservára desde a juventude um sestro litterario, achou que fazia mal expondo a cara metade a alguns erros grammaticaes n'uma occasião tão solemne. Continuou D. Beatriz o seu discurso, que não foi longo, e terminou perguntando se realmente Carlota amava o noivo, e se aquelle casamento não era, como podia acontecer, um resultado de despeito. A moça respondeu que amava ao noivo tanto como a seus paes. A mãe acabou beijando a filha com ternura, não estudada na prosa de José Lemos. Pelas duas horas da tarde voltou este, suando em bica, mas satisfeito de si, porque alêm de ter dado conta de todas as incumbencias da mulher, relativas aos carros, cabelleireiro, etc., conseguiu que o tenente Porfirio fosse la jantar, cousa que até então estava duvidosa. O tenente Porfirio era o typo do orador de sobremesa; possuia o entono, a facilidade, a graça, todas as condições necessarias a esse mister. A posse de tão bellos talentos proporcionava ao tenente Porfirio alguns lucros de valor; raro domingo ou dia de festa jantava em casa. Convidava-se o tenente Porfirio com a condição tacita de fazer um discurso, como se convida um musico para tocar alguma cousa. O tenente Porfirio estava entre o creme e o cafe; e não se cuide que era acepipe gratuito; o bom homem, se bem fallava, melhor comia. De maneira que, bem pesadas as cousas, o discurso valia o jantar. Foi grande assumpto de debate nos tres dias anteriores ao dia das bodas, se o jantar devia preceder a cerimonia ou vice-versa. O pae da noiva inclinava-se a que o casamento fôsse celebrado depois do jantar, e n'isto era apoiado pelo joven Rodrigo, que com uma sagacidade digna de estadista, percebeu que, no caso contrário, o jantar sería muito tarde. Prevaleceu entretanto a opinião de D. Beatriz que achou exquisito ir para a egreja com a barriga cheia. Nenhuma razão theologica ou disciplinar se oppunha a isso, mas a esposa de José de Lemos tinha opiniões especiaes em assumpto de egreja. Venceu a sua opinião. Pelas quatro horas começaram a chegar convidados. Os primeiros foram os Villelas, familia composta de Justiniano Villela, chefe de secção aposentado, D. Margarida, sua esposa, e D. Augusta, sobrinha de ambos. A cabeça de Justiniano Villela, — se se póde chamar cabeça a uma jaca mettida n'uma gravata de cinco voltas, — era um exemplo da prodigalidade da natureza quando quer fazer cabeças grandes. Affirmavam, porêm, algumas pessoas que o talento não correspondia ao tamanho; posto que tivesse corrido algum tempo o boato contrário. Não sei de que talento fallavam essas pessoas; e a palavra póde ter várias applicações. O certo é que um talento teve Justiniano Villela, foi a escolha da mulher, senhora que, apesar dos seus quarenta e seis annos bem puchados, ainda merecia, no entender de José Lemos, dez minutos de attenção. Trajava Justiniano Villela como é de uso em taes reuniões; e a unica cousa verdadeiramente digna de nota eram os seus sapatos inglezes de apertar no peito do pe por meio de cordões. Ora, como o marido de D. Margarida, tinha horror ás calças compridas, aconteceu que apenas se sentou deixou patente a alvura de um fino e immaculado par de meias. Alêm do ordenado com que foi aposentado, tinha Justiniano Villela uma casa e dous molecotes, e com isso ia vivendo menos mal. Não gostava de política; mas tinha opiniões assentadas a respeito dos negocios publicos. Jogava o solo e o gamão todos os dias, alternadamente; gabava as cousas do seu tempo; e tomava rapé com o dedo polegar e o dedo medio. Outros convidados foram chegando, mas em pequena quantidade, porque á cerimonia e ao jantar so devia assistir um pequeno número de pessoas íntimas. Ás quatro horas e meia chegou o padrinho, Dr. Valença, e a madrinha, sua irmã viuva D. Virginia. José Lemos correu a abraçar o Dr. Valença; mas este que era homem formalista e ceremonioso, repelliu brandamente o amigo, dizendo-lhe ao ouvido que n'aquelle dia toda a gravidade era pouca. Depois, com uma serenidade que so elle possuia, entrou o Dr. Valença e foi comprimentar a dona da casa e as outras senhoras. Era elle homem de seus cincoenta annos, nem gordo nem magro, mas dotado de um largo peito e um largo abdomen que lhe davam maior gravidade ao rosto e ás maneiras. O abdomen é a expressão mais positiva da gravidade humana; um homem magro tem necessariamente os movimentos rapidos; ao passo que para ser completamente grave precisa ter os movimentos tardos e medidos. Um homem verdadeiramente grave não póde gastar menos de dous minutos em tirar o lenço e assoar-se. O Dr. Valença gastava tres quando estava com defluxo e quatro no estado normal. Era um homem gravissimo. Insisto n'este ponto porque é a maior prova da intelligencia do Dr. Valença. Comprehendeu este advogado, logo que sahiu da academia, que a primeira condição para merecer a consideração dos outros era ser grave; e indagando o que era gravidade pareceu-lhe que não era nem o pêso da reflexão, nem a seriedade do espirito, mas unicamente certo mysterio do corpo, como lhe chama Larochefoucault; o qual mysterio accrescentará o leitor, é como a bandeira dos neutros em tempo de guerra: salva do exame a carga que cobre. Podia-se dar uma boa gratificação a quem descobrisse uma ruga na casaca do Dr. Valença. O collete tinha apenas tres botões e abria-se até ao pescoço em fórma de coração. Um elegante claque completava a toilette do Dr. Valença. Não era elle bonito de feições no sentido afeminado que alguns dão á belleza masculina; mas não deixava de ter certa correcção nas linhas do rosto, o qual se cobria de um veu de serenidade que lhe ficava a matar. Depois da entrada dos padrinhos, José Lemos perguntou pelo noivo, e o Dr. Valença respondeu que não sabia d'elle. Eram ja cinco horas. Os convidados, que cuidavam ter chegado tarde para a ceremonia, ficaram desagradavelmente sorprehendidos com a demora, e Justiniano Villela confessou ao ouvido da mulher que estava arrependido de não ter comido alguma cousa antes. Era justamente o que estava fazendo o joven Rodrigo Lemos, desde que percebeu que o jantar viria la para as sete horas. A irmã do Dr. Valença de quem não faltei detidamente por ser uma das figuras insignificantes que jamais produziu a raça de Eva, apenas entrou manifestou logo o desejo de ir ver a noiva, e D. Beatriz sahiu com ella da sala, deixando plena liberdade ao marido que encectava uma conversação com a interessante esposa do Sr. Villela. — Os noivos de hoje não se apressam, disse philosophicamente Justiniano; quando eu me casei fui o primeiro que appareceu em casa da noiva. A ésta observação, toda filha do estomago implacavel do ex-chefe de secção, o Dr. Valença respondeu dizendo: — Comprehendo a demora e a commoção de apparecer diante da noiva. Todos sorriram ouvindo ésta defeza do noivo ausente e a conversa tomou certa animação. Justamente, no momento em que Villela discutia com o Dr. Valença as vantagens do tempo antigo sôbro o tempo actual, e as moças conversavam entre si do último córte dos vestidos, entrou na sala a noiva, escoltada pela mãe e pela madrinha, vindo logo na retaguarda a interessante Luiza, acompanhada do joven Antonico. Eu não seria narrador exacto nem de bom gosto se não dissesse que houve na sala um murmúrio de admiração. Carlota estava effectivamente deslumbrante com o seu vestido branco, e a sua grinalda de flores de larangeira, e o seu finissimo veu, sem outra joia mais que os seus olhos negros, verdadeiros diamantes da melhor agua. José Lemos interrompeu a conversa em que estava com a esposa de Justiniano, e contemplou a filha. Foi a noiva apresentada aos convidados, e conduzida para o sopha, onde se sentou entre a madrinha e o padrinho. Este, pondo o claque em pe sôbre a perna, e sôbre o claque a mão apertada n'uma luva de tres mil e quinhentos, disse á afilhada palavras de louvor que a moça ouviu corando e sorrindo, alliança amavel de vaidade e modestia. Ouviram-se passos na escada, e ja o Sr. José Lemos esperava ver entrar o futuro genro, quando assomou á porta o grupo dos irmãos Valladares. D'estes dois irmãos, o mais velho, que se chamava Callisto, era um homem amarello, nariz aquilino, cabellos castanhos e olhos redondos. Chamava-se o mais moço Eduardo, e so differençava do irmão na côr, que era vermelha. Eram ambos empregados n'uma Companhia, e estavam na flor dos quarenta para cima. Outra differença havia: era que Eduardo cultivava a poesia quando as cifras lh'o permittiam, ao passo que o irmão era inimigo de tudo o que cheirava a litteratura. Passava o tempo, e nem o noivo, nem o tenente Porfirio davam signaes de si. O noivo era essencial para o casamento, e o tenente para o jantar. Eram cinco e meia quando appareceu finalmente Luiz Duarte. Houve um Gloria in excelsis Deo no interior de todos os convidados. Luiz Duarte appareceu á porta da sala, e d'ahi mesmo fez uma cortezia geral, cheia de graça e tão ceremoniosa que o padrinho lh'a invejou. Era um rapaz de vinte e cinco annos, tez mui alva, bigode louro e sem barba nenhuma. Trazia o cabello apartado no centro da cabeça. Os labios eram tão rubros que um dos Valladares disse ao ouvido do outro: Parece que os tingiu. Em summa, Luiz Duarte era uma figura capaz de agradar a uma moça de vinte annos, e eu não teria grande repugnancia em chamar-lhe um Adonis, se elle realmente o fosse. Mas não era. Dada a hora, sahiram os noivos, os paes e os padrinhos, e foram á egreja, que ficava perto; os outros convidados ficaram em casa, fazendo as honras d'ella a menina Luiza e o joven Rodrigo, a quem o pae foi chamar, e que appareceu logo trajado no rigor da moda. — É um par de pombos, disse a Sra. D. Margarida Villela, apenas sahiu a comitiva. — É verdade! disseram em coro os dois irmãos Valladares e Justiniano Villela. A menina Luiza, que era alegre por natureza, alegrou a situação, conversando com as outras moças, uma das quaes, a convite seu, foi tocar alguma cousa ao piano. Calisto Valladares suspeitava que houvesse uma omissão nas Escripturas, e vinha a ser que entre as pragas do Egypto devia ter figurado o piano. Imagine o leitor com que cara viu elle sahir uma das moças do seu logar e dirigir-se ao fatal instrumento. Soltou um longo suspiro e começou a contemplar as duas gravuras compradas na vespera. — Que magnifico é isto! exclamou elle diante do Sardanapalo, quadro que elle achava detestavel. — Foi papae quem escolheu, disse Rodrigo, e foi essa a primeira palavra que pronunciou desde que entrou na sala. — Pois, senhor, tem bom gosto, continuou Calisto; não sei se conhecem o assumpto do quadro... — O assumpto é Sardanapalo, disse affoitamente Rodrigo. — Bem sei, retrucou Calisto, estimando que a conversa pegasse; mas eu pergunto se… Não pôde acabar; soaram os primeiros compassos. Eduardo, que na sua qualidade de poeta, devia amar a musica, approximou-se do piano e inclinou-se sôbre elle na posição melancholica de um homem que conversa com as musas. Quanto ao irmão, não tendo podido evitar a cascata de notas, foi sentar-se ao pe de Villela, com quem travou conversa, começando por perguntar que horas eram no relogio d'elle. Era tocar na tecla mais preciosa do ex-chefe de secção. — É ja tarde, disse este com voz fraca; olhe, seis horas. — Não podem tardar muito. — Eu sei! A ceremonia é longa, e talvez não achem o padre... Os casamentos deviam fazer-se em casa e de noite. — É a minha opinião. A moça terminou o que estava tocando; Calisto suspirou. Eduardo, que estava encostado ao piano, comprimentou a executante com enthusiasmo. — Porque não toca mais alguma cousa? disse elle. — É verdade, Mariquinhas, toca alguma cousa da Somnambula, disse Luiza obrigando a amiga a sentar-se. — Sim! a Somn… Eduardo não pôde acabar; viu em frente os dous olhos reprehensivos do irmão e fez uma careta. Interromper uma phrase e fazer uma careta podia ser indicio de um callo. Todos assim pensaram, excepto Villela, que, julgando os outros por si, ficou convencido de que algum grito agudo do estomago tinha interrompido a voz de Eduardo. E, como acontece ás vezes, a dor alheia despertou a propria, de maneira que o estomago de Villela formulou um verdadeiro ultimatum, ao qual o homem cedeu, aproveitando a intimidade que tinha na casa e indo ao interior sob pretexto de dar exercício ás pernas. Foi uma felicidade. A mesa, que ja tinha em cima de si alguns acepipes convidativos, appareceu como uma verdadeira fonte de Moyses aos olhos do ex-chefe de secção. Dous pastelinhos e uma croquette foram os parlamentares que Villela mandou ao estomago rebellado e com os quaes aquella viscera se conformou. No entanto D. Mariquinhas fazia maravilhas ao piano; Eduardo encostado á janella parecia meditar um suicidio, ao passo que o irmão brincando com a corrente do relogio ouvia umas confidências de D. Margarida a respeito do mau serviço dos escravos. Quanto a Rodrigo, passeava de um lado para outro, dizendo de vez em quando em voz alta: — Ja tardam! Eram seis horas e um quarto; nada de carros; algumas pessoas ja estavam impacientes. Ás seís e vinte minutos ouviu-se um rumor de rodas; Rodrigo correu á janella: era um tilbury. Ás seis e vinte e cinco minutos todos suppozeram ouvir o rumor dos carros. — É agora, exclamou uma voz. Não era nada. Pareceu-lhes ouvir por um effeito (desculpem a audacia com que eu caso este substantivo a este adjectivo) por um effeito de miragem auricular. Ás seis horas e trinta e oito minutos appareceram os carros. Grande alvoroço na sala; as senhoras correram ás janellas. Os homens olharam uns para os outros como conjurados que medem as suas forças para uma grande empreza. Toda a comitiva entrou. As escravas da casa, que espreitavam do corredor a entrada dos noivos, causaram uma verdadeira surpreza á sinhá moça deitando-lhe sobre a cabeça um dilúvio de folhas de rosa. Comprimentos e beijos, houve tudo quanto se faz em taes occasiões. O sr. José Lemos estava contentissimo, mas cahiu-lhe água na fervura quando soube que o tenente Porfirio não tinha chegado. — E preciso mandal-o chamar. — A esta hora! murmurou Callisto Valladares. — Sem o Porfirio não ha festa completa, disse o sr. José Lemos confidencialmente ao Dr. Valença. — Papae, disse Rodrigo, eu creio que elle não vem. — É impossivel! — São quasi sete horas. — E o jantar ja nos espera, accrescentou D. Beatriz. O voto de D. Beatriz pesava muito no ânimo de José Lemos; por isso não insistiu. Não houve remedio senão sacrificar o tenente. Mas o tenente era o homem das situações difficeis, o salvador dos lances arriscados. Mal acabava D. Beatriz de fallar, e José Lemos de assentir mentalmente á opinião da mulher, ouviu-se na escada a voz do tenente Porfirio. O dono da casa soltou um suspiro de allivio e satisfação. Entrou na sala o longamente esperado conviva. Pertencia o tenente a essa classe feliz de homens que não tem edade; uns lhe davam 30 annos, outros 35 e outros 40; alguns chegavam até os 45, e tanto esses como os outros podiam ter egualmente razão. A todas as hypotheses se prestavam a cara e as suissas castanhas do tenente. Era elle magro e de estatura meã; vestia com certa graça, e, comparado com um boneco não havia grande differença. A única cousa que destoava um pouco era o modo de pisar; o tenente Porfirio pisava para fora atai ponto, que da ponta do pe esquerdo á ponta do pe, direito, quasi se podia traçar uma linha recta. Mas como tudo tem compensação, usava elle sapatos razos de verniz, mostrando um fino par de meias de fio de Escossia mais lisas que a superfície de uma bola de bilhar. Entrou com a graça que lhe era peculiar. Para comprimentar os noivos arredondou o braço direito, poz a mão atraz das costas segurando o chapéu, e curvou profundamente o busto, ficando em posição que fazia lembrar (de longe!) os antigos lampeões das nossas ruas. Porfirio tinha sido tenente do exercito, e dera baixa, com o que andou perfeitamente, porque entrou no commercio de trastes e ja possuia algum pecúlio. Não era bonito, mas algumas senhoras affirmavam que apezar d'isso era mais perigoso que um lata de nitro-glycerina. Naturalmente não devia essa qualidade á graça da linguagem, pois fallava sibilando muito a letra s; dizia sempre: Asss minhasss botasss… Quando Porfirio acabou os comprimentos, disse-lhe o dono da casa : — Ja sei que hoje temos cousa boa! — Qual! respondeu elle com uma modéstia exemplar; quem ousará levantar a voz diante de illustrações? Porfirio disse éstas palavras pondo os quatro dedos da mão esquerda no bolso do collete, gesto que elle praticava por não saber onde havia de pôr aquelle fatal braço, obstaculo dos actores novéis. — Mas porque veiu tarde? perguntou D. Beatriz. — Condemne-me, minha senhora, mas poupe-me a vergonha de explicar uma demora que não tem attenuante no código da amizade e da polidez. José Lemos sorriu olhando para todos e como se d'estas palavras do tenente lhe resultasse alguma gloria para elle. Mas Justiniano Villela que, apezar dos pastelinhos, sentia-se impellido para a mesa, exclamou velhacamente: — Felizmente chegou á hora de jantar! — É verdade; vamos para a mesa, disse José Lemos dando o braço a D. Margarida e a D. Virgínia. Seguiram-se os mais em procissão. Não ha mais júbilo nos peregrinos da Meca do que houve nos convivas ao avistarem uma longa mesa, profusamente servida, alastrada de procelanas e cristaes, assados, doces e frutas. Sentaram-se em boa ordem. Durante alguns minutos houve aquelle silêncio que precede a batalha, e so no fim della, começou a geral conversação. — Quem diria ha um anno, quando eu aqui apresentei o nosso Duarte que elle seria hoje noivo d'esta interessante D. Carlota? disse o Dr. Valença limpando os lábios com o guardanapo, e lançando um benevolo olhar para a noiva. — É verdade! disse Beatriz. — Parece dedo da Providencia, opinou a mulher de Villela. — Parece, e é, disse D. Beatriz. — Se é o dedo da Providencia, acudiu o noivo, agradeço aos céus o interesse que toma por mim. Sorriu D. Carlota, e José Lemos achou o dito de bom gosto e digno de um genro. — Providencia ou acaso? perguntou o tenente. Eu sou mais pelo acaso. — Vae mal, disse Villela que, pela primeira vez levantara a cabeça do prato; isso que o senhor chama acaso não é senão a Providencia. O casamento e a mortalha no ceu se talha. — Ah! o senhor acredita nos provérbios? — É a sabedoria das nações, disse José Lemos. — Não, insistiu o tenente Porfirio. Repare que para cada proverbio affirmando uma cousa, ha outro proverbio affirmando a cousa contrária. Os provérbios mentem. Eu creio que foi simplesmente um felicíssimo acaso, ou antes uma lei de attracção das almas que fez com que o Sr. Luiz Duarte se aproximasse da interessante filha do nosso amphytrião. José Lemos ignorava até aquella data se era amphytrião; mas considerou que da parte de Porfirio não podia vir cousa má. Agradeceu sorrindo o que lhe pareceu comprimento, em quanto se servia da gelatina, que Justiniano Villela dizia estar excellente. As moças conversavam baixinho e sorrindo; os noivos estavam embebidos com a troca de palavras amorosas, ao passo que Rodrigo palitava os dentes com tal ruido, que a mãe não pôde deixar de lhe lançar um d'esses olhares fulminantes que eram as suas melhores armas. — Quer gelatina, Sr. Callisto? perguntou José Lemos com a colher no ar. — Um pouco, disse o homem de cara amarella. — A gelatina é excellente! disse pela terceira vez o marido de D. Margarida, e tão envergonhada ficou a mulher com estas palavras do homem que não pôde reter um gesto de desgosto. — Meus senhores, disse o padrinho, eu bebo aos noivos. — Bravo! disse uma voz. — So isso? perguntou Rodrigo; deseja-se uma saúde historiada. — Mamãe! eu quero gelatina! disse o menino Antonico. — Eu não sei fazer discursos; bebo simplesmente á saúde dos noivos. Todos beberam á saúde dos noivos. — Quero gelatina! insistiu o filho de José Lemos. D. Beatriz sentiu Ímpetos de Medea; o respeito aos convidados impediu que alli houvesse uma scena grave. A boa senhora limitou-se a dizer a um dos serventes: — Leva isto a nhonhô… O Antonico recebeu o prato, e entrou a comer como comem as crianças quando não tem vontade: levava uma colherada à boca e demorava-se tempo infinito rolando o conteúdo da colher entre a lingua e o paladar,ao passo que a colher, empurrada por um lado formava na bochecha direita uma pequena elevação. Ao mesmo tempo agitava o pequeno as pernas de maneira que batia alternadamente na cadeira e na mesa. Emquanto se davam estes incidentes, em que ninguem realmente reparava, a conversa continuava seu caminho. O Dr. Valença discutia com uma senhora a excellencia do vinho Xerez, e Eduardo Valladares, recitava uma décima á moça que lhe ficava ao pe. De repente levantou-se José Lemos. — Sio! sio! sio! gritaram todos impondo silencio. José Lemos pegou n'um copo e disse aos circumstantes: — Não é, meus senhores, a vaidade de ser ouvido por tão notável assemblea que me obriga a fallar. É um alto dever de cortezia, de amizade, de gratidão; um d'esses deveres que podem mais que todos os outros, dever santo, dever immortal. A estas palavras a assemblea seria cruel se não applaudisse. O applauso não atrapalhou o orador, pela simples razão de que elle sabia o discurso de cór. — Sim, senhores. Curvo-me a esse dever, que é para mim a lei mais santa e imperiosa. Eu bebo aos meus amigos, a estes sectários do coração, a estas vestaes, tanto masculinas como femininas, do puro fogo da amizade! Aos meus amigos! á amizade! A fallar verdade, o único homem que percebeu a nullidade do discurso de José Lemos foi o Dr. Valença, que aliás não era águia. Por isso mesmo levantou-se e fez um brinde aos talentos oratórios do amphytrião. Seguiu-se a estes dous brindes o silêncio de uso, até que Rodrigo dirigindo-se ao tenente Porfirio perguntou-lhe se havia deixado a musa em casa. — E verdade! queremos ouvil-o, disse uma senhora; dizem que falla tão bem! — Eu, minha senhora? respondeu Porfirio com aquella modéstia de um homem que se suppõe um S. João Boca de Ouro. Distribuiu-se o champagne; e o tenente Porfirio levantou-se. Villela, que se achava um pouco distante, poz a mão em fôrma de concha atraz da orelha direita, ao passo que Callisto fincando um olhar profundo sobre a toalha parecia estar contando os fios do tecido. José Lemos chamou a attenção da mulher, que n'esse momento servia uma castanha gelada ao implacável Antonico; todos os mais estavam com os olhos no orador. — Minhas senhoras! meus senhores! disse Porfirio; não irei esquadrinhar no âmago da história, essa mestra da vida, o que era o hymeneu nas priscas eras da humanidade. Seria lançar a luva do escarneo ás faces immaculadas d'esta brilhante reunião. Todos nós sabemos, senhoras e senhores, o que é o hymeneu. O hymeneu é a rosa, rainha dos vergeis, abrindo as pétalas rubras, para amenisar os cardos, os abrolhos, os espinhos da vida… — Bravo! — Bonito! — Se o hymeneu é isto o que eu acabo de expor aos vossos sentidos auriculares, não é mister explicar o gáudio, o fervor, os ímpetos de amor, as explosões de sentimento com que todos nós estamos á roda d'este altar, celebrando a festa do nosso caro e prezadissimo amigo. José Lemos curvou a cabeça até tocar com a ponta do nariz n'uma pera que tinha deante de si, emquanto D. Beatriz voltando-se para o Dr. Valença, que lhe ficava ao pe, dizia: — Falla muito bem! parece um diccionario! José Porfirio continuou: — Sinto, senhores, não ter um talento digno do assumpto... — Não apoiado! está fallando muito bem! disseram muitas vozes em volta do orador. — Agradeço a bondade de V.V. Ex.; mas eu persisto na crença de que não tenho o talento capaz de arcar com um objeto de tanta magnitude. — Não apoiado! — V.V. Ex. confundem-me, respondeu Porfirio curvando-se. Não tenho esse talento; mas sobra-me boa vontade, aquella boa vontade com que os apóstolos plantaram no mundo a religião do Calvário, e graças a este sentimento poderei resumir em duas palavras o brinde aos noivos. Senhores, duas flores nasceram em diverso canteiro, ambas pulchras, ambas rescendentes, ambas cheias de vitalidade divina. Nasceram uma para outra; era o cravo e a rosa; a rosa vivia para o cravo, o cravo vivia para a rosa: veiu uma brisa e communicou os perfumes das duas flores, e as flores, conhecendo que se amavam, correram uma para a outra. A brisa apadrinhou essa união. A rosa e o cravo alli estão consorciados no amplexo da sympathia: a brisa alli está honrando a nossa reunião. Ninguem esperava pela brisa; a brisa era o Dr. Valença. Estrepitosos applausos celebraram este discurso em que o Calvário andou unido ao cravo e á rosa. Porfirio sentou-se com a satisfação íntima de ter cumprido o seu dever. O jantar chegava ao fim: eram oito horas e meia; vinham chegando alguns músicos para o baile. Todavia, ainda houve uma poesia de Eduardo Valladares e alguns brindes a todos os presentes e a alguns ausentes. Ora, como os licores iam ajudando as musas,travou-se especial combate entre o tenente Porfirio e Justiniano Villela, que, so depois de animado, pôde entrar na arena. Exgotados os assumptos, fez Porfirio um brinde ao exercito e aos seus generaes, e Villela outro á união das províncias do império. N'este terreno os assumptos não podiam escassear. Quando todos se levantaram da mesa, la ficaram os dous brindando calorosamente todas as idéias praticas e úteis d'este mundo, e do outro. Seguiu-se o baile, que foi animadíssimo e durou até as tres horas da manhã. Nenhum incidente perturbou esta festa. Quando muito podia citar-se um acto de mau gosto da parte de José Lemos que, dansando com D. Margarida, ousou lamentar a sorte d'essa pobre senhora cujo marido se entretinha a fazer saúdes em vez de ter a inapreciavel ventura de estar ao lado d'ella. D. Margarida sorriu; mas o incidente não foi adeante. Ás duas horas retirou-se o Dr. Valença com a familia, sem que durante a noite, e apezar da familiaridade da reunião, perdesse um átomo sequer da gravidade habitual. Callisto Valladares esquivou-se na occasião em que a filha mais moça de D. Beatriz ia cantar ao piano. Os mais foram-se retirando a pouco e pouco. Quando a festa acabou de todo, ainda os dous últimos Abencerragens do copo e da mesa la estavam levantando brindes de todo o tamanho. O último brinde de Villela foi ao progresso do mundo por meio do café e do algodão, e o de Porfirio ao estabelecimento da paz universal. Mas o verdadeiro brinde d'essa festa memorável, foi um pecurrucho que viu a luz em janeiro do anno seguinte, o qual perpetuará a dynastia dos Lemos, se não morrer na crise da dentição: FIM DAS BODAS DE LUIZ DUARTE. ERNESTO DE TAL I Aquelle moço que alli está parado na rua Nova do Conde esquina do Campo da Acclamação, ás dez horas da noite, não é nenhum ladrão, não é sequer um philosopho. Tem um ar mysterioso, é verdade; de quando em quando leva a mão ao peito, bate uma palmada na coxa, ou atira fora um charuto apenas encetado. Philosopho ja se ve que não era. Ratoneiro tambem não; se algum sujeito acerta de passar pelo mesmo lado, o vulto affasta-se cauteloso, como se tivesse medo de ser conhecido. De dez em dez minutos, sobe a rua até o lugar em que ella faz angulo com a rua do Areai, torna a descer dez minutos depois, para de novo subir e descer, descer e subir, sem outro resultado mais que augmentar cinco porcento a colera que lhe murmura no coração. Quem o visse fazer estas subidas e descidas, bater na perna, accender e apagar charutos, e não tivesse outra explicação, supporia plausivelmente que o homem estava doudo ou perto d'isso, Não, senhor; Ernesto de tal (não estou autorisado para dizer o nome todo) anda simplesmente apaixonado por uma moça que mora n'aquella rua; está colérico porque ainda não conseguiu receber resposta da carta que lhe mandou n'essa manhã. Convem dizer que dous dias antes tinha havido um pequeno arrufo. Ernesto quebrara o protesto de namorado que lhe fizera, de nunca mais escrever-lhe, mandando n'essa manhã uma epístola de quatro laudas incendiarias, com muitos signaes admirativos e varias liberdades de pontuação. A carta foi, mas a resposta não veiu. De cada vez que o nosso namorado operava a descida ou subida da rua, parava defronte de uma casa assobradada, onde se dançava ao som de um piano. Era alli que morava a dama dos seus pensamentos. Mas parava debalde; nem ella apparecia á janella, nem a carta lhe chegava ás mãos. Ernesto mordia então os beiços para não soltar um grito de desespero e ia desafogar os seus furores na próxima esquina. — Mas que explicação tem isto? dizia elle comsigo mesmo; porque razão não me atira ella o papel de cima da janella? Não tem que ver; está toda entregue á dança, talvez ao namoro, não se lembra que eu estou aqui na rua, quando podia estar la… N'este ponto calou-se o namorado, e em vez do gesto de desespero que devia fazer, soltou apenas um longo e magoado suspiro. A explicação d'este suspiro, inverosimil n'um homem que está rebentando de cólera, é um tanto delicada para se dizer em letra redonda. Mas va la; ou não se ha de contar nada, ou se ha de dizer tudo. Ernesto dava-se em casa do Sr. Vieira, tio de Rosina, que é o nome da namorada. La costumava ir com frequencia, e la mesmo é que se arrufou com ella dous dias antes d'este sabbado de outubro de 1850, em que se passa o acontecimento que estou narrando. Ora, porque razão não figura Ernesto entre os cavalheiros que estão dansando ou tomando cha? Na véspera de tarde o Sr. Vieira, encontrando-se com Ernesto, participou-lhe que dava no dia seguinte uma pequena partida para solemnisar não sei que acontecimento da familia. — Resolvi isto hoje de manhã, concluiu elle; convidei pouca gente, mas espero que a festa esteja brilhante. Ia mandar-lhe agora um convite; mas creio que me dispensa?... — Sem dúvida, apressou-se a dizer Ernesto esfregando as mãos de contente. — Não falte! — Não senhor. — Ah! esquecia-me avisal-o de uma cousa, disse Vieira que ja havia dado alguns passos; como vae o subdélegado, que além d'isso é commendador, eu desejava que todos os meus convidados apparecessem de casaca. Sacrifique-se á casaca, sim? — Com muito gosto, respondeu o outro ficando pallido como um defunto. Pallido, porque? Leitor, por mais ridicula e lastimosa que te pareça esta declaração, não hesito de dizer-te que o nosso Ernesto não possuía uma so casaca nova nem velha. A exigência de Vieira era absurda; mas não havia fugir-lhe: ou não ir, ou ir de casaca. Cumpria sahir a todo o custo desta gravissima situação. Tres alvitres se apresentaram ao espirito do atribulado moço: encommendar, por qualquer preço, uma casaca para a noite seguinte; compral-a a credito; pedil-a a um amigo. Os dous primeiros alvitres foram despresados por impraticaveis; Ernesto não tinha dinheiro nem credito tão alto. Restava o terceiro. Fez Ernesto uma lista dos amigos e casacas prováveis, metteu-a na algibeira e sahiu em busca do vellocino. A desgraça porém que o perseguia fez com que o primeiro amigo tivesse de ir no dia seguinte a um casamento e o segundo a um baile; o terceiro tinha a casaca rota, o quarto tinha a casaca emprestada, o quinto não emprestava a casaca, o sexto não tinha casaca. Recorreu ainda a mais dous amigos supplementares; mas um partira na véspera para Iguassú e o outro estava destacado na fortaleza de S. João como alferes da guarda nacional. Imagine-se o desespero de Ernesto; mas admire-se tambem a requintada crueldade com que o destino tratava a este moço, que ao voltar para casa encontrou três enterros, dous dos quaes com muitos carros, cujos occupantes iam todos de casaca. Era mister curvar a cabeça á fatalidade; Ernesto não insistiu. Mas como tomára a peito reconciliar-se com Rosina, escreveu-lhe a carta de que fallei acima e mandou-a levar pelo moleque da casa, dizendo-lhe que á noite lhe desse a resposta na esquina do Campo. Ja sabemos que tal resposta não veiu. Ernesto não comprehendia a causa do silêncio; muitos arrufos tivera com a moça, mas nenhum d'elles resistia á primeira carta nem durava mais de quarenta e oito horas. Desenganado emfim de que a resposta viesse n'aquella noite, Ernesto dirigiu-se para casa com o desespero no coração. Morava na rua da Misericórdia. Quando la chegou estava cançado e abatido. Nem por isso dormiu logo. Despiu-se precipitadamente. Esteve a ponto de rasgar o collete, cuja fivella teimava em prender-se a um botão da calça. Atirou com as botinas sobre um aparador e quasi esmigalhou uma das jarras. Deu cerca de sete ou oito murros na mesa; fumou dous charutos, descompoz o destino, a moça, a si mesmo, até que sobre a madrugada pôde conciliar o somno. Em quanto elle dorme indaguemos a causa do silêncio da namorada. II Veja o leitor aquella moça que alli está, sentada n'um sopha, entre duas damas da mesma edade, conversando baixinho com ellas, e requebrando de quando em quando os olhos. É Rosina. Os olhos de Rosina não enganam ninguem... excepto os namorados. Os olhos d'ella são espertinhos e caçadores, e com um certo movimento que ella lhes dá, ficam ainda mais caçadores e espertinhos. É galante e graciosa; se o não fora, não se deixaria prender por ella o nosso infeliz Ernesto, que era rapaz de apurado gosto. Alta não era, mas baixinha, viva, travessa. Tinha bastante affectação nos modos e no fallar; mas Ernesto, a quem um amigo notara isso mesmo, declarou que não gostava de moscas mortas. — Eu nem de moscas vivas, acudiu o amigo encantado por ter apanhado no ar este trocadilho. Trocadilho de 1850. Não veste com luxo porque o tio não é rico; mas ainda assim está garrida e elegante. Na cabeça tem por enfeite apenas dous laços de fita azul. — Ah! se aquellas fitas me quizessem enforcar! dizia um gamenho de bigode preto e cabello partido ao meio. — Se aquellas filas me quizessem levarão ceu! dizia outro de suiças castanhas e orelhas pequeninas. Desejos ambiciosos d'estes dous rapazes, - ambiciosos e vãos, porque ella, se alguem lhe prende a attenção, é um moço de bigode louro e nariz comprido que está agora conversando com o subdelegado. Para elle é que Rosina dirige de quando em quando os olhos, com disfarce è verdade, não tanto porém que o não percebam as duas moças que estão ao pe della. — Namôro ferrado! dizia uma d'ellas á outra fazendo um signal de cabeça para o lado do moço de nariz comprido. — Ora, Justina! — Calúmnias! acudiu a outra moça. — Cala-te, Amélia! — Você quer enganar a gente? insistia Justina. Tire o cavallo da chuva! La está elle olhando... Parece que nem ouve o commendador. Pobre commendador! para pau de cabeileira está grosso de mais. — Olha, se você não se cala eu vou-me embora, disse Rosina fingindo-se enfadada. — Pois va! — Coitado do Ernesto! suspirou Amélia do outro lado. — Olhe que titia pode ouvir, observou Rosina olhando de esguelha para uma velha gorda, que assentada ao pe do sopha, referia a uma commadre as diversas peripécias da última moléstia do marido. — Mas porque não veiu o Ernesto! perguntou Justina. — Mandou dizer a papae que tinha um trabalho urgente. — Quem sabe se algum namoro tambem? insinuou Justina. — Não é capaz! acudiu Rosina. — Bravo! que confiança! — Que amor! — Que certeza! — Que defensora! — Não é capaz, repetiu a moça; o Ernesto não é capaz de namorar a outra; estou certa d'isso... O Ernesto é um... Engoliu o resto. — Um que? perguntou Amélia. — Um que? perguntou Justina. N'este momento tocou-se uma valsa, e o rapaz do nariz comprido, a quem o subdelegado deixara para ir conversar com Vieira, aproximou-se do sopha e pediu a Rosina a honra de lhe dar aquella valsa. A moça abaixou os olhos com singular modéstia, murmurou algumas palavras que ninguem ouviu, levantou-se e foi valsar. Justina e Amélia chegaram-se então uma para a outra e commentaram o procedimento de Rosina e a sua maneira de valsar sem graça. Mas como ambas eram amigas de Rosina, não foram estas censuras feitas em tom offensivo, mas com brandura, como os amigos devem censurar os amigos auzentes. E não tinham muita razão as duas amigas. Rosina valsava com graça e podia pedir meças a quem soubesse aquelle genero de dança. Agora quanto ao namoro, pôde ser que tivessem razão, e tinham effectivamente; a maneira porque ella olhava e fallava ao rapaz de nariz comprido despertava suspeitas no espirito mais desprevenido a seu respeito. Acabada a valsa passearam um pouco e foram depois para o vão de uma janella. Era então uma hora, e ja o desgraçado Ernesto palmilhava na direcção da rua da Misericordia. — Eu passarei amanhã as seis horas da tarde. — Ás seis horas, não! disse Rosina. Era a hora em que Ernesto costumava ir la. — Então ás cinco... — Ás cinco?... Sim, ás cinco, concordou a moça. O rapaz de nariz comprido agradeceu com um sorriso esta ratificação de seu tratado amoroso, e proferiu algumas palavras que a moça ouviu derretida e envergonhada, entre vaidosa e modesta. O que elle dizia era que Rosina não so era a flor do baile, mas tambem a flor da rua do Conde, e não so a flor da rua do Conde, mas tambem a flor da cidade inteira. Isto era o que lhe dissera muitas vezes Ernesto; o rapaz de nariz comprido, entretanto, tinha uma maneira particular de elogiar uma moça. A graça,por exemplo, com que elle mettia o dedo polegar da mão esquerda no bolso esquerdo do collete, brincando depois com os outros dedos como se tocasse piano, era de todo ponto inimitável; nem havia ninguem, pelo menos, n'aquellas immediações, que tivesse mais elegância na maneira de arquear os braços, de concertar os cabellos, ou simplesmente de offerecer uma chicara de cha. Taes foram os dotes que venceram o coração inconstante da graciosa Rosina. So esses? Não. A simples circumstância de não ter Ernesto a interessante vestidura que ornava o corpo e realçava as graças do seu afortunado rival, pode ja dar algumas luzes ao leitor de boa fe. Rosina ignorava sem dúvida a situação precária de Ernesto a respeito da casaca; mas sabia que elle occupava um emprego somanos no arsenal de guerra, ao passo que o rapaz de nariz comprido linha um bom lugar n'uma casa comercial. Uma moça que professasse idéias philosophicas a respeito do amor e do casamento diria que os impulsos do coração estavam antes de tudo. Rosina não era inteiramente avessa aos impulsos do coração e á philosophia do amor; mas tinha ambição da figurar alguma cousa, morria por vestidos novos e espectáculos frequentes, gostava emfim de viver á luz publica. Tudo isso podia dar-lhe, com o tempo, o rapaz da nariz comprido, que ella antevia ja na direcção da casa em que trabalhava; o Ernesto porém era difficil que passasse do logar que tinha no arsenal, e em lodo o caso não subiria muito nem depressa. Pesados os merecimentos de um e de outro, quem perdia era o misero Ernesto. Rosina conhecia o novo candidato desde algumas semanas; mas so naquella noite tivera occasião de o tratar de perto, de consolidar, digamos assim, a sua situação. As relações, até então puramente telegraphicas, passaram a ser verbaes; e se o leitor gosta de um estylo arrebicado e gongorico, dir-lhe-hei que tantos foram os telegrammas trocados durante a noite entre elles, que os Estados visinhos, receiosos de perder uma alliança provavel, chamaram ás armas a milicia dos agrados, mandaram sahir a armada dos requebros, assestaram a artilharia dos olhos ternos, dos lenços na boca, e das expressões suavissimas; mas toda essa leva da broqueis nenhum resultado deu porque a formosa Rosina, ao menos naquella noite, achava-se entregue a um so pensamento. Quando acabou o baile, e Rosina entrou na sua alcova, viu um papelinho dobrado no toucador. — Que é isto? disse ella. Abriu: era a resposta á carta de Ernesto que ella se esquecera de mandar. Se alguém a tivesse lido? Não; não era natural. Dobrou a cartinha com muito cuidado, fechou-a com obreia, guardou-a n'uma gavetinha, dizendo comsigo: — É preciso mandal-a amanhã de manhã. III — Um palerma — é o que Rosina queria dizer quando defendeu a fidelidade de Ernesto, maliciosamente atacada pelas duas amigas. Havia apenas três mezes que Ernesto namorava a sobrinha de Vieira, que se carteava com ella, que protestavam um ao outro eterna fidelidade, e n'esse curto espaço de tempo tinha ja descoberto cinco ou seis mouros na costa. N'essas occasiões fervia-lhe a cólera, e era capaz de deitar tudo abaixo. Mas a boa menina, com a sua varinha mágica, trazia o rapaz a bom caminho, escrevendo-lhe duas linhas ou dizendo-lhe quatro palavras de fogo. Ernesto confessava que tinha visto mal, e que ella era excessivamente misericordiosa para com elle. — Merecia bem que eu o não amasse mais, observava Rosina com gracioso enfado. — Oh! não! — Para que ha de inventar essas cousas? — Eu não invento... disseram-me. — Pois fez mal em acreditar. — Fiz mal, sim... você é um anjo do ceu! Rosina perdoava-lhe a calúmnia, e as cousas continuavam como d'antes. Um amigo a quem Ernesto confiava todas as suas alegrias e maguas, a quem tomava por conselheiro e que era seu companheiro de casa, muitas vezes lhe dizia: — Olha, Ernesto, eu creio que estás perdendo o teu trabalho. — Como assim? — Ella não gosta de ti. — Impossível! — Tu es apenas um passa-tempo. — Enganas-te; ama-me. — Mas ama tambem a outros muitos. — Jorge! — Em summa... — Nem mais uma palavra! — E uma namoradeira, concluía o amigo tranquillamente. Ouvindo este peremptorio juízo do amigo, Ernesto despedia um olhar longo e profundo, capaz de paralysar todos os movimentos conhecidos da mecânica; como porém o rosto do amigo não revelasse a menor impressão de temor ou arrependimento, Ernesto recolhia o olhar— mais cordato n'este ponto que o senador D. Manoel, a quem o visconde de Jequitinhonha dizia um dia no senado que recolhesse um riso, e continuava a rir, — e tudo acabava em boa e santa paz. Tal era a confiança de Ernesto na flor da rua do Conde. Se ella lhe dissesse um dia que tinha na algibeira do vestido uma das torres da Candelária, não é certo, mas é muito provável que Ernesto lhe acceitasse a noticia. D'esta vez porêm o arrufo era serio. Ernesto vira positivamente a moça receber uma cartinha, ás furtadellas, da mão de uma espécie de primo que frequentava a casa de Vieira. Seus olhos falsearam de raiva quando viram alvejar a mysteriosa epístola nas mãos da moça. Fez um gesto de ameaça ao rapaz, lançou um olhar de desprezo á moça, e sahiu. Depois escreveu a carta de que temos noticia, e foi esperar a resposta na esquina da rua. Que resposta, se elle vira o gesto de Rosina? Leitor ingênuo, elle queria uma resposta que lhe demonstrasse não ter visto cousa alguma,uma resposta que o fizesse olhar para si mesmo com desprezo e nojo. Não achava possível semelhante explicação; mas no fundo d'alma era isso o que elle queria. A resposta veiu no dia seguinte. O rapaz que morava com elle foi accordal-o ás 8 horas da manhã, para lhe entregar uma cartinha de Rosina. Ernesto deu um salto na cama, assentou-se, abriu a epístola, e leu-a rapidamente. Um ar de celeste bemaventurança revelou ao companheiro de Ernesto o conteúdo da carta. — Tudo está sanado, disse Ernesto fechando a carta e descendo da cama; ella explicou tudo; eu tinha visto mal. — Ah! disse Jorge olhando com lastima para o amigo; então que diz ella? Ernesto não respondeu immediatamente; abriu a carta outra vez, leu-a para si, tornou a fechal-a, olhou para o teclo, para as chinellas, para o companheiro, e so depois d'esta serie de gestos indicativos da profunda abstracção do seu espirito, é que respondeu a Jorge, dizendo: — Ella explica tudo; a carta que eu pensei ser de amores, era um bilhete do primo pedindo algum dinheiro ao tio. Diz que eu sou muito mau em obrigal-a a fallar n'estas fraquezas de familia, e conclue jurando que me ama como nunca seria capaz de amar ninguem. Lê. — Então? que tal? disse elle quando Jorge lhe entregou a carta. — Tens razão, tudo se explica, respondeu Jorge Ernesto foi n'essa mesma tarde á rua do Conde. Ella recebeu-o com um sorriso logo de longe. Na primeira occasião que tiveram, tudo ficou explicado, declarando-se. Ernesto compungido por haver suspeitado de Rosina, e levando a moça a sua generosidade ao ponto de lhe ceder um beijo, ao lusco-fusco, antes que a criada viesse accender. as vellas de spermacetti dos aparadores. Agora tem a palavra o leitor para interpellar-me a respeito das intenções d'esta moça, que preferindo a posição do rapaz de nariz comprido, ainda se carteava com Ernesto, e lhe dava todas as demonstrações de uma preferencia que não existia. As intenções de Rosina, leitor curioso, eram perfeitamente conjugaes. Queria casar, e casar o melhor que pudesse. Para este fim acceitava a homenagem de todos os seus pretendentes, escolhendo ella comsigo o que melhor correspondesse aos seus desejos, mas ainda assim sem desanimar os outros, porque o melhor d'elles podia falhar, e havia para ella uma cousa peior que casar mal, que era não casar absolutamente. Este era o programma da moça. Junte a isso que era naturalmente loureira, que gostava de trazer ao pe de si uma chusma de pretendentes, muitos dos quaes é preciso saber que não pretendiam casar, e namoravam por passatempo, o que revelava da parte d'esses cavalheiros uma incurável vadiação de espirito. Quem não tem cão, caça com o gato, diz o provérbio. Ernesto era pois, moral e conjugalmente fallando, o gato possivel da Rosina, uma especie da pis-aller, — como dizem os francezes, — que convinha ler á mão. IV O moço de nariz comprido não pertencia ao numero dos namorados de arribação; seus intentos eram strictamente conjugaes. Tinha vinte e seis annos, era laborioso, bem quisto, econômico, singello e sincero, um verdadeiro filho de Minas. Podia fazer a felicidade de uma moça. A moça, pela sua parte, soubera insinuar-se tanto no espirito delle, que por pouco lhe fez perder o emprego. Um dia, chegando-se o patrão á escrevaninha em que elle trabalhava, viu um papelinho debaixo do tinteiro, e leu a palavra amor, duas ou três vezes repetida. Uma que fosse bastava para fazel-o subir ás nuvens. O Sr. Gomes Arruda contrahiu as sobrancelhas, concentrou as idéias, e improvisou uma allocução extensa e ameaçadora, em que o misero guarda-livros so percebeu a expressão olho da rua. Olho da rua é uma expressão grave. O guarda-livros meditou n'ella, reconheceu a justiça do patrão, e tratou de emendar-se dos descuidos,não do amor. O amor ia-se enraizando n'elle cada vez mais; era a primeira paixão séria que o rapaz sentia, accrescendo que elle acertára logo de dar com uma mestra no officio. — Isto assim não póde continuar, pensava o rapaz de nariz comprido, coçando o queixo e caminhando uma noite para casa, o melhor é casar-ma logo da uma vez. Com o que me dão la em casa e o producto de alguma escripta por fora, creio que poderei occorrer ás despezas; o resto pertence a Deus. Não tardou que Ernesto desconfiasse das intenções do rapaz de nariz comprido. Uma vez chegou a sorprehender um olhar da moça e do rival. Enfadou-se, e na primeira occasião que teve interpellou a namorada a respeito d'aquella circumstancia equívoca. — Confesse! dizia elle. — Oh! meu Deus! exclamou a moça; você de tudo desconfia. Olhei para elle, sim, é verdade, mas olhei por sua causa. — Por minha causa? perguntou Ernesto com um tom gelado de ironia. — Sim, examinava-lhe a gravata, que é muito bonita, para dar uma a você no dia de Anno Bom. Agora que me obrigou a descobrir tudo, veja se me lembra outro mimo, porque esse ja não serve. Ernesto cahiu em si; recordou que effectivamente havia no olhar da moça uma tal ou qual intenção dadival, se me permittem este adjectivo obsoleto; toda a sua cólera converteu-se n'um sorriso amavel e contricto, e o arrufo não foi adiante. Dias depois, era um domingo, estando elle e ella na sala, e um filho de Vieira á janella, foram os dous namorados interrompidos pelo pequeno que descêra, gritando: — Alli vem elle! ahi vem elle! — Elle quem? disse Ernesto sentindo esmigalhar-se-lhe o coração. Chegou á janella: era o rival. Appareceu a tempo a tia de Rosina; uma tempestade imminente ja pairava na fronte afogueada de Ernesto. Pouco depois entrou na sala o rapaz de nariz comprido, que, ao ver Ernesto, pareceu sorrir maliciosamente. Ernesto encordoou. Seus olhares, se fossem punhaes, teriam commetido dous assassinatos n'aquelle instante. Conteve-se, porém, para melhor observar os dous. Rosina não parecia prestar ao outro attenção de caracter especial; tratava-o com polidez apenas. Isto aquietou um pouco o ânimo revolto do Ernesto, que ao cabo da uma hora eslava restituido á sua usual bemaventurança. Não reparou porém nos olhares desconfiados que o rapaz de nariz comprido lhe lançava de quando em quando. O sorriso malicioso desapparecêra dos lábios do guarda-livros. A suspeita entrara-lhe no espirito ao ver a maneira indifferente, ou quasi, com que o tratava Rosina, posto tratasse de egual modo ao outro pretendente. — Será seriamente um rival? pensava o rapaz de nariz comprido. Na primeira occasião em que pôde trocar duas palavras com a namorada, sem testemunhas, o que foi logo no dia seguinte, manifestou a desconfiança que lhe escurecera o espirito ate alli tão côr de rosa. Rosina soltou uma risada, — uma d'essas risadas que levam a convicção ao fundo d'alma — a tal ponto que o rapaz de nariz comprido julgou de sua dignidade não insistir na absurda suspeita. — Ja lhe disse: elle bem vontade tem de que eu o namore, mas perde o tempo: eu so tenho uma cara e um coração. — Oh! Rosina, tu es um anjo! — Quem dera! — Um anjo, sim, insistiu o rapaz de nariz comprido; e creio que posso chamar-te brevemente minha esposa. Os olhos da moça faiscaram de contentamento. — Sim, continuou o namorado; daqui a dous mezes estaremos casados... — Ah! — Se todavia... Rosina empallideceu. — Todavia? repetiu ella. — Se todavia, o sr. Vieira consentir... — Porque não, disse a moça tranquillisando-se do susto que tivera; elle deseja a minha felicidade; e o casamento comtigo é a minha felicidade maior. Ainda quando porém se opponha aos impulsos do meu coração, basta que eu queira para que os nossos desejos se realisem. Mas descança; meu tio não porá obstáculos. O rapaz de nariz comprido ficou ainda a olhar para a moça alguns minutos sem dizer palavra; admirava duas cousas: a força d'alma de Rosina e o amor que ella lhe dedicava. Quem rompeu o silêncio foi ella. — Mas então d'aqui a dous mezes? — So se a sorte me for adversa. — E poderá sel-o? — Quem sabe? respondeu o rapaz de nariz comprido com um suspiro de dúvida. Logo depois desta perspectiva de felicidade, a concha em que se pesavam as esperanças de Ernesto começou a subir um pouco. Elle via que Rosina effectivamente parecia ir diminuindo as cartas, e nas poucas que ja então recebia della, a paixão era menos intensa, a phraze estudada, acanhada e fria. Quando estavam junctos havia menos intimidade expansiva; a presença delle parecia constrangel-a. Ernesto entrou seriamente a crer que a batalha estava perdida. Infelizmente a tactica deste namorado, era perguntar á própria moça se eram fundadas as suspeitas delle, ao que ella respondia vivamente que não, e isto bastava a restituir-lhe a paz do espirito. Não era longa nem profunda a quietação; o laconismo epistolar de Rosina, a frieza de seus modos, a presença do outro, tudo isso sombreava singularmente o espirito de Ernesto. Mas tão depressa cahia no abysmo do desespero, como ascendia ás regiões da celeste bemaventurança, — mostrando assim o que a natureza queria que elle fosse,— alma inconsistente e passiva — levada, como a folha, ao sabor de todos os ventos. Entretanto, era difficil que a verdade não se lhe mettesse pelos olhos. Um dia reparou que, além da suspeitosa affectuosídade de Rosina, havia da parte do tio certas attenções características para com o rival. Não se enganava; com quanto o novo pretendente ainda não houvesse pedido formalmente a mão da moça, era quasi certo para o sr. Vieira que nelle se preparava novo sobrinho, e acertando de ser este um homem do commercio, não podia haver, na opinião do tio, mais feliz escolha. Desisto de pintar os desesperos, os terrores, as imprecações de Ernesto no dia em que a certeza da derrota mais funda e de raiz se lhe cravou no coração. Ja então lhe não bastou a negativa de Rosina, que aliás lhe pareceu frouxa,e effectivamente o era. O triste moço chegou a desconfiar que a amada e o rival estariam de accordo para mofar delle. Como por via de regra, é da nossa miserável condição que o amor próprio domine o - simples amor, apenas aquella suspeita lhe pareceu provável, apoderou-se delle uma feroz indignação, e duvido que nenhum quinto acto de mellodrama ostente maior somma de sangue derramado do que elle verteu na phantasia. Na phantasia, apenas, compassiva leitora, não so porque elle era incapaz de fazer mal a um seu semelhante, mas sobretudo porque repugnava á sua natureza achar uma resolução qualquer. Por esse motivo, depois de muito e longo cogitar, confiou todos os seus pesares e suspeitas ao companheiro de casa e pediu-lhe um conselho; Jorge deu-lhe dous. — Minha opinião, disse Jorge, é que não te importes com ella e vás trabalhar, que é cousa mais séria. — Nunca! — Nunca trabalhar? — Não; nunca esquecel-a. — Bem, disse Jorge descalçando a bota do pe esquerdo, n'esse caso vai ter com esse sujeito de quem desconfias e entende-te com elle. — Acceito! exclamou Ernesto; é o melhor. Mas, continuou elle depois de reflectir um instante, e se elle não fôr meu rival, que hei de fazer? como descobrir se ha outro? — N'esse caso, disse Jorge estendendo-se philosophicamente na marqueza, n'esse caso o meu conselho é que tu, elle e ella vão todos para o diabo que os carregue. Ernesto cerrou os ouvidos á blasphemia, vestiu-se e sahiu. V Apenas sahiu á rua, embicou Ernesto para a casa em que trabalhava o rapaz de nariz comprido, resolvido a explicar-se de uma vez com elle. Hesitou alguma cousa, é verdade, e esteve a pique de arrepiar carreira; mas a crise era tão violenta que triumphou da frouxidão de ânimo, e vinte minutos depois chegava elle ao seu destino. Não entrou no escriptorio do rival: poz-se a passear de um lado para outro, á espera que elle sahisse, o que se verificou d'ahi a tres quartos de hora, três enfadonhos e mortaes quartos de hora. Ernesto aproximou-se casualmente do rival; comprimentaram-se com um sorriso acanhado e amarello, e ficaram alguns segundos a olhar um para o outro. Ja o guarda-livros ia tirando o chapéu e despedindo-se, quando Ernesto lhe perguntou: — Vae hoje á rua do Conde? — Talvez. — A que horas? — Não sei ainda. Porque? — Iríamos juntos. Eu vou ás oito. O rapaz de nariz comprido não respondeu. — Para que lado vae agora? perguntou Ernesto depois de algum silêncio. — Vou ao Passeio Publico, se o senhor la não for, respondeu resolutamente o rival. Ernesto empallideceu. — Quer assim fugir de mim? — Sim, senhor. — Pois eu não; desejo até que haja uma explicação entre nós. Espere... não me volte as costas. Saiba que eu tambem sou atrevido, menos de lingua ainda que de mão. Vamos, dê-me o braço e caminhemos ao Passeio Publico. O rapaz de nariz comprido teve ímpetos de atracar-se com o rival e experimentar-lhe as forças; mas estavam n'uma rua commercial; todo o seu futuro voaria pelos ares. Preferiu dar-lhe as costas e seguir caminho. Executava ja este plano, quando Ernesto lhe gritou: — Venha ca, namorado sem ventura! O pobre rapaz voltou-se rapidamente. — Que diz o senhor? perguntou elle. — Namorado sem ventura, repetiu Ernesto cravando os olhos no rosto do rival a ver se lhe descobria uma confissão qualquer. — É singular, replicou o rapaz de nariz comprido, é singular que o senhor me chame namorado sem ventura, quando ninguem ignora a triste figura que tem feito para obter as boas graças de uma moça que é minha... — Sua! — Minha! — Nossa direi eu... — Senhor! O rapaz de nariz comprido engatilhou um socco; a segurança e tranquillidade com que Ernesto olhava para elle mudaram-lhe o curso das idéias. Fallaria elle verdade? Essa moça, que tanto amor lhe jurava, com quem meditava casar dentro de pouco tempo, mas de quem alguma vez desconfiara, teria dado effectivamente aquelle homem o direito de a chamar sua? Esta simples interrogação perturbou o espirito do rapaz, que esteve cerca de dous minutos a olhar mudamente para Ernesto, e este a olhar mudamente para elle. — O que o senhor disse agora é muito grave; preciso de uma explicação. — Peço-lhe explicação egual, respondeu Ernesto. — Vamos ao Passeio Publico. Seguiram caminho, a princípio silenciosos, não so porque a situação os acanhava naturalmente, mas tambem porque cada um delles receiava ouvir uma cruel revelação. A conversa começou por monosyllabos e phrases truncadas, mas foi a pouco e pouco fazendo-se natural e correcta. Tudo quanto os leitores sabem de um e outro foi alli exposto por ambos, e por ambos ouvido entre abatimento e colera. — Se tudo quanto o senhor diz é a expressão da verdade, observou o rapaz de nariz comprido descendo a rua das Marrecas, a conclusão é que fomos enganados... — Vilmente enganados, emendou Ernesto. — Pela minha parte, tornou o primeiro, recebo com isto um grande golpe porque eu amava-a muito, e pretendia faze-la minha esposa, o que succederia breve. A minha boa fortuna fez com que o senhor me avisasse a tempo... — Talvez me censurem o passo que dei; mas o resultado que vamos colher justifica tudo. Nem por isso creia que padeço menos... eu amava loucamente aquella moça! Ernesto proferiu estas palavras tão de dentro, que ellas repercutiram no coração do rival, e ambos ficaram algum tempo calados, a devorar comsigo a dor e a humilhação. Ernesto rompeu o silêncio soltando um magoadissimo suspiro, na occasião em que entravam no Passeio. So o guarda pôde ouvi-lo; o rapaz de nariz comprido ia revolvendo no espirito uma dúvida. — Devo eu condemnar tão ligeiramente aquella moça? perguntou elle a si mesmo; e não será este sugeito um pretendente vencido que, por semelhante meio, quer obter a minha neutralidade? O rosto de Ernesto não parecia dar razão á conjectura do rival; todavia, como o lance era grave e cumpria não ir por apparencias, o rapaz de nariz comprido abriu de novo o capítulo das revellações, no que foi acompanhado pelo rival. Todas ellas iam concordando entre si; os incidentes e os gestos que um relembrava, tinha echo na memória do outro. O que porém decidiu tudo foi a apresentação de uma carta que cada um delles tinha casualmente no bolso. O texto de ambas mostrava que eram recentes; a expressão de ternura não era a mesma nas duas epistolas, porque Rosina, como sabemos, ia afrouxando o tom em relação a Ernesto; mas era quanto bastava para dar ao rapaz de nariz comprido o golpe de misericordia. — Despresemo-la, disse este, quando acabou de ler a carta do rival. — So isso? perguntou Ernesto; o simples desprezo será bastante? — Que vingança tiraríamos della? objectou o rapaz de nariz comprido. Ainda que alguma fosse possível, não seria digna de nós... Calou-se; mas tocado de uma súbita idéia exclamou: — Ah! lembra me um meio! — Qual? — Mandemos-lhe uma carta de rompimento, mas uma carta de egual theor. A ideia sorriu logo ao espirito de Ernesto, que parecia ainda mais humilhado que o outro, e ambos foram dalli redigir a carta fatal. No dia seguinte, logo depois do almoço, estava Rosina em casa muito socegada, longe de esperar o golpe, e até forjando planos de futuro, que assentavam todos no rapaz de nariz comprido, quando o moleque lhe appareceu com duas cartas. — Nhanhã Rosina, disse elle, esta carta é de sinhô Ernesto, e esta... — Que é isso? disse a moça; os dous... — Não, explicou o moleque; um estava na esquina de cima, outro na esquina de baixo. E fazendo tinir no bolso alguns cobres que os dous rivaes lhe haviam dado, o moleque deixou a senhora moça ler á vontade as duas missivas. A primeira que abriu foi a de Ernesto. Dizia assim: « Senhora! Hoje que tenho certeza da sua perfídia, certeza que ja nada me pode arrancar do espirito, tomo a liberdade de lhe dizer que está livre e eu rehabilitado. Basta de humilhações! Pude dar-lhe credito em quanto lhe era possível enganar-me. Agora... Adeus para sempre! » Rosina levantou os hombros ao ler esta carta. Abriu rapidamente a do rapaz de nariz comprido. E leu « Senhora! Hoje que tenho a certeza da sua perfídia, certeza que ja nada me pôde... » D'aqui para diante foi crescendo a surpreza. Ambos se despediam; ambos por egual theor. Logo, tinham descoberto tudo um ao outro. Não havia meio de reparar nada; tudo estava perdido! Rosina não costumava chorar. Esfregava ás vezes os olhos, para os fazer vermelhos, quando havia necessidade de mostrar a um namorado que se resentia de alguma cousa. D'esta vez porém chorou deveras; não de magoa, mas de raiva. Triumphavam ambos os rivaes; ambos lhe fugiam, e lhe davam de commum accordo o último golpe. Não havia resistir; entrou-lhe na alma o desespero. Por desgraça não havia no horisonte a mais ligeira vela. O primo a quem alludimos n'um dos capítulos anteriores, andava com idéias a respeito de outra moça, e idéias ja conjugaes. Ella mesma descuidara o seu systema durante os últimos trinta dias deixando sem resposta alguns olhares interrogadores. Estava pois abandonada de Deus e dos homens. Não; ainda lhe restava um recurso. VI Um mez depois daquelle fatal desastre, estando Ernesto em casa a conversar com o companheiro e mais dous amigos, um dos quaes era o rapaz de nariz comprido, ouviu bater palmas. Foi á escada; era o moleque da rua Nova do Conde. — Que me queres? disse elle com ar severo, suspeitando que o moleque viesse pedir-lhe dinheiro. — Venho trazer isto, disse o moleque baixinho. E tirou do bolso uma carta que entregou a Ernesto. A primeira idéia de Ernesto foi recusar a carta e pôr o moleque a pontapés pela escada abaixo; mas o coração disse-lhe uma cousa, como elle mesmo confessou depois. Estendeu a mão, recebeu a carta, abriu-a e leu. Dizia assim: « Ainda uma vez curvo-me ás tuas injustiças. Estou cançada de chorar. Não posso mais viver debaixo da acção de uma calúmnia. Vêm ou eu morro! » Ernesto esfregou os olhos; não podia crer no que acabava de ler. Seria um novo ardil, ou a expressão da verdade? Ardil podia ser; mas Ernesto attentou bem e pareceu-lhe ver o signal de uma lagryma. Evidentemente a moça chorára. Mas se chorára é porque padecia; e n'esse caso... N'estas e n'outras reflexões gastou Ernesto cerca de oito a dez minutos. Não sabia que resolvesse. Accudir ao chamado de Rosina, era esquecer a perfídia com que ella se houve amando a outro em cujas mãos vira até uma carta sua. Mas não ir, podia ser contribuir para a morte de uma creatura que, ainda quando não tivesse sido amada por elle, merecia os seus sentimentos de humanidade. — Diga que la irei logo, respondeu emfim Ernesto. Quando voltou para a sala trazia o rosto mudado. Os amigos repararam na mudança e procuraram descobrir-lhe a causa. — Algum credor, dizia um. — Não lhe trouxeram dinheiro, accrescentava outro. — Namoro novo, opinava o companheiro de casa. — E tudo isso talvez, respondeu Ernesto com um modo que queria ser alegre. De tarde preparou-se Ernesto e dirigiu-se para a rua Nova do Conde. Dez ou doze vezes parou resolvido a voltar; mas um minuto de reflexão, tirava-lhe os escrupulos e o rapaz proseguia em seu caminho. — Ha mysterio n'isto tudo, dizia elle comsigo e relendo a carta de Rosina. É certo que elle me revelou tudo, e até me leu cartas; n'isto não ha que duvidar. Rosina é culpada; enganou-me; namorava a outro, dizendo-me que so me amava a mim. Mas porque esta carta? Se ella amava ao outro porque lhe não escreve? Investiguemos tudo isto. A última hesitação do digno rapaz foi ao entrar na rua Nova do Conde; seu espirito vacillou d'essa vez mais que nunca. Dez minutos gastou em passinhos ora para traz, ora para diante, sem assentar n'uma cousa definitiva. Afinal deitou o coração á larga e seguiu afoutamente a senda que o destino parecia indicar-lhe. Quando chegou á casa de Vieira, estava Rosina na sala com a tia. A moça teve um movimento de alegria; mas, tanto quanto Ernesto pôde examinar-lhe as feições, a alegria não foi tal que pudesse disfarçar-lhe os sulcos das lagrymas. O que é certo é que um veu de melancolia parecia envolver os olhos travessos da bella Rosina. Nem ja eram travessos; estavam desmaiados ou mortos. — Oh! alli esta a innocencia! disse Ernesto comsigo. Ao mesmo tempo, envergonhado por esta opinião tão benevolente, e lembrando-se das revelações do rapaz de nariz comprido, Ernesto assumiu um ar severo e grave, menos de namorado que de juiz, menos de juiz que de algoz. Rosina cravou os olhos no chão. A tia da moça perguntou a Ernesto as causas da sua ausência tão prolongada. Ernesto allegou muito trabalho e alguma doença, as primeiras desculpas que occorrem a todo o homem que não tem desculpa. Trocadas mais algumas palavras, sahiu a tia da sala para ir dar umas ordens, tendo ja ordenado disfarçadamente ao Juquinha que ficasse na sala. Juquinha porém trepou a uma cadeira e poz-se á janella; os dous tiveram tempo para explicações. A situação era esquerda; mas não se podia perder tempo. Bem o comprehendeu Rosina, que rompeu logo n'estas palavras: — Não tem remorsos? — De que? perguntou Ernesto espantado. — Do que me fez? — Eu? — Sim, abandonando-me sem uma explicação. A causa adivinho eu qual é; alguma nova suspeita, ou antes alguma calúmnia... — Nem calúmnia, nem suspeita, disse Ernesto depois de um momento de silêncio; mas so verdade. Rosina suffocou um grito; seus lábios pallidos e trêmulos quizeram murmurar alguma cousa, mas não puderam; dos olhos rebentaram-lhe duas grossas lagrymas. Ernesto não podia vel-a chorar; por mais cheio de razões que estivesse, em vendo lagrymas, curvava-se logo e pedia-lhe perdão. D'esta vez porém era impossivel que tão depressa voltasse ao antigo estado. As revelações do rival estavam ainda frescas na memória. Curvou-se, entretanto, para a moça e pediu-lhe que não chorasse, — Que não chore! disse ella com voz lacrymosa. Pede-me que não chore quando eu vejo fugir-me a felicidade das mãos, sem ao menos merecer a sua estima, porque o senhor despreza-me; sem ao menos saber o que é essa calúmnia para desmentil-a ou desmascaral-a... — É capaz d'isso? perguntou Ernesto com fogo. É capaz de confundir a calúmnia? — Sou, disse ella com um magnífico gesto de dignidade. Ernesto expoz em resumo a conversa que tivera com o rapaz de nariz comprido, e concluiu dizendo que vira uma carta d'ella. Rosina ouviu callada a narração; tinha o peito offegante; sentia-se a commoção que a dominava. Quando elle acabou, soltou uma torrente de lagrymas. — Meu Deus! disse baixinho Ernesto, podem ouvil-a. — Não importa, exclamou a moça; estou disposta a tudo... — Diga-me, pode negar o que lhe acabo de contar? — Tudo, não; alguma cousa é verdade, respondeu ella com voz triste. — Ah! — A promessa de casamento é mentira; não houve mais que duas cartas, duas apenas, e isso... por sua culpa... — Por minha culpa! exclamou Ernesto tão assombrado como se acabasse de ver um dos castiçaes a dansar. — Sim, repetiu ella, por sua culpa. Não se lembra? Tinha-se arrufado uma vez commigo, e eu... foi uma loucura... para metel-o em brios, para vingar-me… que loucura!... correspondi ao namoro d'aquelle indivíduo sem educação... foi demência minha, bem vejo… Mas que quer? eu estava despeitada... A alma de Ernesto ficou foi temente abalada com esta exposição que a moça lhe fazia dos acontecimentos. Era claro para elle que Rosina negaria tudo, se o seu procedimento tivesse alguma intenção má; a carta, diria que era imitação da sua lettra. Mas não; ella confessava tudo com a mais nobre e rude singellesa deste mundo; somente, — e nisto estava a chave da situação, —a moça explicava a que impulsos de despeito cedera, mostrando assim, se podemos comparar o coração a um pastel, debaixo do envolucro da levianvidade a nata do amor. Decorreram alguns segundos de silêncio, em que a moça tinha os olhos pregados no chão, na mais triste e melancholica attitude que jamais teve uma donzella arrependida. — Mas não viu que esse acto de loucura podia causar a minha morte? disse Ernesto.. Rosina estremeceu ouvindo estas palavras que Ernesto lhe disse com a voz mais doce dos seus antigos dias; levantou os olhos para elle e tornou a pousal-os no chão. — Se eu tivesse reflectido nisso, observar ella, não faria nada do que fiz. — Tem rasão, ia dizendo Ernesto, mas levado de um mau espirito de vingança entendeu que a leviandade da moça devia ser punida com alguns minutos mais de dúvida e recriminação. A moça ouviu ainda muitas cousas que lhe disse Ernesto, e a todas respondeu com um ar tão contricto e palavras tão repassadas de amargura, que o nosso namorado sentiu quasi rebentarem-lhe os lagrymas dos olhos. Os de Rosina estavam ja mais tranquillos, e a limpidez começava a tomar o lugar da sombra melancholica. A situação era quasi a mesma de algumas semanas antes; faltava so consilida-a com o tempo. Entretanto, disse Rosina: — Não pense que lhe peço mais do que me cumpre. Meu procedimento alguma punição hade ter, e eu estou perfeitamente resignada. Pedi-lhe que viesse aqui de afim de me explicar o seu silêncio; pela minha parte expliquei-lhe o meu desvario. Não posso ambicionar mais... — Não pôde?... — Não. Meu fim era não desmerecer a sua estima. — E porque não o meu amor? perguntou Ernesto. Parece-lhe que o coração possa apagar de repente, e por simples esforço de vontade, a chamma de que viveu longos dias? — Oh! isso é impossivel! respondeu a moça; e pela minha parte sei o que vou padecer... — Demais, disse Ernesto, a culpa de tudo fui eu, francamente o confesso. Ambos nós temos que perdoar um a outro; perdoo-lhe a leviandade; perdoa-me o fatal arrufo? Rosina, a menos de ter um coração de bronze, não podia deixar de conceder o perdão que o namorado lhe pedia. Foi reciproca a generosidade. Como na volta do filho pródigo, as duas almas festejaram aquella renascença da felicidade, e amaram-se com mais força que nunca. Três mezes depois, dia por dia, foi celebrado na egreja de S. Anna, que era então no Campo d'Acclamação, o consórcio dos dous namorados. A noiva estava radiante de ventura; o noivo parecia respirar os ares do paraíso celeste. O tio de Rosina deu um saráu a que compareceram os amigos de Ernesto, excepto o rapaz de nariz comprido. Não quer isto dizer que a amisade dos dous viesse a esfriar. Pelo contrario, o rival de Ernesto revelou certa magnanimidade, apertando ainda mais os laços que o prendiam desde a singular circumstância que os aproximou. Houve mais; dous annos depois do casamento de Ernesto, vemos os dous associados n'um armarinho, reinando entre ambos a mais serena intimidade. O rapaz de nariz comprido é padrinho de um filho de Ernesto. — Porque não te casas? pergunta Ernesto ás vezes ao seu sócio, amigo e compadre. — Nada, meu amigo, responde o outro, eu ja agora morro solteiro. FIM DE ERNESTO DE TAL AURORA SEM DIA Naquelle tempo contava Luiz Tinoco vinte e um annos. Era um rapaz de estatura meã, olhos vivos, cabellos em desordem, língua inexgotavel e paixões impetuosas. Exercia um modesto emprego no foro, donde tirava o parco sustento, e morava com o padrinho cujos meios de subsistência consistiam no ordenado da sua aposentadoria. Tinoco estimava o velho Anastácio e este tinha ao afilhado egual affeição. Luiz Tinoco possuía a convicção de que estava fadado para grandes destinos, e foi esse durante muito tempo o maior obstáculo da sua existência. No tempo em que o Dr. Lemos o conheceu começava a arder-lhe a chamma poética. Não se sabe como começou aquillo. Naturalmente os louros alheios entraram a tirar-lhe o somno. O certo é que um dia de manhã accordou Luiz Tinoco escriptor e poeta; a inspiração, flor abotoada ainda na véspera, amanheceu pomposa e viçosa. O rapaz atirou-se ao papel com ardor e perseverança, e entre as seis horas e as nove, quando o foram chamar para almoçar, tinha produzido um soneto, cujo principal defeito era ter cinco versos com syllabas de mais e outros cinco com syllabas de menos. Tinoco levou a producção ao Correio Mercantil, que a publicou entre os a-pedidos. Mal dormida, entremeada de sonhos interruptos, de sobresaltos e ancias, foi a noute que precedeu a publicação. A aurora raiou emfim, e Luiz Tinoco, apesar de pouco madrugador, levantou-se com o sol e foi ler o soneto impresso. Nenhuma mãe contemplou o filho recém-nascido com mais amor do que o rapaz leu e releu a producção poética, alias decorada desde a véspera. Afigurou-se-lhe que todos os leitores do Correio Mercantil estavam fazendo o mesmo; e que cada um admirava a recente revellação litteraria, indagando de quem seria esse nome até então desconhecido. Não dormiu sobre os louros imaginários. Dahi a dous dias, nova composição, e desta vez sahiu uma longa ode sentimental em que o poeta se queixava á lua do desprezo em que o deixara a amada, e ja entrevia no futuro a morte melancholica de Gilbert. Não podendo fazer despezas, alcançou, por intermédio de um amigo, que a poesia fosse impressa de graça, motivo este que retardou a publicação por alguns dias. Luiz Tinoco tragou a custo a demora, e não sei se chegou a suspeitar de inveja os redactores do Correio Mercantil. A poesia sahiu emfim; e tal contentamento produziu no poeta que foi logo fazer ao padrinho a grande revellação. — Leu hoje o Correio Mercantil, meu padrinho? perguntou elle. — Homem, tu sabes que eu so lia os jornaes no tempo em que era empregado effectivo. Desde que me aposentei não li mais os periódicos... — Pois é pena! disse Tinoco com ar frio; queria que me dissesse o que pensa de uns versos que la vem. — E de mais a mais versos! Os jornaes ja não fallam de politica? No meu tempo não fallavam de outra cousa. — Fallam de politica e publicam versos, porque ambas as cousas têem entrada na imprensa. Quer ler os versos? — Da ca. — Aqui estão. O poeta puxou da algibeira o Correio Mercantil, e o velho Anastácio entrou a ler para si a obra do afilhado. Com os olhos pregados no padrinho, Luiz Tinoco parecia querer adivinhar as impressões que produziam nelle os seus elevados conceitos, metrificados com todas as liberdades possíveis e impossíveis do consoante. Anastácio acabou de ler os versos e fez com a bocca um gesto de enfado. — Isto não tem graça, disse elle ao afilhado estupefacto; que diabo tem a lua com a indifferença dessa moça, e a que vem aqui a morte deste extrangeiro? Luiz Tinoco teve vontade de descompôr o padrinho, mas limitou-se a atirar os cabellos para traz e a dizer com supremo desdém: — São cousas de poesia que nem todos entendem; esses versos sem graça, são meus. — Teus? perguntou Anastácio no cumulo do espanto. — Sim, senhor. — Pois tu fazes versos? — Assim dizem. — Mas quem te ensinou a fazer versos? — Isto não se aprende; traz-se do berço. Anastácio leu outra vez os versos, e so então reparou na assignatura do afilhado. Não havia que duvidar: o rapaz dera em poeta. Para o velho aposentado era isto uma grande desgraça. Esse, ligava á idéia de poeta a idéia de mendicidade. Tinham-lhe pintado Camões e Bocage, que eram os nomes litterarios que elle conhecia, como dous improvisadores de esquina, espeitorando sonetos em troca de algumas moedas, dormindo nos adros das egrejas e comendo nas cocheiras das casas grandes. Quando soube que o seu querido Luiz estava atacado da terrível moléstia, Anastácio ficou triste, e foi nessa occasião que se encontrou com o Dr. Lemos e lhe deu noticia da gravíssima situação do afilhado. — Dou-lhe parte de que o Luiz está poeta. — Sim? perguntou lhe o Dr. Lemos. E que tal lhe sahiu o poeta? — Não me importa se sahiu mau ou bom. O que sei é que é a maior desgraça que lhe podia acontecer, porque isto de poesia não dá nada de si. Tenho medo que deixe o emprego, e fique ahi pelas esquinas a fallar á lua, cercado de moleques. O Dr. Lemos tranquillisou o homem dizendo-lhe que que os poetas não eram esses vadios que elle imaginava; mostrou-lhe que a poesia não era obstáculo para andar como os outros, para ser deputado, ministro ou diplomata. — No entanto, disse o Dr. Lemos, desejarei fallar ao Luiz; quero ver o que elle tem feito, porque como eu tambem fui outr'ora um pouco versejador, posso ja saber se o rapaz dá de si. Luiz Tinoco foi ter com elle; levou-lhe o soneto e a ode impressos, e mais algumas producções não publicadas. Estas orçavam pela ode ou pelo soneto. Imagens safadas, expressões communs, frouxo alento e nenhuma arte; apesar de tudo isso, havia de quando em quando algum lampejo que indicava da parte do neophyto propensão para o mister; podia ser ao cabo de algum tempo um excellente trovador de salas. O Dr. Lemos disse-lhe com franqueza, que a poesia era uma arte difficil e que pedia longo estudo; mas que, a querer cultival-a a lodo o transe, devia ouvir alguns conselhos necessários. — Sim, respondeu elle, pôde lembrar alguma cousa; eu não me nego a acceitar-lhe o que me parecer bom, tanto mais que eu fiz estes versos muito á pressa e não tive occasião de os emendar. — Não me parecem bons estes versos, disse o Dr. Lemos; poderia rasgal-os e estudar antes algum tempo. Não é possível descrever o gesto de soberbo desdem, com que Luiz Tinoco arrancou os versos ao doutor e lhe disse: — Os seus conselhos valem tanto como a opinião de meu padrinho. Poesia não se aprende; traz-se do berço. Eu não dou attenção a invejosos. Se os versos não fossem bons, o Mercantil não os publicava. E sahiu. Dahi em diante foi impossivel ter-lhe mão. Tinoco entrou a escrever como quem se despedia da vida. Os jornaes andavam cheios de producções suas, umas tristes, outras alegres, não daquella tristeza nem daquella alegria que vem direitamente do coração, mas de uma tristeza que fazia sorrir, e de uma alegria que fazia bocejar. Luiz Tinoco confessava singelamente ao mundo que fora invadido do septicismo byroniano, que tragara até às fezes a taça do infortúnio, e que para elle a vida tinha escripta na porta a inscripção dantesca. A inscripção era citada com as próprias palavras do poeta, sem que aliás Luiz Tinoco o tivesse lido nunca. Elle respigava nas alheias producções uma collecção de allusões e nomes litterarios, com que fazia as despezas de sua erudicção, e não lhe era preciso, por exemplo, ter lido Shakspeare para fallar do to be or not to be, do balcão de Julieta e das torturas de Othello. Tinha a respeito de biographias illustres noções extremamente singulares. Uma vez, agastando-se com a sua amada, —pessoa que ainda não existia, — aconteceu-lhe dizer que o clima fluminense podia produzir monstros daquella espécie, do mesmo modo que o sol italiano dourara os cabellos da menina Aspasia. Lera casualmente alguns dos psalmos do padre Caldas, e achou-os soporiferos; fallava mais benevolamente da Morte de Lindoya, nome que elle dava ao poema de J. Basilio da Gama, de que so conhecia quatro versos. Ao cabo de cinco mezes tinha Luiz Tinoco produzido uma quantia razoável de versos, e podia, mediante muitos claros e paginas em branco, dar um volume de cento e oitenta paginas. A idéia de imprimir um livro sorriu-lhe; e d'ahi a pouco era raro passar por uma loja sem ver no mostrador um prospecto assim concebido: GOIVOS E CAMELIAS POR LUIZ TINOCO. Um volume de 200 paginas…. 2$000 rs. O Dr. Lemos encontrou-o algumas vezes na rua. Andava com o ar inspirado de todos os poetas novéis que se suppoem apóstolos e martyres. Cabeça alta, olhos vagos, cabellos grandes e cahidos; algumas vezes abotoava o paletó e punha a mão ao peito por ter visto assim um retrato de Guizot; outras vezes andava com as mãos para traz. O Dr. Lemos fallou-lhe a terceira vez que o viu assim, porque das duas primeiras o rapaz esquivou-se por modo que não pôde deter-lhe o passo. Fez-lhe alguns elogio ás suas producções. Expandiu-se-lhe o rosto: — Obrigado, disse elle; esses elogios são o melhor prêmio das minhas fadigas. O povo não está preparado para a poesia: as pessoas intelligentes, como o doutor podem julgar do merecimento dos outros. Leu a minha Flor pallida? — Uns versos publicados no domingo? — Sim. — Li; são galantissimos. — E sentimentaes. Fiz aquella poesia em meia hora, e não emendei nada. Acontece-me isso muita vez. Que lhe parecem aquelles esdrúxulos? — Acho-os esdrúxulos. — São excellentes. Agora vou levar algumas estrophes que compuz hontem. Intitulam-se Á beira de um túmulo. — Ah! — Ja assignou o meu livro? — Ainda não. — Nem assigne. Quero dar-lhe um volume. Sahe brevemente. Estou recolhendo as assignaturas. Goivos e Camelias; que lhe parece o titulo? — Magnifico. — Achei-o de repente. Lembraram-me outros, mas eram communs. Goivos e Camelias, parece que é um titulo distincto è original; é o mesmo que se dissesse: tristezas e alegrias. — Justamente. Durante esse tempo, ia o poeta tirando do bolso uma alluvião de papeis. Procurava as estrophes de que fallára. O Dr. Lemos quiz esquivar-se, mas o homem era implacável; segurou-lhe no braço. Ameaçado de ouvir ler os versos na rua, o doutor convidou o poeta a ir jantar com elle. Foram a um hotel próximo. — Ah! meu amigo, dizia elle em caminho; não imagina quantos invejosos andam a denegrir o meu nome. O meu talento tem sido o alvo de mil ataques; mas eu ja estava disposto a isto. Não me espanto. A enxerga de Camões é um exemplo e uma consolação. Prometheu, atado ao Caucaso, é o emblema do gênio. A posteridade é a vingança dos que soffrem os desdens do seu tempo. No hotel procurou o Dr. Lemos um lugar mais afastado, onde não chamassem muito a attenção das outras pessoas. — Aqui estão as estrophes, disse Luiz Tinoco conseguiudo arrancar de um masso de papeis a poesia annunciada. — Não lhe parece melhor lel-as á sobremeza? — Como quizer, respondeu elle; tem razão, porque eu tambem estou com fome. Luiz Tinoco era todo prosa á meza do jantar; comeu desencadernadamente. — Não repare, dizia elle de quando em quando; isto é o animal que se está alimentando. O espirito aqui não tem culpa nenhuma. Á sobremesa, estando na sala apenas uns cinco freguezes, desdobrou Luiz Tinoco o fatal papel e leu as annunciadas estrophes, com uma melopéa affectada e perfeitamente ridícula. Os versos fallavam de tudo, da morte e da vida, das flores e dos vermes, dos amores e dos ódios; havia mais de oito cyprestes, cerca de vinte lagrymas, e mais tumulos do que um verdadeiro cemitério. Os cinco freguezes jantantes voltaram a cabeça, quando Luiz Tinoco começou a recitar os versos; depois começaram a sorrir e a murmurar alguma cousa que os dous não puderam ouvir. Quando o poeta acabou, um dos circumstantes, assaz grosseiro, soltou uma gargalhada. Luiz Tinoco voltou-se enfurecido, mas o Dr. Lemos conteve-o dizendo: — Não é comnosco. — E, meu amigo, disse elle resignado; mas que lhe havemos de fazer? quem entende a poesia para a respeitar em toda a parte? — Deixemos este lugar, disse o Dr. Lemos; aqui não comprehendem o que é um poeta. — Vamos! O Dr. Lemos pagou a conta e sahiu atraz de Luiz Tinoco, que deitou ao rideiro um olhar de desafio. Luiz Tinoco acompanhou-o até á casa. Recitou-lhe em caminho alguns versos que sabia de côr. Quando elle se entregava á poesia, não a alheia, que o não preoccupava muito, mas a própria, podia-se dizer que tudo mais se lhe apagava da memória; bastava-lhe a contemplação de si mesmo. O Dr. Lemos ia ouvindo calado com a resignação de quem supporta a chuva, que não pode impedir. Pouco tempo depois sahiram a lume os Goivos e Camelias, que todos os jornaes prometteram analysar mais de espaço. Dizia o poeta no prólogo da obra, que era audácia da sua parte « vir assentar-se na mesa da communhão da poesia, mas que todo aquelle que sentia dentro de si o j’ai quelque chose lá, de André Chenier, devia dar á pátria aquillo que a naturesa lhe deu. » Em seguida pedia desculpa para os seus verdes annos, e affirmava ao publico que não tinha sido « embalado em berços de seda. » Concluía dando a benção ao livro e chamando a attenção para a lista dos assignantes que vinha no fim. Ésta obra monumental passou despercebida no meio da indifferença geral. Apenas um folhetinista do tempo escreveu a respeito della algumas linhas que fizeram rir a toda a gente, menos o autor, que foi agradecer ao folhetinista. O Dr. Lemos perdeu de vista o seu poeta durante algum tempo. Digo mal; so perdeu de vista o homem, porque o poeta de quando em quando lhe apparecia mettido em alguma producção litteraria, que o Dr. Lemos invariavelmente lia para se benzer da estéril pertinácia de Luiz Tinoco. Não havia occasião, enterro ou expectaculo solemne, que escapasse á inspiração do fecundo escriptor. Como o numero de suas idéias fosse mui limitado, podia-se dizer que elle so havia escripto um necrológio, uma elegia, uma ode ou uma congratulação. Os differentes exemplares de cada uma d'estas cousas eram a mesma cousa dita por outro modo. O modo porém constituía a originalidade do poeta, originalidade que elle não teve a princípio, mas que se desenvolveu muito com o tempo. Infelizmente em quanto se entregava com ardor ás lides litterarias, esquecia-se o poeta das lides forenses, d'onde lhe vinha o pão. Anastácio queixou-se um dia desta desgraça ao Dr. Lemos, n'uma carta que acabava assim: « Não sei, meu amigo sr. Lemos, aonde irá parar este rapaz. Não lhe vejo outra conclusão: hospício ou xadrez. » O Dr. Lemos mandou chamar o poeta. Elogiou-lhe as suas obras com o fim de lhe dispor o espirito a ouvir o que ia dizer. O rapaz expandiu-se. — Ainda bem que eu ouço de quando em quando alguma voz animadora, disse elle; não sabe o que tem sido a inveja a meu respeito. Mas que importa? Tenho confiança no futuro; o que me vinga é a posteridade. — Tem razão, a posteridade é que vinga das maroteiras contemporâneas. — Li ha dias n'um papelucho, que eu era um alinhavador de ninharias. Percebi a intenção. Accusava-me de não metter hombros a obra de mais largo fôlego. Vou desmentir o papelucho: estou escrevendo um poema épico! — Ai! disse o Dr. Lemos consigo, adivinhando alguma leitura forçada do poema. — Podia mostrar-lhe alguma cousa, continuou Luiz Tinoco, mas prefiro que leia a obra quando estiver mais adiantada. — Muito bem. — Tem dez cantos, cerca de 10,000 versos. Mas quer saber a minha desgraça? — Qual é? — Estou apaixonado... — Realmente, é uma desgraça na sua posição. — Que tem a minha posição? — Creio que não é excellente. Dizem-me que se tem descuidado um pouco das suas obrigações do fòro, e que brevemente lhe vão tirar o emprego. — Fui despedido hontem. — Ja? — É verdade. Se ouvisse o discurso com que eu respondi ao escrivão, diante de toda a gente que enchia o cartório! Vinguei-me. — Mas... de que viverá agora? seu padrinho não pôde, creio eu, com o peso da casa. — Deus me ajudará. Não tenho eu uma penna na mão? Não recebi do berço um tal ou qual engenho, que ja tem dado alguma cousa de si? Até agora nenhum lucro tentei tirar das minhas obras; mas era so amador. D'aqui em diante o caso muda de figura; é necessário ganhar o pão, ganharei o pão. A convicção com que Luiz Tinoco dizia éstas palavras, entristeceu o amigo do padrinho. O Dr. Lemos contemplou durante alguns segundos, — com inveja, talvez, —aquelle sonhador incorrigivel, tão desapegado da realidade da vida, acreditando não so nos seus grandes destinos, mas tambem na verosimilhança de fazer da sua penna uma enxada. — Oh! deixe estar! continuou Luiz Tinoco; eu hei de provar-lhes, ao senhor ea meu padrinho, que não sou tão inútil como lhes pareço. Não me falta coragem, doutor; quando me faltasse, ha uma estrêlla... Luiz Tinoco calou-se, retorceu o bigode, e olhou melancholicamente para o ceu. O Dr. Lemos tambem olhou para o ceu, mas sem melancholia, e perguntou rindo: — Uma estrêlla? Ao meio dia é raro... — Oh! não fallo d'essas, interrompeu Luiz Tinoco; la é que ella devia estar, alli no espaço azul, entre as outras suas irmãs, mais velhas do que ella e menos formosas... — Uma moça? — Uma moça, é pouco; diga a mais gentil creatura que o sol ainda allumiou, uma sylphide, a minha Beatriz, a minha Julieta, a minha Laura... — Escusa dizel-o; deve ser muito formosa se fez apaixonar um poeta. — Meu amigo, o senhor é um grande homem; Laura é um anjo, e eu adoro-a... — E ella? — Ella ignora talvez que eu me consummo. — Isso é mau! — Que quer? disse Luiz Tinoco enxugando com o lenço uma lagryma imaginaria; é fado dos poetas arderem por cousas que não podem obter. É esse o pensamento de uns versos que escrevi ha oito dias. Publiquei-os no Caramanchão Litterario. — Que diacho é isso? — E a minha folha, que eu lhe mando de quinze em quinze dias... E diz que lê as minhas obras! — As obras leio... Agora os títulos, podem escapar. Vamos porém ao que importa. ninguem lhe contesta talento nem inspiração fecunda; mas o senhor illude-se pensando que pôde viver dos versos e dos artigos litterarios... Note que os seus versos e os seus artigos são muito superiores ao entendimento popular, e por isso devem ter muito menos acceitação... Este desenganar com as mãos cheias de rosas, produziu salutar effeito no ânimo de Luiz Tinoco; o poeta não pôde soffrear um sorriso de satisfação e bemaventurança. O amigo do padrinho concluiu o seu discurso offerecendo-lhe um logar de escrevente em casa de um advogado. Luiz Tinoco olhou para elle algum tempo sem dizer palavra. Depois: — Volto ao foro, não? disse elle com a mais melancholica resignação deste mundo. Minha inspiração deve descer outra vez a empoeirar-se nos libellos, a aturar os rábulas, a engrolar o vocabulário da chicana! E a troco de que? A troco de uns magros mil reis, que eu não tenho e me são necessários para viver. Isto é sociedade, doutor? — Ma sociedade, se lhe parece, respondeu o Dr. Lemos com doçura, mas não ha outra á mão, e a menos de não estar disposto a reformal-a, não tem outro recurso senão toleral-a e viver. O poeta deu alguns passos na sala; no fim de dous minutos estendeu a mão ao amigo. — Obrigado, disse elle, acceito; vejo que trata de meus interesses, sem desconhecer que me offerece um exilio. — Um exilio e um ordenado, emendou o Dr. Lemos. D'ahi a dias estava o poeta a copiar razões de embargos e de appellação, a lastimar-se, a maldizer da fortuna, sem adivinhar que daquelle emprego devia nascer uma mudança nas suas aspirações. O Dr. Lemos não lhe fallou durante cinco mezes. Um dia encontraram-se na rua. Perguntou-lhe pelo poema. — Está parado, respondeu Luiz Tinoco. — Deixa-o de mão? — Concluil-o-hei quando tiver tempo. — E a folha? — Deve saber que acabei com ella; não lh'a mando ha muito tempo. — É verdade, mas podia ser um esquecimento. Muito me conta! Então acabou o Caramanchão Litterario? — Deixei-o morrer no melhor período de vitalidade: tinha oitenta assignantes pagantes... — Mas então abandona as letras? — Não, mas... Adeus. — Adeus. Pareceu simples tudo aquillo; mas tendo-se ganho alguma cousa, que era empregal-o, o Dr. Lemos deixou que o próprio poeta lhe fosse annunciar a causa do seu somno litterario. Seria o namoro de Laura? Esta Laura, preciso é que se diga, não era Laura, era simplesmente Innocencia; o poeta chamava-lhe Laura nos seus versos, nome que lhe parecia mais doce, e effectivamente o era. Até que ponto existiu esse namoro, e em que proporções correspondeu a moça á chamma do rapaz? A história não conservou muita informação a este respeito. O que se sabe com certeza é que um dia appareceu um rival no horisonte, tão poeta como o padrinho de Luiz Tinoco, elemento muito mais conjugal do que o redactor do Caramanchão litterario, e quede um so lance lhe derrubou todas as esperanças. Não é preciso dizer ao leitor que este acontecimento enriqueceu a litteratura com uma extensa e chorosa elegia, em que Luiz Tinoco metrificou todas as queixas que pode ter de uma mulher um namorado trahido. Ésta obra tinha por epigraphe o nessun maogior dolore do poeta florentino. Quando elle a acabou e emendou, releu-a em voz alta, passeando na alcova, deu o último apuro a um ou outro verso, admirou a harmonia de muitos, e singelamente confessou de si para si que era a sua melhor producção. O Caramanchão litterario ainda existia; Luiz Tinoco apressou-se a levar o escripto ao prelo, não sem o ler aos seus collaboradores, cuja opinião foi idêntica á delle. Apesar da dor que o devia consummir, o poeta leu as provas com o maior desvello e escrúpulo, assistiu á impressão dos primeiros exemplares da folha, e durante muitos dias releu os versos até cançar. Do que elle menos se lembrava era da perfídia que os inspirou. Ésta porêm não era a razão do somno litterario de Luiz Tinoco. A razão era puramente politica. O advogado, cujo escrevente elle era, tinha sido deputado e collaborava n'uma gazata politica. O seu escriptorio era um centro, onde iam ter muitos homens públicos e se conversava largamente dos partidos e do governo. Luiz Tinoco ouviu a princípio essas conversas com a indifferença de um deus envolvido no manto da sua immortalidade. Mas a pouco e pouco foi adquirindo gosto ao que ouvia. Ja lia os discursos parlamentares e os artigos de polemica. Da attenção passou rapidamente ao enthusiasmo, porque naquelle rapaz tudo era extremo, enthusiasmo ou indifferença. Um dia levantou-se com a convicção de que os seus destinos eram políticos. — A minha carreira litteraria está feita, disse elle ao Dr. Lemos quando falláram nisto; agora outro campo me chama. — A politica? Parece-lhe que é essa a sua vocação? — Parece-me que posso fazer alguma cousa. — Vejo que é modesto, e não duvido que alguma voz interior o esteja convidando a queimar as suas azas de poeta. Mas, cuidado! Ha de ter lido Macbeth... Cuidado com a voz das feiticeiras, meu amigo. Ha no senhor demasiado sentimento, muita susceptibilidade, e não me parece que... — Estou disposto a accudir á voz do destino, interrompeu impetuosamente Luiz Tinoco. A politica chama-me ao seu campo; não posso, não devo, não quero cerrar-lhe os ouvidos. Não! as oppressões do poder, as bayonetas dos governos immoraes e corrompidos, não podem desviar uma grande convicção do caminho que ella mesma escolheu. Sinto que sou chamado pela voz da verdade. Quem foge á voz da verdade? Os covardes e os ineptos. Não sou inepto nem covarde. Tal foi a estreia oratória com que elle brindou o Dr. Lemos n'uma esquina onde felizmente não passava ninguem. — So lhe peço uma cousa, disse o ex-poeta. — O que é? — Recommende-me ao doutor. Quero acompanhal-o, e ser seu protegido; é o meu desejo. O Dr. Lemos cedeu ao desejo de Luiz Tinoco. Foi ter com o advogado e recommendou-lhe o escrevente, não com muita solicitude, mas tambem sem excessiva frieza. Felizmente o advogado era uma espécie de S. Francisco Xavier do partido, desejoso como ninguem de augmentar o pessoal militante; recebeu a recommendação com a melhor cara do mundo, e logo no dia seguinte, disse algumas palavras benevolas ao escrevente, que as ouviu tremulo de commoção. — Escreva alguma cousa, disse o advogado, e traga-me para ver se lhe achamos propensão. Não foi preciso dizer-lh'o duas vezes. Dous dias depois, levou o ex-poeta ao seu protector um artigo extenso e diffuso, mas cheio de enthusiasmo e fe. O advogado achou defeitos no trabalho; apontou-lhe demasias e nebulosidades, frouxidão de argumentos, mais ornamentação que solidez; todavia prometteu publical-o. Ou fosse porque lhe fizesse estas observações com muito geito e benevolência, ou porque Luiz Tinoco houvesse perdido alguma cousa da antiga susceptibilidade, ou porque a promessa da publicação lhe adoçasse o amargo da censura, ou por todas estas razões junctas, o certo é que elle ouviu com exemplar modéstia e alegria as palavras do protector. — Ha de perder os defeitos com o tempo, disse este mostrando o artigo aos amigos. O artigo foi publicado e Luiz Tinoco recebeu alguns apertos de mão. Aquella doce e indefinivel alegria que elle sentira quando estampou no Correio Mercantil os seus primeiros versos, voltou a experimental-a agora, mas alegria complicada de uma virtuosa resolução: Luiz Tinoco desde aquelle dia sinceramente acreditou que tinha uma missão, que a natureza e o destino o haviam mandado á terra para endireitar os tortos políticos. Poucas pessoas se terão esquecido do período final da estreia politica do ex-redactor do Caramanchão litterario. Era assim: « Releve o poder — hypocrita e sanhudo, — que eu lhe diga muito humildemente que não temo o desprezo nem o martyrio. Moysés conduzindo os hebreus á terra da promissão, não teve a fortuna de entrar nella: é o symbolo do escriptor que leva os homens á regeneração moral e politica, sem lhe transpor as portas de ouro. Que poderia eu temer? Prometheu atado ao Caucaso, Sócrates bebendo a cicuta, Christo expirando na cruz, Savanarola indo ao supplicio, John Brown esperneando na forca, são os grandes apóstolos da luz, o exemplo e o conforto dos amam a verdade, o remorso dos tyranos, e o terremoto do despotismo. » Luiz Tinoco não parou nestas primicias. Aquella mesma fecundidade da estação litteraria veio a reproduzir-se na estação politica; o protector, entretanto, disse-lhe que era conveniente escrever menos e mais assentado. O ex-poeta não repelliu a advertência, e até lucrou com ella, produzindo alguns artigos menos desgrenhados no estylo e no pensamento. A erudicção política de Luiz Tinoco era nenhuma; o protector emprestou-lhe alguns livros, que o ex-poeta acceitou com infinito prazer. Os leitores comprehendem facilmente que o autor dos Goivos e Camelias não era homem que meditasse uma página de leitura; elle ia atraz das grandes phrases, — sobretudo das phrases sonoras — demorava-se nellas, repetia-as, ruminava-as com verdadeira delícia. O que era reflexão, observação, analyse parecia-lhe árido, e elle corria depressa por ellas. Algum tempo depois houve uma eleição primaria. O publicista sentiu que havia em si um eleitor, e foi dizel-o afoutamente ao advogado. O desejo não foi mal acceito; trabalharam-se as cousas de modo que Luiz Tinoco teve o gosto de ser incluído n'uma chapa e a sorpreza de ficar batido. Batel-o foi possível ao governo; abatel-o, não. O ex-poeta, ainda quente do combate, traduziu em largos e floreados períodos o desprezo que lhe inspirava aquella victoria dos adversários. A esse artigo responderam os amigos do governo com um, que terminava assim: « Até onde quererá ir, com semelhante descomedimento de linguagem, o pimpolho do ex-deputado Z. ? » Luiz Tinoco quasi morreu de júbilo ao receber em cheio aquella descarga ministerial. A imprensa adversa não o havia tratado até então com a consideração que elle desejava. Uma ou outra vez, haviam discutido argumentos seus; mas faltava o melhor, faltava o ataque pessoal, que lhe parecia ser o baptismo de fogo naquella espécie de campanha. O advogado, lendo o attaque, disse ao ex-poeta que a sua posição era idêntica á do primeiro Pitt quando o ministro Walpole lhe respondeu chamando-lhe moço em plena câmara dos communs, e que era necessário repellir no mesmo tom a offensa ministerial. Luiz Tinoco ignorava até aquella data a existência de Pitt e de Walpole; achou todavia muito engenhosa a comparação das duas situações, e com habilidade e cautella perguntou ao advogado se lhe podia emprestar o discurso do orador britânico « para refrescar a memória. » O advogado não tinha o discurso, mas deu-lhe idéia delle, quanto bastou para que Luiz Tinoco fosse escrever um longo artigo acerca do que era e não era pimpolho. Entretanto, a lucta eleitoral lhe descobrira um novo talento. Como fosse necessário arengar algumas vezes, fêl-o o pimpolho a grande aprasimento seu e no meio de palmas geraes. Luiz Tinoco perguntou a si mesmo se lhe era licito aspirar ás honras da tribuna. A resposta foi affirmativa. Esta nova ambição era mais difficil de satisfazer; o ex-poeta o reconheceu, e armou-se de paciência para esperar. Aqui ha uma lacuna na vida de Luiz Tinoco. Razões que a historia não conservou, levaram o joven publicista á provincia natal do seu amigo e protector, dous annos depois dos acontecimentos eleitoraes. Não percamos tempo em conjecturar as causas desta viagem, nom as que alli o demoraram mais do que queria. Vamos ja encontral-o alguns mezes depois, collaborando n'um jornal com o mesmo ardor juvenil, de que dera tanta prova na capital. Recommendado pelo advogado aos seus amigos políticos e parentes, depressa creou Luiz Tinoco um circulo de companheiros, e não tardou que asentasse em alli ficar algum tempo. O padrinho ja estava morto; Luiz Tinoco achava-se absolutamente sem familia. A ambição do orador não estava apagada pela satisfação do publicista; pelo contrario, uma cousa avivava a outra. A idéia de possuir duas armas, brandil-as ao mesmo tempo, ameaçar e bater com ambas os adversários, tornou-se-lhe idéia chronica, presente, inextinguivel. Não era a vaidade que o levava, quero dizer, uma vaidade pueril. Luiz Tinoco acreditava piamente que elle era um artigo do programma da Providencia, e isso o sustinha e contentava. A sinceridade que nunca teve quando versificava os seus infortúnios entre suas palestras de rapazes, leve-a quando se enterrou a mais e mais na política. É claro que, se alguém lhe puzesse em duvida o mérito político, feril-o-hia do mesmo modo que os que lhe contestavam excellencias litterarias; mas não era so a vaidade que lhe offendiam, era tambem, e muito mais, a fe, — fe profunda e intolerante, — que elle linha de que o seu talento fazia parte da harmonia universal. Luiz Tinoco mandava ao Dr. Lemos na corte todos os seus escriptos da provincia, e contava-lhe singellamente as suas novas esperanças. Um dia noticiou-lhe que a sua eleição para a assemblea provincial era objecto de negociações que se lhe afiguravam propicias. O correio seguinte trouxe notícia de que a candidatura de Luiz Tinoco entrara na ordem dos factos consummados. A eleição fez-se e não deu pouco trabalho ao candidato fluminense, que á força de muita lucta e muito empenho pôde ter a honra de ser incluído na lista dos vencedores. Quando lhe deram noticia da victoria, entoou a alma de Luiz Tinoco um verdadeiro e solemne Te Deum Laudamus. Um suspiro, o mais entranhado e desentranhado de quantos suspiros jamais soltaram, homens, desafogou o coração do ex-poeta das dúvidas, e incertezas de longas e cruéis semanas. Estava emfim eleito! Ia subir o primeiro degrau do capitólio. A noite foi mal dormida, como a da véspera da publicação do primeiro soneto, e entremeada de sonhos análogos á situação. Luiz Tinoco via-se ja troando na assemblea provincial, entre os applausos de uns, as imprecações de outros, a inveja de quasi todos, e lendo em toda a imprensa da provincia os mais calorosos applausos á sua nova e original eloqüência. Vinte exordios fez o joven deputado para o primeiro discurso, cujo assumpto seria naturalmente digno de grandes rasgos e nervosos períodos. Elle ja estudava mentalmente os gestos, a altitude, todo o exterior da figura que ia honrar a sala dos representantes da provincia. Muitos grandes nomes da política haviam começado no parlamento provincial. Era verosimil, era indispensável até, para que elle cumprisse o mandato imperativo do destino, que sahisse dalli em pouco tempo para vir transpor a porta mais ampla da representação nacional. O ex-poeta occupava ja no espirito uma das cadeiras da Cadeia Velha, e remirava-se na própria pessoa e no brilhante papel que teria de desempenhar. Viaja diante de si a opposição ou o ministério estatellado no chão, com quatro ou cinco daquelles golpes que elle suppunha saber dar como ninguem, e as gazetas a fallarem, e o povo a occupar-se delle, e o seu nome a repercutir em todos os ângulos do império, e uma pasta a cahir-lhe nas mãos, ao mesmo tempo que o bastão do commando ministerial. Tudo isto, e muito mais imaginava o recente deputado, embrulhado nos lençoes, com a cabeça no travesseiro, e o espirito a vagar por esse mundo fora, que é a cousa peior que pode acontecer a um corpo modificado como estava o delle naquella occasião. Não se demorou Luiz Tinoco em escrever ao Dr. Lemos, e contar-lhe as suas esperanças e o programma que tencionava observar, desde que a fortuna lhe abria mais ampla estrada na vida pública. A carta tratava longamente do effeito provável da sua primeira oração, e terminava assim: « Qualquer que seja o posto a que eu suba; qualquer, entenda bem, ainda aquelle que é o primeiro do paiz, abaixo do imperador (e creio que irei até la), nunca me ha de esquecer que ao senhor o devo, á animação que me dispensou, á recommendação que fez de mim. Parece-me que até hoje tenho correspondido á confiança dos meus amigos; espero continuar a merecel-a. » Inauguraram-se emfim os trabalhos. Tão ancioso estava Luiz Tinoco de fallar que, logo nas primeiras sessões, a propósito de um projecto sobre a collocação de um chafariz, fez um discurso de duas horas em que demonstrou por A+B que a água era necessária ao homem. Mas a grande batalha foi dada na discussão do orçamento provincial. Luiz Tinoco fez um longo discurso em que combateu o governo geral, o presidente, os adversários, a polícia e o despotismo. Seus gestos eram até então desconhecidos na escala da gesticulaçao parlamentar; na provincia, pelo menos, ninguem tivera nunca a satisfação de contemplar aquelle sacudir de cabeça, aquelle arquear de braço, aquelle apontar, alçar, cahir e bater com a mão direita. O estylo tambem não era vulgar. Nunca se fallou de receita e despeza com maior luxo de imagens e figuras. A receita foi comparada ao orvalho que as flores recolhem durante a noite; a despeza á brisa da manhã que as sacode e lhes entorna um pouco do sereno vivificante. Um bom governo é apenas brisa; o presidente actual foi declarado sirocco e pampeiro. Toda a maioria protestou solemnemente contra essa qualificação injuriosa, ainda que poética. Um dos secretários confessou que nunca do Rio de Janeiro lhes fora uma aura mais refrigerante. Infelizmente os adversários não dormiam. Um delles, apenas Luiz Tinoco acabou o discurso entre alguns applausos dos seus amigos, pediu a palavra e cravou longo tempo os olhos no orador estreante. Depois sacou do bolço um maço de jornaes e um folheto, concertou a garganta e disse: — « Mandaram-nos do Rio de Janeiro o nobre deputado que me precedeu nesta tribuna. Diziam que era uma illustração fluminense, destinada a arrasar os talentos da provincia. Immediatamente, Sr. presidente, tratei de obter as obras do nobre deputado. « Aqui tenho eu, Sr. presidente, o Caramanchão Litterario, folha redigida pelo meu adversário, e o volume dos Goivos e Camelias. Tenho Ia em casa mais outras obras. Abramos os Goivos e Camelas. O Sr. Luiz Tinoco: — O nobre deputado está fora da ordem! (Apoiados.) O orador; — Continuo, Sr. presidente; aqui tenho os Goivos e Camelias. Vejamos um goivo. A Ella. Quem és tu que me atormentas Com teus prasenleiros sorrisos? Quem és tu que me apontas As portas dos paraísos? Imagem do ceu és tu? És filha da divindade? Ou vens prender em teus cabellos A minha liberdade? «Vê, V. Ex., Sr. presidente, que ja nesse tempo o nobre deputado era inimigo de todas as leis oppressoras. A assemblea tem visto como elle trata as leis do metro. » Todo o resto do discurso foi assim. A minoria protestou, Luiz Tinoco fez-se de todas as cores, e a sessão acabou em risada. No dia seguinte os jornaes amigos de Luiz Tinoco agradeceram ao adversário deste o triumpho que lhe proporcionou mostrando á provincia «uma antiga e brilhante face do talento do illustre deputado. » Os que indecorosamente riram dos versos, foram condemnados com éstas poucas linhas: « Ha dias um deputado governista disse que a situação era uma caravana de homens honestos e bons. E caravana, não ha dúvida; vimos hontem os seus camellos. » Nem por isso Luiz Tinoco ficou mais consolado. As cartas do deputado ao Dr. Lemos começaram a escassear, até que de todo cessaram de apparecer. Decorreram assim silenciosos uns três annos, ao cabo dos quaes o Dr. Lemos foi nomeado não sei para que cargo na provincia onde se achava Luiz Tinoco. Partiu. Apenas empossado do cargo, tratou de procurar o ex-poeta, e pouco tempo gastou, recebendo logo um convite delle para ir a um estabelecimento rural onde se achava. — Ha de me chamar ingrato, não? disse Luiz Tinoco, apenas viu assomar á porta de casa o Dr. Lemos. Mas não sou; contava ir vel-o daqui a um anno; e se lhe não escrevi... Mas que tem, doutor? está espantado? O Dr. Lemos estava effectivamente pasmado a olhar para a figura de Luiz Tinoco. Era aquelle o poeta dos Goivos e Camelias, o eloqüente deputado,o fogoso publicista? O que elle linha diante de si era um honrado, e pacato lavrador, ar e maneiras rústicas, sem o menor vestígio das attitudes melancholicas do poeta, do gesto arrebatado do tribuno, — uma transformação, uma creatura muito outra e muilo melhor. Riram-se ambos, um da mudança, outro do espanto, pedindo o Dr. Lemos a Luiz Tinoco lhe dissesse se era certo haver deixado a política, ou se aquillo eram apenas uma ferias para renovar a alma. — Tudo lhe explicarei, doutor, mas ha de ser depois de ter examinado a minha casa e a minha roça, depois de lhe apresentar minha mulher e meus filhos... — Casado? — Ha vinte mezes. — E não me disse nada! — Ia este anno á corte e esperava surprehendel-o.. Que duas creancinhas as minhas... lindas como dous anjos. Sahem á mãe, que é a flor da provincia. Oxalá se pareçam tambem com ella nas qualidades de dona de casa; que actividade! que economia!.. Feita a apresentação, beijadas as creanças, examinado tudo, Luiz Tinoco declarou ao Dr. Lemos que definitivamente deixara a política. — De vez? — De vez. — Mas que motivo? desgostos, naturalmente. — Não; descobri que não era fadado para grandes destinos. Um dia leram-me na assemblea alguns versos meus. Reconheci então quanto eram pifios os taes versos; e podendo vir mais tarde a olhar com a mesma lástima e egual arrependimento para as minhas obras políticas, arrepiei carreira e deixei a vida pública. Uma noite de reflexão e nada mais. — Pois teve ânimo?.. — Tive, meu amigo, tive ânimo de pisar terreno solido, em vez de patinhar nas illusões dos primeiros dias. Eu era um ridículo poeta e talvez ainda mais ridículo orador. Minha vocação era esta. Com pouco annos mais estou rico. Ande agora beber o café que nos espera e feche a hora, que as moscas andam no ar. FIM DA AURORA SEM DIA. O RELOGIO DE OURO Agora contarei a história do relogio de ouro. Era um grande chronometro, inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia. Luiz Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em casa, um relogio que não era d'elle, nem podia ser de sua mulher. Seria illusão dos seus olhos? Não era; o relogio alli estava sobre uma meza da alcova, a olhar para elle, talvez tão espantado, como elle, do logar e da situação. Clarinha não estava na alcova quando Luiz Negreiros alli entrou. Deixou-se ficar na sala, a folhear um romance, sem corresponder muito nem pouco ao ósculo com que o marido a comprimentou logo á entrada. Era uma bonita moça ésta Clarinha, ainda que um tanto pallida, ou por isso mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia uma creança; de perto, quem lhe examinasse os olhos, veria bem que era mulher como poucas. Estava mollemente reclinada no sopha, com o livro aberto, e os olhos no livro, os olhos apenas, porque o pensamento, não tenho certeza se estava no livro, se em outra parte. Em todo o caso parecia alheia ao marido e ao relogio. Luiz Negreiros lançou mão do relogio com uma expressão que eu não me atrevo a descrever. Nem o relogio, nem a corrente eram d'elle; tambem não eram de pessoas suas conhecidas. Tratava-se de uma charada. Luiz Negreiros gostava de charadas, e passava por ser decifrador intrepido; mas gostava de charadas nas folhinhas ou nos jornaes. Charadas palpaveis ou chronometricas, e sobretudo sem conceito, não as apreciava Luiz Negreiros. Por este motivo, e outros que são obvios, comprehenderá o leitor que o esposo de Clarinha se atirasse sôbre uma cadeira, puxasse raivosamente os cabellos, batesse com o pe no chão, e lançasse o relogio e a corrente para cima da mesa. Terminada esta primeira manifestação de furor, Luiz Negreiros pegou de novo nos fataes objectos, e de novo os examinou. Ficou na mesma. Cruzou os braços durante algum tempo e reflectiu sôbre o caso, interrogou todas as suas recordações, e concluiu no fim de tudo que, sem uma explicação de Clarinha qualquer procedimento fôra baldado ou precipitado. Foi ter com ella. Clarinha acabava justamente de ler uma página e voltava a folha com o ar indifferente e tranquillo de quem não pensa em decifrar charadas de chronometro. Luiz Negreiros encarou-a; seus olhos pareciam dous reluzentes punhaes. — Que tens? perguntou a moça com a voz doce e meiga que toda a gente concordava em lhe achar. Luiz Negreiros não respondeu á interrogação da mulher; olhou algum tempo para ella; depois deu duas voltas na sala, passando a mão pelos cabellos, por modo que a moça de novo lhe perguntou: — Que tens? Luiz Negreiros parou defronte d'ella. — Que é isto? disse elle tirando do bolso o fatal relogio e apresentando-lh'o diante dos olhos. Que é isto? repetiu elle com voz de trovão. Clarinha mordeu os beiços e não respondeu. Luis Negreiros esteve algum tempo com o relogio na mão e os olhos na mulher, a qual tinha os seus olhos no livro. O silêncio era profundo. Luiz Negreiros foi o primeiro que o rompeu, atirando estrepitosamente o relogio ao chão, e dizendo em seguida á esposa: — Vamos, de quem é aquelle relogio? Clarinha ergueu lentamente os olhos para elle, abaixou-os depois, e murmurou: — Não sei. Luiz Negreiros fez um gesto como de quem queria esganal-a; conteve-se. A mulher levantou-se, apanhou o relógio e pol-o sobre uma mesa pequena. Não se pôde soffrer Luiz Negreiros. Caminhou para ella, e, segurando-lhe nos pulsos com força, lhe disse: — Não me responderás, demônio? Não me explicarás esse enigma? Clarinha fez um gesto de dor, e Luiz Negreiros immediatamente lhe soltou os pulsos que estavam arrochados. N'outras circumstancias é provável que Luiz Negreiros lhe cahisse aos pes e pedisse perdão de a haver machucado. N'aquelle nem se lembrou d'isso; deixou-a no meio da sala e entrou a passear de novo, sempre agitado, parando de quando em quando, como se meditasse algum desfecho tragico. Clarinha sahiu da sala. Pouco depois veiu um escravo dizer que o jantar estava na mesa. — Onde está a senhora? — Não sei, não senhor. Luiz Negreiros foi procurar a mulher; achou a n'uma saleta de costura, sentada n'uma cadeira baixa, com a cabeça nas mãos a soluçar. Ao ruido que elle fez na occasião de fechar a porta atraz de si, Clarinha levantou a cabeça, e Luiz Negreiros pôde ver-lhe as faces humidas de lagrymas. Esta situação foi ainda peior para elle que a da sala. Luiz Negreiros não podia ver chorar uma mulher, sobretudo, a d'elle. Ia enxugar-lhe as lagrymas com um beijo, mas reprimiu o gesto, e caminhou frio para ella; puxou uma cadeira e sentou-se em frente de Clarinha. — Estou tranquillo, como ves, disse elle, responde-me ao que te perguntei com a franqueza que sempre usaste commigo. Eu não te accuso nem suspeito nada de ti. Quizera simplesmente saber como foi parar alli aquelle relogio. Foi teu pai que o esqueceu ca? — Não. — Mas então... — Oh! não me perguntes nada! exclamou Clarinha. Ignoro como esse relógio se acha alli... Não sei de quem é... deixa-me. — É de mais! urrou Luiz Negreiros, levantando-se e atirando a cadeira ao chão. Clarinha estremeceu, e deixou-se ficar aonde estava. A situação tornava-se cada vez mais grave; Luiz Negreiros passeava cada vez mais agitado, revolvendo os olhos nas orbitas, e parecendo prestes a atirar-se sobre a infeliz esposa. Ésta, com os cotovelos no regaço e a cabeça nas mãos, tinha os olhos encravados na parede. Correu assim cêrca de um quarto de hora. Luiz Negreiros ia de novo interrogar a esposa, quando ouviu a voz do sogro, que subia as escadas gritando: — O' seu Luiz! ó seu malandrim! — Ahi vem teu pai! disse Luiz Negreiros; logo me pagarás. Sahiu da sala de costura e foi receber o sogro, que ja estava no meio da sala, fazendo vira-voltas com o chapeu de sol, com grande risco das jarras e do candelabro. — Vocês estavam dormindo? perguntou o sr. Meirelles tirando o chapéu e limpando a testa com um grande lenço encarnado. — Não, senhor, estávamos conversando... — Conversando?... repetiu Meirelles. E accrescentou comsigo: — Estavam de arrufos... é o que ha de ser. — Vamos justamente jantar, disse Luiz Negreiros. Janta comnosco? — Não vim ca para outra cousa, acudiu Meirelles; janto hoje e amanhã tambem. Não me convidaste, mas é o mesmo. — Não o convidei?... — Sim, não fazes annos amanhã? — Ah! é verdade... Não havia razão apparente para que, depois d'estas palavras ditas com um tom lugubre, Luiz Negreiros repetisse, mas d'esta vez com um tom descommunalmente alegre: — Ah! é verdade!... Meirelles, que ja ia pôr o chapéu n'um cabide do corredor, voltou-se espantado para o genro, em cujo rosto leu a mais franca, súbita e inexplicável alegria. — Está maluco! disse baixinho Meirelles. — Vamos jantar, bradou o genro, indo logo para dentro, emquanto Meirelles seguindo pelo corredor ia ter á sala de jantar. Luiz Negreiros foi ter com a mulher na sala de costura, e achou-a de pe, compondo os cabellos diante de um espelho: — Obrigado, disse. A moça olhou para elle admirada. — Obrigado, repeliu Luiz Negreiros; obrigado e perdoa-me. Dizendo isto, procurou Luiz Negreiros abraçal-a; mas a moça, com um gesto nobre, repelliu o affago do marido e foi para a sala de jantar. — Tem razão! murmurou Luiz Negreiros. D'ahi a pouco achavam-se todos três á mesa do jantar, e foi servida a sopa, que Meirelles achou, como era natural, de gelo. Ia ja fazer um discurso a respeito da incuria dos creados, quando Luiz Negreiros confessou que toda a culpa era d'elle, porque o jantar estava ha muito na mesa. A declaração apenas mudou o assumpto do discurso, que versou então sobre a terrível cousa que era um jantar requentado, — qui ne valut jamais rieu. Meirelles era um homem alegre, pilherico, talvez frivolo de mais para a edade, mas em todo o caso interessante pessoa. Luiz Negreiros gostava muito d'elle, e via correspondida essa affeição de parente e de amigo tanto mais sincera quanto que Meirelles so tarde e de ma vontade lhe dera a filha. Durou o namoro cerca de quatro annos, gastando o pae de Clarinha mais de dous em meditar e resolver o assumpto do casamento. A final deu a sua decisão, levado antes das lagrymas da filha que dos predicados do genro, dizia elle. A causa da longa hesitação eram os costumes pouco austeros de Luiz Negreiros, não os que elle tinha durante o namoro, mas os que tivera antes e os que poderia vir a ter depois. Meirelles confessava ingenuamente que fora marido pouco exemplar, e achava que por isso mesmo devia dar á filha melhor esposo do que elle. Luiz Negreiros desmentiu as apprehensões do sogro; o leão impetuoso dos outros dias, tornou-se um pacato cordeiro. A amisade nasceu franca entre o sogro e o genro, e Clarinha passou a ser uma das mais invejadas moças da cidade. E era tanto maior o mérito de Luiz Negreiros quanto que não lhe fallavam tentações. O diabo mettia-se as vezes na pelle de um amigo e ia convidal-o a uma recordação dos antigos tempos. Mas Luiz Negreiros dizia que se recolhêra a bom porto e não queria arriscar-se outra vez ás tormentas do alto mar. Clarinha amava ternamente o marido, e era a mais dócil e affavel creatura que por aquelles tempos respirava o ar fluminense. Nunca entre ambos se dera o menor arrufo; a limpídez do ceu conjugal era sempre a mesma e parecia vir a ser duradoura. Que mau destino lhe soprou alli a primeira nuvem? Durante o jantar Clarinha não disse palavra, — ou poucas dissera, ainda assim as mais breves e em tom sêcco. — Estão de arrufo, não ha dúvida, pensou Meirelles ao ver a pertinaz mudez da filha. Ou a arrufada é so ella, porque elle parece-me lepido. Luiz Negreiros effectivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e cortezias com a mulher, que nem sequer olhava em cheio para elle. O marido ja dava o sogro a todos os diabos, desejoso de ficar a sos com a esposa, para a explicação última, que reconciliaria os ânimos. Clarinha não parecia desejal-o; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se-lhe do peito um suspiro. Ja se ve que o jantar, por maiores que fossem os exforços, não podia ser como nos outros dias. Meirelles sobretudo achava-se acanhado. Não era que receiasse algum grande acontecimento em casa; sua ideia é que sem arrufos não se aprecia a felicidade, como sem tempestade não se aprecia o bom tempo. Contudo, a tristeza da filha sempre lhe punha água na fervura. Quando veiu o cafe, Meirelles propoz que fossem todos tres ao theatro; Luiz Negreiros acceitou a ideia com enthusiasmo. Clarinha recusou seccamente. — Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pae com um modo impaciente. Teu marido está alegre e tu pareces-me abatida e preocupada Que tens? Clarinha não respondeu; Luiz Negreiros, sem saber o que havia de dizer, tomou a resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meirelles levantou os hombros. — Vocês la se entendem, disse elle. Se amanhã, apezar de ser o dia que é, vocês estiverem do mesmo modo, prometto-lhes que nem a sombra me verão. — Oh! ha de vir, ia dizendo Luiz Negreiros, mas foi interrompido pela mulher que desatou a chorar. O jantar acabou assim triste e aborrecido. Meirelles pediu ao genro que lhe explicasse o que aquillo era, e este prometteu que lhe diria tudo em occasião opportuna. Pouco depois sahia o pae de Clarinha protestando de novo que, se no dia seguinte os achasse do mesmo modo, nunca mais voltaria á casa d’elles, e que se havia cousa peior que um jantar frio ou requentado, era um jantar mal digerido. Este axioma valia o de Boileau, mas ninguem lhe prestou attenção. Clarinha fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi ler com ella. Achou-a sentada na cama, com a cabeça sobre uma almofada, e soluçando. Luiz Negreiros ajoelhou-se diante d'ella e pegou-lhe n'uma das mãos. — Clarinha, disse elle, perdoa-me tudo. Ja tenho a explicação do relogio; se teu pai não me falla em vir jantar amanhã, eu não era capaz de adivinhar que o relogio era um presente de annos que tu me fazias. Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de indignação com que a moça se pôz de pe quando ouviu éstas palavras do marido. Luiz Negreiros olhou para ella sem comprehender nada. A moça não disse uma nem duas; sahiu do quarto e deixou o infeliz consorte mais admirado que nunca. — Mas que enigma é este? perguntava a si mesmo Luiz Negreiros. Se não era um mimo de annos, que explicação póde ter o tal relogio? A situação era a mesma que antes do jantar. Luiz Negreiros assentou de descobrir tudo naquella noite. Achou, entretanto, que era conveniente reflectir maduramente no caso e assentar n'uma resolução que fosse decisiva. Com este propósito recolheu-se ao seu gabinete, e alli recordou tudo o que se havia passado desde que chegara a casa. Pesou friamente todas as razões, todos os incidentes, e buscou reproduzir na memória a expressão do rosto da moça, em toda aquella tarde. O gesto de indignação e a repulsa quando elle a foi abraçar na sala de costura, eram a favor d'ella; mas o movimento com que mordêra os lábios no momento em que elle lhe apresentou o relogio, as lagrymas que della rebentaram á mesa, e mais que tudo o silêncio que ella conservava a respeito da procedência do fatal objecto, tudo isso fallava contra a moça. Luiz Negreiros, depois de muito cogitar, inclinou-se á mais triste e deplorável das hypotheses. Uma ideia má começou a enterrar-se-lhe no espirito, á maneira de verruma, e tão fundo penetrou, que se apoderou delle em poucos instantes. Luiz Negreiros era homem assomado quando a occasião o pedia. Proferiu duas ou tres ameaças, sahiu do gabinete e foi ter com a mulher. Clarinha recolhêra-se de novo ao quarto. A porta estava apenas cerrada. Eram nove horas da noite. Uma pequena lamparina allumiava escassamente o aposento. A moça estava outra vez assentada na cama, mas ja não chorava; tinha os olhos fitos no chão. Nem os levantou quando sentiu entrar o marido. Houve um momento de silêncio. Luiz Negreiros foi o primeiro que fallou. — Clarinha, disse elle, este momento é solemne. Responde-me ao que te pergunto desde ésta tarde? A moça não respondeu. — Reflecte bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida. A moça levantou os hombros. Uma nuvem passou pelos olhos de Luiz Negreiros. O infeliz marido lançou as mãos ao collo da esposa e rugiu: — Responde, demônio, ou morres! Clarinha soltou um grito. — Espera! disse ella. Luiz Negreiros recuou. — Mata-me, disse ella, mas le isto primeiro. Quando ésta carta foi ao teu escriptorio ja te não achou la: foi o que o portador me disse. Luiz Negreiros recebeu a carta, chegou-se á lamparina e leu estupefacto estas linhas: « Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes annos; mando-te ésta lembrança. —Tua Yayá. » Assim acabou a história do relogio de ouro. FIM DO RELÓGIO DE OURO. PONTO DE VISTA I A D. Luiza P…, em Juiz de Fóra. Côrte, 5 de Outubro. Não me dirá a quem entregou você as encommendas que lhe pedi? Na sua carta vem mal escripto o nome do portador; e até hoje nem sombra d'elle, quem quer que seja. Sera o Luiz? Ouvi dizer que voce vinha para ca passar algum tempo; estimaria muito que assim fosse. Havia de gostar d'isto agora, apezar do calor, que tem sido forte. Hoje entretanto temos um dia excellente. Ou então, no caso de não vir, estimaria muito ir eu para la; mas papae, como voce sabe, ninguem ha que o tire dos seus commodos; e mamãe anda meia adoentada. Vontade teria ella de me ser agradável, mas eu é que não sou tão egoista. E olhe que perco muito; porque, alêm de ir ver a minha melhor amiga, iria ao mesmo tempo verificar se é verdade que ainda não tem esperanças de um nenê. Alguem me disse que sim. Porque nega voce isso? Ésta carta irá amanhã. Escreva-me logo; e dê muitas lembranças a seu marido, minhas e de todos nós. Adeus. RACHEL. II Á mesma Côrte, 15 de Outubro. Gastou muitos dias, mas veiu uma carta longa, e, apezar d'isso, curta. Obrigada pelo trabalho; peço-lhe que o repita; aborreço os seus bilhetinhos, escriptos ás carreiras, com o pensamento... em quem? N'esse marido cruel que so cuida de eleições, segundo li outro dia. Eu escrevo cartinhas quando não tenho tempo para mais. Mas quando me sobra tempo escrevo cartões. Creio que disse uma tolice; desculpe-me. Vieram as encommendas logo no dia seguinte ao da minha última carta. E que quer voce que eu lhe mande? Tenho aqui uns figurinos recebidos hontem, mas não ha portador. Se puder arranjar algum por estes dias irá tambem um romance que me trouxeram esta semana. Chama-se Ruth. Conhece? A Mariquinhas Rocha vae casar. Que pena! tão bonitinha, tão boa, tão creança, vae casar... com um sujeito velho! E não é so isto: casa-se por amor. Eu duvidei de semelhante cousa; mas todos dizem que tanto o pae como os mais parentes procuraram dissuadil-a de semelhante projecto; ella porêm insistiu de maneira que ninguem mais se lhe oppoz. A fallar verdade, elle não está a cahir de maduro; é velho, mas elegante, gamenho, robusto, alegre, diz muitas pilhérias e parece que tem bom coração. Não era eu que cahia apesar de tudo isto. Que consórcio póde haver entre uma rosa e uma carapuça? Antes, mil vezes antes, casasse ella com o filho do noivo; esse sim, é um rapaz digno de merecer uma moça como ella. Dizem que é um bandoleiro dos quatro costados; mas você sabe que eu não creio em bandoleiros. Quando uma pessoa quer, vence o coração mais versátil d'este mundo. O casamento parece que será d'aqui a dous mezes. Irei naturalmente ás exequias, quero dizer ás bodas. Pobre Mariquinhas! Lembra-se das nossas tardes no collegio? Ella era a mais quieta de todas, e a mais cheia de melancholia. Parece que adivinhava este destino. Papae approvou muito a escolha d'ella; faz-lhe muitos elogios como pessoa de juizo, e chegou a dizer que eu devia fazer o mesmo. Que lhe parece? Eu se tivesse de seguir algum exemplo, seguia o da minha Luiza; essa sim, é que teve dedo para escolher... Não mostre ésta carta a seu marido; é capaz de arrebentar de vaidade. E vocês não vem para ca? É pena; dizem que vamos ter companhia lyrica, e mamãe está melhor. Quer dizer que vou passar algum tempo de vida excellente. O futuro enteado da Mariquinhas, o tal que ella devia escolher em lugar do pae, affirma que a companhia é magnífica. Seja ou não, é mais um divertimento. E você la na roça!... Vou jantar; adeus. Escreva-me quando puder, mas nada de cartas microscopicas. Ou muito ou nada. Rachel. III Á MESMA. Côrte, 17 de Outubro. Escrevi-lhe ante-hontem uma carta, e accrescento hoje um bilhetinho (sem exemplo) para dizer que o velho noivo da Mariquinhas inspirou paixão a outra moça, que adoeceu de desespero. É uma história complicada. Comprehende isto? Se fosse o filho va; mas o pae! Rachel. IV Á MESMA. Côrte, 30 de Outubro. Muito velhaca é você. Então porque lhe fallei duas ou tres vezes no rapaz, imagina logo que estou apaixonada por elle? Papae n'estes casos costuma dizer que é falta de logica. Eu digo que é falta de amizade. E provo. Pois se eu tivesse algum namoro, affeição ou cousa assim, a quem diria em primeiro logar senão a você? Não fomos durante tanto tempo confidentes uma da outra? Suppor-me tão reservada é não me ter amisade nenhuma; porque a falta de affeição é que traz a injustiça. Não, Luiza, eu nada sinto por esse moço, a quem conheço de poucos dias. Fallei n'elle algumas vezes por comparação com o pae; se eu estivesse disposta a casar-me, certamente que preferia o moço ao velho. Mas é so isto e nada mais. Nem imagine que o Dr. Alberto (é o nome d'elle) vale muito; é bonito e elegante, mas tem ar pretencioso e parece-me um espirito curto. Voce sabe como eu sou exigente n'esses assumptos. Se eu não achar marido como imagino, fico solteira toda a minha vida. Antes isso, que ficar presa a um cepo, ainda que esbelto. Tambem não basta ter os predicados que eu imagino para me seduzir logo. Anda agora aqui em casa um sujeito que nos foi apresentado ha pouco tempo; qualquer outra moça ficava presa pelas maneiras d'elle; a mim não me faz a menor impressão. E porque? A razão é simples; toda a graça que elle ostenta, toda a affeição que simula, todos os cortejos que me faz, quer saber o que é, Luiza? é que eu sou rica. Descance; quando me apparecer aquelle que o ceu me destina, voce sera a primeira a ter noticia. Por ora estou livre, como as andorinhas que estão agora a passear na chácara. E para vingar-me da calúmnia, não escrevo mais. Adeus. Rachel. V Á MESMA. Côrte, 15 de Novembro. Estive doente estes dous dias; foi uma constipação forte que apanhei sahindo do Gymnasio, onde fui ver uma peça nova, muito fallada e muito insipida. Sabe você quem estava la? A Mariquinhas com o noivo noivo no camarote, e o enteado tambem, o futuro enteado, se Deus quizer. Não se póde imaginar como ella parecia contente, como ella conversava com o noivo! E olhe que de longe, á luz do gaz, o tal velho é quasi tão moço como o filho. Quem sabe? Bem pode ser que ella viva feliz! Dou-lhe muitos parabens pela notícia que me dá de que brevemente veremos um nenê. A mamãe tambem lhe manda parabéns. O Luiz leva com ésta carta uns figurinos... Rachel. VI A’ MESMA. Côrte, 27 de Novembro. A sua carta chegou quando estavamos almoçando, e foi bom tel-a lido depois, porque se a leio antes não acabava de almoçar. Que história é essa, e quem lhe metteu na cabeça semelhante cousa? Eu, namorada do Alberto! Isso é cassoada de mau gôsto, Luiza! Se alguém lhe mandou dizer tal, teve certamente intenção de me envergonhar. Se você o conhecesse, não era necessário este meu protesto. Ja lhe disse as boas qualidades d’elle, mas os seus defeitos são para mim superiores ás qualidades. Voce bem sabe como eu sou; para mim a menor nodoa destroe a maior alvura. Uma estatua... estatua é o termo próprio, porque o tal Alberto tem certa rigidez esculptural. Ah! Luiza, o homem que o ceu me destina ainda não veiu. Sei que não veiu porque ainda não senti dentro de mim aquelle estremecimento sympathico que indica a harmonia de duas almas. Quando elle vier, fique certa de que será a primeira a quem eu confiarei tudo. Dir-me-ha que, se eu sou assim fatalista, devo admittir a possibilidade de um marido sem todas as condições que exijo. Engano. Deus que me fez assim, e me deu esta percepção íntima para conhecer e amar a superioridade, Deus me ha de deparar uma creatura digna de mim. E agora que me expliquei deixe-me ralhar-lhe um pouco. Por que motivo dá tão facilmente ouvidos a uma calúmnia contra mim? Você que me conhece há tanto devia ser a primeira a pôr de quarentena esses ditos sem senso commum. Porque o não faz? Gastou você duas páginas para defender a Mariquinhas. Eu não a accuso; deploro-a. Pode ser que o noivo venha a ser um excellente marido, mas não creio que esteja na altura d'ella. E é n'este sentido que eu a deploro. A nossa divergência tem natural explicação. Eu sou uma moça solteira, cheia de caraminholas, sonhos, ambições e poesia; você é já uma dona de casa, esposa tranquilla e feliz, mãe de familia dentro de pouco tempo; ve a cousa por outro prisma. Será isto? Parece que a companhia lyrica não vem. A cidade está hoje muito alegre; andam bandas de musica nas ruas; chegaram boas notícias do Paraguay. Naturalmente sahiremos hoje; não tem saudades de ca? Adeus. Lembranças de todos a seu marido. RACHEL. VIII Á MESMA Côrte, 20 de Dezembro. Tem razão; pareço ingrata. Ha quasi um mez que lhe não escrevo, apezar de ter recebido ja duas cartas. Seria longo explicar ésta demora, e eu infelizmente não tenho tempo para tanto, porque estão aqui, alguns dias, as primas Alvarengas. Como que então, você confessa que apenas me quiz experimentar ? Eu logo vi que ninguem lhe poderia dizer semelhante cousa a respeito do Dr. Alberto. O casamento da Mariquinhas está marcado para vespera de Reis. Iremos assistir ao sacrificio. Desculpe-me, Luiza; bem sabe como sou sarcastica, e ás vezes... Desculpe-me, sim? E todavia, quer saber uma cousa? Mudei de opinião a certos respeito. Hoje penso que antes o pae que o filho. Que espirito frivolo! que sujeito superficial e tolo é o tal Alberto! O pae é grave e sabe ser amavel; e é amavel sem deixar de ser grave. Tem uma distincção propria, uma conversa animada, é engenhoso e sagaz. Mil vezes o velho... para ella. Pergunta-me o que farei eu no caso de nunca encontrar o ideial que procuro? Ja lhe disse: n'esse caso fico solteira. O casamento é uma grande cousa, é a flor dos estados, concordo; mas é mister que não seja um captiveiro, e captiveiro é tudo o que não realisa as nossas aspirações íntimas. Agradeço os seus conselhos, mas quer que lhe diga? Você falla como quem é feliz; parece-lhe que o casamento, quaesquer que sejam as condições, é um ante-gôsto do paraíso. Creio que nem sempre ha de ser assim. Verdade é que, dependendo as cousas das impressões de cada um, a Mariquinhas póde ser feliz, visto que o marido que escolheu parece fallar-lhe ao coração. Não o nego; mas, n'esse caso, continuo a lastimal-a, porque (repito) não comprehendo a união de uma flor com uma carapuça. E não escrevo mais por não dizer mal della. Perdoe-me voce éstas tolices, e creia que sou amiga, agora e sempre. RACHEL. VIII A’ MESMA Côrte, 8 de Janeiro. Casou-se a Mariquinhas. Festa íntima, mas brilhante. A noiva estava explendida, risonha, orgulhosa. O mesmo se póde dizer do noivo, que parecia ainda mais moço do que me parecera uma vez no theatro, a ponto de me fazer desconfiar da velhice d'elle. A cada instante cuidava que o homem tirava a mascara e confessava ser irmão do filho. Perguntar-me-he você se eu não tive inveja? Confesso que sim. Não sei bem se era inveja; confesso porêm que suspirei quando vi a nossa formosa Mariquinhas com o seu veu e a sua grinalda de flores de laranja, derramar um olhar tão celeste em torno de si, feliz por se despedir d'este mundo de futilidades como é a vida de uma moça solteira. Suspirei, é verdade. Se n'aquella mesma noite eu podesse escrever o que senti, acredite você que teria uma página de litteratura digna de figurar nos jornaes. Hoje tudo passou. O que não passou, entretanto, porque existia antes e existirá sempre, porque nasceu commigo e commigo morrerá, é este sonho de uns amores que eu nunca vi na terra, uns amores que eu não posso exprimir, mas que devem existir visto que eu tenho a imagem d'elles no espirito e no coração. Mamãe, quando me ve aborrecida e devaneadora, costuma perguntar-me se estou respirando as nuvens. Ella ignora talvez que exprime com essa palavra o estado do meu espirito. Pensar n'estas cousas não é ir respirar as nuvens la tão longe da terra? Acabo de reler o que escrevi, e riscaria tudo se tivesse mais papel para escrever. Infelizmente não tenho, é meia noite, e esta carta ha de seguir amanhã cedo. Risque pois o que ahi fica escripto; não vale a pena guardar tolices. Novidade não ha que mereça a pena de mencionar. Esquecia-me dizer-lhe que achei uma verdadeira qualidade no Dr. Alberto. Adivinha? Dansa admiravelmente. Má língua! dirá você. E para que não diga mais nada, aqui me fico. RACHEL. IX. A’ MESMA Côrte, 10 de Janeiro. Isto é apenas um bilhetinho. Dou-lhe notícia de que vamos ter aqui uma representação familiar, como faziamos no collegio. O Dr. Alberto foi encarregado de escrever a comedia; affianção-me que ha de sahir boa. Representa commigo a Carlota. Os homens são o primo Abreo, o Juca e o Dr. Rodrigues. Ah! se voce ca estivesse! X. D. LUIZA A D. RACHEL. Juiz de Fora, 15 de Janeiro. Meu marido quer ir á côrte no fim do mez que vem. Ver-nos-hemos emfim depois de alguns mezes de separação. Escrevo apenas para lhe dar ésta notícia que voce ha de estimar de certo. E ao mesmo tempo o meu fim é prevenil-a, afim de que procure disfarçar na presença aquillo que me disfarça no papel. Adeus. LUIZA. XI. D. RACHEL A D. LUIZA Côrte, 20 de Janeiro. O que é que eu disfarço no papel? Estou a meditar, a esquadrinhar, e nada descubro. Podia imaginar que voce se refere ao assumpto do Alberto ; mas depois do que eu lhe escrevi seria demasiada insistencia... Explique-se. Quanto á notícia que me dá de que vem ca, é para mim a sorte grande. Por mais que eu queira explicar no papel o prazer que sinto com isto, não posso. Não sei escrever; não me acodem as palavras próprias. O Dr. Alberto (o tal!) dizia outro dia que a lingua humana é cabal para dizer o que se passa no espirito, mas incapaz de dizer o que vem do coração. E accrescentou ésta sentença que é engenhosa, mas velha. Com os lábios falia a cabeça, com os olhos o coração. Você porem adivinhará o que eu sinto e apressará a sua vinda. E o nenê? RACHEL. XII A’ MESMA Côrte, 28 de Janeiro. Faz um calor insupportavel; mas como eu abri a janella que dá para o jardim, estou a ver o ceu « todo recamado de estrêllas » como dizem os poetas, e o espectaculo compensa o calor, Que noite, minha Luiza! Gosto immensamente destes grandes silêncios, por que então ouço-me a mim mesma, e vivo mais em cinco minutos de solidão do que em vinte horas de bulicio. A Mariquinhas Rocha esteve ésta noite ca em casa com o marido. Ambos parecem felizes, ella ainda mais do que elle, o que se me afigura completa inversão das leis naturaes. Não se admira de me ouvir fallar em « leis naturaes? » A ideia não é minha, é do próprio enteado, o Dr. Alberto. Conversamos os dous a respeito das boas e santas qualidades de Mariquinhas, e eu dizia o que ella foi sempre desde creança. — Creança é ainda ella, observou elle sorrindo. Não posso chamar madrasta a uma creatura que parece antes minha irmã mais moça. — Na edade, sim, tornei eu; mas na circumspecção e na compostura é positivamente mais velha que o senhor. Elle sorriu, mas de um sorriso amarello, e continuou: — Meu pae é feliz; minha madrasta parece ainda mais feliz que meu pae. Não é isto uma inversão das leis naturaes? Critique se lhe parece, a opinião do filho; mas aproveito a occasião para dizer que na sua última carta ha duas linhas em que parece ter um resto de suspeita. Mande-me dizer como quer que a convença de que elle é para mim uma creatura egual a tantas outras? Ande, confesse que é cruel commigo, e disponha-se a um sermão na primeira occasião em que estivermos juntas. Sabe quem eu vi hoje? Dou-lhe um doce se adivinhar. O Garcia, aquelle Garcia que a nam.... Não, não, paremos aqui. RACHEL. XIII D. LUIZA A D. RACHEL Juiz de Fóra, 10 de Fevereiro. Não confesso nada; não fui cruel. Tive uma suspeita e preferi dizel-a a guardal-a. A amisade manda isto mesmo. Porque razão deixaríamos nós aquella franqueza e confiança do tempo do collegio? Acredito que realmente nada ha, mas acredito tambem outra cousa. Estou a ver que é alguma figura grotesca, e que você foi antes offendida na vaidade que no coração. Va, confesse isso. Sabe voce uma cousa? Está-me parecendo mais poeta do que era, mais romanesca, mais cheia de caraminholas. Bem sei que a edade explica muita cousa; mas ha um limite, Rachel; não confunda o romance com a vida, ou viverá desgraçada.... . . . Um sermão ! ahi começava eu a fazer-lhe um sermão chocho e insulso, e sobretudo inefficaz. Venhamos a cousas mais de prosa. Meu marido quer entrar na política. Não se arrepia com ésta palavra? Política e lua de mel, que duas cousas tão inimigas! Mas será o que Deus quizer. Lembranças delle e minhas a sua mamãe e a você. Até breve. LUIZA. XIV D. RACHEL A D. LUIZA Côrte, 15 de Fevereiro. Engana-se quando suppõe que o Dr. Alberto é uma figura grotesca; ja lhe disse que é rapaz elegante; e até aquelle ar compassado e esculptural que eu lhe achava, até isso parece ter desapparecido desde que tem intimidade comnosco. Não foi pois a minha vaidade que se offendeu; não foi tambem o meu coração. Senti que voce não me acreditasse, nada mais. Eu podia fazer-lhe agora uma dissertação a respeito do amor; mas retraio a penna por me lembrar que iria ensinar o padre-nosso ao vigário. Seu marido quer entrar na política ? Vae voce admirar-se da minha opinião a este respeito, que não parece opinião de uma devaneadora, como voce me chama. Eu penso que a política para você tem uma onça de inconvenientes e uma libra de vantagens. A política hade ser uma rival, mas pesadas as cousas antes essa que outra. Essa ao menos occupa o espirito e a vida; mas deixa o coração livre e puro. Demais, eu nem sempre sou a scismadora quem tens na cabeça; sinto um grãosinho de ambição commigo, a ambição de ser... ministra. Ri-se? Eu tambem me rio, o que prova que o meu espirito anda despreoccupado e livre, livre como a penna que me corre agora no papel, produzindo uma lettra que não sei se entenderá. Adeus. RACHEL XV O DR. ALBERTO A RACHEL 18 de fevereiro. Perdoe-me a audacia; peço-lhe de joelhos uma resposta que os seus olhos teimam em me não dar. Não lhe digo no papel o que sinto ; não o poderia exprimir cabalmente. Mas o seu espirito hade ter comprendido o que se passa no meu coração, hade ter lido no meu rosto aquillo que eu nunca me atreveria a dizer de viva voz. ALBERTO. XVI D. RACHEL A D. LUIZA 21 de fevereiro. Mamãe estava com disposições de ir visital-a; mas eu infelizmente não me acho boa, e adiamos a viagem. Quando desempenha você a sua palavra vindo passar alguns dias na côrte? Conversariamos muito. RACHEL. XVII Á MESMA 5 de março. Não é carta; é apenas um bilhetinho. Não me dira o que é o coração humano? Um logogrypho. Mysterio! exclamará você ao ler estas linhas. Pois sera. RACHEL. XVIII ALBERTO A D. RACHEL 8 de março. Oh! não sabe como lhe agradeço a sua carta! Emfim veio! Foi um raio de luz entre as sombras da minha incertesa. Sou amado? Não me illude? Tambem sente esta paixão que me devora o peito, capaz de levar-me ao ceu, capaz de levar-me ao inferno? Tem razão quando me pergunta se o não percebêra ja nos seus olhos. É verdade que eu julguei ler n'elles a minha felicidade. Mas podia illudir-me; suppuz que a suprema felicidade não era tão prompta, e se me illudisse, não sei se viveria.... Por que razão duvida de mim? por que motivo receia que o meu amor seja um passatempo de sala? Que mortal haveria n'este mundo que brincasse com a coroa de gloria trazida á terra nas mãos de um anjo? Não, Rachel. . perdão se lhe chamo assim ! Não, o meu amor é immenso, casto, sincero, como os verdadeiros amores. Uma so palavra sua e podemos converter esta paixão no mais doce e delicioso estado de bemaventuraça. Quer ser minha esposa? Diga, responda essa palavra. ALBERTO. XIX D. LUIZA A D. RACHEL Juiz de Fóra, 10 de março O coração é um mar, sujeito á influencia da lua e dos ventos. Serve-lhe esta definição? Pena foi que o bílhetinho não tivesse mais quatro linhas: saberia agora tudo. Ainda assim adivinho alguma cousa; adivinho que ama. LUIZA. XX Á MESMA Juiz de Fóra, 17 de março A 10 deste mez escrevi-lhe uma carta de que ainda não obteve resposta. Porque? Ja me lembrou se estaria doente; mas creio que se assim fosse ter-me-hiam mandado dizer. Ésta carta vae por mão própria; o portador não volta ca; mas sendo por mão própria tenho certeza de que lhe será entregue. E quero que me responda immediatamente. Va; um esfôrço. Adeus. LUIZA. XXI D. LUIZA A D. RACHEL Juiz de Fóra, 24 de março. Nada até hoje! Que é isso, Rachel? O portador da minha carta anterior mandou-me dizer que lhe havia entregue em mão própria; não estava doente; porque razão este esquecimento? Ésta é a última; se me não escrever, acreditarei que outra amiga lhe merece mais, e que você esqueceu a confidente do collegio LUIZA. XXII D. RACHEL A D. LUIZA Côrte, 30 de março. Esquecer-me de você? Está louca! Onde acharia eu melhor amiga nem tão boa? Não tenho escripto, é verdade, por mil rasões, a qual mais justa, sendo a principal dellas, ou antes a que as resume todas, uma razão... Não sei como lhe diga isto. Amor? Ah! Luiza, o mais puro e ardente que póde imaginar, e o mais inesperado tambem. Aquella devaneadora que você conhece, a que vive nas nuvens, viu la mesmo das nuvens o esperado do seu coração, tal qual o sonhara um dia e desesperára de achar jamais. Não lhe posso dizer mais nada; não sei. Tudo o que eu poderia escrever aqui estaria abaixo da realidade. Mas venha, venha, e talvez leia no meu rosto a felicidade que experimento, e no delle o signal característico daquella superioridade que eu ambicionei sempre e tão rara é na terra. Emfim, sou feliz! RACHEL. XXII D. LUIZA A D. RACHEL Juiz de Fora, 8 de abril. Chegou emfim uma carta, e chegou a tempo, por que eu ja estava disposta a esquecer-me de você. Ainda assim não lhe perdoava, se não fosse a razão... Ceus! que razão! Ama emfim? achou o homem... quero dizer, o archanjo que procurava a minha scismadora? Que figura tem? é bonito? é alto ? é baixo? Va, diga-me tudo. Agora vejo que estive a pique de fazel-a perder a sua felicidade. Tanto lhe fallei no tal Dr. Alberto, que, era bem possível, como ás vezes acontece, vir a namorar-se delle, e então quando o outro chegasse... era tarde. E diga-me; será elle velho como o da Mariquinhas Rocha? Não se zangue, Rachel, mas o peixe morre pela boca, e era possível que você fosse castigada por ter fallado della. Pela minha parte, não acharia que dizer, uma vez que elle a amasse e fosse homem digno de casar com a minha Rachel. Em todo o caso, antes um moço. Não me atrevo a pedir-lhe o retrato; mas meu marido pede-lh'o. Não se zangue, eu contei tudo, elle manda-lhe muitos parabéns. Os meus, irei eu mesma leval-os. LUIZA. XXIV D. RACHEL AO DR. ALBERTO 10 de abril. Estou muito zangada por não teres vindo hontem; cedo começas a esquecer-me. Vem hoje ou eu fico zangada. Ao mesmo tempo quero que me tragas um retrato dos teus; é um segredo. Hontem perdeste muito; esteve aqui a G.. e naturalmente sentiu a tua falta. Sentes isso, não? Pobre da Rachel! Adeus. RACHEL. XXV O DR. ALBERTO A D. RACHEL 10 de abril. Perdoa-me se não fui hontem la; em compensação pensei muito em ti. Teu pae pediu-me que eu fosse jantar hoje com a familia; espera-me cedo. Levarei nessa occasião o meu retrato, sem saber para que é; mas espero que não será para cousa ma. Quanto á G... eu ja não sei como te heide de dizer que é uma delambida de quem não faço caso; se queres, limitar-me-hei a comprimental-a apenas. Que mais desejas? Adeus, minha desconfiada. Crê que eu te amo muito, muito e muito, agora e sempre. Teu ALBERTO. XXVI D. RACHEL A D. LUIZA 17 de abril. Uma grande noticia! Fui hontem pedida a papae, e vou casar. Se soubesse como sou feliz!.. Quizera que estivesse aqui para dar-lhe muitos e muitos beijos. Mas hade vir ao casamento, não? Se não vier, declaro que não caso. Naturalmente adivinha que o retrato que vae dentro desta carta é o do meu noivo. Não é bonito? Que distincção! que intelligencia! que espirito!... A alma, sobretudo, não creio que Deus mandasse a este mundo nenhuma outra que se lhe compare. Creio que eu não merecia tanto. Venha depressa; o casamento hade ser em maio. Dê a noticia a seu marido. RACHEL. XXVII D. LUIZA A D. RACHEL Juiz de Fóra, 22 de abril. Que cabeça! disse tudo menos o nome do noivo! LUIZA. XXVIII D.. RACHEL A D. LUIZA Corte, 27 de abril Tem razão; sou uma cabeça no ar. Mas a felicidade explica ou desculpa tudo. O meu noivo é o Dr. Alberto. RACHEL. XXIX D. LUIZA A D. RACHEL Juiz de Fóra, 1o de maio !!! LUIZA. FIM DO PONTO DE VISTA Nesta página a digitalização cortou as últimas palavras das linhas. Averiguar como proceder neste caso. Em todos os casos em que houver problema de digitalização, anotaremos num arquivo à parte o exemplar e a página exata, para pedir que refaçam a digitação. Ok, professor. Farei isso.