YAYÁ GARCIA OBRAS DO AUTOR ______ YAYÁ GARCIA, romance. Helena, romance. RESSURREIÇÃO, romance. A MÃO E A LUVA, romance. CONTOS FLUMINENSES. HISTORIAS DA MEIA NOITE. AMERICANAS, poesias. PHALENAS, poesias. CHRYSALIDAS, poesias. YAYÁ GARCIA POR MACHADO DE ASSIS _______ RIO DE JANEIRO G. VIANNA & C., EDITORES Typ. do Cruzeiro 1878 YAYÁ GARCIA _____ I Luiz Garcia transpunha a soleira da porta, para sahir, quando appareceu um creado e lhe entregou esta carta: « 5 de Outubro de 1866. « Sr. Luiz Garcia — Peço-lhe o favor de vir falar-me hoje, de uma a duas horas da tarde. Preciso de seus conselhos, e talvez de seus obsequios. — VALERIA. » — Diga que irei. A senhora está ca no morro? — Não, senhor, está na rua dos Invalidos. Luiz Garcia era funccionario público. Desde 1860 elegera no logar menos povoado de Santa Thereza uma habitação modesta, onde se metteu a si e a sua viuvez. Não era frade, mas queria como elles a solidão e o socêgo. A solidão não era absoluta, nem o socêgo ininterrompido; mas eram sempre maiores e mais certos que cg, embaixo. Os frades que, na puericia da cidade, se tinham alojado nas outras collinas, desciam muita vez, — ou quando o exigia o sacro ministerio, ou quando o governo precisava da espada canonica, — e as occasiões não eram raras; mas geralmente em derredor de suas casas não ia soar a voz da labutação civil. Luiz Garcia podia dizer a mesma cousa; e, porque nenhuma vocação apostolica o incitava a abrir a outros a porta de seu refúgio, podia dizer-se que fundára um convento em que elle era quasi toda a communidade, desde prior até noviço. No momento em que começa esta narrativa, tinha Luiz Garcia quarenta e um annos. Era alto e magro, um começo de calva, barba rapada, ar britannico e circumspecto. Suas maneiras eram frias, modestas e cortezes; a physionomia um pouco triste. Um observador attento podia adivinhar por traz daquella impassibilidade apparente ou contrahida as ruinas de um coração desenffanado. Assim era; a experiência, que foi precoce produzira em Luiz Garcia um estado de apathia e scepticismo, com seus laivos de desdem que é a flor das almas revôltas pela vida. Esse desdem não se revellava por nenhuma expressão exterior; era a ruga sardonica do coração. Por fora, havia so a máscara immovel, o gesto lento e as attitudes tranquillas. Alguns poderiam temel-o, outros detestal-o, sem que merecesse execração nem temor. Era inoffensivo por temperamento e por cálculo. Como um célebre ecclesiastico, tinha para si que uma onça de paz vale mais que uma libra de victoria. Poucos lhe queriam deveras; e esses empregavam mal a affeição, que elle não retribuía com affeição egual, salvo duas excepções. Nem por isso era menos amigo de obsequiar. Luiz Garcia amava a espécie e aborrecia o indivíduo. Quem recorria a seu prestimo, era raro que não obtivesse favor. Obsequiava sem zelo, mas com .efficacia, e tinha a particularidade de esquecer ô beneficio, antes que o beneficiado o esquecesse: effeito pasmoso em tal gênero de transacções. A vida de Luiz Garcia era como a pessoa delle, — taciturna e retrahida. Não fazia nem recebia visitas. A casa era de poucos amigos; havia la dentro a melancholia da solidão. Um so logar podia chamar-se alegre; eram as poucas braças de quintal que Luiz Garcia percorria e regava todas as manhãs. Erguia-se com o sol, tomava do regador, dava de beber ás flores e á hortaliça; depois recolhia-se e ia trabalhar antes do almoço, que era ás oito horas. Almoçado, descia a passo lento até á repartição, onde, se tinha algum tempo, folheava rapidamente as gazetas do dia. Trabalhava silenciosamente, com a fria serenidade do methodo. Fechado o expediente, voltava logo para casa, detendo-se raras vezes em caminho. Ao chegar a casa, ja o preto Raymundo lhe havia preparado a mesa, — uma mesa de quatro a cinco palmos, — sobre a qual punha o jantar, parco em número, medíocre na espécie, mas farto saboroso para um estômago sem aspirações nem saudades. Ia d'alli ver as plantas e reler algum como trancado, até que a noite caja. Então, sentava-se á mesa a trabalhar até ás nove horas, que era a hora do cha. Não somente o teor da vida tinha essa uniformidade, mas também a casa participava delia. Cada movel, cada objecto, — ainda os Ínfimos,— parecia haver-se petrificado. A cortina, que usualmente era corrida a certa hora, como que sé enfadava se lhe não deixavam passar o ar e a luz, á hora costumada; abriam-se as mesmas janellas e nunca outras. A regularidade era o estai tuto commum. E se o homem amoldara as cousas a seu geito, não admira que amoldasse também o homem. Raymundo parecia feito expressamente para servir Luiz Garcia. Era um preto de cincoenta annos, estatura mediana, forte, apezar de seus largos dias, um typo de africano, submisso e dedicado. Era escravo e livre. Quando Luiz Garcia o herdou de seu pae, — não avultou mais o espolio, — deu-lhe logo carta de liberdade. Raymundo, nove annos mais velho que o senhor, carregára-o ao collo, e amava-o como se fôra seu filho. Vendo-se livre, pareceu-lhe que era um modo de o expellir de casa, e sentiu um impulso atrevido e generoso. Fez um gesto para dilacerar a carta de alforria, mas arrependeu-se a tempo. Luiz Garcia viu so a generosidade, não o atrevimento; palpou o affecto do escravo, sentiu-lhe o coração todo. Entre um e outro houve um pacto que para sempre os uniu. — És livre, disse Luiz Garcia; viverás commigo até quando quizeres. Raymundo foi dalli em diante um como espirito externo de seu senhor; pensava por este e reflectia-lhe o pensamento interior, em todas as suas acções, não menos silenciosas que pontuaes. Luiz Garcia não dava ordem nenhuma; tinha tudo á hora e no logar competente. Raymundo, posto fosse o único servidor da casa, sobrava-lhe tempo, á tarde, para conversar com o antigo senhor, no jardinete, emquanto a noite vinha cahindo. Alli falavam de seu pequeno mundo, das raras occurrencias domésticas, do tempo que devia fazer no dia seguinte, de uma ou outra circumstância exterior. Quando a noute caia de todo, e a cidade abria os seus olhos de gaz, recolhiam-se elles a casa, a passo lento, á ilharga um do outro. — Raymundo hoje vae tocar, não é? dizia ás vezes o preto. — Quando quizeres, meu velho. Raymundo accendia as vellas, ia buscar a marimba, caminhava para o jardim, onde se sentava a tocar e a cantarolar baixinho umas vozes de Africa, memorias desmaiadas da tribu em que nascêra. O canto do preto não era de saudade; nenhuma de suas cantilenas vinha afinada na clave pezarosa. Alegres eram, guerreiras, enthusiastas, fragmentos epicos, residuo do passado, que elle não queria perder de todo, não porque lastimasse a sorte presente, mas por uma espécie de fidelidade ao que ja foi. Por fim calava-se. O pensamento, em vez de volver ao berço africano, galgava a janella da sala em que Luiz Garcia trabalhava e pousava sobre elle como um feitiço protector. Quaesquer que fossem as differenças civis e naturaes entre os dous, as relações domésticas os tinham feito amigos. Entretanto, das duas affeições de Luiz Garcia, Raymundo era apenas a segunda; a primeira era uma filha. Se o jardim era a parte mais alegre da casa, o domingo era o dia mais festivo da semana. No sabbado, á tarde, acabado o jantar, descia Raymundo até á rua dos Arcos, a buscar a sinhá moça, que estava sendo educada em um collegio. Luiz Garcia esperava por elles, sentado á porta ou encostado á janella, quando não era escondido em algum recanto da casa, para fazer rir a pequena. Se a menina o não via á janella ou á porta, percebia que se escondera e corria a casa, onde não era difficil dar com elle, porque os recantos eram poucos. Então caíam, nos braços um do outro. Luiz Garcia pegava della e sentava-a nos joelhos. Depois, beijava-a, tirava-lhe o chapellinho, que cobria os cabellos acastanhados e lhe tapava parte da testa rosada e fina; beijava-a outra vez, mas então nos cabellos e nos olhos, — os olhos, que eram claros e filtravam uma luz insinuante e curiosa. Contava onze annos e chamava-se Lina. O nome doméstico era Yayá. No collegio, como as outras meninas lhe chamassem assim, e houvesse mais de uma com egual nome, accrescentavam-lhe o appellido de família. Esta era Yayá Garcia. Era alta, delgada, travêssa; possuía os movimentos súbitos e incoherentes da andorinha. A boca desabrochava facilmente em riso, — um riso que ainda não toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra edade. Longos e muitos eram os beijos trocados com o pae. Luiz Garcia punha-a no chão, tornava a subil-a aos joelhos, até que consentia finalmente em separar-se delia por alguns instantes. Yayá ia ter com o preto. — Raymundo, o que é que você me guardou? — Guardei uma cousa, respondia elle sorrindo. Yayá não é capaz de adivinhar o que é. — É uma fructa, — Não é. — Um passarinho? — Não adivinhou, — Um doce? — Que doce é? — Não sei; dá ca o doce. Raymundo negaceava ainda um pouco; mas afinal entregava a lembrança guardada. Era ás vezes um confeito, outras uma fructa, um insecto exquisito, um mólho de flôres. Yayá festejava a lembrança do escravo, dando saltos de alegria e de agradecimento. Raymundo olhava para ella, bebendo a felicidade que se lhe entornava dos olhos, como um jôrro de agua virgem e pura. Quando o presente era uma fructa ou um doce, a menina trincava-o logo, a olhar e a rir para o preto, a gesticular, e a interromper-se de quando em quando: — Muito bom! Raymundo é amigo de Yayá.... Viva Raymundo! E seguia d'alli a mudar de roupa, e a visitar o resto da casa e o jardim. No jardim achava o pae ja sentado no banco do costume, com uma das pernas sobre a outra, e as mãos cruzadas sobre o joelho. Ia ter com elle, sentava-se, erguia-se, colhia uma flor, corria atraz das borboletas. De noite, não havia trabalho para Luiz Garcia; a noite, como o dia seguinte, era toda consagrada á creança. Yayá referia ao pae as anedoctas do collegio, as puerilidades que não valem mais nem menos que outras da edade madura, as intriguinhas de nada, as pirraças de cousa nenhuma. Luiz Garcia escutava-a com egual attenção á que prestaria a uma grande narrativa histórica. Seu magro rosto austero perdia a frieza e a indifferença; inclinado sobre a mesa, com os braços estendidos, as mãos da filha nas suas, considerava-se o mais venturoso dos homens. A narrativa da pequena era como costumam ser as da edade infantil: desegual e truncada, mas cheia de um collorido seu. Elle ouvia-a sem interromper; corrigia, sim, algum erro de prosódia ou alguma reflexão menos justa; fora disso, ouvia somente. Pouco depois da madrugada todos tres estavam de pe. O sol de Santa Thereza era o mesmo da rua dos Arcos; Yayá, porém, achava-lhe alguma cousa mais ou melhor, quando o via entrar pela alcova dentro, atravez das persianas. Ia á janella que dava para uma parte do jardim. Via o pae bebendo a chicara de café, que aos domingos precedia o almoço. As vezes ia ter com elle; outras vezes elle caminhava para a janella, e, com o peitoril de permeio, trocavam os osculos da saudação. Durante o dia, Yayá derramava pela casa toda as sobras de vida que tinha em si. O rosto de Luiz Garcia accendia-se de um reflexo de juventude, que lhe dissipava as sombras accumuladas pelo tempo. Raymundo vivia da alegria dos dous. Era domingo para todos tres, e tanto o senhor como o antigo escravo não ficavam menos collegiaes que a menina. — Raymundo, dizia ésta, você gosta de santo de comer? Raymundo empertigava o corpo, abria um riso, e dando aos quadris e ao tronco o movimento de suas danças africanas, respondia cantarolando: — Bonito santo! santo gostoso! — E santo de trabalhar? Raymundo, que ja esperava o reverso, estacava subitamente, punha a cabeça entre as mãos, e affastava-se murmurando com terror: — Eh... eh... não fala nesse santo, Yayá! não fala nesse santo! — E santo de comer? — Bonito santo! santo gostoso! E o preto repetia o primeiro jogo, depois o segundo, até que Yayá, aborrecida, passava a outra cousa. Não havia sO recreio. Uma parte mínima do dia, — pouco mais de uma hora, — era consagrada ao exame do que Yayá aprendera no collegio, durante os dias anteriores. Luiz Garcia interrogava-a, fazia-a ler, contar e desenhar alguma cousa. A docilidade da menina encantava a alma do pae. Nenhum receio, nenhuma hesitação; respondia, lia ou. desenhava, conforme lhe era mandado ou pedido. — Papae quer ouvir tocar piano? disse ella um dia; olhe, é assim. E com os dedos na borda da mesa, executava um trecho musical, sobre teclas ausentes. Luiz Garcia sorriu, mas um veu lhe empanou os olhos. Yayá não tinha piano! Era preciso dar-lhe um, ainda com sacrifício. Se ella aprendia no collegio, não era para tocar mais tarde em casa? Este pensamento enraizou-se-lhe no cérebro e turbou o resto do dia. No dia seguinte, Luiz Garcia encheu-se de valoj., pegou da caderneta da Caixa Econômica e foi retirar o dinheiro preciso, para comprar um piano. Eram da filha as poucas economias que ajuntava; o piano era para ella egualmente: não lhe diminuía a herança. Quando no seguinte sabbado, Yayá viu o piano, que o pae lhe foi mostrar, sua alegria foi intensa, mas curta. O pae abrira-o, ella accordou as notas adormecidas no vasto movei, com suas mãosinhas ainda incertas e débeis. A um dos lados do instrumento, com os olhos nella, Luiz Garcia pagava-se do sacrifício, contemplando a satisfação da filha. Curta foi ella. Entre duas notas, Yayá parou, olhou para o pae, para o piano, para os outros moveis; depois descahiu-lhe o rosto, disse que tinha uma vertigem. Luiz Garcia ficou assustado, pegou delia, chamou Raymundo; mas a creança afnrmou que estava melhor, e finalmente que a vertigem passara de todo. Luiz Garcia respirou; mas os olhos de Yayá não ficaram mais alegres, nem ella foi tão travessa como costumava ser. A causa da mudança, desconhecida para Luiz Garcia, era a penetração que madrugava no espirito da menina. Lembrára-se ella, repentinamente, das palavras que proferira e do gesto que fizera, no domingo anterior; por ellas explicou a existência do piano; comparou-o, tão novo e lustroso, com os outros moveis da casa, modestos, usados, encardida a palhinha das cadeiras, roido do tempo e dos pes um velho tapete, contemporâneo do sopha. Dessa comparação extrahiu a idéia do sacrifício que o pae devia ter feito para •condescender com ella; idéia que a poz triste, ainda que não por muito tempo, como succede ás tristezas pueris. A penetração madrugava, mas a dor moral fazia também irrupção naquella alma até agora isenta da jurisdicção da fortuna. Passou! Bem depressa os sons do piano vieram casar-se ao gorgeio de Yayá e ao riso do escravo e do senhor. Era mais uma festa aos domingos. Yayá confiou um dia ao pae a idéia que tinha de ser mestra de piano. Luiz Garcia sorria a esses planos da meninice, tão frágeis e fugidios como suas impressões. Também elle os tivera aos dez annos. Que lhe ficara dessas primeiras ambições? Um resíduo inerte e nada mais. Mas assim como as aspirações daquelle tempo o fizeram feliz, era justo não dissuadir a filha de uma ambição, alias innocente e modesta. Oxalá não viesse a ter outras de mais alto vôo 1 Demais, que lhe poderia elle desejar, senão aquillo que a tornasse independente e lhe desse os meios de viver sem favor? Yayá tinha por si a belleza e a instrucção; podia não ser bastante para lhe dar casamento e família. Uma profissão honesta aparava os golpes possíveis da adversidade. Não se podia dizer que Yayá tivesse talento musical: que importa? Para ensinar a grammatica da arte, era sufliciente conhecel-a. Resta dizer que havia ainda uma terceira affeiçâo de Yayá; era Maria das Dores, a ama que a havia creado, uma pobre catharinense, para quem so havia duas devoções capazes de levar uma alma ao ceu: Nossa Senhora e a filha de Luiz Garcia. Ia ella de quando em quando á casa deste, nos dias em que era certo encontrar Ia a menina, e ia de S. Christovão, onde morava. Não descançou em quanto não alugou um casebre em Santa Thereza,para ficar mais perto da filha de creação. Um irmão, antigo forriel,quefizera a campanha contra Rosas, era seu companheiro de trabalho. Tal era a vida uniforme e plácida de Luiz Garcia. Nenhuma ambição, cobiça ou peleja vinha toldar-lhe a serenidade da alma. A última dor séjia que tivera foi a morte da esposa, occorrida em 1859, mezes antes de ir-se elle esconder em Santa Thereza. O tempo, esse chimico invisível, que dissolve, compõe, extrahe e transforma todas as substâncias moraes, acabou por matar no: coração do viqvo, não a lembrança da mulher, mas a dor de a haver perdido. Importa dizer que as lagrymas derramadas nessa occasião honraram a esposa morta, por serem conquista sua. Luiz Garcia não casara por amor nem interesse; casara por que era amado. Foi um movimento generoso. A mulher não era de sua mesma Índole; seus espíritos vinham de pontos differentes do horizonte. Mas a dedicação e o amor da esposa abriram nelle a fonte da estima. Quando ella morreu, viu Luiz Garcia que perdera um coração desinteressado e puro; mas consolou-o a esperança de que a filha havia herdado uma parcella delle. Parece que sim; Yayá não amava, adorava o pae. Assim vivia esse homem sceptico, austero e bom, alheio ás cousas extranhas, quando a carta de 5 de Outubro de 1866 veiu chamal-o ao drama que este livro pretende narrar. II A hora aprazada era incommoda para Luiz Garcia, cujos hábitos de trabalho mal soffriam interrupção. Não obstante, foiá rua dos Inválidos. Valéria Gomes era viuva de um desembargador honorário, fallecido cerca de dous annos antes, a quem o pae de Luiz Garcia devera alguns obséquios e a quem este prestara outros. Opulenta e grande senhora, não havia entre elles relações assld.uas ou estreitas; mas a viuva e seu finado marido sempre o tiveram em boa conta e o tratavam com muito carinho e até com algum respeito. Defunto o desembargador, Valéria recorrera duas ou tres vezes aos serviços de Luiz Garcia; comtudo, era a primeira vez que o fazia com tamanha solemnidade. Valéria recebeu-o affectuosamente, estendendo-lhe a mão, ainda fresca, apezar dos annos, que subiam de quarenta e oito. Era alta e robusta. A cabeça, forte e levantada, parecia protestar pela altivez da attitude contra a molleza e tristura dos olhos. Estes eram negros, a sobrancelha basta, o cabello abundante, listrado de alguns fios de prata. Posto não andasse alegre nos últimos tempos, estava naquelle dia singularmente preoccupada. Logo que entraram na sala, deixou-se ella cair nTima poltrona; caiu e ficou silenciosa alguns instantes. Luiz Garcia sentou-se tranquillamente na cadeira que ella lhe designou. — Sr. Luiz Garcia, disse a viuva; esta guerra. do Paraguay é longa, e ninguém sabe quando acabará. Vieram notícias hoie? — Não me consta. — As de hontem não me animaram nada continuou a viuva depois de um instante. Não creio na paz que o Lopez veiu propor. Tenho medo que isto acabe mal. — Póde ser, mas não dependendo de nós… — Porque não? Eu creio que é chegado o momento de fazerem todas as mães um grande esfôrço e darem exemplos de valor, que não serão perdidos. Pela minha parte trabalho com o meu Jorge para que va alistar-se como voluntário; podemos arranjar-lhe um posto de alferes ou tenente; voltará major ou coronel. Elle, entretanto, resiste até hoje; não é falta de coragem nem de patriotismo; sei que tem sentimentos generosos. Comtudo, resiste… — Que razão dá elle? — Diz que não quer separar-se de mim. — A razão é boa. — Sim, porque também a mim custaria a separação. Mas não se trata do que eu ou elle podemos sentir: trata-se de cousa mais grave, — da pátria, que está acima de nós. Valéria proferiu estas palavras com certa animação, que a Luiz Garcia pareceu mais simulada que sincera. Não acreditou no motivo público. O interesse que a viuva mostrava agora em relação á sorte da campanha era totalmente novo para elle. Excluído o motivo público, algum haveria que ella não quizer ou não podia revellar. Justificaria elle semelhante resolução? Não se atreveu a formular a suspeita e a dúvida; limitou-se a dissuadil-a, dizendo que um homem de mais ou de menos não pesaria nada na balança do destino, e desde que ao filho repugnava a separação era mais prudente não insistir. Valéria redarguia a todas essas reflexões com algumas idéias geraes acerca da necessidade de dar fortes exemplos ás mães. Quando foi preciso variar de resposta, declarou que entrava no projccto um pouco de interesse pessoal. — Jorge está formado, disse ella; mas não tem queda para a profissão do advogado nem para a de juiz. Goza por em quanto a vida; mas os dias passam, e a ociosidade faz-se natureza com o tempo. Eu quizera dar-lhe um nome illustre. Se for para a guerra, poderá voltar coronel, tomar gosto ás armas, seguil-as e honrar assim o nome de seu pae. — Bem; mas vejamos outra consideração. Se elle morrer? Valéria empallideceu e esteve alguns minutos calada, emquanto Luiz Garcia olhava para ella, a ver se lhe adivinhava o trabalho interior da reflexão, esquecendo que a idéia de um desastre possivel devia ter-lhe accudido, desde muito, e se não recuara deante delia, é porque a resolução era inabalável. — Pensei na morte, disse Valéria dahi a pouco; e, na verdade, antes a obscuridade de meu filho que um desastre... mas repelli essa idéia. A consideração superior de que lhe falei deve vencer qualquer outra. Em seguida, como para impedir que elle insistisse nas reflexões apresentadas antes, disse-lhe claramente que, deante da recusa de Jorge, contava com o influxo de seus conselhos. — O senhor é nosso amigo, explicou ella; seu pae também foi nosso amigo. Sabe que um e outro sempre nos mereceram muita consideração. Em todo caso, não quizera recorrer a outra pessoa. Luiz Garcia não respondeu logo; não tinha ânimo de aceitar a incumbência e não queria abertamente recusar; procurava um meio de esquivarse á resposta. Valéria insistiu por modo que era impossivel calar mais tempo. — O que me pede é muito grave, disse elle; se o Dr. Jorge der algum peso a meus conselhos e seguir para a guerra, assumo um porção de responsabilidade, que não so me ha-de gravar a consciência, como influirá para alterar nossas relações e diminuir talvez a amizade bençvola que sempre achei nesta casa. O obséquio que hoje exige de mim, quem sabe se mJo não lançará em rosto um dia como acto de leviandade? — Nunca. — Nesse dia, observou Luiz Garcia sorrindo levemente, ha-de ser tão sincera como hoje. — Oh! o senhor está com idéias negras! Eu não creio na morte; creio so na vida e na glória. A guerra começou ha pouco e ha ja tanto heroe! Meu filho será um delles. — Não creio em presentimentos. — Recusa? — Não me atrevo a aceitar. Valéria ficou abatida com a resposta. Apoz alguns minutos de silêncio, ergueu-se e foi buscar o lenço que deixara sobre um movei, ao entrar na sala. Enxugou o rosto, e ficou a olhar para o chão, com um dos braços cahidos, em attitude meditativa. Luiz Garcia entrou a reflectir no modo de a dissuadir efflcazmente. Seu scepticismo não o fazia duro aos males alheios, e Valéria parecia padecer naquelle instante, qualquer que fosse a sinceridade de suas declarações. Elle quizera achar um meio de conciliar os desejos da viuva com a sua própria neutralidade, — o que era puramente difficil. — Seu filho não é creança, disse elle; está com vinte e quatro annos; pôde decidir por si, e naturalmente não me dirá outra cousa... Demais, é duvidoso que se deixe levar por minhas suggestões, depois de resistir aos desejos de sua mãe. — Elle respeita-o muito. Respeitar não era o verbo pertinente; attender fora mais cabido, porque exprimia a verdadeira natureza das relações entre um e outro. Mas a viuva lançava mão de todos os recursos para obter de Luiz Garcia que a ajudasse em persuadir o filho. Como elle lhe dissesse ainda uma vez que não podia aceitar a incumbência, viu-a morder o lábio e fazer um gesto de despeito. Luiz Garcia adoptou então um meio termo: — Prometto-lhe uma coúsa, disse elle; irei sondal-o, discutir com elle os prós e os contras do seu projecto, e se o achar mais inclinado… Valéria abanou a cabeça. — Não faça isso; desde ja lhe digo que será tempo perdido. Jorge ha-de repetir-lhe as mesmas razões que me deu, e o senhor as acceitará naturalmente. Se alguma cousa lhe mereço, se não morreu em seu coração a amizade que o ligou a nossa família, peço-lhe que me ajude francamente neste empenho, com a auctoridade de sua pessoa. Entre nisto, como eu mesma, disposto a vencel-o e convencel-o. Faz-me este obséquio? Luiz Garcia reflectiu um instrnte. — Faço, disse elle frouxamente. Valéria mostrou-se reanimada com a resposta; disse-lhe que fosse Ia jantar naquelle mesmo dia ou no outro. Elle recusou duas vezes; mas não pôde resistir ás instâncias da viuva, e prometteu ir no dia seguinte. A promessa era um meio, não so de pôr termo á insistência da viuva, mas também de encaminhar-se a saber qual era a mola secreta da acção daquella senhora. A honra nacional era certamente o colorido nobre e augusto de algum pensamento reservado e menos collectivo. Luiz Garcia abriu véllas á reflexão e conjecturou muito. Afinal não duvidava do empenho patriótico de Valéria, mas perguntava a si mesmo se ella quereria colher da acção que ia praticar alguma vantagem especialmente sua. — O coração humano é a região do inesperado, dizia comsigo o sceptico subindo as escadas da da repartição. Na repartição soube da chegada de tristes notícias do Paraguay. Os alliados tinham attacado Curupaity e recuado com grandes perdas; o inimigo parecia mais forte do que nunca. Suppunha-se até que as propostas de paz não tinham sido mais do que um engodo para fortalecer a defesa. Assim, a sorte das armas vinha reforçar os argumentos de Valéria. Luiz Garcia adivinhou tudo o que ella lhe diria no dia seguinte. No dia seguinte foi elle jantar á rua dos Inválidos. Achou a viuva menos consternada do que deveria estar, á vista das notícias da véspera, se por ventura os successos da guerra a preoccupassem tanto como dizia. Pareceu-lhe até mais serena. Ella ia e vinha com um ar satisfeito e resoluto. Tinha um sorriso para cada cousa que ouvia, um carinho, uma familiaridade, uma intenção de agradar e seduzir, que Luiz Garcia estudava com os olhos agudos da suspeita. Jorge, pelo contrário, mostrava-se retrahido e mudo. Luiz Garcia, á mesa do jantar, examinava-lhe a furto a expressão dos olhos tristes e a ruga desenhada entre as sobrancelhas, gesto que indicava nelle o despeito e a irritação. Na verdade, era duro enviar para a guerra um dos mais bellos ornamentos da paz. Naquelles olhos não morava habitualmente a tristeza, é certo; mas elles eram, de costume, brandos e pacíficos. Amão fina pedia antes a bengala que a espada. Um bigode negro e basto, obra commum da natureza e do cabelleireiro, cobria-lhe o lábio e dava ao rosto a expressão viril que este não tinha. A estatura esbelta e nobre era a única feição que absolutamente podia ser militar. Elegante, occupava Jorge um dos primeiros logares entre os dandies da rua do Ouvidor; alli podia ter nascido, alli poderia talvez morrer. Valéria acertava quando dizia não achar no filho nenhum amor â profissão de advogado. Jorge sabia muita cousa do que aprendera; tinha intelligencia prompta, rápida comprehensão e memória vivíssima. Não era profundo; abrangia mais do que penetrava. Sobretudo, era uma intelligencia theorica; para elle, o praxista representava o barharo. Possuindo muitos bens, que lhe davam para viver â farta, empregava uma partícula do tempo em advogar o menos que podia, — apenas o bastante para ter o nome no portal do escriptorio e no almanack deLaemmert. Nenhuma esperiencia contrastava nelle os Ímpetos da juventude e os arroubos da imaginação. A imaginação era o seu lado fraco, por que não a tinha creadora e límpida, mas vaga, tumultuosa e estéril, dessa que dá ao escripto a indecisão dos contornos, e â vida a confusão dos actos. Era generoso e bom, mas padecia um pouco defatuidade, vício de terceira ordem que diminue a bondade nativa. Havia alli a massa de um homem futuro, á espera que os annos, cuja acção é lenta, opportuna e inevitável, lhe dessem fixidez ao caracter e virilidade á razão. Não foi alegre nem animado o jantar. Fallaram a princípio de cousas indifferentes; depois Valéria fez recahir a conversação nas últimas notícias do Paraguay. Luiz Garcia declarou que lhe não, pareciam tão más, como diziam as gazetas, sem comtudo negar que se tratava de um serio revez. — É guerra para seis mezes, concluiu elle. — So? Esta pergunta foi a primeira palavra de Jorge, que até então não fizera mais do que ouvir e comer. Valéria tomou a outra ponta do diálogo, e confirmou a opinião de Luiz Garcia. Mas o filho continuou a não intervir. Acabado o jantar, Valéria ergueu-se; Luiz Garcia fez o mesmo; mas a viuva, pousando-lhe a mão no hombro, disse em tom familiar e intencional: — Sem ceremonia; eu volto ja. Uma vez sos os dous homens, Luiz Garcia achou de bom aviso ir de ponto em branco ao assumpto que alli os reunira. — Não tem vontade de ir também ao Paraguay? perguntou elle logo que Valéria desappareceu no corredor. — Nenhuma. Comtudo, acabarei por ahi. — Sim? — Mamãe não deseja outra cousa, e o senhor mesmo sei que é dessa opinião. Uma resposta negativa roçou os lábios de Luiz Garcia; a tempo a reprimiu, confirmando com o silêncio a pia fraude de Valéria. Tinha nas mãos o meio de inutilisar o effeito do equívoco: era mostrar-se indifferente. Jorge distraía-se em equilibrar um palito na borda de um calix; o interlocutor, depois de olhar para elle, rompeu emfim a larga pausa: — Mas porque motivo cede hoje, depois de recusar tanto tempo? Jorge ergueu os olhos, sem dizer palavra, mas desejoso de referir tudo. Venceu-o o desejo. A um signal de Jorge, acompanhou-o Luiz Garcia até o terraço. Entrados no terraço, Jorge não pôde ter mão á lingua. — O senhor é amigo velho de nossa casa, disse elle; posso confiar-lhe tudo.. Minha mãe quer mandar-me para a guerra, porque não póde obstar os movimentos do meu coração. — Algum namôro, concluiu friamente Luiz Garcia. — Uma paixão. — Está certo do que diz? — Estou. — Não creio, tornou Luiz Garcia depois de um instante. — Porque não? Ella conta com a distância e o tempo, para matar um amor que suppõe não haver criado raizes profundas. Luiz Garcia dera alguns passos, acompanhado pelo filho de Valéria; parou um instante, depois continuaram ambos a passear de um para outro lado. O primeiro reflectia na explicação, que lhe pareceu verosimil, se o amor do rapaz era indigno de seu nome. Essa pergunta não se animou a fazel-a; mas procurou uma vereda tortuosa para ir dar com ella. — Uma viagem â Europa, observou Luiz Garcia depois de curto silêncio, produziria o mesmo resultado, sem outro risco mais que… — Recusei a viagem; foi então que ella pensou na guerra. — Mas se ella quizesse ir â Europa, o senhor recusaria acompanhai-a? — Não; mas minha mãe detesta o mar; não viajaria nunca. E' possivel que, se eu resistisse até á última, em relação á guerra, ella vencesse a repugnância ao mar e iríamos os dous… — E porque não resistiu? — Primeiramente, porque estava cançado de recusar. Ha mez e meio que dura esta lucta entre nós. Hoje, á vista das notícias do sul, falou-me com tal instânciaquo cedi de uma vez. A segunda razão foi um sentimento mau,—mas justificável. Escolho a guerra, afim de que se alguma cousa me acontecer, ella sinta o remorso de me haver perdido. Luiz Garcia parou e encarou silenciosamente o mancebo. — Sei o que quer dizer esse olhar, continuou este; acha-me feroz, e eu sou apenas natural. O sentimento mau teve so um minuto de duração. Passou. Ficou-me uma sombra de remorso. Não accuso minha mãe; sei as lagrymas que lhe vae custar a separação.... — Ainda é tempo de recuar. — O que está feito, está feito, disse Jorge erguendo os hombros. — Sabe que mais? Acho mau gôsto dar a este negócio um desenlace épico. Que tem que fazer nisto a guerra do Paraguay? Vou suggerir-lhe um meio de arranjar as cousas. Ceda metade somente; va á Europa sosinho, volte no fim de dous ou tres annos… Jorge sorriu desdenhosamente. — Seu conselho mostra a differença de nossas edades, disse elle. Se eu fosse para a Europa, que sacrifício faria á pessoa a quem amo? Pelo contrário, a sacrificada era ella. Eu ia divertir-me, passear, ver cousas novas, talvez achar novos amores. Indo â guerra, é differente; sacrifico o repouso e arrisco a vida; é alguma cousa. Separados, embora, não me negará sua estima… — Sua estima? disse Luiz Garcia admirado. Não continuou; mas Jorge comprehendeu, por aquella so palavra, a que classe de mulheres elle suppunha pertencer a eleita de seu coração. Fez um gesto de nobre protesto; mas não se animou a dizer nada. Arrependeu-se talvez de haver dito tanto; é o destino dos corações indiscretos. Sem ousar recommendar-lhe silêncio, começou a insinual-o delicadamente; tactica escusada, porque Luiz Garcia não era homem de revelar o que se lhe confiava; e perigosa, porque fazia crescer as proporções do mysterio. Luiz Garcia sorriu interiormente ao sentir a arte cautelosa de Jorge; e quando ella lhe pareceu enfadonha: — Descance, disse elle; não receie que eu va publicar seus amores. Repito-lhe o conselho: não se atire de cabeça para baixo n'uma aventura sem fundo. Ir para a guerra é muito nobre, mas hade ser levado de outros sentimentos. Um desacordo por motivo de namoro, não é o Porto Alegre nem o Polydoro, é um padre que lhe deve pôr termo. Jorge sorriu com ar affavel, e despediu-se de Luiz Garcia; foi dalli vestir-se para ir ao theatro. Luiz Garcia estava mais do que nunca resoluto a lavar as mãos, como Pilatos, e deixar que os acontecimentos tivessem seu livre curso, sem nenhuma intervenção sua. Logo que Jorge sahiu, dispoz-se a fazer o mesmo, despedindo-se de Valéria. Esta acompanhou-o até á porta da sala. — Não me diz nada? perguntou ella quando o viu prestes a transpor aporta. — Que lhe heide dizer? — Falou a meu filho? — Falei. — Achou-o disposto? — Não digo que não. — Mas de ma vontade? — Não digo que sim. Valéria sorriu com uma ponta de amargo despeito. — Vejo que este assumpto o aborrece, murmurou ella. Luiz Garcia protestou com o gesto. Valéria encostou-se ao portal, e olhou friamente para elle. Houve uma curta pausa entre ambos. — Ninguém! exclamou ella. Não tenho ninguém a meu lado. Va; ficarei so. Luiz Garcia condoeu-se delia. — Sejamos francos, disse; seu filho cede, mas cede violentado, e não vejo que se possa fazer delle um heroe. Que motivo tão forte a obriga a exigir desse moço um sacrifício superior a suas posses? Valéria não respondeu. — Sei o motivo, disse elle d'ahi a um instante. — Sabe? interrompeu Valéria como tocada por uma mola. — Suspeito; e se me permitte ser franco, direi que o acho singular, pelo menos não ha proporção entre a causa e o effeito. Seu filho ama. Trata-se de uma mulher de certa espécie? São correrias da mocidade, e as delle não são taes que façam escândalo, creio eu. Trata-se de alguma moça, cuja alliança lhe não pareça aceitável? Nada lhe direi a tal respeito; mas reflicta primeiro antes de o mandar ao Paraguay. Valéria prendeu a mão direita de Luiz Garcia entre as suas; reflectiu longo tempo; depois disse com voz sumida: — Supponha... que se trata... de uma senhora casada? Luiz Garcia curvou a cabeça com um gesto de assentimento. Como seus olhos baixassem ao chão, não pôde ver no rosto da viuva uma ligeira côr que avermelhou e desappareceu. Se lh'a visse, se a fitasse imperiosamente, talvez a viuva baixasse os olhos envergonhada de haver mentido. Luiz Garcia não viu nada. Calou-se, approvou a viuva, e acabou promettendo auxilial-a na obra de poupar a seu nome a nodoa de uma felonia. Era noite quando Luiz Garcia sahiu da casa de Valéria. Ia aborrecido de tudo, da mãe e do filho, —de suas relações naquella casa, das circumstâncias em que se via posto. Galgando a ladeira a pe, detendo-se de quando em quando a olhar para baixo, ia como apprehensivo do futuro, supersticioso, tomado de temores intermittentes e inexplicáveis. Não tardou a apparecer-lhe a luz da casa, e, dahi a pouco, a ouvir a cantilena solitária do escravo e as notas rudimentaes da marimba. Eram as vozes da paz; elle apertou o passo e refugiou-se na solidão. _____ III Luiz Garcia pouco trabalho teve no ânimo de Jorge. A resolução deste, uma vez declarada, não recuou mais. Não desconhecia o moço que a empreza a que mettia hombros era crespa de difíiculdades, repugnante a seus instinctos, pejada de mortaes conseqüências. Mas não recuou. Poucos dias depois foi offerecer seus serviços ao governo, que os aceitou, dando-lhe a patente de capitão de voluntários. A guerra, sobretudo depois do desastre de Curupaity, promettia durar muito; mas não havia desânimo, e o governo era auxiliado efficazmente pela população. Urgia preparar os elementos para a desforra e não dar golpe que não fosse seguro. Vinte dias depois da conversa no terraço da rua dos Inválidos, apresentou-se Jorge em Santa Theresa, fardado e prompto, de tal modo porém que era ainda difficil separar o casquilho do militar. A mesma tesoura que lhe cortava os fraques, talhara a farda de capitão, que lhe cingia o busto elegante e cheio. Apertava-lhe a cintura uma banda vermelha, cujas pontas caíam graciosamente ao lado. Calçava um botim reluzente, sobre o qual assentava a calça de fino panno. Inclinado levemente á direita, o boné não lhe desconcertava o cabello, penteado ao estylo de todos os dias; o bigode tinha as mesmas guias longas, agudas e lustrosas. Luiz Garcia não pôde furtar-se a um sentimento de pena, ao vel-o entrar fardado e prestes a seguir para o sul. Pareceu-lhe descobrir por traz delle o perfil da morte, com seu eterno sorriso sem lábios. Mas esse sentimento de commiseração passou; lembrou-lhe logo a última palavra da viuva, e não pôde deixar de condemnal-o. Viu até, com certa repulsa, esse coração de vinte e quatro annos, que ia arriscar a vida própria, e talvez a de sua mãe, para não regeitar um sentimento mau. — Estou a seu gôsto? perguntou. Jorge com um ar de benevola ironia. — Hade estar melhor no fim da guerra, Sr. general, respondeu o outro. — General? Pôde ser. Dizendo isto, Jorge entrou a falar de suas esperanças e futuros. A imaginação começava a dissipar a melancholia. Elle viaja naquillo uma aventura romanesca e mysteriosa; sentia-se uma ressurreição de cavalleiro medievo, sahindo a combater por amor de sua dama, castellã opulenta e formosa que o esperaria na varanda gothica, com a alma nos olhos e os olhos na ponte levadiça. A idéia da morte ou da mutilação não vinha agitar-lhe ao rosto suas azas pallidas e sangrentas. O que elle tinha deante de si eram os campos infinitos da esperança. Comtudo, o momento era grave, e difficilmente podia o espirito esquivar-se á reflexão intermittente. Além disso, Jorge subira a Santa Theresa com a resolução de contar tudo a Luiz Garcia, afim de deixar um confidente austero e único de seus amores; mas a palavra não se atrevia a sahir do coração. Ou a edade do outro ou a Índole de suas relações tolhia essa confidencia íntima; mas ainda mais do que uma e outra razão, havia naquelle momento o gesto singularmente preoccupado e duro de Luiz Garcia. Jorge deu de mão ao projecto. — Dê-me o abraço de despedida, disse elle; embarco amanha. — Ja amanha! — Vim despedir-me do senhor. Luiz Garcia considerou-o silenciosamente durante dous ou tres minutos; depois apertou-lhe as mãos. — Va, disse; trabalhe pela sua terra; entre na vida com um acto varonil; é o melhor meio de pagar os erros da mocidade. Não se poupe a trabalhos, mas não se exponha sem Utilidade; em todo o caso, obedeça á disciplina, e não se esqueça um so dia de sua mãe. Jorge sahiu. O ôlho de diamante que primeiro levanta a palpebra no azul do ceu parecia fitar de Ia o joven capitão, que a passo largo e trêmulo descia na direcção da rua de D. Luiza. A meio caminho parou, como se quizesse tomar outra direcção; mas ergueu os hombros e proseguiu. Ia mergulhado em si mesmo, e so deu accôrdo ao parar deante de uma casa daquella rua. Antes de Ia entrar, vejamos quem eram os moradores. O defuncto marido de Valéria, no tempo em que advogava, tinha um escrevente, que, mais ainda do que escrevente, era seu homem de confiança. Chamava-se o Sr. Antunes. Era um sugeito amarello e myope, alto e sêcco; trabalhava com vagar, mas sem interrupção. Foram, entretanto, serviços de certa ordem que os ligaram mais intimamente. O Sr. Antunes tinha a pobresa, sem dignidade; nascera com o espirito curvo e a Índole servil. A fortuna troca ás vezes os cálculos da natureza; mas uma e outra iam de accôrdo na pessoa daquelle homem, nado e creado para as funcções subalternas. Familiar com todas as fôrmas da adulação, o Sr. Antunes ia do elogio hyperbolico até o silêncio opportuno. Tornou-se dentro de pouco, não so um escrevente laborioso e pontual, mas também, e sobretudo, um fac-totum do desembargador, seu braço direito, desde os recados eleitoraes até ás compras domésticas, vasta escala em que entrava o papel de confidente das entreprezas amorosas. Assim que, nunca lhe fez mingua a protecçao do desembargador. Viu crescer-lhe o ordenado, multiplicarem-se-lhe as gratificações, j a em dinheiro, j a em outra equivalente espécie; e foi admittido a comer algumas vezes em casa, nos dias communs, quando não havia visitas de ceremonia. Nas occasiões mais solemnes era elle o primeiro que se esquivava. Ao cabo de tres annos de convivência tinha consolidado a situação. Justamente nesse tempo succedeu morrer-lhe a mulher, de quem lhe ficou uma filha de dez annos, menina interessante, que algumas vezes visitara a casa do desembargador. Este fez o enterro da mãe e pagou o luto da filha e do pae. O Sr. Antunes, que não era de extremas philosophias, tinha a convicção de que debaixo do sol, nem tudo são vaidades, como quer o Ecclesiastes, nem tudo perfeições, como opina o doutor , Pangloss; entendia que ha larga ponderação de males e bens, e que a arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior mal. Morta a mulher, alcançou do desembargador um enxoval completo para fazer entrar a filha n'um collegio, visto que até então nada aprendera, e ja agora não podia deixal-a sosinha em casa. O desembargador dera o enxoval; algumas vezes pagou o ensino; as visitas amiudaram-se; a creança, que era bonita e boa, entrou manso de manso no coração de Valéria que a recebeu em casa, no dia em que a pequena concluiu os estudos. Estella — era o seu nome,— tinha então dezesseis annos. Pouco antes fallecêra o desembargador. O Sr. Antunes recebeu dous golpes em vez de um: o de o ver morrer, e o de o não ver testar. As aneurismas tem dessas perfidias inopinaveis. Afim de emendar a mão á fortuna, o pae de Estella concentrou na viuva a attenção que até então repartira entre ella e o marido; facto que alias decorria da própria obrigação moral em que se achava para com a família do desembargador. Estella devia a essa família educação e carinho; podia talvez vir a dever-lhe um dote, um marido e consideração. Quem sabe? Talvez o coração de Jorge vinculasse as duas famílias. Esta ambição affagava-a o Sr. Antunes no mais profundo de sua alma. Jorge estava prestes a concluir os estudos em S. Paulo; ia na metade do quarto anno. Vindo á corte durante as férias, achou-se deante de uma situação inesperada; a mãe esboçara um projecto de casamento para elle. A noiva escolhida era ainda parenta remota de Jorge. Chamava-se Eulalia. Tinha dezenove annos na certidão de baptismo e trinta no cérebro. Era uma moça sem illusões nem vaidades, talvez sem paixões, dotada de juizo recto e coração simples, e sobre tudo isso uma belleza sem mácula e uma elegância sem espavento. — Uma pérola! dizia Valéria quando insinuou ao filho a conveniência de casar com Eulalia. A pérola, entretanto, não parecia anciosa de ornar a fronte de ninguém. Quando Valéria fez as primeiras sondagens no coração da joven parenta, achou alli uma água tranquilla, sem curso nem recurso de marés. Tratou de saber se alguma brisa lhe roçara a aza, e descobriu que não; então chamou em seu auxilio o sirocco e.o pampeiro. Não foi difficil a Eulalia perceber os desejos da viuva, nem resistiu quando chegou a entendel-a. Sua razão lhe dizia que o casamento era aceitável; e esperou. Valéria ficou satisfeita com o resultado, e deu-se pressa em sondar as disposições de Jorge, quando elle voltou no fim do anno. Graças á sua arte de assediar as vontades alheias, Valéria alcançou do filho uma resposta, condicional. Era ja alguma cousa. O motivo da insistência da viuva era complexo; eram as qualidades da parenta, a affeição grande que lhe votava, o receio de morrer subitamente e a confiança que tinha em si mesma para conhecer e eleger caracteres. Durante o último anno da faculdade, Jorge pensou algumas vezes no casamento como se pensa n'um projecto remoto; mas, á proporção que o tempo corria, o coração ia-se-lhe tornando retrahido e medroso. Uma vez formado, deu de mão â' idéia; mas não teve a franqueza de o declarar á mãe, e Valéria esperou confíadamente que o coração do filho dissesse n'outra lingua aquillo que ella ja lhe havia dito na sua. Para conhecer exactamente o motivo da repulsa de Jorge em relação a uma moça, cujas qualidades deviam alias tentar qualquer outro, convém não esquecer que essas qualidades eram justamente as mais avessas á Índole do filho de Valéria. Não bastava ser elegante e bonita, discreta e mansa; era preciso alguma cousa mais, que exactamente Correspondesse á imaginação delle; faltava-lhe um grão da poesia. A este motivo, preexistente ao projecto da viuva, accrescia um sentimento mau, que se apossou delle, ao cabo de tres semanas depois da chegada ao Rio de Janeiro. Esse sentimento mau, foi Estella que o inspirou. A vista quotidiana de Estella produziu em Jorge uma impressão viva, mas destituída daquelle respeito, sem o qual o amor é apenas um instincto. O que elle sentiu foi um instincto. Posto vivessem na mesma casa, era difficil acharem-se nunca a sos, porque a filha do escrevente passava todo o tempo ao pe da viuva; circumstância que não teve a virtude de mudar o curso aos acontecimentos. Não podendo passar de palavras geraes e estranhas ao que lhe quizera confiar, Jorge falava-lhe com os olhos,—linguagem que a moça não entendia, ou fingia nao entender. A imperturbável seriedade de Estella foi um aguilhão mais, não menos cruel que a gentileza de suas fôrmas, e certo ar de resolução que lhe transparecia do rosto quieto e pallido. Pallida era, da pallidez das monjas, mas sem nenhum tom de melancholia ascética. Tinha os olhos grandes, escuros, talhados â feição de amêndoa, por baixo de duas sobrancelhas lizas, cheias e correctas. Os olhos eram a parte mais saliente do rosto, a que dominava tudo, não obstante a harmonia das restantes feições; é que havia nelles uma expressão de virilidade moral, que dava á belleza de Estella o principal característico. Uma por uma, as feições da moça eram graciosas e delicadas; mas a impressão que deixava o todo estava longe da meiguice natural do sexo. Estella, posta entre as musas, seria Melpomene. Tinha as fôrmas; restava so que o destino fizesse correr sobre ellas o frêmito das paixões trágicas. Usualmente trazia roupas pretas, côr- que preferia a todas as outras. A mulher pallida, que não usa • de preferencia a côr preta, carece de um instincto. Estella possuía esse instincto do contraste. Nu de enfeites, o vestido punha-lhe em relevo o talhe esbelto, elevado e flexível. Nem usava nunca trazel-o de outro modo, sem embargo de algum dixe ou renda com que a viuva a presenteava de quando em quando; regeitava de si toda a sorte de ornatos; nem folhos, nem brincos, nem anéis. Ao primeiro aspecto dissera-se um Diogenes feminino, cuja capa, atravez das roturas, deixava entrever a vaidade da belleza que quer affirmar-se tal qual é, sem nenhum outro artificio. Mas, conhecido o caracter da moça, eram dous os motivos, — um sentimento natural de simplicidade, e, mais ainda, a consideração de que os meios de seu pae não davam para custosos atavios, e assim não lhe convinhaaffeiçoar-se ao luxo. Esta reflexão na cabeça de uma mulher de dezoito annos, era ja symptoma de organisação pouco vulgar. — Porque não põe os brincos que mamãe lhe deu a semana passada? perguntou Jorge a Estella, um dia, em que havia gente de fora a jantar. — Os presentes mais queridos guardam-se, respondeu ella olhando para a viuva. Valeria apertou-lhe a ponta do queixo entre o pollegar e o indicador: — Poeta! exclamou sorrindo. Você não precisa de brincos para ser bonita; mas va pol-os, que lhe ficam bem. Foi a primeira e última vez que Estella os poz A intenção era patente de mais para não ser notada, e Jorge não esqueceu nem a resposta da moça nem o constrangimento com que obedeceu. Não podia suppor-lhe ingratidão, porque via a affeição com que Estella tratava a mãe. Em relação a elle não parecia haver affeição egual, mas havia certamente respeito e consideração, rara vez familiaridade, e ainda assim, umafamiliaridade enluvada, um ar de visita de pouco tempo. Jorge começou a achar mais agradável a casa do que a rua; e as noites, quando não havia pessoas de fora, passava-as á volta de uma mesa, lendo oú jogando com as duas, ou vendo-as trabalhar, em quanto contava anedoctas da academia, lia as correspondências do Paraguay e de Buenos-Ayres, ou simplesmente alguma página de romance. Nessa vida, meia patriarchal, as horas corriam depressa, tão depressa, que elle não as sentia. Ao cabo de cinco a seis semanas, fez-se elle seu próprio confessor, examinou a consciência, descobriu Ia dentro alguma cousa que não era a phantasia sensual do primeiro instante, e, longe. de absolver-se, condemnou-se á crua penitencia da abstenção. Voltou aos antigos hábitos e deixou os serões domésticos. Mas a applicação do remédio, por mais sincera que fosse, janão podia muito contra a acção do mal. Estella frequentava-lhe tenazmente a memória; e na rua, no theatro, nas assembléas a que ia, o perfil severo da moça vinha metter-se entre elle e a realidade. Se pudesse deixar de a ver, a convalecença não era ainda difficil; mas como fugir álembrança de uma mulher, cuja fíguralhe apparecia durante algumas horas de cada dia? Demais, a somnambula que elle tinha no cérebro vinha auxiliar a fatalidade das circumstâncias. No fim de um mez, a Índole do sentimento havia mudado: era mais pura; mas o sentimento não parecia disposto a esvair-se: era mais violento. Como o Sr. Antunes levasse a filha, uma noite, â visitar pessoa de sua amisade, Jorge aproveitou a circumstância para insinuar a Valéria a conveniência de restituir Estella a seu pae. — Porque? perguntou a viuva. — Sempre é um tropêço, uma pessoa extranha mettida entre nós,—replicou Jorge. Não lhe nego que tem boas qualidades; mas... é uma pessoa estranha. — Que importa, se me dou bem com ella? Conheço-a desde pequena; é uma companhia melhor do que qualquer outra. Mas porque te lembras disso agora? — Estive pensando na responsabilidade que pesa sobre nós. Se fosse nossa parenta, va; não se podia dispensar a obrigação; mas não sendo, creio que era melhor libertarmo-nos. — Descança; na occasião opportuna casal-a-hemos. O que não admitto é algum marido de pouco mais ou menos. Hade ser pessoa que a mereça, e que a mereça muito. Tu não sabes o que vale aquella menina. Não é so um bom coração; é alguma cousa mais. Tem certa elevação de sentimentos; nunca me desattendeu e nunca me adulou. Jorge confirmou com a cabeça e não disse mais nada. O que acabava de dizer não passava de uma tentativa sincera, mas frouxa, para arredar Estella de casa; era o imposto pago â consciência. Quite com ella, entregou-se aos acontecimentos, confessando a si mesmo que o perigo não era tão grave, nem o remédio tão urgente; finalmente, que elle era homem. No meio de semelhante situação, que sentia ou que pensava Estella? Estella amava-o. No instante em que descobriu esse sentimento em si mesma, pareceu-lhe que o futuro se lhe rasgava largo e luminoso *, mas foi so nesse instante. Tão depressa descobriu o sentimento, como tratou de o estrangular ou dissimular,—trancal-o ao menos no mais escuso do coração, como se fora uma vergonha ou um peccado. — Nunca! jurou ella a si mesma. Estella era o vivo contraste do pae; este lacaio gerara aquella senhora. Obscura e pobre, sem o esplendor da riqueza ou da posição, tinha comtudo a alma acima do destino. Era orgulhosa, e tão orgulhosa que chegava a fazer da inferioridade uma aureola; mas seu orgulho não derivava de inveja impotente ou de estéril ambição; era uma força, não um vício,—era o seu broquel de diamante,— o que a preservava do mal, como o do anjo de Tasso defendia as cidades castas e santas. Foi esse sentimento que lhe fechou os ouvidos ás suggestões do outro. Simples aggregada.ou protegida, não se julgava com direito a sonhar outra posição superior e independente; e dado que fosse possivel obtel-a, é licito aflirmar que recusara, por que, a seus olhos seria um favor, e a sua taça de gratidão estava cheia. Valéria, que também era orgulhosa, descobrira-lhe essa qualidade, e não lhe ficou querendo mal; ao contrário, veiu a aprecial-a melhor. E que a moça sabia ter a gratidão compatível com a dignidade; a úlcera de seu coração era justamente a indole do pae, irremediavelmente servil. Não somente o orgulho de Estella lhe fizera calar o coração, mas até lhe infundira a confiança moral necessária para viver tranquilla no centro mesmo do perigo. Jorge não percebera nunca os sentimentos que inspirara; e, por outro lado, nunca viu a possibilidade de os inspirar um dia. Estella so lhe manifestava o frio respeito e a fria dignidade. Um dia, vagando uma casa de Valéria no caminho da Tijuca, determinou-se a viuva a ir examinal-a, antes de a alugar outra vez. Foi acompanhada do filho e de Estella. Sahiram cedo, e a viagem foi alegre para a moça, que pela primeira vez ia aquelle arrabalde. Quando a carruagem parou, suppunha Estella que mal tivera tempo de sahir da rua dos Inválidos. A casa precisava de alguns reparos; um mestre de obras, que ja alli estava, acompanhou a família de sala em sala e de alcova em alcova. So elle e Valéria falavam; Estella não tinha voto consultivo, e Jorge parecia indifferente. Que lhe importava a elle o reboco de uma parede ou o concerto de um soalho? Elle gracejava, ria ou sussurrava ao ouvido de Estella um epigramma a respeito do mestre de obras, cuja prosódia era execrável. Estella, que sorria com elle, cerrava entretanto o gesto aos epigrammas. De sala em sala, chegaram a uma pequena varanda, onde uma circumstância nova os deteve algum tempo. Nhima das extremidades da varanda havia um pombal velho, onde elles foram achar, esquecido ou abandonado, um casal de pombos. As duas aves, após vinte e quatro horas de solidão, pareciam saudar as pessoas que alli appareciam repentinamente. — Coitadinhos! disse Estella logo que entrou na varanda. Valéria prestou um minuto de attenção, talvez meio, e seguiu a ver a casa. Estella ficara a olhar para os dous pombos, e não a viu sahir. — Quer leval-os? disse a voz de Jorge. A moça voltou-se e respondeu que não: — Comtudo, continuou ella, era bom dal-os a alguém para não morrerem á fome. Sao tão bonitos! — Mas porque não os ha de levar a senhora mesma? — Vou pedir ao mestre que os tire dalli, disse ella dando um passo para dentro. —Não é preciso: eu vou tiral-os. Estella protestou, mas o bacharel resolvera, e ia satisfazer elle próprio o desejo da moça. O pombal não ficava ao alcance da mão; era preciso trepar ao parapeito da varanda, esticar-se nos bicos dos pes e estender o braço. Ainda assim, precisaria contar com a boa vontade dos pombos. Jorge trepou ao parapeito, sem embargo dos protestos de Estella. Se perdesse o equilíbrio poderia cair no chão da chácara. Para evital-o, Jorge lançou a mão esquerda a um ferro que havia na columna do canto, e que o amparou; depois esticou o corpo e alcançou com a mão o pombal. Um dos pombos ficou logo seguro; o outro, a princípio arisco, foi colhido depois de algum esforço. Estella recebeu-os; Jorge saltou ao chão. — A Sra. D. Valéria, se visse isto, havia de ralhar, disse Estella. — Grande façanha! respondeu Jorge sacudindo com o lenço as mãos e a aba do fraque. — Podia cair. — Mas não caí; foi um risco que passou. São bonitinhos, não são? continuou elle apontando para cs pombos que Estella tinha entre -is mãos. A moça respondeu com um gesto e deu alguns passos, afim de ir ter com a viuva. Jorge deteve-a, mettendo-se entre ella e a porta. — Não se va embora, disse elle. — Que é? perguntou Estella erguendo tranquillamente seus grandes olhos límpidos. — Disfarçada! Estella baixou silenciosamente a cabeça e buscou dar outra volta para entrar na sala ao pe; Jorge, porém, interceptou-lhe de novo o caminho. — Deixe-me passar, disse ella sem colera nem súpplica. Jorge recuára até a porta, única das tres que estava aberta. Era arriscado o que fazia; mas, além de que Valéria e o mestre estavam no pavimento superior, — elle ouvia-lhes os passos,— perdera naquella occasião toda a lucidez de espirito. Era deserto o logar, e naturalmente seria longo o tempo de que poderia dispor para lhe dizer tudo. Mas os lábios ficaram cerrados alguns instantes, em quanto os olhos diziam a eloqüência da paixão mal contida e prestes a irromper. Não insistiu Estella, mas ficou diante delle, quieta e sem arrogância, como esperando ser obedecida. Jorge quizera-a supplicante ou desvairada; a tranquillidade feria-lhe o amor próprio, fazendo-lhe ver que o perigo era nenhum, e revellaudo, em todo caso, a mais dura indifferença. Quem era ella para o affrontar assim? Era a segunda vez que seu espirito formulava essa pergunta; tinha-a feito nas primeiras auroras da paixão. Desta vez a resposta for deplorável. Cravando os olhos em Estella, disse com voz trêmula, mas imperiosa: — Não ha de sair daqui, sem me dizer se gosta de mim. Vamos; responda! Não sabe o que lhe póde custar esse silêncio? Não obtendo resposta, continuou depois de alguma pausa: — E' animosa! Saiba que posso vir a odial-a e que talvez ja a odeio; saiba também que posso -tirar vingança de seus despresos, e chegarei a sar cruel, se for necessário. Estella suspirou apenas, e foi encostar-se ao parapeito, a olhar para a chácara. Sua intenção era não irrital-o, com a resposta sêcca è ma que lhe dictava o coração, e esperar que Valéria descesse. Entretanto, na posição em que ficara tinha as costas voltadas para Jorge, circumstância que não era intencional, mas que pareceu a este um simples meio de lhe significar o seu desdém. A irritação de Jorge foi grande. Após uns dous ou tres minutos de silêncio, Jorge caminhou na direcção do parapeito, onde estava Estella, com a cabeça inclinada, a beijar a cabeça dos pombos, que tinha encostados ao seio. Deteve-se, sem que a moça mudasse de posição. Contemplou-a ainda um instante, e se Estella olhasse para elle veria que a expressão dos olhos era de respeitosa ternura e nada mais. Esse instante, porém, voou depressa, e com elle a consideração. Inclinando-se para a moça, Jorge affectou um modo que não era nem de sua educação nem de sua Índole, mas so do despeito, que lhe fazia ferver o sangue naquella hora cruel; inclinou-se e disse: — Porque hade gastar com esses animaes, uns beijos que podem ter melhor emprego? Estella estremeceu toda e ergueu para o moço uns olhos que fuzilavam de indignação. Ja não estava pallida, mas livida. Estupefacta, não sabia que dissesse ou fizesse; e infelizmente não sabia também que a pergunta de Jorge, por mais. offensiva que lhe parecesse, não era ainda a máxima injúria. Não era; Jorge tinha uma nuvem deante de si, atravez da qual não podia ver nem o seu decoro pessoal nem a dignidade da mulher amada; via so a mulher indifferente. Lançou-lhe as mãos á cabeça, puxou-a até si e antes que ella pudesse fugir ou gritar, encheu-lhe a boca de beijos. Soltos como movimento,os pombos esvoaçaram sobre a cabeça de ambos, e foram pousar outra vez na casinha de pau, onde nenhuma fatalidade moral os condemnava aquelle amor sem esperança, aquella cólera sem dignidade. Estella suffocára um gemido e cobrira o rosto com as mãos. Ouviam-se as vozes de Valéria e do mestre, que se aproximavam; Jorge teve um instante de incerteza e hesitação; mas a reacção operara-se, e, além disso, urgia apagar os vestígios daquella scena, de maneira que os não visse a viuva. — Ahi vem mamãe,—disse elle baixinho a Estella; não tive culpa no que fiz, por que amo-a muito. Estella voltou-se para fóra e enxugou o rosto; dahi a pouco entraram Valéria e o mestre. Este sahiu logo depois, tendo ajustado as obras que era indispensável fazer na casa. Valéria, irritada com a vista dos estragos que encontrou, criticava o deleixo dos inquilinos. So depois dos primeiros instantes reparou que nenhum dos dous lhe respondia nada, eque Jorge parecia acanhado, e Estella triste. Posto houvesse enxugado as lagrymas, Estella tinha o rosto desfeito e murchos os bellos olhos. Jorge não ousava olhar para a mãe nem paraEstella; olhava para a ponta dosbotins, onde ficara um pouco da caliça do parapeito*: tinha as mãos nas costas e estava arrimado a um portal. Valéria reparou na attitude dos dous; mas, como possuía a qualidade de dissimular as impressões, não alterou nem o gesto nem a voz. Os olhos é que nunca mais os deixaram. Dahi a nada metteram-se no carro. Era tarde. A viagem foi quasi inteiramente silenciosa; pelo menos, sò Valéria disse algumas palavras. Chegando á rua dos Inválidos, a viuva suspeitava que alguma cousa havia entre os dous e grave. Todo aquelle dia meditou nos meios de conhecer a natureza e os pormenores da situação; e nada achou melhor do que interrogar directamente um delles. Jorge sahíra de casa logo depois e não voltou para jantar; Estella não sorriu em todo esse dia e quasi não falou. Não foi preciso interrogal-a. Logo na seguinte manhã, acabando de levantar-se, entrou-lhe Estella na alcova, e pediu alguns minutos de attenção. Expoz-lhe a necessidade de voltar para casa; estava moça, devia prestar a seu pae os serviços que elle precisaria de alguém e tinha o direito de exigir da filha. Não era ingratidão, accrescentava; levaria dalli saudades eternas; voltaria Ia muitas vezes; seria sempre obediente e grata. Cedia somente á necessidade de acompanhar o pae. Este pedido confirmava a suspeita de Valéria, mas so esclarecia metade da situação.. A retirada de Estella era um meio de fugir a Jorge ou de lhe falar mais livremente? Valéria tratou de prescrutar o coração da moça, dizendolhe , que a razão dada era insufficiente e que alguma causa occulta a movia; depois, recordou-lhe a amizade que lhe tinha e a confiança a que Estella não devia faltar. — Vamos Ia, disse ella; confessa tudo. Estella affirmou que nada mais havia; mas, insistindo a viúva, respondeu curvando a cabeça, —o que importava meia confissão. Valéria lutou ainda muito tempo; empreg*ou a brandura e a intimação; mas a moça não cedeu mais nada. — Bem, disse a viuva; faça-se a tua" vontade. Foi assim que Estella, ao cabo de algum tempo de residência na casa de Valéria, regressou á casa do pae, na rua de D.. Luiza. O Sr. Antunes,ficou desorientado com a notícia; protestou que vivia perfeitamente so; achou pouco decoroso e menos justo o procedimento de Estella, em relação â viuva do desembargador; gastou largos conceitos, que lhe não aproveitaram, porque Estella não recuou da resolução, nem a viuva tentou dissuadil-a. A separação não valia nada ou valia cousa peor; fez recrudescer o amor de Jorge, por isso mesmo que entre um e outro rasgava espaço á imaginação, musa consoladora e pérfida. Duas forças reagiram no coração do rapaz; o obstáculo, que tornava mais intenso o amor, e o remorso que o fazia mais puro. Nenhum resentimento lhe ficara da resolução de Estella; sentia-se culpado, e mais ainda, sentia-se victima da fuga da moça. Nem tudo isso seria effeito somente da paixão; cabia uma parte de influencia á severidade do caracter de Estella, que acabou por incutir no espirito de Jorge idéia differente da que elle a seu respeito fazia. Valéria descobriu a pouco e pouco a inefficacia do remédio que acceitára; estava certa da paixão do filho, e via que, longe de expirar, entrava pela vida adiante, menos estouvada talvez, mas não menos sincera e profunda; soube que Jorge freqüentava a casa da rua de D. Luiza; estremeceu pelo futuro e cogitou no modo de estrangular as esperanças em flor. — Ou ella ja o ama ou póde vir a amal-o, dizia comsigo. Valéria encarava os dous desenlaces possíveis da situação, se a moça lhe amasse o filho: ou seria a queda de Estella, que a viuva estimava muito, ou o consórcio dos dous, solução que repugnava a seus sentimentos, idéias e projectos. Jamais consentiria em semelhante alliança. Sua máxima inflexível era— lê com lê, crê com crê. O contrário não passava de absurdo ou romance. De qualquer modo, urgia prompto remédio. Assim foi que um dia, voltou energicamente ao projecto do cazar o filho com Eulalia, e o intimou a obedecer-lhe. Jorge começou resistindo e acabou dissimulando; mas o artificio não illudiu a mãe. Valéria chamou logo em seu auxilio a joven parenta. Eulalia, que tivera tempo de reflectir, francamente lhe disse que não estava disposta a ser sua nora, porque Jorge não a amaria nunca; e comquanto, não visse no casamento uma página de . romance, entendia que a antipathia ou total indifferença era o mais frouxo dos vínculos conjugaes. Desamparada desse lado, a viuva cogitou então a viagem á Europa; e, quando elle lh'a recusou, recorreu á guerra do Paraguay. Não sem custo lançou mão desse meio, violento para ambos; mas, uma vez adoptado, luziu-lhe mais a vantagem do que lhe negrejou o perigo. Assim foi que de um incidente, comparativamente minimo, resultará aquelle desfecho grave; e de um caso doméstico sahia uma acção patriótica. IV Era noite fechada, quando Jorge chegou á casa de Estella. O Sr. Antunes estava á porta e talvez contava com a visita; recebeu-o com alvoroço e tristeza. Quatro mezes haviam decorrido depois da scena da Tijuca, e durante esse tempo Jorge fora muitas vezes á casa da rua de D. Luiza. Não lhe fugira Estella nem o maltratara; usou a mesma serenidade e frieza de outro tempo, falando-lhe pouco, é certo, mas com tamanha isenção, que parecia não ter havido entre elles o menor dissentimento. Pela sua parte, Jorge forcejava por apagar a lembrança daquelle episódio, havendo-se com o respeito e consideração que lhe pareciam bastantes para resgatar a estima perdida. A's vezes ficavam a sos na sala, porque o Sr. Antunes inventava algum motivo que o obrigasse a eclipses parciaes, com o fim único, dizia elle comsigo, —de ajudar a natureza. Mas sobretudo nessas occasiões, alias propícias, não transpunha Jorge a linha que a si mesmo traçara, não lhe sussurrava uma única palavra amorosa, não lhe deitava um so olhar que a pudesse fazer corar ou reagir. Qualquer allusão á scena da Tijuca, ainda de submissão, seria prejudicial â causa de Jorge; elle evitava esse erro trivial, nada dizendo que próxima ou remotamente pudesse lembral-a á moça. Falavam pouco e de cousas indifferentes, como pessoas de nenhuma intimidade. Foi so quando perdeu de todo a esperança de a vencer pelos meios ordinários, que elle aceitou a proposta de se alistar no exercito. No dia em que lhes deu a notícia, a impressão no pae e na filha foi profunda, mas diversa, porque o pae ficou totalmente consternado e morto, ao passo que a filha sentiu a alma respirar livremente, e se uma voz secreta e medrosa lhe disse: não o deixes ir; outra mais dominadora e forte lhe bradou que a partida era a liberdade e a paz. A viagem, a distância, o tempo, a natureza das occupações militares deviam arrancar ao moço um sentimento que Estella temia fosse origem de dissenções domésticas, e que em todo o caso a abatia a seus próprios olhos. — E então amanha? perguntou o Sr. Antunes fazendo entrar o joven capitão. — Amanha. Estella recebeu-o como das outras vezes, sem embargo do pae, que parecia apostado em lhe tornar amargos esses últimos instantes. A tristeza do Sr. Antunes era mortal. Elle pertencia á phalange daquelles espíritos que, atravez dos annos e ainda nos regelos do hynverno, conservam as calcinhas da primeira edade, e para quem a vida tem sempre o aspecto dos castellos de cartas que construíram na infância. Uma vez penetrado da idéia de casar a filha com o bacharel, viveu delia, como se a vira praticada. O incidente da guerra não lhe desvendou a realidade da situação, mas pareceulhe que addiava o seu desejo, e bastava a consternal-o. Elle próprio o dissera á filha, porque o sonhar acordado e falando é o característico das ambições impotentes. Agora sobretudo, agora que via fardado o filho de. Valéria, prestes a embarcar no dia seguinte, creu deveras na separação. Após meia hora de conversa, o Sr. Antunes retirou-se alguns minutos da sala; ia ver charutos. — Tome um dos meus, disse Jorge. — Nada; os seus são muito fortes. Nunca os charutos de Jorge padeceram semelhante accusação da parte do Sr. Antunes, que fumava regularmente os do filho como havia fumado os do pae. Estella ficou humiliada com a resposta e a acção; retrahiu um suspiro e talvez devorou uma lagryma. Jorge, que estava de pe, junto a uma mesa, viu sahir o pae de Estella, e ficou a olhar para o chão. A moça cravou os olhos no trabalho, que estava fazendo, e um mortal silencio reinou entre os dous. Jorge ergueu emfim os olhos e poisou-os na moça, cuja belleza lhe pareceu naquella noite ainda mais límpida e espiritual, justamente porque elle começava a vel-a atravez do nimbo da saudade. Ella attendia ao trabalho com uma quietação laboriosa. Suas mãos, que podiam emparelhar com as mais puras, moviam as agulhas sem apparente commoção nem tremor. Ao mancebo ja não humiliava esse aspecto indifferente e digno; ou se o humiliava, não era o amor próprio, era o coração que se sentia oppresso. Podia medir, em si mesmo, a differença das situações, o caminho vencido, desde suas primeiras idéias a respeito de Estella. Mas os minutos corriam e o silêncio acanhava-o cada vez mais; emfim, resolveu rompel-o, e rompel-o de modo que tirasse daquelle minuto ou a salvação ou o naufrágio da vida que ia emprehender. Deu dous passos para Estella. — Talvez não nos vejamos mais, disse elle. — Porque? disse Estella sem levantar os olhos. — Posso ficar enterrado no Paraguay. — Sua mãe não gostaria de ouvir isso… Seguiram-se ainda dous minutos, que pareceram duas mortaes horas. Jorge perdeu momentaneamente o uso da lingua e da razão; mas venceu-se, colheu as forças, e poz toda a sua alma nestas palavras, ditas em voz baixa e triste: — Embarco amanhã para o sul. Não é o patriotismo que me leva, é o amor que lhe tenho, amor grande e sincero, que ninguém poderá arrancar-me do coração. Se morrer, a senhora será o meu último pensamento; se viver não quero outra glória que não seja a de me sentir amado. Uma e outra cousa dependem so da senhora. Digame; devo morrer ou viver? Estella tinha erguido a cabeça; quando elle acabou achava-se de pe. Fitou-o alguns instantes com uma expressão muda e fria. A vaidade da mulher podia contentar-se daquella solemne reparação, e perdoar; mas o orgulho de Estella triumphou, e não deu logar a nenhum outro sentimento de justiça ou de humanidade. Um geito irônico tórceu-lhe o lábio, donde sahiu esta palavra ma e desdenhosa: — O senhor é um tonto. Quando o pae voltou â sala, instantes depois, Jorge estava com uma das mãos no encosto de uma cadeira, pallido comoumdefuncto. Estella fora até á porta da alcova da sala, resolvida a fechar-se por dentro. O Sr. Antunes não tinha observação; mas, ao ver o rosto do dous, não era muito difficil adivinhar que alguma cousa se passara entre elles. Adivinhou-o; comtudo, não atinara bem o que seria, se uma scena de dolorosa despedida, se outra cousa menos propícia a seus cálculos. Foiaojoven capitão e pediu-lhe que se sentasse; mas Jorge declarou que ia sahir e despediu-se. Sem encarar Estella, estendeu-lhe a mão, que ella apertou com o ar mais tranquillo do mundo. O pae espreitava uma lagryma furtiva, um gesto disfarçado, qualquer cousa que fallasse em favor de suas esperanças. Nada; Estella não baixou o rosto nem escondeu os olhos. Jorge, sim; não obstante o esforço que fazia, tremia-lhe a mão ao apertar a do escrevente O Sr. Antunes, âcompanhou-o até a porta. Alli, antes de a abrir, quiz abraçar o moço official. — De-me essa triste honra, disse elle; creia que estes braços são de amigo. Jorge deixou-se ir, sem enthusiasmo; mas quando sentiu o corpo do pae de Estella, pareceulhe que abraçava uma parte da moça, e apertou-o fortemente ao peito. Esta manifestação lisonjeou extremamente o outro; chegou a commovel-o. — Conte commigo, murmurou elle; fico para ajudal-o. Jorge ouviu-o, apertou-lhe machinalmente as mãos, recebeu um abraço último e atirou-se árua. Intolerável é a dor que não deixa sequer o direito de arguir a fortuna. O mais duro dos sacrifícios é o que não tem as consolações da consciência. Essa dor padecia-a Jorge; esse sacrifício ia consumal-o. Não foi dalli para casa; não ousaria encarar sua mãe. Durante a primeira hora que se seguiu á sahida da casa de Estella, não pôde reger os •, pensamentos; elles cruzavam-lhe o cérebro sem ordem nem deducção. O coração batia-lhe rijo na arca do peito; de quando em quando o corpo era tomado de calafrios. Ia despeitado, humiliado, com um dente de remorso no coração. Quizera de um so gesto eliminar a scena daquella noite, quando menos apagal-a da lembrança. As palavras de Estella retiniam-lhe ao ouvido como um silvo de vento colérico; elle trazia no espirito a figura desdenhosa da moça, o gesto sem ternura, os olhos sem misericórdia. Ao mesmo tempo, lembrava-lhe a scena da Tijuca, e alguma cousa lhe dizia que essa noite era a desforra daquella manhã. Ora sentia-se odioso, ora ridículo. Quem se sente odioso pôde ter no orgulho um refúgio; quem se sente ridículo acha no orgulho seu próprio flagello. — Tua mãe é quem tem razão, bradava uma voz interior; ias descer a uma alliança indigna de ti; e se não soubeste respeitar nem a tua pessoa nem o nome de teus pães, justo é que pagues o erro indo correr a sorte da guerra. A vida não é uma egloga virgiliana, é uma convenção natural, que se não aceita com restricções, nem se infringe sem penalidade. Ha duas naturezas, e a natureza social é tão legitima e tão imperiosa como a outra. Não se contrariam, completam-se; são as duas metades do homem, e tu ias ceder â primeira, desrespeitando as leis necessárias da segunda. — Quem tem razão es tu, dizia-lhe outra voz contrária, porque essa mulher vale mais]que seu destino, e a lei do coração é anterior e superior ás outras leis. Não ias descer; ias fazel-a subir; ias emendar o equívoco da fortuna; escuta a voz de Deus e deixa aos homens o que vem dos homens. Jorge caminhava assim, levado de sensações contrárias, até que ouviu bater meia-noite e caminhou para casa, cançado e oppresso. Valéria esperava-o sem haver dormido. Essa dedicação silenciosa, occulta, vulgar nas mães, natural naquella véspera de uma separação acerba e longa, foi como um balsamo ao coração dolorido do rapaz. Foi também um remorso. Pungiu-lhe a consciência ao ver que esperdiçára algumas horas longe da creatura, a quem verdadeiramente ia deixar saudades, única pessoa que pediria a Deus por elle. Valéria adivinhára onde estaria o filho, e tremia de medo á proporção que as horas passavam, receiosa de que, amando-o Estella, um e outro houvessem subtrahido sua ventura ao jugo das leis sociaes, indo refugiar-se em algum ignorado recanto. Pensou isso, e fraqueou, e arrependeu-se, duvidando de si e da rectidão de seus actos. Não duvidava da natureza do mal; mas não excedia a elle o remédio escolhido? Suppondo que esse pensamento era a sua primeira punição, reagiu fortemente, colligindo as energias abatidas e dispersas e voltou a ser a mulher que era, com todas as suas fortes qualidades naturaes ou contrahidas. De mais, a que viria o arrependimento, se era tarde? Jorge entrou com as feições recompostas, mas tristes. Valéria recebeu-o sem nenhuma expressão de censura ou magua. Nada lhe disse; elle pouco falou e despediram-se sem expansão, aquella última noite que ia o moço dormir sob o tecto de seus paes. A noite foi. para elle afflicta e melancholica. Quasi inteira gastou-a em inventariar a vida que ia acabar, em dar busca a seus papeis, queimar as cartas dos amigos, repartir algumas prendas, e finalmente em escrever disposições testamentârias e cartas a pessoas íntimas. Perto das quatro horas deitou-se; ás sete estava de pe. Valéria havia-selhe antecipado. Algumas pessoas foram despedir-se delle e acompanhar a mãe no solemne momento da' despedida. Entre essas figurava o pae de Estella, cuja tristeza, que era sincera, trazia uma máscara ainda mais triste. Veiu emfim o momento da despedida. Valéria dominara-se até onde pôde; mas o último instante concentrava tantas dores, que era impossivel resistir-lhe. A organisaçâo moral da viuva era forte, mas a resistência fora prolongada, e a vontade gastou-se nesse esforço de todos os dias. Quando soou o instante definitivo da separação rebentaram dos olhos as lagrymas, não tumultuosas, cortadas de vozes e gemidos, mas dessas outras que retalham silenciosamente as faces, resto de uma dignidade que cede a custo á lei da natureza. Ella estendeu os braços, ainda formosos, sobre os hombros do filho; nessa postura cOntemploú-o algum tempo; depois beijou-o e apertou-o estreitamente ao coração. — Vae, meu filho, disse com voz firme. Eu fico rogando a Deus por t i; Deus é bom e te restituirá a meus braços. Serve a tua pátria, e lembra-te de tua mãe! Foram as últimas palavras. Jorge não as ouviu; tinha o espirito prostrado e surdo. Chorou também, menos silenciosamente que Valéria, mas as mesmas lagrymas afflictas. — Adeus, querida mamãe I disse elle arrancando-se emfim de seus braços. Sahiu; Valéria não o viu sahir; dera costas a todos e foi lastimar na alcova seu voluntário infortúnio. Pouco tempo depois, perdendo de vista a cidade natal, sentiu Jorge que dobrara a primeira lauda de seu destino, e ia encetar outra, escripta com sangue. O espectaculo do mar abateu-o ainda mais: alargava-se-lhe a solidão até o infinito. Os poucos dias da viagem desfiou-os nessa atonia moral que succede ás catastrophes. Emfim, aportou a Montevidéu,—seguindo dalli ao Paraguay. A segunda viagem, as gentes extranhas, as novas cousas, o movimento do theatro da guerra, produziram nelle saudável transformação. Seu espirito elástico e mobil sacudiu as sombras de pezar que o ennoiteciam, e, uma vez voltado o rosto para o lado do perigo, começou de enxergar, não a morte obscura ou ainda gloriosa, mas o triumpho e o laureado regresso. Esta illusão ou confiança é o poder mysterioso que faz a generalidade dos heróes militares. Bebido o primeiro hausto da campanha, Jorge sentiu-se homem. A hora das frivolidades acabara; a que começava era a do sacrifício austero e diuturno. Ia encarar trabalhos não sabidos, expor-se a perigos inopinaveis; mas ia resoluto e firme, com a fronte serena, e clara e o lume da confiança acceso no coração. Imaginação, amor, despeito, de que prodigios não sereis capazes? _____ V As primeiras cartas do Jorge foram todas á mãe. Eram longas e derramadas, enthusiasticas, descuidosas e até pueris. Descontada a escassa porção de realidade que podia haver nellas, ficava um cálculo, que o coração de Valéria comprehendeu; era adoçar-lhe a ausência e dissipar-lhe as apprehensões. Cedo se familiarisou Jorge com a vida militar. O exercito, acampado em Tuyuty, não iniciava operações novas; tratava-se de reunir os elementos necessários para proseguir a campanha de modo seguro e decisivo. Não havendo nenhuma acção grande, em que pudesse provar as forças e amestrar-se, Jorge buscava as occasiões de algum perigo, as commissões arriscadas, cujo êxito dependesse de espirito atrevido, sagacidade e paciência. Esse desejo captou-lhe as ympathia dos chefes immediatos. O coronel que o commandava attentou nelle; sentiu-lhe a alma juvenil atravez do olhar brando e repousado. Ao mesmo tempo observou que, no meio dos gozos fáceis e múltiplos do acampamento, convertido pela inacção em povoado de recreio, Jorge conservava um retrahimento monachal, um casto horror de tudo o que pudesse divertil-o de curar das armas, ou somente de pensar nellas. O coronel era homem de seu officio; amava a guerra pela guerra; morreu talvez de nostalgia no regaço da paz. Era bravo e ríspido. O que lhe destoou a princípio na pessoa de Jorge, foi o alinho e um resto de seus ademanes de sala. Jorge, entretanto, sem perder desde logo o geito da vida civil, foi creando com o tempo a crosta de campanha. Seu desejo de trabalhar, de arriscar-se, de temperar a alma ao fogo do perigo, trocou os sentimentos do coronel, que entreviu nelle um bom companheiro de armas,, e ao fim de pouco tempo procurou distinguil-o. Posto que Jorge falasse do coronel nas cartas que escrevia á mae, não o dava como amigo seu, nem tinha amigos no acampamento, ou se os tinha não os considerava taes. Ouvia confidencias de muitos, animava as esperanças de uns, consolava as penas de outros, nunca abria porém a porta do coração á curiosidade transeunte. Devia ser entretanto interessante uma página somente da vida daquelle militar, joven, bonito, abastado, que não ia ao theatro nem aos saraus do acampamento, que ria poucas vezes e mal, que so falava da guerra, quando falava de alguma cousa. Um dia, um major do Ceará foi achal-o sentado em um resto de carreta inútil, lançado em sítio escuso, ora a olhar para o horizonte, ora a traçar com a ponta da espada uma estrella no chão. — Capitão, disse o major, parece que você está vendo estrellas ao meio dia? Jorge sorriu do gracejo, mas não deixou de continuar, nos demais dias, a traçar estrellas no chão ou a procural-as nas campinas do ceu. Os officiaes, arrastados pela sympathia, não lhe ficavam presos pela convivência; Jorge era, não so taciturno, mas desegual, ora dócil, ora ríspido, muitas vezes distraindo e absorto. Era distrahido, sobretudo, quando recebia cartas do Rio de Janeiro, entre as quaes rara vez acontecia que não viesse alguma do sr. Antunes. O pae de Estella regava com a água salobra de seu estylo a esperança que não perdera. Suas cartas eram epithalamios disfarçados. Falava muito de si, e muito mais da filha, cuja alma, dizia elle, andava singularmente triste e acabrunhada. Jorge resistia ao desejo de falar também de Estella: mais de uma vez o nome da moça lhe caía dos bicos da penna; elle o riscava logo, assim como riscava qualquer phrase que pudesse parecer allusiva a seus sentimentos; as que escrevia ao pae da moça eram sêccas, sem especial interesse, polidas e frias. Um dia, porém, antes de meado o anno de 1867, seu coração não pôde resistir á necessidade de segredar o amor a alguém ou proclamal-o aos quatro ventos do ceu. Ning*uem havia ao pe delle que merecesse a confidencia; Jorge alarg*ou os olhos e lembrou-se de Luiz Garcia, única pessoa extranha a quem confiara metade do segredo que havia levado para a guerra. Os corações discretos são raros; a maioria não é de gaviões brancos que, ainda feridos, voam calados, como diz a trova; a maioria é das pegas, que contam tudo ou quasi tudo. Ja nesse tempo o coração de Jorge padecêra grande transformação. Seu amor, sem minguar-lhe a intensidade, mudara de natureza, convertendo-se em uma espécie de adoração mystica, sentimento profunde e forte, que parecia respirar atmosphera mais alta que a do resto da creação. Elle mesmo o disse na carta a Luiz Garcia, sem lhe denunciar o nome da pessoa, nem nenhuma circumstância que podesse pol-o na pista da realidade; exigiu-lhe absoluto silêncio e contou-lhe o que sentia: « Não importa saber quem é, disse elle; — o essencial é saber que amo a mais nobre creatura do mundo, e o triste é que não somente não sou amado, mas até estou certo de que sou aborrecido. « Minha mãe illudiu-se quando suppoz que meu amor achára echo em outro coração. Talvez desistisse de me mandar ao Paraguay, se soubesse que esta paixão solitária era o meu próprio castigo. Era; ja o não é. A paixão veiu commigo, apezar do que Z/ieouvi.na véspera de embarcar; e se não cresceu, é por que nao podia crescer. Mas transformou-se. De creança tonta, que era, fez-me homem de juízo. Uma crise, algumas legoas de permeio, poucos mezes de intervallo, foram bastantes a operar o milagre. « Não sei se a verei mais, porque uma bala pôde pôr termo a meus dias, quando eu menos o esperar. Se a vir, ignoro os sentimentos com que ella me receberá. Mas de um ou de outro modo, este amor morrerá comigo, e o seu nome será a última palavra que hade sair de meus lábios. « Meu amor não sabe ja o que seja impaciência ou ciúme ou exclusivismo: é uma fe religiosa, que pôde viver inteira em muitos corações. Talvez o senhor me não comprehenda. Os homens graves ficam surdos a estas subtilezas do coração. Os frivolos não as entendem. Eu mesmo não sei explicar o que sinto, mas sinto alguma cousa nova, uma saudade sem esperança, mas também sem desespero: é o que me basta. » Jorge releu o escripto, e ora o achava claro de mais, ora obscuro. Hesitou ainda algum tempo; emfim, dobrou a carta, fechou-a e remetteu-a para o Rio de Janeiro. Quando a resposta lhe chegou ás mãos, preparava-se o exercito para deixar Tuyuty. Jorge estava todo entregue aos cuidados da guerra, a sonhar batalhas, a acutilar mentalmente os soldados de Lopez. A resposta de Luiz Garcia dizia pouco ou nada do objecto da carta de Jorge; com punha-se quasi toda de conselhos e reflexões, dadas em linguagem sóbria e medida, reflexões e conselhos relativos quasi exclusivamente aos deveres de homem e de soldado. Jorge esperava aquillo mesmo; conhecia, ainda que pouco, o gênio sêcco e gélido de Luiz Garcia. Comtudo, ficou momentaneamente desapontado e triste. Seria certo que nenhum coração sympathisava com seus secretos infortúnios ou suas venturas solitárias? Ao cabo de largos mezes de separação, nem Estella pensaria nelle, nem elle achava pessoa com quem partisse o pão das saudades, úlmo alimento de um amor sem cônjuge. A consciência da solidão moral abateu-o um instante; esvaiu-se-lhe toda a força accumulada durante aquelles mezes, e a alma caiu de bruços. Poucos dias depois operou-se a marcha de Tuyuty a Tuyu-Cué, a que se seguiu uma serie de acções e movimentos, em que houve muita página de Plutarcho. So então pôde Jorge encarar o verdadeiro rosto á guerra, a cujo princípio não assistíra; figurou em mais de uma jornada heróica, correu perigos, mostrou-se valoroso e paciente. O coronel adorava-o; sentia-se tomado de admiração deante daquelle mancebo, que combatia durante a batalha e calava depois da victoria, que communicava o ardor dos soldados, não recuava de nenhuma empreza, ainda a mais arriscada,' e a quem uma estrella parecia proteger com suas azas de luz. Notou elle uma vez, em um dos combates mortíferos de dezembro de 1868, anno e meio depois da carta de Luiz Garcia, que a temeridade do mancebo parecia ir além dos limites do costume, e que em vez de um homem que combatia, era elle um homem que queria morrer. A fortuna salvou-o. Findo o combate, recolhidos os feridos, repousados os corpos, o coronel foi ter com elle na barraca, e achou-o tristemente quieto, com os olhos inchados e parados. O coronel não reparou nisso; entrou a felicital-o pelo comportamento que tivera, ainda que um pouco excessivo. Jorge tinha-se respeitosamente erguido e olhava para o coronel sem dizer palavra. Este encarou-o e viu-lhe signaes de abbtimento. — Que diabo tem você, capitão? — Nada, respondeu o moço. — Recebeu hontem cartas do Rio de Janeiro? — Uma: de minha mãe. — Está boa? — De perfeita saúde. — Nesse caso.... O coronel parou e reflectiu; depois continuou: — Ja sei o que é. — O que é! exclamou Jorge procurando sorrir. — Hade fazer-se, continuou o coronel; a cousa está a caminho, hade fazer-se, não lhe digo mais nada. E bateu-lhe no hombro, com um gesto que tanto podia dizer: « socegue, capitão », como: « parabéns, senhor major. » Jorge entendeu esse trocadilho gesticular, e apertou as mãos do coronel, agradecendo-lhe, não o posto que lhe annunciava, mas a affeição que lhe tinha. O coronel encarou-o paternalmente alguns minutos. — Subir! Não sonham com outra cousa, rosnava elle comsigo. E sahiu. Jorge ficou so, accendeu um cigarro, que não pôde fumar até o fim. Depois sentou-se, desabotoou a farda, tirou uma carta, abriu-a e releu algumas linhas do fim. A carta era de Luiz Garcia. Dava-lhe notícias de sua mãe, que, por motivos de doença, fora tomar águas a Minas, e rematava com estas palavras assombrosas: «…..Resta-me dizer-lhe, se em alguma cousa lhe póde interessar minha vida, que sabbado passado contrahí segundas nupcias. Minha mulher é a filha do Sr. Antunes. Sua mãe serviu-nos de madrinha.» Com os olhos fitos nessas poucas linhas, Jorge parecia alheio a tudo mais. O papel, recebido na véspera, estava amarrotado, como se lhe passara pelas mãos durante um anno. Olhava, relia e não podia entender; quando chegava a entender, não podia acreditar. O casamento de Estella era a seu ver um absurdo; mas após os intervallos de dúvida, a realidade apossava-se; delle. A razão mostrava-lhe que semelhante notícia devia ser certa. No fim de dous dias, tinha elle comprehendido alguma cousa do silêncio de súa mãe: o motivo era, sem dúvida, o mesmoque a impellíra a mandal-o ao Paraguay. Nunca, lhe fallára de Estella, nem do casamento de Luiz Garcia, silêncio calculado para de todo extinguir em seu coração os derradeiros murmúrios de um amor sem echo. Jorge sentiu então um phenomeno próprio de taes crises, —um movimento de ódio a todo o gênero humano, desde sua mãe até o seu inimigo. Tornou-se descortez, violento, deliberadamente mau: effeito transitório, ao qual succedeu um abatimento profundo. Ferido dahi a dias em Lomas Valentinas, retirou-se por alguns mezes do exercito, cujas operações so continuaram depois de meado o anno seguinte, Jorge teve parte nas jornadas de Pirebebuy e Campo Grande, não ja na qualidade de capitão, mas na de major, cuja patente lhe foi concedida depois de Lomas Valentinas. No fim do anno estava tenente-coronel, commandava um batalhão, e recebia os abraços de seu antigo commandante, contente de o ver sagrado heroe. Um acontecimento inesperado e desastroso veiu ainda golpeal-o cruelmente, logo depois de março de 1870, quando, acabada a guerra, estava elle em Assumpção. Valéria fallecêra. Luiz Garcia lhe deu essa triste notícia, que elle antes adivinhou do que leu, porque as últimas cartas ja lhe faziam presentir o lugubre desenlace. Jorge adorava a mãe. Se so a contra-gosto viera para a guerra, não é menos certo que esta o cobrira de louros, e que elle os quizera depositar no regaço de Valéria. O destino decidiu por outro modo, como se quizesse contrastar cada um de seus favores fazendo-lhe sangrar o coração. No fim de outubro volveu ao Rio de Janeiro Tinham passado quatro annos justos. Penetrando a barra e descortinando a cidade natal, Jorge comparava os tempos, as angústias e as esperanças da partida com a glória e o abatimento do regresso. Não se sentia feliz nem infeliz, mas nesse estado médio, que é a condição vulgar da vida humana. Comparava-se ao mar daquella manhã, nem borrascoso nem quieto, mas levemente empolado e crespo, tão prestes a adormecer de todo, como a crescer e arremeçar-se á praia. Que aragem somnolenta ou que tufão destruidor, viria roçar por elle sua aza invisível? Jorge não o prescrutou. Trazia os olhos no passado e no presente; deixou ao tempo os casos do futuro. VI Antes de irmos direito ao centro da accão, vejamos por que evolução do destino se operou o casamento de Estella. Poucos poderiam suppor, nos fins de 1866, que a campanha se protrahiria ainda cerca de quatro annos. O cálculo do general Mitre, relativo aos tres mezes de Buenos Ayres a Assumpção, tinha ja cahido, é certo, no abysmo das illusões históricas. Proclamações são loterias; a fortuna as faz sublimes ou vans. A do general argentino, que era ja uma affirmação errada, exprimiu comtudo, no seu tempo, a convicção dos tres povos. Do primeiro embate com o inimigo, viu-se que a campanha seria rija e longa; a illusão desfez-se; ficou a realidade, que nem por isso encarámos com rosto afflicto. Não obstante, era difficil presumir, em outubro de 1866, que a guerra chegasse até março de 1870. Suppunha-se que um esforço ingente bastaria a reparar Curupaity, a derrubar Humaitá, a vencer o dictador, não nos tres mezes do general Mitre, mas em muito menos tempo do que viria a ser na realidade. Isto posto, não admira que Valéria receiasse a cada instante a terminação da guerra e a prompta volta do filho.. Se tal cousa acontecesse, ella teria dado um golpe inútil, e o fogo podia renascer das cinzas mal apagadas. Valéria preferia as soluções radicaes. Uma vez arredado o filho, viu a necessidade de anniquillar as últimas esperanças, e o mais seguro meio era casar Estella. Assim procedendo, satisfaria também a affeição que tinha á moça, affeição que nunca lhe diminuíra. Sabia que entre Estella e o pae havia contrastes moraes de difficil conciliação. Cada um delles falava lingua differente, não podiam entender-se nunca, sobretudo (dizia ella comsigo), na escolha de um consorte. Dous mezes depois do embarque de Jorge, Valéria mandou chamar o Sr. Antunes a Santa Thereza, onde tinha uma casa de verão. O recado foi escripto, circumstância que lhe deu certa solemnidade. Nunca até então a viuva lhe escrevêra. O Sr. Antunes leu e releu o bilhete, mostrou-o duas ou tres vezes á filha, esteve tentado o. mostral-o ao visinho fronteiro. Em quanto se vestia, -pol-o. sobre a mesa, lançando-lhe a furto os olhos, pesando-lhe de côr as expressões cortezes, espremendo-as, dissecando-as. Vestido, guardou-o cuidadosamente na algibeira. Na rua, separou-se de um importuno dizendo emphaticamente aonde ia. Quanto ao motivo do recado, não atinava qual fosse, nem teve muito tempo para isso. Cogitou, entretanto, e suppoz que se tratava de algum obséquio que ella lhe ia encommendar. Era obséquio, e não lh’o pedia a viuva; prestava-o, e não se demorou muito em dizel-o. Ao cabo de dez palavras, pediu-lhe licença para dotar Estella. — Não quizera fazel-o, sem o seu consetimento, concluiu ella; por isso o mandei chamar. Do mais Ínfimo a que um homem haja baixado, a natureza pôde fazel-o sublime, ainda que por um -so minuto. Esse minuto teve-o o pae de Estella. Immovel e sem fala a princípio; depois,; ainda sem fala, mas não ja immovel, o Sr. Antunes revellou em seu rosto, alias vulgar, uma commoção grave e digna. A dignidade, porém, expirou com o silêncio. Quando elle abriu a bocca para agradecer a prova de affeição que a viuva lhe dava á filha, a alma readquiriu o tregeito habitual. Valéria cortou-lhe o discurso com uma arte tão superior, que o pae de Estella antes sentiu do que comprehendeu. A viuva tinha a verdadeira generosidade, que consiste menos em prestar o obséquio do que em dissimulal-o; disse-lhe que, dotando Estella, cumpria um desejo do desembargador, e sem esperar pelo necrológio que o Sr. Antunes provavelmente ia recitar, fez um longo e affectuoso inventário das qualidades da moça. — E' muito boa filha, concluiu a viuva; tem qualidades dignas de todo o apreço, e, além do mais, sou amiga delia. — Isso, minha senhora, é a maior fortuna que lhe podia caber. Quanto a ser boa filha, não é por vaidade que o digo, mas creio que a senhora tem razão. Sahiu á mãe, que era umasanta alma. — Estella não o é menos. E bonita! Emfim pôde vir amar alguém, não lhe parece? — Póde, póde, assentiu o sr. Antunes. Que eu, verdadeiramente, não sei se ella ja não amará. E' tão calada! Ultimamente parece andar triste.... — Triste? — Distrahida... assim, como pessoa que não tem o pensamento socegado. Não sei se aquillo é paixão, ou doença. Doença não creio que seja, por que ella é forte e tem boa apparencia. Coitadinha! Mas sempre alegre . . isto é, alegre não... quero dizer, não anda sempre triste… ou por outra. Valéria sorriu mentalmente daquella confusão que o sr. Antunes fazia, e que attribuiu ao alvoroço que naturalmente a notícia do dote lhe causara; interrompeu-o dizendo que fosse Ia com a filha. Estella ouviu dahi a meia hora a notícia da generosidade da viuva, que o pae se apressou a ir dar-lhe, e, contra a expectação deste, ouviu-a calada e severa. Não achando a explosão de alegria que esperava, o Sr. Antunes abanou desanimado a cabeça. — Não te entendo, filha! replicou elle. Has de dizer o que é que queres ser neste mundo. Não es rica, nem menos que rica; não tens a menor esperança no futuro. Eu não te posso deixar nada, por que nada tenho. Ha uma senhora, que te estima, que te faz um beneficio, e tu recebes isto como se fosse uma injúria. A observação do pae chamou a filha á realidade da situação. — Papae sabe que não sou de muito riso, disse ella; pôde ficar certo de que me alegrou'muito a notícia que me deu. Não alegrou nada. Nunca lhe pesara tanto a fatalidade de sua posição. Depois do episódio da Tijuca, parecia-lhe aquelle favor uma espécie de perdas e damnos que a mãe de Jorge liberalmente lhe pagava, uma água virtuosa que lhe lavaria, os lábios dos beijos que ella forcejava por extinguir, como lady Macbeth a sua mancha de sangue. Out, damnet spot! Este era o seu conceito; esta era também a sua magua. A altivez com que procedera desde aquella manhã de algum modo lhe levantara o orgulho, que o acto inconsiderado de Jorge havia por um instante humiliado. Mas a a acção da viuva, por mais espontânea que fosse, tinha aos olhos da moça a conseqüência, de fazer decorrer o beneficio da mesma origem da affronta. Estella não distinguia entre os bens da mãe e do filho. Era tudo a mesma bolsa; e dalli é que lhe vinha o dote. Com essa idéia oppressiva entrou ella em casa da viuva, cuja recepção lhe desabafou o espirito do mais espesso de suas preoccupações. Valéria beijou-a, com um gesto mais maternal que protector. Nem lhe deixou concluir a phrase de agradecimento; cortou-a com uma caricia; depois falou-lhe de sua belleza, de suas occupações, de #cem cousas alheias ao objecto que as reunia, dissimulação generosa, que Estella comprehendeu, porque também possuía o segredo dessas delicadezas moraes. Quinze ou vinte dias depois, Valéria interrogou directamente Estella, e a resposta que obteve foi contrária a suas esperanças. — Não amo ninguém, disse a moça; e provavelmente nao amarei nunca. — Porque? replicou vivamente a viuva. Estella sorriu. — Podia dizer-lhe, respondeu ella, que não tenho coração… — Seria mentir. Mas vas talvez dizer que um bom marido não é cousa fácil de achar. — Isso. — Tens razão até certo ponto. De todas as aves raras, a mais rara é um bom marido; mas o que é raro não é impossivel. Metteu-se-me em cabeça que heide descobrir uma jóia. Se eu a encontrar, que faras tu? — Aceito, disse a moça depois de um instante. — Assim, não; não quero que a aceites sem vontade; hasde aceital-a com amor porque eu não creio que não tenhas coração; é faceirice de moca bonita. Deixa ver,—continuou a viuva collocando-lhe a mão no peito;—tens, oh! tens um coração que parece querer despedaçar-te o peito. Estella, tu estás doente! — Que idéia 1 exclamou a moça rindo. Se eu vendo saúde! Não estou doente, estou commovida. Tratemos do noivo. Não me peça que o ame apaixonadamente, porque eu não nasci para isso. Minha natureza é fria. Mas um pouco de estima, certo interesse… — Justo: a semente do amor. O tempo se encarregará de fazer a árvore. Durante tres mezes não falaram do assumpto. No fim desse tempo,—tendo Valéria descido de Santa Thereza, Estella foi passar algumas semanas na rua dos Inválidos.—Ainda nada? perguntou a viuva logo que a viu.—Cousa nenhuma, foi a resposta. Dada a situação de uma e outra, não era fácil a Valéria encontrar-lhe o noivo desejado, a menos de o designar a própria noiva, e essa era a mais improvável de todas as hypotheses. Entretanto, a convivência fez renascer entre ambas alguns dos hábitos antigos. Valéria tornou a sentira necessidade de a ter comsigo, de a conversar, de depositar nella suas idéias e enxaquecas. Estella offerecia todas as vantagens de uma velha amiga, com a circumstância de ser moça, e ainda %iais,a de ser bonita, qualidade sympathica á viuva, que fora uma das bellas mulheres de seu tempo. Nada lhes impedia restaurar inteiramente a situação anterior,a não ser a memória do passado recente. Era isso que ainda estabelecia entre ambas tal ou qual cautella, tal ou qual separação, que o Sr. Antunes chegava a suspeitar ás vezes, sem poder comprehender nunca. Não falavam de Jorge, nem da guerra, nem de cousa que podesse reviver a lembrança do passado. Começado o verão de 1867, Valéria transportou-se a Santa Thereza, onde Estella foi algumas vezes. Numa dessas vezes encontrou alli a filha de Luiz Garcia, que caminhava para os treze annos, e concluía os estudos de collegio. Houve um instante de hesitação entre as duas; Yayá, que era ainda a mesma creatura travessa e lépida, sentiu-se acanhada deante da gravidade de Estella, mas esse instante foi curto e a affeição immediata. Acabado o verão, a viuva resolveu não descer á rua dos Inválidos; e, com o pretexto ou o motivo de que em Santa Thereza ficava mais so, alcançou que Estella fôsse Ia estar algum tempo. Estella subiu em março. Ja então Yayá entrara na intimidade da casa, menos ainda pelo que podia haver, e —havia,— sympathico e attrahente em sua pes soa, do que pelo esforço próprio. A sagacidade da menina era a sua qualidade mestra, e graças aos dous olhos que Deus lhe deu, foi que ella viu depressa o que era menos agradável, para evital-o, eo que o era mais, para cumpril-o. Essa qualidade ensinava-lhe a syntaxe da vida, quando outras ainda não passam do abecedario, onde morrem muita vez. Obtida a chave do caracter de Valéria, Yayá abriu a porta sem grande esforço. Ia la quasi todos os domingos, ás tardes, e algumas vezes de manhã, com tal ou qual repugnância do pae, para quem os domingos eram os dias de ouro, e so o eram com a condição de exclusivismo. Luiz Garcia cedeu, não por causa da viuva, mas para satisfazer a filha, que parecia ter prazer em freqüentar a casa.—E' ainda creança, pensou elle; convém dar-lhe festas. Quando Yayá jantava em casa de Valéria, Luiz Garcia, ou também jantava, ou ia buscal-a á noite, e trazia-a depois de uma hora de conversa. A presença de Estella tornou ainda mais aprazíveis á mocinha aquellas visitas, e dentro de pouco tempo, era a affeição de Estella que mais lhe occupava o coração. A lei dos contrastes tinha ligado essas duas creaturas, porque tão petulante e juvenil era a filha de Luiz Garcia, como reflectida e plácida a filha do Sr. Antunes. Uma ia para o futuro, em quanto a outra vinha ja do passado; e se Estella tinha necessidade de temperar a sua atmosphera moral com um raio da adolescência da outra, Yayá sentia instintivamente que havia em Estella alguma cousa que sarar ou consolar. Um dia, Yayá foi encontrar Estella ao pe de uma mesa, com um álbum de retratos aberto deante de si. A moça estava tão embebida, que so deu pela presença de Yayá, quando esta parou do outro lado da mesa, e inclinou os olhos para o álbum. Estella teve um pequeno sobresalto, mas dominou-se logo. — Seu pae tem uma physionomia dê bom coração, disse ella. — Não é verdade? retorquiu a menina com enthusiasmo. Effectivamente, uma das páginas do álbum continha o retrato de Luiz Garcia; mas na outra página estava o retrato de Jorge, um dos tres ou quatro que a viuva possuía na collecção. Yayá, que adorava o pae, achou que a observação de Estella era a mais natural do mundo, e não olhou sequer para a outra photographía. Estella fechou depressa o álbum com a mão trêmula, e mal pôde sorrir â insistência com que Yayá voltou aquelle assumpto. Tinha o seio offegante e o olhar vago, remoto, esvaído nas campanhas do sul. O coração batia-lhe violentamente. Mas essa commoção não durou mais de tres a quatro minutos. — A senhora podia casar-se com papae, disse a menina depois de olhar algum tempo para a outra. Estella teve novo sobresalto, mas dessa vez era so espanto. Como Yayá a abraçasse pela cintura, ella inclinou o rosto sobre o rosto da menina, e perguntou sorrindo: — Tinhas muita vontade de ser minha enteada? — Tinha. Estella abanou a cabeça, com um gesto, não de negativa, mas de incredulidade. Ja conhecia alguma cousa do caracter de Luiz Garcia; rigorosamente era um esposo aceitável. Via nelle um homem de affeições plácidas, medíocres, mas sinceras, Via-o respeitoso sem abatimento, polido sem affectação, falando pouco, mas com alguma idéia, em todo o caso com muita opportunidade, vivendo emfim para si e para a filha. De tudo o que observara concluía que a sobriedade era a lei moral desse homem, e que á taça da vida não pedia mais do que alguns goles, poucos. Que importa? A vida conjugal é tão somente uma chronica; basta-lhe fidelidade e algum estylo. Com quanto houvesse algumas semelhanças entre ambos, havia também differenças, mas Estella podia fiar do tempo, que ajusta os contrastes. E, não obstante, se o marido era aceitável, não lhe parecia que fosse possivel. A gravidade exterior, como que o rodeava de uma atmosphera impene[trav]el. Yayá não insistiu; mas dous ou tres domingos depois, estando todos na chácara, interrompeu a conversa geral para perguntar a Estella se deveras lhe tinha affeição. — Ja disse que sim, acudiu Estella. — Mas gosta muito de mim? — Muito, repetiu Estella prolongando a primeira syllaba. — Porque não vem morar commigo? Riram-se os outros; Estella beijou-a na testa. Ficando sos, a viuva e Estella jogaram uma partida de cartas, mas jogaram sem attenção; depois tomaram cha, mas sem appetite; finalmente dormiram, mas sem somno. Talvez a mesma idéia as preoccupava. No dia seguinte, Estella perguntou sorrindo á viuva: — Se eu lhe disser que ja achei um projecto de marido? — Quem? — O Luiz Garcia. Valéria apertou-lhe as mãos. — Excellente homem, disse ella; marido digno e capaz. Conheço-o ha muitos annos; nunca desmereceu dá nossa estima. E... amam-se? — Isso agora é mais complicado, replicou Estella; não posso dizer que o amo; comtudo, desejaria ser sua mulher. Talvez elle não deseje ser meu marido, mas é por isso mesmo que a consulto e lhe peço que me diga, uma vez que approva a escolha, se posso esperar reciprocidade e se devo… — Não deves fazer nada; incumbo-me de tudo. Valéria não occultou seu contentamento. Não lhe tinha occorrido nunca a idéia de os casar; Yayá fel-a nascer, Estella abriu-a em flor; so faltava o fructo, e era justamente a parte difficil, porque a Índole de Luiz Garcia affigurava-se-lhe inteiramente avessa ao desejo de contrahir segundas nupcias. Mas Valéria não desanimou. Não se pôde dizer que elle seja oideial de todas as noivas, pensava ella; não tem a expansão nem o verdor da primeira edade; mas deve ser um excellente marido. Luiz Garcia tinha agora melhor posição. Obtivera uma promoção de emprego, e mediante isso, e alguns trabalhos extraordinários que lhe ^eram confiados, pôde ficar inteiramente acoberto das intempéries da vida. Estabelecera o futuro da filha e restaurara as alfaias da casa, não por si, mas com a intenção de ser mais agradável a Yayá. Estella, entretanto, impunha uma condição. — Não desejo parecer que me offereço, disse ella; seria desairoso para um e para outro, e não sería a realidade. — Que te offereces, não; mas quem me pode impedir de ter adivinhado que o amas? disse a viuva maliciosamente. — Ou que o aprecio, emendou Estella. Para um bom casamento não é preciso mais. Luiz Garcia não ficou pouco admirado quando Valéria dahi a dias lhe perguntou se não tinha vontade de passar a segundas nupcias. Sorriu e ergueu os hombros; mas, insistindo a viuva, respondeu que a idéia de casar erajaserodeapara elle. — Não diga isso, tornou Valéria. Yayá está quasi moça, vai deixar o Collegio. O senhor vive so, e tendo de dar companhia a sua filha, é melhor que lhe dê uma madrasta. Luiz Garcia abanou resolutamente a cabeça. — Não tenho vocação para o casamento, disse elle depois de uma pausa; minha verdadeira vocação é o celibato. — Foi por isso que enviuvou? — Casei-me uma vez, é verdade, mas não foi por amor; além de que, era rapaz. — Quando teimo em alguma cousa, é difficil que não vença, disse a viuva depois de alguns instantes. Ha duas pessoas de quem gosto muito, ella e o senhor, ambas dignas uma -da outra; e eu entendi que as devia casar, e heide casal-as. Por que está a sorrir com esse ar incrédulo? Como Luiz Garcia não respondesse e continuasse a sorrir, Valéria ergueu-se e foi até a varanda, donde se olhava para a chácara; depois voltou-se para dentro: — Ande ver sua noiva, disse ella. Luiz Garcia foi até á varanda; a viuva apontoulhe para o grupo de Estella e Yayá. Na chácara havia um canteiro circular, plantado de gramma, no centro do qual jorrava a água de um repucho. A bacia deste era orlada de plantas, cujas folhas largas, rajadas umas de escarlate, outras de branco, interrompiam a monotonia da relva. Dessas folhas colhera Estella algumas, entretecêra os talos formando uma capella, a pedido de Yayá. Quando Luiz Garcia chegou á janella, a moça concluía o difficil trabalho. Uma vez prompto, Yayá que olhava para ella, infantilmente anciosa, inclinou a cabeça, e Estella cingiu-a com a grinalda rústica; depois recuou alguns passos, approximou-se outra vez, concertou-a melhor. As folhas cahiam-lhe sobre os hombros irregularmente, ou erguiam-se sobre a cabeça, e o todo daria idéia de uma nayade casquilha. Estella mirou-a alguns instantes; inclinou-se para ella e beijou-o repetidas vezes. Yayá quiz pagarlhe'o trabalho e a caricia de vol vendo-lhe a grinalda, e collocando-lh/a ella mesma na cabeça. Estella recusou, mas como a menina insistisse, batendo impacientemente o pe, cedeu ao desejo infantil. Inclinou-se; Yayá, que trepara a um banco, tingiu-lhe a cabeça, como a outra lhe fizera, e, satisfeito o seu capricho, saltou do banco ao chão. Nesse momento, como Valéria falava a Luiz Garcia, não viram estes dous que a menina, saltando precipitadamente e mal, caíra na areia; so deram pelo desastre ouvindo um pequeno grito angustioso de Estella. A moça correra á menina para a fazer levantar. A queda fôra pequena; Yayá procurava sorrir, mas um seixo que havia no chão, e sobre o qual caíra o rosto, fizera-lhe uma leve escoriação na face. — Não foi nada, dizia ella. — Nada! Você feriu-se... Ora, isto! Papae que ha de dizer.... Anda ca. Estella levou a menina pela mão até o repucho; molhou o lenço na água; lavou-lhe o sangue da face, inclinada sobre ella, que sorria voluntariamente. Nesse momento, Luiz Garcia, que havia descido logo, chegou ao grupo das duas. — Não foi nada, papae, disse Yayá lendo no rosto do pae o motivo que o trouxera; fui pular do banco e caí. Foi bem feito; é para eu não ser travessa. Luiz Garcia estendêra a mão direita sôbre a cabeça da filha e examinava-lhe a escoriação, que era pouco mais de nada. Tranquillisou-se e reprehendeu-a levemente, Estella, que interrompera a operação, concluiu-a dizendo que o caso era de pouca monta, mas podia ter sido mais grave. Luiz Garcia agradeceu-lhe o cuidado e o obséquio. — Demais, a culpada fui eu, disse Estella, e sem desculpa, porque não sou creança. Vamos? continuou ella pegando na mão da menina. — Então? perguntou a viuva a Luiz Garcia logo que este voltou a ter com ella. — Não falemos nisso, ou faça-me um milagre, disse elle seccamente. Não obstante a commoção que lhe ficou do procedimento affectuoso de Estella, em relação a Yayá, Luiz Garcia riu no dia seguinte, ao lembrar-lhe a proposta de casamento. Quando Ia voltou, não ouviu falar mais em semelhante assumpto, nem Estella lhe deu a entender a menor pretenção. Pareceu-lhe que Valéria consultara apenas o seu desejo particular. Tratando a moça de perto, Luiz Garcia havia ja observado duas cousas: primeiro, o resguardo com que ella procedia, sem ostentar a intimidade de Valéria, nem cair nos ademanes da servilidade; depois um ar de tristeza, que era a sua feição habitual. Concluiu que Estella devia padecer ou ter padecido alguma vez. Apreciou, além disso, algumas de suas qualidades moraes. Suppol-as verdadeiras, mas suppol-as também caducas, como as graças do rosto ou como a flor do campo; com a differença, dizia elle,—que ha um prazo fatal para •que as graças percam o primitivo frescor, e a flor expire o seu último cheiro,—ao passo que a natureza social tem a decrepitude precoce, e um principio de corrupção, que destroe em breve termo todas as florescencias do primeiro sol. Estella não desistíra da idéia e cogitava um meio de chegar á execução, não obstante a confiança da viuva, que lhe dizia:—Descança; a rede está lançada. Era justamente essa idéia de rede, que repugnava ao espirito directo _ e simples de Estella. Entretanto, cada dia que passava vinha confirmar a eleição da moça. O resto foi obra de Yayá, obra dividida em duas partes, uma voluntária, outra inconsciente. Voluntária, porque também a menina, no silêncio laborioso de seu cérebro, construíra o projectó de os unir, e o dissera mais de uma vez a um e a outro. Inconsciente, porque o amor que a ligava a Estella, foi a mais poderosa força que modificou o pae. Era uma affeição intensa a dessas duas creaturas; ao passo que Yayá dava a Estella uma porção de ternura de filha, Estella achava no amor da menina uma antecipação dos prazeres da maternidade. Luiz Garcia testemunhou esse movimento reciproco e, por assim dizer, fatal. Se Yayá devesse ter madrasta, onde a acharia mais completa? Discreta, moderada, superior a seus annos, Estella tinha as condições necessárias para esse delicado papel. A primeira insinuação da viuva foi a causa primordial; mas o tempo, a convivência, a affeição das duas, a necessidade de dar segunda mãe á menina, e antes legítima que mercenária, finalmente, a certeza de que a Estella nao repugnava a solução, taes foram os primeiros elementos da decisão de Luiz Garcia. Faltava so o milagre, e o milagre veiu. Yayá adoeceu um dia em casa de Valéria, e a doença, posto que não grave nem longa, deu occasião a que Estella manifestasse de modo inequívoco toda a ternura de seu coração. Luiz Garcia foi testemunha da dedicação silenciosa e contínua com que Estella tratou da doente. Esse último espectaculo desarmou-o de todo. Entre elles, o casamento não era a mesma cousa que costuma ser para outros; nada tinha das alegrias ineffaveis ou das illusões juvenis. Era um acto simples e grave. E foi o que Estella lhe disse a elle, no dia em que trocaram reciprocamente as primeiras promessas. — Creio que nenhuma paixão nos cega, e se nos casamos é por nos julgarmos friamente dignos um do outro. — Uma paixão de sua parte, em relação â minha pessoa, seria inverosimil, confessou Luiz Garcia; não lh'a attribuo. Pelo que me toca, era egualmente inverosimil um sentimento dessa natureza, não porque a senhora o não podesse inspirar, mas porque eu ja o não poderia ter. — Tanto melhor, concluiu Estella; estamos na mesma situação e vamos começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranquillo. Parece que em geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos pela estima; é muito mais seguro. O casamento foi approvado pelo Sr. Antumes, com a mesma alma com que um reu sanccionaria a própria execução Não somente se lhe iam embora esperanças muito menos modestas, como lhe repugnava o caracter do genro. Não cedeu sem hesitação e luta; hesitação perante a viuva, luta em relação á filha; mas cedeu, porque elle nascera para não resistir. Hábil, no entanto, em espremer algum lucro dos males inevitáveis-, uma vez perdida a confiança na efficacia da recusa, aceitou o accôrdo, não somente com apparencia cordial, mas ainda enthusiasta. — O dote faz-lhe fóscas, gemia elle philosophicamente. A viuva serviu de madrinha a Estella. Sua alegria era sincera, e tanto ou quanto desinteressada. Quasi se nãõ Jembrava ja do perigo que, dous annos antes, lhe atordoara o espirito. As cartas de Jorge eram tão livres de qualquer oppressão, tão exclusivamente militares! Além disso, a consciência ficava satisfeita de um desenlace que, de certo modo, compensava a perda, se alguma perda havia causado a Estella. Finalment/e, a satisfação com que a viu aceitar casamento, alias suggerido por ella própria, e a felicidade de que foi testemunha durante os primeiros tempos, deram-lhe a convicção de que a moça estava j a inteiramente isenta, em relação ao filho. Não obstante a paixão deste, tinha fe que o tempo fizera a sua obra. VII Tres mezes depois da chegada ao Rio de Janeiro, tinha Jorge liquidado todos os negócios de família. Os haveres herdados podiam dispensai-o de advogar ou de seguir qualquer outra profissão, uma vez que não fosse ambicioso e regesse com critério o uso de suas rendas. Tinha as qualidades precisas para isso, umas naturaes, outras obtidas com o tempo. Os quatro annos de guerra, de mãos dadas com os successos immediatamente anteriores, fizeram-lhe perder certas preoccupações que eram em 1866, as únicas de seu espirito. A vida á rédea solta, o desperdício elegante, todas as seduções juvenis, eram inteiramente passadas. O espectaculo da guerra, que não raro engendra o orgulho, produziu em Jorge uma acção contrária, porque elle viu, ao lado da justa glória de seu paiz, o irremediável conflicto das cousas humanas. Pela primeira vez meditou; admirou-se de achar em si uma fonte de idéias e sensações, que nunca lhe deram os recreios de outro tempo. Comtudo, não se pode dizer que viera philosopho. Era um homem, apenas, cuja consciência recta e cândida sobrevivera ás preoccupações da primeira quadra? cujo espirito, temperado pela vida intensa de uma longa campanha, começava de penetrar um pouco abaixo da superfície das cousas. Querendo adoptar um plano de vida nova, renegou a princípio todos os hábitos anteriores, disposto a dar á sociedade tão somente a stricta polidez. Teve primeiro idéia de ir estabelecer-se em algum recanto silencioso e escuso no interior; mas desistiu logo, cedendo á necessidade de ficar mais á mão de uma viagem transatlântica, idéia a que alias nunca deu princípio de execução. Os primeiros tres mezes passaram depressa; foram empregados em liquidar o inventário. Poucos legados deixara a viuva. Um delles interessa-nos, porque recaiu em favor de Yayá Garcia. A viuva beneficiava assim, indirectamente, o marido de Estella. Jorge approvou cordialmente o acto de sua mãe. Nao approvou menos o dote de Estella, mas o sentimento do vexame que experimentou, logo que delle teve notícia, honrava a delicadeza de seu coração. Luiz Garcia dera-se pressa em visitar o filho de •Valéria. A entrevista desses dous homens, que o curso dos successos collocára em tão delicada situação, foi cordial, mas não expansiva. Jorge não achou Luiz Garcia mais velho; era o mesmo. Não o achou também menos reservado que antes. A conversa, em começo não foi além dos factos geraes; fallaram da guerra e das victórias. Jorge referiu alguns episódios, que o outro ouviu com interesse; e, como parecesse olvidar,seus próprios feitos: — Vejo que é modesto, observou Luiz Garcia; felizmente lemos as folhas e as partes Officiaes. — Fiz o que pude, respondeu Jorge; era preciso vencer ou ser vencido. Que é feito de tanta gente que ainda nao vi? continuou elle para desviar o assumpto. — Cada qual segue o seu destino. Meu sogro creio que ja o visitou… — Ja. — A propósito, deixe-me agradecer os benefícios que devo a sua mãe… Jorge quiz interrompel-o com o gesto. — Perdão; é meu dever, continuou Luiz Garcia gravemente. A Sra. D. Valéria quiz mostrar ainda á última hora a sympathia que sempre lhe mereci. Duas vezes o fez, além de outras. Primeiramente, resolveu-me a casar outra vez, cousa que estava longe de meus cálculos. Foi ella a primeira autora dessa transformação de minha vida, e em boa hora o foi, porque não me podia fazer maior obséquio. Requintou o obséquio, occultando até a última hora a prova de ternura que desde alguns mezes antes dera a minha mulher; tinha-a dotado, como deve saber..; Jorge fez um gesto affirmativo. — Achou que não era bastante e deixou, a minha filha um legado, que será o seu dote... Gostava muito delia. Não podendo agradecei-o ábemfeitora, permitta que o agradeço ao… — Desta vez hade obedecer-me, interrompeu Jorge com brandura; falemos de outra cousa. — Sim; falemos de minha mulher. Saiba que rematou dignamente a obra de sua mãe; e mais uma vez me fez comprehender o beneficio do casamento. Logo depois de casado, propoz-me aceitar, em favor de minha filha, a parte com que a Sra. D. Valéria lhe manifestara sua affeição. Gostei de a ouvir, por que èra signal de desinteresse, mas recusei, e recusei sem efficacia. Cedi, emfim", e não podia ser de outro modo. Folgo de lhe dizer essas cousas porque sao raras… Jorge fechou o rosto ao ouvir essas palavras de Luiz Garcia. Advinhára a causa do desinteresse