OS DEUSES DE CASACA COMEDIA POR MACHADO DE ASSIS. RIO DE JANEIRO. TYPOGRAPHIA DO IMPERIAL INSTITUTO ARTISTICO Largo de S. Francisco de Paula n. 16. 1866. OS DEUSES DE CASACA. Esta comedia não póde ser representada sem licença do autor. A JOSÉ FELICIANO DE CASTILHO Dedica este livrinho O AUTOR. O auctor d'esta comedia julga-se dispensado de entrar em explanações litterarias a proposito de uma obra tão desambiciosa. Quer, sim, explicar o como ella nasceu, e o seu pensamento ao escrevel-a. Foi ha mais de um anno, quando alguns cavalheiros davam uns saráus litterarios, na rua da Quitanda, que o auctor, convidado a contribuir para essas festas, escreveu os Deuses de Casaca. Até então era o seu talentoso amigo Ernesto Cybrão quem escrevia as peças que alli se representavam. Um desastre publico impedio a exhibição dos Deuses de Casaca naquella época, e em boa hora veio o desastre (egoismo de auctor!), porque a comedia, relida e examinada, soffreu correcções e accrescimos, até ficar aquillo que foi habilmente representado no saráu da Arcadia Fluminense, em 28 de Dezembro findo, pelos mesmos cavalheiros dos antigos saráos, arcades omnes. Que ella ficasse completa, não ousa dizel-o o auctor; mas ao menos está consignada a sua boa vontade. Uma das condições impostas ao auctor d'esta comedia, e ao auctor do Luiz, era que nas peças não entrassem senhoras. D'aqui vem que o auctor não pôde, como lhe pedia o assumpto, fazer intervir as deusas do Olympo no debate e na deserção dos seus pares. Os que conhecem estas cousas avaliarão a difficuldade de escrever uma comedia sem damas. Era menos difficil a Garrett e a Voltaire, pondo em acção as virtudes romanas e as luctas civis da republica, dispensar o elemento feminino. Mas uma comedia sem damas para entreter os convivas de uma noite, cujos limites eram uma variação de piano e o serviço do chá, é cousa mais facil de ler que de fazer. O auctor não quiz zombar dos deuses, não quiz fazer rir os espectadores á custa dos antigos habitantes do Olympo. Esta declaração é necessaria para avisar aquelles que, dando ao titulo da comedia uma errada interpretação, cuidarem que vão ler um quadro burlesco, á moda do Virgile travesti de Scarron. Uma critica anodyna, uma satyra innocente, uma observação mais ou menos picante, tudo no ponto de vista dos deuses, uma acção simplicissima, quasi nulla, travada em curtos dialogos, eis o que é esta comedia. O auctor fez falar os seus deuses em verso alexandrino: era o mais proprio. Tem este verso alexandrino seus adversarios, mesmo entre os homens de gosto, mas é de crêr que venha a ser finalmente estimado e cultivado por todas as musas brazileiras e portuguezas Será essa a victoria dos esforços empregados pelo illustre auctor das Epistolas á Imperatriz, que tão paciente e luzidamente tem naturalisado o verso alexandrino na lingua de Garrett e de Gonzaga. O auctor teve a fortuna de ver os seus Versos a Corinna, escriptos naquella fórma, bem recebidos pelos entendedores. Se os alexandrinos d'esta comedia tiverem, egual fortuna, será essa a verdadeira recompensa para quem procura empregar nos seus trabalhos a consciencia e a meditação. Rio, 1° de Janeiro de 1866. PERSONAGENS. PROLOGO. EPILOGO. JUPITER. MARTE. APOLLO. PROTHEU. CUPIDO. VULCANO. MERCURIO. OS DEUSES DE CASACA. ACTO UNICO. Uma sala, mobiliada com elegancia e gósto; alguns quadros mythologicos. Sobre um consolo garrafas com vinho, e calices. PROLOGO, entrando. Querem saber quem sou? O Prologo. Mudado Venho hoje do que fui. Não appareço ornado Do antigo borzeguim, nem da chlamyde antiga. Não sou feio. Qualquer deitar-me-hia uma figa. Nem velho. Do auditorio alguma illustre dama, Valsista consumada, augmentaria a fama, Se commigo fizesse as voltas de uma valsa. Sou o Prologo novo. O meu pé já não calça O antigo borzeguim, mas tem obra mais fina: Da casa do Campas arqueia uma botina. Não me pende da espadua a chlamyde severa, Mas o flexivel corpo, accommodado á era, Enverga uma casaca, obra do Raunier. Um relogio, um grilhão, luvas e pince-nez Completam o meu traje. E a peça? A peça é nova. O poeta, um tanto audaz, quiz pôr o engenho á prova. Em vez de caminhar pela estrada real, Quiz tomar um atalho. Creio que não ha mal Em caminhar no atalho e por nova maneira. Muita gente na estrada ergue muita poeira, E morrer suffocado é morte de máo gôsto. Foi de animo tranquillo e de tranquillo rosto A’ nova inspiração buscar caminho azado, E trazer para a scena um assumpto acabado. Para attingir o alvo em tão ardua porfia, Tinha a realidade e tinha a phantasia. Dous campos! Qual dos dous? Seria duvidosa A escolha do poeta? Um é de terra e prosa, Outro de alva poesia e murta delicada. Ha tanta vida, e luz, e alegria elevada Neste, como ha naquelle abhorrimento e tedio. O poeta que fez? Tomou um termo médio; E deu, para fazer uma dualidade, A dextra á phantasia, a sestra á realidade. Com esta viajou pelo ether transparente Para infundir-lhe um tom mais nobre... e mais decente. Com aquella, vencendo o invencivel pudor, Foi passear á noite á rua do Ouvidor. Mal que as consorciou com o opposto elemento, Transformou-se uma e outra. Era o melhor momento Para levar ao cabo a obra desejada. Aqui pede perdão a musa envergonhada: O poeta, apezar de cingir-se á poesia, Não fez entrar na peça as damas. Que porfia! Que lucta sustentou em prol do sexo bello! Que alma na discussão! que valor! que disvelo! Mas... era minoria. O contrario passou. Damas, sem vosso amparo a obra se acabou! Vai começar a peça. E' phantastica : um acto, Sem cordas de surpresa ou vistas de apparato. Verão do velho Olympo o pessoal divino Trajar a prosa chan, falar o alexandrino, E, de principio a fim, atar e desatar Uma intriga pagan. Calo-me. Vão entrar Da mundana comedia os divinos actores. Guardem a profusão de palmas e de flores. Vou a um lado observar quem melhor se destaca. A peça tem por nome — OS DEUSES DE CASACA. SCENA I. MERCURIO assentado, JUPITER entrando. JUPITER, entra, pára e presta o ouvido. Cuidei ouvir agora a flauta do deus Pan. MERCURIO, levantando-se. Flauta! é um violão. JUPITER, indo a elle. Mercurio, esta manhan Tens correio. MERCURIO. Ainda bem! Eu já tinha receio De que perdesse até as funcções de correio. Quero ao menos servir aos deuses, meus eguaes. Obrigado, meu pae!—Tu és a flor dos pães, Honra da divindade e nosso ultimo guia! JUPITER, senta-se. Faz um calor!—Dá cá um copo de ambrosia Ou nectar. MERCURIO, rindo. Ambrosia ou nectar! JUPITER. E’ verdade! São as recordações da nossa divindade. Tempo que já não volta. MERCURIO. Ha de voltar! JUPITER, suspirando. Talvez. MERCURIO, offerecendo vinho. Um calix de Alicante ? Um calix de Xerez? (Jupiter faz um gesto de indifferença; Mercurio deita vinho; Jupiter bebe.) JUPITER. Que tizana! MERCURIO, deitando para si. Ha quem chame estes vinhos profanos Fortuna dos mortaes, delicia dos humanos. (Bebe e faz uma careta). Trava como agua estygia! JUPITER. Oh! a cabra Amalthéa Dava leite melhor que este vinho. MERCURIO. Que idéa! Devia ser assim para aleitar-te, pae! (Depõe a garrafa e os calices). JUPITER. As cartas aqui estão, Mercurio. Toma, vai Em procura de Apollo, e Protheu e Vulcano E todos. O conselho é pleno e soberano. E' mister discutir, resolver e assentar Nos meios de vencer, nos meios de escalar O Olympo.... (Sahe Mercurio). SCENA II. JUPITER, só, continuando a reflectir. ... Taes outr'ora Encélado e Typheu Buscaram contra mim escalal-o. Correu O tempo, e eu passei de invadido a invasor! Lei das compensações! Então, era eu senhor; Tinha o poder nas mãos, e o universo a meus pés. Hoje, como um mortal, de revez em revez, Busco por conquistar o posto soberano. Bem me dizias, Momo, o coração humano Devia ter aberta uma porta, por onde Lessemos, como em livro, o que lá dentro esconde. Demais, dando juizo ao homem, esqueci-me De completar a obra e fazel-a sublime. Que vale esse juizo ? Inquieto e vacillante, Como perdida náo sobre um mar inconstante, O homem sem razão cede nos movimentos A todas as paixões, como a todos os ventos. E’ o escravo da moda e o brinco do capricho. Presumpçoso senhor dos bichos, este bicho Nem ao menos imita os bichos seus escravos. Sempre do mesmo modo, ó abelha, os teus favos Distillas. Sempre o mesmo, ó castor exemplar, Sabes a casa erguer juncto ás ribas do mar. Ainda hoje, empregando as mesmas leis antigas, Viveis no vosso chão, ó providas formigas. Andorinhas do céu, teudes ainda a missão De serdes, findo o hynverno, as nuncias do verão. Só tu, homem incerto e altivo, não procuras Da vasta creação estas licções tão puras Corres hoje a Paris, como a Athenas outr'ora; A sombria Carthago é a Londres de agora Ah! podesses tornar ao teu estado antigo! SCENA III. JUPITER, MARTE, VULCANO, os dous de braço VULCANO, a Jupiter. Sou amigo de Marte, e Marte é meu amigo. JUPITER. Emfim! Querellas vans acêrca de mulheres E’ tempo de esquecer. Crescem outros deveres, Meus filhos. Venus bella a ambos illudiu. Foi-se, dispareceo. Onde está? quem a vio? MARTE. Vulcano. JUPITER. Tu? VULCANO. E’ certo. JUPITER. Aonde? VULCANO. Era um salão. Dava o dono da casa esplendida funcção. Venus, languida e bella, olhos vivos e ardentes, Prestava attento ouvido a uns vãos impertinentes. Elles em derredor, curvados e submissos, Faziam circular uns dictos já sediços, E, cortando entre si as respectivas pelles, Elles riam-se d'ella, ella ria-se d'elles. Não era, não, meu pae, a deusa enamorada Do nosso tempo antigo: estava transformada. Já não tinha o esplendor da suprema belleza Que a tornava modêlo á arte e á natureza. Foi nua, agora não. A belleza profana Busca apurar-se ainda a favor da arte humana. Emfim, a mãe de amor era da escuma filha, Hoje Venus, meu pae, nasce…. mas da escumilha. JUPITER. Que deshonra! (A Marte) E Cupido? VULCANO. Oh! esse …. MARTE. Fui achal-o Regateando ha pouco o preço de um cavallo. As patas de um cavallo em vez de azas velozes! Chibata em vez de setta!—Oh mudanças atrozes ! Té o nome, meu pae, mudou o tal birbante; Cupido já não é; agora é. .. um elegante! JUPITER. Traidores! VULCANO. Foi melhor ter-nos desenganado: Dos fracos não carece o Olympo. MARTE. Desgraçado D’ aquelle que assim foge ás luctas e á conquista! JUPITER, a Marte. Que tens feito? MARTE. Oh! por mim, ando agora na pista De um congresso geral. Quero, com fogo e arte, Mostrar que sou ainda aquelle antigo Marte Que as guerras inspirou de Achilles e de Heitor. Mas, por agora nada! —E’ desanimador O estado d'este mundo. A guerra, o meu officio, E' o ultimo caso; antes vem o artificio. Diplomacia é o nome; a cousa é o mutuo engano. Matam-se, mas depois de um labutar insano; Discutem, gastam tempo, e cuidado e talento: O talento e o cuidado é ter astucia e tento. Sente-se que isto é preto, e diz-se que isto é branco: A tolice no caso é fallar claro e franco. Quero falar de um gato ? O nome bastaria. Não, senhor; outro modo usa a diplomacia. Começa por falar de um animal de casa, Preto ou branco, e sem bico, e sem crista e sem aza, Usando quatro pés. Vai a nota. O arguido Não hesita, responde: “O bicho é conhecido, E' um gato.” “Não senhor, diz o arguente: é um cão.” JUPITER. Tens razão, filho, tens! VULCANO. Carradas de razão! MARTE. Que acontece d'aqui? E’ que nesta Babel Reina em todos e em tudo uma cousa —o papel. E’ esta a base, o meio e o fim. O grande rei E’ o papel. Não ha outra força, outra lei. A fortuna o que é? Papel ao portador; A honra é de papel; é de papel o amor. O valor não é já aquelle ardor acceso: Tem duas divisões —é de almaço ou de peso. Emfim, por completar esta horrivel Babel, A moral de papel faz guerra de papel. VULCANO. Se a guerra neste tempo é de peso ou de almaço, Mudo de profissão: vou fazer pennas de aço! SCENA IV. OS MESMOS, CUPIDO. CUPIDO, da porta. E’ possivel entrar? JUPITER, a Marte. Vae ver quem é. MARTE. Cupido! CUPIDO, a Jupiter. Charo avô, como estás? JUPITER. Voltas arrependido? CUPIDO. Não; venho despedir-me. Adeus. MARTE. Vae-te, insolente. CUPIDO. Meu pae!.... MARTE. Cala-te! CUPIDO. Ah! não! Um conselho prudente: Deixae a divindade e fazei como eu fiz. Sois deuses? Muito bem. Mas, que vale isso ? Eu quiz Dar-vos este conselho; é de amigo. JUPITER. E’ de ingrato. Do mundo fascinou-te o rumor, o apparato. Vae, espirito vão!—Antes deus na humildade, Do que homem na opulencia. CUPIDO. E’ fresca a divindade! JUPITER. Custa-nos caro, é certo: a dor, a magoa, a affronta, O desespero e o dó. CUPIDO. A minha é mais em conta. VULCANO. Onde a compras agora? CUPIDO. Em casa do alfaiate; Sou divino conforme a moda. VULCANO. E o disparate. CUPIDO. Venero o teu despeito, ó Vulcano! MARTE. Venera O nosso odio supremo e divino… CUPIDO. Chimera! MARTE. … Da nossa divindade o nome e as tradições, A lembrança do Olympo e a victoria.... CUPIDO. Illusões! MARTE. Illusões! CUPIDO. Terra-a-terra ando agora. Homem sou; Da minha divindade o tempo já findou. Mas, que compensações achei no novo estado! Sou, onde quer que vá, pedido e requestado. Vem quebrar-se a meus pés os olhares das damas; Cada gesto que faço atêa immensas chammas. Sou o encanto da rua e a vida dos salões, O alfenim procurado, o iman dos balões, O perfume melhor da toilette, o elixir Dos amores que vão, dos amores por vir; Procuram agradar-me a feia, como a bella; Sou o sonho querido e doce da donzella, O encanto da casada, a illusão da viuva. A chibata, a luneta, a bota, a capa e a luva Não são enfeites vãos: suprem o arco e a setta. Setta e arco são hoje imagens de poeta. Isto sou. Vede lá se este esbelto rapaz Não é mais que o menino armado de carcaz. MARTE. Covarde! JUPITER. Deixa, ó filho, este ingrato! CUPIDO. Adeus. JUPITER. Parte. Adeus! CUPIDO. Adeus, Vulcano; adeus, Jove; adeus, Marte! SCENA V. VULCANO, JUPITER, MARTE. MARTE. Perdeu-se este rapaz…. VULCANO. De certo, está perdido! MARTE, a Jupiter. Jupiter, quem dissera! O doce e fiel Cupido Veio a tornar-se emfim um homem tolo e vão! VULCANO, ironico. E comtudo é teu filho… MARTE, com desanimo. E’ meu filho, ó Plutão! JUPITER, a Vulcano. Alguem chega. Vae ver. VULCANO. E’ Apollo e Protheu. SCENA VI. OS MESMOS, APOLLO, PROTHEU. APOLLO. Bom dia! MARTE. Onde deixaste o Pegaso? APOLLO. Quem? eu? Não sabeis? Ora ouvi a historia do animal. Do que nos acontece é o mais phenomenal. Ahi vai o caso… VULCANO. Aposto um raio contra um verso Que o Pegaso fugiu. APOLLO. Não, senhor; foi diverso O caso. Hontem á tarde andava eu cavalgando; Pegaso, como sempre, ia caracolando, E saccudindo a cauda,e levantando as crinas, Como se recebesse inspirações divinas. Quasi ao cabo da rua um tumulto se dava; Uma chusma de gente andava e desandava. O que era não sei eu. Parei. O immenso povo, Como se o assombrasse um caso extranho e novo, Recuava. Quiz fugir, não pude. O meu cavallo Sente naquelle instante um horrível aballo; E para repellir a turba que o molesta, Levanta o largo pé, fere a um homem na testa. Da ferida sahiu muito sangue e um soneto. Muita gente accudio. Mas, conhecido o objecto Da nova confusão, deu-se nova assuada. Rodeava-me então uma rapaziada, Que ao Pegaso beijando os pés, a cauda e as crinas, Pedia-lhe cantando inspirações divinas. E cantava, e dizia (erma jade miolo): "Achámos, aqui está! é este o nosso Apollo! Compellido a deixar o Pegaso, desci; E por não disputar, lá os deixei —fugi. Mas, já hoje encontrei, em lettras garrafaes, Muita ode, e soneto, e oitava nos jornaes! JUPITER. Mais um! APOLLO. A historia é esta. MARTE. Embora!—Outra desgraça. Era de lamentar. Esta não. APOLLO. Que chalaça! Não passa de um corsel.... PROTHEU. E já um tanto velho. APOLLO. E’ verdade. JUPITER. Está bem! PROTHEU, a Jupiter. A que horas o conselho? JUPITER. E’ á hora em que a lua apontar no horizonte, E o leão de Neméa, erguendo a larga fronte, Resplendecer no azul. PROTHEU. A senha é a mesma? JUPITER. Não: Harpocrates, Minerva— o silencio, a razão. APOLLO. Muito bem. JÚPITER. Mas Protheu de senha não carece; De aspecto e de feições muda, se lhe parece. Basta vir… PROTHEU. Como um corvo. MARTE. Um corvo PROTHEU. Ha quatro dias, Graças ao meu talento e ás minhas tropelias, Illudi meio mundo. Em corvo transformado, Deixei um gruppo immenso absorto, embasbacado. Vasto queijo pendia ao meu bico sinistro. Dizem que eu era então a imagem de um ministro. Seria por ser corvo, ou por trazer um queijo? Foi uma e outra cousa, ouvi dizer. JUPITER. O ensejo Não é de narrações, é de obras. Vou sahir. Sabem a senha e a hora. Adeus. (Sahe). VULCANO. Vou concluir um negocio. MARTE. Um negocio? VULCANO. E’ verdade. MARTE. Mas qual? VULCANO. Um projecto de ataque. MARTE. Eu tenho um. VULCANO. E’ egual o meu projecto ao teu, mas é completo. MARTE. Bem. VULCANO. Adeus, adeus. PROTHEU. Eu vou comtigo. (Sahem Vulcano e Protheu). SCENA VII. MARTE, APOLLO. APOLLO. O caso tem Suas complicações, ó Marte! Não me esfria A força que me dava o nectar e a ambrosia. No cimo da fortuna ou no chão da desgraça, Um deus é sempre um deus. Mas, na hora que passa, Sinto que o nosso esforço é baldado, e imagino Que ainda não bateu a hora do destino. Que dizes? MARTE. Tenho ainda a maior esperança. Confio em mim, em ti, em vós todos. Alcança Quem tem força, e vontade, e ânimo robusto. Espera. Dentro em pouco o templo grande e augusto Se abrirá para nós. APOLLO. Emfim.. MARTE. A divindade A poucos caberá, e aquella infinidade De numes desleaes ha de fundir-se em nós. APOLLO. Oh! que o destino te ouça a animadora voz ! Quanto a mim… MARTE. Quanto a ti? APOLLO. Vejo ir-se dispersado Dos poetas o rebanho, o meu rebanho amado! Já poetas não são, são homens: carne e osso. Tomaram neste tempo um ar burguez e ensosso. Depois, surgiu agora um inimigo serio, Um déspota, um tyranno, um Lopez, um Tiberio: O álbum! Sabes tu o que é o álbum ? Ouve, E dize-me se, como este, um barbaro já houve. Traja couro da Russia, ou sandalo, ou velludo; Tem um ar de socego e de innocencia: é mudo. Se o vires, cuidarás ver um cordeiro manso, A’ sombra de uma faia, em placido remanso. A faia existe, e chega a surrir . . . Estas faias São copadas tambem, não têm folhas, têm saias. O poeta estremece e sente um calafrio; Mas o album lá está, mudo, tranquillo e frio. Quer fugir, já não póde: o album soberano Tem sede de poesia, é o minotauro. Insano Quem buscar combater a triste lei commum! O album ha de engolir os poetas um por um. Ah! meus tempos de Homero! MARTE. A reforma ha de vir Quando o Olympo outra vez em nossas mãos cahir. Espera! SCENA VIII. OS MESMOS, CUPIDO. CUPIDO. Tio Apollo, é engano de meu pae. APOLLO. Cupido! MARTE. Tu aqui, meu velhaco? CUPIDO. Escutae: Commetteis uma empreza absurda. A humanidade Já não quer acceitar a vossa divindade. O bom tempo passou. Tentar vencer hoje, é, Como agora se diz, remar contra a maré. Perdeis o tempo. MARTE. Cala a bocca! CUPIDO. Não! não ! não! Estou disposto a enforcar essa ultima illusão. Sabeis que sou o amor… APOLLO. Foste. MARTE. E's o amor perdido. CUPIDO. Não, sou ainda o amor, o irmão de Eros, Cupido. Em vez de conservar dominios ideaes, Soube descer um dia á esphera dos mortaes; Mas o mesmo ainda sou. MARTE. E depois? CUPIDO. Ah! não fales, O’ meu pae! Posso ainda evocar tantos males, Encher-te o coração de tanto amor ardente, Que, sem nada mais ver, irás incontinenti, Pedir dispensa a Jove, e fazer-te homem. MARTE. Não! CUPIDO, indo ao fundo. Vês alli ? é um carro. E no carro? um balão. E dentro do balão? uma mulher. MARTE. Quem é? CUPIDO, voltando. Venus. APOLLO. Venus! MARTE. Embora! E’ grande a minha fé. Sou um deus vingador, não sou um deus amante. E’ inutil. APOLLO, batendo no hombro de Cupido. Meu charo, é inutil. MARTE. O farfante Cuida que ainda é o mesmo. CUPIDO. Está bem. APOLLO. Vae-te embora. E’ conselho de amigo. CUPIDO, senta-se. Ah! eu fico! APOLLO. Esta agora! Que pretendes fazer? CUPIDO. Ensinar-vos, meu tio. APOLLO. Ensinar-nos a nós ? Por Jupiter, eu rio! CUPIDO. Ouves, meu tio, um som, um farfalhar de seda? Vae ver. APOLLO, indo ver. E’ uma mulher. Lá vai pela alameda. Quem é? CUPIDO. Juno, a mulher de Jupiter, teu pae. APOLLO. Devéras? E’ verdade! olha, Marte, lá vai, Não conheci. CUPIDO. E’ bella ainda, como outr'ora, Bella, e altiva, e grave, e augusta, e senhora. APOLLO, voltando a si. Ah! mas eu não arrisco a minha divindade. (A Marte). Olha o espertalhão!.. Que tens? MARTE, absorto. Nada. CUPIDO. O’ vaidade! Humana embora, Juno é ainda divina. APOLLO. Que nome usa ella agora? CUPIDO. Um mais bello: Corinna! APOLLO. Marte, sinto.. não sei. MARTE. Eu tambem. APOLLO. Vou sahir. MARTE. Tambem eu. CUPIDO. Tambem tu? MARTE. Sim, quero ver.. quero ir Tomar um pouco de ar. APOLLO. Vamos dar um passeio. MARTE. Ficas? CUPIDO. Quero ficar, porém, não sei.. receio… MARTE. Fica, já foste um deus, nunca és importuno. CUPIDO. E’ devéras assim? Mas.... MARTE. Ah Venus! APOLLO. Ah Juno! SCENA IX. CUPIDO, MERCURIO. CUPIDO, só. Baleados! Agora os outros. E’ preciso, Graças á voz do amor, dar-lhes algum juizo. Singular excepção ! Muitas vezes o amor Tira o juizo que ha . . . Quem é? Sinto rumor... Ah! Mercurio! MERCURIO. Sou eu! E tu ? E’ certo acaso Que tenhas commettido o mais triste desazo ? Ouvi dizer.... CUPIDO, em tom lastimoso. E’ certo. MERCURIO. Ah covarde! CUPIDO, o mesmo. Isso! isso! MERCURIO. E’s homem? CUPIDO. Sou o amor, sou, e ainda enfeitiço, Como d'antes. MARTE. Não és dos nossos. Vae-te. CUPIDO. Não! Vou fazer-te, meu tio, uma observação. MERCURIO. Vejamos. CUPIDO. Quando o Olympo era nosso… MERCURIO. Ah! CUPIDO. Havia Hebe, que nos matava, e a Jupiter servia. Poucas vezes a viste. As funcções de correio Demoravam-te fóra. Ah que olhos! ah que seio! Ah que fronte! ah.. MERCÚRIO. Então? CUPIDO. Hebe tornou-se humana. MERCURIO, com desprezo. Como tu. CUPIDO. Ah quem dera! A terra alegre e ufana Entre as bellas mortaes deu-lhe um lugar distincto. MERCURIO. Devéras! CUPIDO, comsigo. Baleado! MERCURIO, comsigo. Ah! não sei... mas que sinto? CUPIDO. Mercurio, adeus! MERCURIO. Vem cá. Hebe onde está? CUPIDO. Não sei, Adeus. Fujo ao conselho. MERCURIO, absorto. Ao conselho? CUPIDO. Farei Por não atrapalhar as vossas decisões. Conspirae! conspirae! MERURIO.[1] Não sei... Que pulsações! Que tremor! que tonteira! CUPIDO. Adeus! Ficas? MERCURIO. Quem? eu? Hebe? CUPIDO á parte. Falta-me Jove, e Vulcano, e Protheu. SCENA X. MERCURIO, depois MARTE, APOLLO. MERCURIO só. Eu doente ? de que ? E' singular! (Indo ao vinho) Um gole! Não ha vinho nenhum que uma dôr não console. (Bebe silencioso:) Hebe tornou-se humana! MARTE, a Apollo E’ Mercurio. APOLLO, a Marte. Medita! Em que será? MARTE. Não sei. MERCURIO, sem vel-os. Oh! como me palpita o coração! APOLLO, a Mercurio. Que é isso? MERCURIO. Ah! não sei... divagava… Como custa a passar o tempo! Eu precisava De sahir e não sei . . . Jove não voltará? MARTE. Porque não? Hade vir. APOLLO comsigo O’ céus! o que terá? (Silencio profundo) Estou disposto! MARTE. Estou disposto! MERCURIO. Estou disposto! SCENA XI. OS MESMOS, JUPITER. JUPITER. Meus filhos, boa nova! (Os três voltam a cara) Então? voltaes-me o rosto? MERCURIO. Nós, meu pae? APOLLO. Eu, meu pae? MARTE. Eu não... JUPITER. Vós todos, sim! Ah! fraqueaes talvez! Um espirito ruim Penetrou entre nós, e a todos vós tentando Da vanguarda do céu vos anda separando. MARTE. Oh! não, porém… JUPITER. Porém? MARTE. Eu falarei mais claro No conselho. JUPITER. Ah! E tu? APOLLO. Eu o mesmo declaro. JUPITER a Mercurio. Tua declaração? MERCURIO. E’ do mesmo teor. JUPITER. O’ trezentos de Sparta! O’ tempos de valor! Eram homens comtudo… APOLLO. Isso mesmo: é humano. Era a força do persa e a força do spartano. Eram homens de um lado, e homens do outro lado; A terra sob os pés; o conflicto igualado. Agora o caso é outro. Os deuses demittidos Buscam reconquistar os dominios perdidos. Ha deuses do outro lado? Ha homens. Neste caso Não teremos a lucta em campo aberto e raso. JUPITER. Assim, pois? APOLLO. Assim, pois, já que os homens não podem Aos deuses elevar-se, os deuses se acommodem. Sejam homens tambem. MARTE. Apoiado! MERCURIO. Apoiado! JUPITER. Durmo ou velo? Que ouvi! MARTE. O caso é desgraçado. Mas a verdade é esta, esta e não outra. JUPITER. Assim Desmantela-se o Olympo! MERCURIO. Espirito ruim Não ha, nem ha fraqueza, ou triste covardia. Ha desejo real de concluir um dia Esta lucta cruel, estéril, sem proveito. Deste real desejo, é este, ó pae, o effeito. JUPITER. Estou perdido! SCENA XII. OS MESMOS, VULCANO, PROTHEU. JUPITER. Ah! vinde, ó Vulcano, ó Protheu! Estes três já não são nossos. VULCANO. Nem eu. PROTHEU. Nem eu. JUPITER. Tambem vós? PROTHEU. Tambem nós! JUPITER. Recuaes? VULCANO. Recuamos. Com os homens, emfim, nos reconciliamos JUPITER. Fico eu só? MARTE. Não, meu pae. Segue o geral exemplo. E’ inutil resistir; o velho e antigo templo Para sempre cahio, não se levanta mais. Desçamos a tomar lugar entre os mortaes. E’ nobre : um deus que despe a aureola divina. Sê homem! JUPITER. Não! não! não! APOLLO O tempo nos ensina Que devemos ceder. JUPITER. Pois sim, mas tu, mas vós, Eu não. Guardarei só num seculo feroz A honra da divindade e o nosso lustre antigo. Embora sem amparo, embora sem abrigo. (A Apollo, com sarcasmo) Tu, Apollo, vás ser pastor do rei Admeto? Immolas ao cajado a gloria do soneto? Que honra! APOLLO. Não, meu pae, sou o rei da poesia Devo ter um logar no mundo, em harmonia Com este que occupei no nosso antigo mundo. O meu ar sobranceiro, o meu olhar profundo, A feroz gravidade e a distincção perfeita, Nada, meu charo pae, ao vulgo se subjeita. Quero um lugar distincto, alto,acatado e serio. Co'a penna da verdade e a tincta do criterio Darei as leis do bello e do gosto. Serei O supremo juiz, o critico. JUPITER. Não sei Se lava o novo officio a vilta de infiel. APOLLO. Lava. JUPITER. E tu, Marte? MARTE. Eu cedo á guerra de papel. Sou o mesmo; sómente o meu valor antigo Mudou de applicação. Corro ainda ao perigo, Mas não já com a espada: a penna é minha escolha. Em vez de usar broquel, vou fundar uma folha. Dividirei a espada em leves estyletes, Com elles abrirei campanha aos gabinetes. Moral, religião, politica, poesia. De tudo falarei com alma e bizarria. Perdoa-me, ó papel, os meus erros de outr'ora, Tarde os reconheci, mas abraço-te agora! Cumpre-me ser, meu pae, de coração fiel, Cidadão do papel, no tempo do papel. JUPITER. E comtudo, inda ha pouco, o contrario dizias, E zombavas então d’estas papelarias.. MARTE. Mudei de opinião.. JUPITER a Vulcano. E tu, ó deus das lavas, Tu, que o raio divino outr'ora fabricavas, Que irás tu fabricar? VULCANO. Inda ha pouco o dizia Quando Marte do tempo a pintura fazia: Se o valor deste tempo é de peso ou de almaço, Mudo de profissão, vou fazer pennas de aço. Heide servir alguém, aqui ou em qualquer parte, Ou a ti ou a outro, ou a Jove ou a Marte. Os raios que eu fazia, em pennas transformados, Como elles hão de ser ferinos e aguçados. A questão é de fórma. MARTE a Vulcano. Obrigado. JUPITER. Protheu, Não te dignas dizer o que farás? PROTHEU. Quem? eu? Farei o que poder; e creio que me é dado Fazer muito : o caso é que eu seja utilizado. O dom de transformar-me, á vontade, a meu gosto Torna-me neste mundo um singular composto. Vou ter segura a vida e o futuro. O talento Está em não mostrar a mesma cara ao vento. Vermelho de manhan, sou de tarde amarello; Se convier, sou bigorna, e senão, sou martello. Já se vê, sem mudar de nome. Neste mundo A fórma é essencial, vale de pouco o fundo. Vai o tempo chuvoso ? Envergo um casacão. Volta o sol ? Tomo logo a roupa de verão. Quem subiu? Pedro e Paulo. Ah! que grandes talentos! Que glorias nacionaes! que famosos portentos! O pays ia á garra e por triste caminho, Se inda fosse o poder de Sancho ou de Martinho. Mas se a scena mudar, tão contente e tão ancho. Dou vivas a Martinho, e dou vivas a Sancho! Apprendi, ó meu pae, estas cousas, e juro Que vou ter grande e bello um nome no futuro. Não ha revoluções, não ha poder humano Que me façam cahir. (com emphase) O povo é soberano. A pátria tem direito ao nosso sacrificio. Vel-a sem este jus.. mil vezes o supplicio! (voltando ao natural) D’este modo, meu pae, mudando a fala e a cara, Sou na essencia Protheu, na fórma Dulcamara.. De tão bom proceder tenho as licções diurnas. Boa tarde! JUPITER. Onde vás? PROTHEU. Levar meu nome ás urnas! JUPITER, reparando. (a todos) Vem cá. Ouvi agora.. Ah! Mercurio. MERCURIO. Eu receio Perder estas funcções que exerço de correio. Mas.. SCENA XIII. OS MESMOS, CUPIDO. CUPIDO. Cupido apparece e resolve a questão. Ficas ao meu serviço. JUPITER. Ah! MERCURIO. Em que condição? CUPIDO. Eu sou o amor, tu és correio. MERCURIO. Não, senhor. Sabes o que é andar ao serviço de amor, Sentir juncto á belleza a paixão da belleza, O peito suffocado, a phantasia accesa, E as vozes transmittir do amante á sua amada, Como um correio, um echo, um sobrescripto, um nada? Foste um deus como eu fui, como eu, nem mais nem menos. Homens, somos eguaes. Um dia, Marte e Venus, A quem Vulcano armára uma rede, apanhados Nos desmaios do amor, se foram libertados, Se poderam fugir ás garras do marido, Foi graças á destreza, ao tino conhecido, Do ligeiro Mercurio. Ah que serviço aquelle! Sem mim quem te quizera, ó Marte, estar na pelle! Chega a hora; venceu-se a lettra. E's meu amigo. Salva-me agora tu, e leva-me comtigo. MARTE. Vem commigo; entrarás na politica escura. Protheu ha de arranjar-te uma candidatura. Falarei na gazetta aos graves eleitores, E direi quem tu és, quem foram teus maiores. Confia e vencerás. Que victoria e que festa! Da tua vida nova a politica... é esta: Da rua ao gabinete, e do paço ao tugurio, Farás o teu papel, o papel de Mercurio; O segredo ouvirás sem guardar o segredo. A eschola mais rendosa é a eschola do enredo. MERCURIO. Sou o deus da eloquencia: o emprego é adequado. Verás como hei de ser na intriga e no recado. Acceito a posição e as promessas… CUPIDO. Agora, Que a tua grande estrella, erma no céu, descora, Que pretendes fazer, ó Jupiter divino? JUPITER. Tiro d’esta derrota o necessario ensino. Fico só, luctarei sosinho e eternamente. CUPIDO. Contra os tempos, e só, luctas inutilmente. Melhor fôra ceder e acompanhar os mais, Occupando um logar na linha dos mortaes. JUPITER. Ah! se um dia vencer, contra todos e tudo, Hei de lá do Olympo um Jupiter sanhudo! CUPIDO. Contra a suprema raiva e a cholera maior Põe agua na fervura uma dose de amor. Não te lembras? Outr’ora, em touro transformado, Não fizeste de Europa o rapto celebrado ? Em te dando a veneta, em cysne te fazias. Tinhas um novo amor ? Chuva de ouro cahias… JUPITER, mais terno. Ah! bom tempo! CUPIDO. E comtudo á flamma soberana Uma deusa escappou, entre outras—foi Diana. JUPITER. Diana! CUPIDO. Sim, Diana, a esbelta caçadora; Uma só vez deixou que a flamma assoladora O peito lhe queimasse— e foi Endymião Que o segredo lhe achou do feroz coração. JUPITER. Ainda caça, talvez? CUPIDO. Caça, mas não veados: Os novos animaes chamam-se namorados. JUPITER. E’ formosa? E’ ligeira? CUPIDO. E’ ligeira, é formosa! E’ a belleza em flôr, doce e mysteriosa; Deusa, sendo mortal, divina sendo humana. Melhor que ella só Juno. APOLLO. Eim? . . Ah Juno! JUPITER, seismando. Ah Diana MERCURIO. Cede, ó Jove. Não vês que te pedimos todos? Neste mundo acharás por differentes modos, Bellezas a vencer, vontades a quebrar, —Toda a conjugação do grande verbo amar. Sim, o mundo caminha, o mundo é progressista: Mas não muda uma cousa: é sempre sensualista. Não serás, por formar teu nobre senhorio, Nem cysne ou chuva de ouro, e nem touro bravio. Uma te encanta, e logo á tua voz divina Sem mudar de feições, pódes ser…. crinolina. De outra soube-te encher o namorado olhar: Usa do teu poder, e manda-lhe um collar. A Constança uma luva, Ermelinda um collete, Adelaide um chapéo, Luiza um bracelete: E assim, sempre curvado á influencia do amor, Como outr’ora, serás Jove namorador! CUPIDO, batendo-lhe no hombro. Que pensas, meu avô? JUPITER. Escuta-me, Cupido. Este mundo não é tão máu, nem tão perdido, Como dizem alguns. Cuidas que a divindade Não se deshonrará passando á humanidade? CUPIDO. Não me vês? JUPITER. E’ verdade. E, se todos passaram, Muita cousa de bom nos homens encontraram. CUPIDO. Nos homens, é verdade, e tambem nas mulheres. JUPITER. Ah! dize-me, inda são a fonte dos prazeres? CUPIDO. São. JUPITER, absorto. Mulheres! Diana! MARTE. Adeus, meu pae! OS OUTROS. Adeus! JUPITER. Então já? Que é lá isso? Onde ides, filhos meus? APOLLO. Somos homens. JUPITER. Ah! sim… CUPIDO, aos outros. Baleado! JUPITER, com um suspiro. Ide lá! Adeus. OS OUTROS, menos Cupido. Adeus, meu pae. (Silencio). JUPITER, depois de refletir. Tambem sou homem. TODOS. Ah! JUPITER, decidido. Tambem sou homem, sou; vou comvosco. O costume Meio homem já me fez, já me fez meio nume. Serei homem completo, e fico ao vosso lado Mostrando sobre a terra o Olympo humanizado. MERCURIO. Graças, meu pae! CUPIDO. Venci! MARTE, a Jupiter. A tua profissão? APOLLO. Deve ser elevada e nobre, um funcção Propria, digna de ti, como do Olympo inteiro. Qual será? JUPITER. Dize lá. CUPIDO, a Jupiter. Pensa! JUPITER, depois de refletir. Vou ser banqueiro! (Fazem alas. O Epilogo attravessa do fundo e vem ao proscenio). EPILOGO. Boa noite. Sou eu, o Epilogo. Mudei. O nome. Abri a peça, a peça fecharei. O auctor, arrependido, occulto, envergonhado, Manda pedir desculpa ao publico illustrado; E jura, se cahir desta vez, nunca mais Metter-se em luctas vans de numes e mortaes. Pede ainda o poeta um reparo. O poeta Não communga per si na palavra indiscreta De Marte ou de Protheu, de Apollo ou de Cupido. Cada qual fala aqui com um deus demittido; E’ natural da inveja; e a idéa do auctor Não póde conformar-se a tão fundo rancor. Sim, não póde; e, comtudo, ama aos deuses, adora Essas lindas ficções do bom tempo de outr’ora. Inda os crê presidindo aos mysterios sombrios, No recesso e no altar dos bosques e dos rios. A’s vezes cuida ver atravessando as sallas, A soberana Juno, a valorosa Pallas; A crença é que o arrasta, a crença é que o illude Neste reverdecer da eterna juventude. Se o tempo sepultou Eros, Minerva, e Marte, Uma cousa os revive e os sanctifica: a arte. Se a historia os dispersou, se o Calvário os baniu. A arte, no mesmo amplexo, a todos reuniu. De duas tradições a musa fez só uma: David olhando em face a sibylla de Cuma. Se vos não desagrada o que se disse aqui, Sexo amável, e tu, sexo forte, applaudi. FIM. NOTA. O ante-penultimo verso que o Epilogo recita: DAVID OLHANDO EM FACE A SIBYLLA DE CUMA, é traducção de um verso, com que o marquez de Belloy fecha um dos seus bellos sonetos: EN REGARD DE DAVID LA SYBILLE DE CUME, o qual é paraphrase d’aquelle hymno da Igreja: TESTE DAVID CUM SIBYLLA. na página 50 do PDF está grafado sem a letra "c", não fiz a correção no documento, deixei o erro original.