PAGINAS RECOLHIDAS MACHADO DE ASSIS DA ACADEMIA BRAZILEIRA PAGINAS RECOLHIDAS « Quelque diversité d’herbes qu’il y ayt, tout s’enveloppe sous le nom de salade ». Montaigne, Essais, liv. I, chap. XLVI. H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR 71, RUA MOREIRA-CEZAR, 71 | 6, RUE DES SAINTS-PERES, 6 RIO DE JANEIRO PARIS PREFACIO Montaigne explica pelo seu modo delle a variedade d’este livro. Não ha que repetir a mesma ideia, nem qualquer outro lhe daria a graça da expressão que vae por epigraphe. O que importa unicamente é dizer a origem destas paginas. Umas são contos e novellas, figuras que vi ou imaginei, ou simples ideias que me deu na cabeça reduzir a linguagem. Sairam primeiro nas folhas volantes do jornalismo, em data diversa, e foram escolhidas d’entre muitas, por achar que ainda agora possam interessar. Também vae aqui Tu só, tu, puro amor... comedia escripta para as festas centenarias de Camões, e representada por essa occasião. Tiraram-se della cem exemplares numerados que se distribuiram por algumas estantes e bibliothecas. Uma analyse da correspondencia de Renan com sua irmã Henriqueta, e um debuxo do nosso antigo senado foram dados na Revista Brazileira, tão brilhantemente dirigida pelo meu illustre e prezado amigo José Verissimo. Sae tambem um pequeno discurso, lido quando se lançou a primeira pedra da estatua de Alencar. Emfim, alguns retalhos de cinco annos de chronica na Gazeta de Noticias que me pareceram não destoar do livro, seja porque o objecto não passasse inteiramente, seja porque o aspecto que lhe achei ainda agora me fale ao espirito. Tudo é pretexto para recolher folhas amigas. MACHADO DE ASSIS. O CASO DA VARA Damião fugiu do seminario ás onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o anno; foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o effeito que produzia nos olhos da outra gente aquelle seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava; finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não; lá estava o pae que o devolveria ao seminario, depois de um bom castigo. Não assentára no ponto de refugio, porque a saida estava determinada para mais tarde; uma circumstancia fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria cousa util. Foi elle que o levou ao seminario e o apresentou ao reitor: — Trago-lhe o grande homem que hade ser, disse elle ao reitor. — Venha, acudiu este, venha o grande homem, comtanto que seja tambem humilde e bom. A verdadeira grandeza é chan. Moço... Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminario. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refugio nem conselho; percorreu de memoria as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou: — Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ella manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminario... Talvez assim... Sinhá Rita era uma viuva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas ideias vagas d’essa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão atordoado, que só d’ahi a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no largo do Capim. — Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na marqueza, onde estava reclinada. Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar á casa, vira passar um padre, e deu um empurrão á porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho. Depois de entrar, espiou pela rotula, a ver o padre. Este não deu por elle e ia andando. — Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora o conhecera. Que vem fazer aqui? Damião, tremulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo. — Descance, e explique-se. — Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro; mas espere. Sinhá Rita olhava para elle espantada, e todas as crias, de casa, e de fóra, que estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado. Emquanto o rapaz tomava folego, ordenou ás pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse. — Como assim? Não posso nada. — Póde, querendo. — Não, replicou ella abanando a cabeça; não me metto em negocios de sua familia, que mal conheço; e então seu pae, que dizem que é zangado! Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado. — Póde muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquella casa. Sinhá Rita, lisongeada com as supplicas do moço, tentou chamal-o a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ella; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnancias e um dia... Não, nada, nunca, redarguia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos; e repetia que era a sua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho. — Meu padrinho? Esse é ainda peior que papae; não me attende, duvido que attenda a ninguém... — Não attende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se attende ou não... Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse á casa do Sr. João Carneiro chamal-o, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar immediatamente. — Anda, moleque. Damião suspirou alto e triste. Ella, para mascarar a autoridade com que dera aquellas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjára-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como elle continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo: — Ande lá, seu padréco, descance que tudo se ha de arranjar. Sinhá Rita tinha quarenta annos na certidão de baptismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quiz alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos elles riam, ella contava-lhe anecdotas, e pedia-lhe outras, que elle referia com singular graça. Uma d’estas, estúrdia, obrigada a tregeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marqueza, e ameaçou-a: — Lucrecia, olha a vara! A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veiu. Era uma advertência; se á noitinha a tarefa não estivesse prompta. Lucrecia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricella, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze annos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, afim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhal-a, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ella rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se ha culpa em ter chiste. N’isto, chegou João Carneiro. Empallideceu quando viu alli o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que elle não tinha vocação para a vida ecclesiastica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora tambem se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a bocca e reprehendeu o afilhado por ter vindo incommodar « pessoas extranhas », e em seguida affirmou que o castigaria. — Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por que? Vá, vá falar a seu compadre. — Não afianço nada, não creio que seja possivel... — Ha de ser possivel, afianço eu. Se o senhor quizer, continuou ella com certo tom insinuativo, tudo se ha de arranjar. Peça-lhe muito, que elle cede. Ande, senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta... — Mas, minha senhora... — Vá, vá. João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças oppostas. Não lhe importava, em summa, que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou medico, ou outra qualquer cousa, vadio que fosse; mas o peior é que lhe commettiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja ultima palavra era ameaçadora: « digo-lhe que elle não volta. » Tinha de haver por força um escandalo. João Carneiro estava com a pupilla desvairada, a palpebra tremula, o peito offegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de supplica, mesclados de um tenue raio de censura. Por que lhe não pedia outra cousa? Porque lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, á Tijuca, ou Jacarépaguá? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz caisse alli, de repente, apoplético, morto! Era uma solução, cruel, é certo, mas definitiva. — Então? insistiu Sinhá Rita. Elle fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a egreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os trer-setes. Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de commandar a batalha de Austerlitz... Mas a egreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava, cosido á parede, olhos baixos, esperando, sem solução apoplética. — Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala. Não teve remedio. O barbeiro metteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu á campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinhá Rita puxou-lhe d’esta vez o queixo. — Ande jantar, deixe-se de melancolias. — A senhora crê que elle alcance alguma cousa? — Ha de alcançar tudo, redarguiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando. Apezar do genio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu proprio espirito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caracter molle do padrinho. Comtudo, jantou bem; e, para o fim, voltou ás pilhérias da manhã. Á sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender. — Hão de ser as moças. Levantaram-se e passaram á sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e alli ficavam até o cair da noite. As discipulas, findo o jantar d’ellas, tornaram ás almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fóra. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram echos tão mundanos, tão alheios á theologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por elles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento; mas passou depressa. Uma d’ellas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anecdota que lhe agradára muito. Era a tal que fizera rir Lucrecia. — Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora. Vocês vão gostar muito. Damião não teve remedio senão obedecer. Máu grado o annuncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste e o effeito, a anecdoia acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrecia e olhou para ella, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça mettida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia. Sairam as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rotula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fel-o calar, mandou chamar dous negros, foi á policia pedir um pedestre, e ahi vinha pegal-o á força e leval-o ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saida pelos fundos; correu ao quintal, e calculou que podia saltar o muro. Quiz ainda saber se haveria modo de fugir para a rua da Valla, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O peior era a batina; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João Carneiro. — Tenho um rodaque do meu defunto, disse ella, rindo; mas para que está com esses sustos? Tudo se ha de arranjar, descance. Afinal, á boca da noite, appareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita. O negocio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quiz quebrar tudo; bradou que não, senhor, que o peralta havia de ir para o seminário, ou então mettia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar á religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha; mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluia dizendo que o moço fosse para a casa d’elle. Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra taboa de salvação, pensou elle. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da propria carta escreveu esta resposta: « Joãosinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos. » Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da consternação. Disse-lhe que socegasse, que aquelle negocio era agora d’ella. — Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras! Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os; todas as discipulas tinham concluido a tarefa. Só Lucrecia estava ainda á almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ella, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha. — Ah! malandra! — Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu. — Malandra! Nossa Senhora não protege vadias! Lucrecia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atraz e agarrou-a. — Anda cá! — Minha senhora, me perdoe! tossia a negrinha. — Não perdoo, não. Onde está a vara? E tornaram ambas á sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar. — Onde está a vara? A vara estava á cabeceira da marqueza, do outro lado da sala. Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista: — Sr. Damião, dê-me aquella vara, faz favor? Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena, que por causa d’elle, atrazára o trabalho... — Dê-me a vara, Sr. Damião! Damião chegou a caminhar na direcção da marqueza. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pae, por Nosso Senhor... — Me acuda, meu sinhô moço! Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um accesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas elle precisava tanto sair do seminário! Chegou á marqueza, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita. O DICCIONARIO Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmographia professava a opinião de que este mundo é um immenso tonel de marmellada, e em politica pedia o throno para a multidão. Com o fim de a pôr alli, pegou de um pão, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e acclamado, viu que a throno só dava para uma pessoa, e cortou a difficuldade sentando-se em cima. — Em mim, bradou elle, podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu. O primeiro acto do novo rei foi abolir a tanoaria, indemnisando os tanoeiros, prestes a derrubal-o, com o titulo de Magníficos. O segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a chamar-se, em vez de Bernardino, Bernardão. Particularmente encommendou uma genealogia a um grande doutor d’essas matérias, que em pouco mais de uma hora o entroncou a um tal ou qual general romano do século IV, Bernardus Tanoarius; — nome que deu logar á controvérsia, que ainda dura, querendo uns que o rei Bernardão tivesse sido tanoeiro, e outros que isto não passe de uma confusão deplorável com o nome do fundador da familia. Já vimos que esta segunda opinião é a unica verdadeira. Como era calvo desde verdes annos, decretou Bernardão que todos os seus súbditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse acto em uma razão de ordem politica, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças. Outro acto em que revelou igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do pé esquerdo tivessem um pequeno talho no logar correspondente ao dedo minimo, dando assim aos seus súbditos o ensejo de se parecerem com elle, que padecia de um callo. O uso dos oculos em todo o reino não se explica de outro modo, senão por uma ophthalmia que affligiu a Bernardão, logo no segundo anno do reinado. A doença levou-lhe um olho, e foi aqui que se revelou a vocação poética de Bernardão, porque, tendo-lhe dito um dos seus dous ministros, chamado Alpha, que a perda de um olho o fazia igual a Annibal, — comparação que o lisongeou muito, — o segundo ministro, Omega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os olhos. Esta cortezia foi uma revelação ; e como isto prende com o casamento, vamos ao casamento. Tratava-se, em verdade, de assegurar a dynastia dos Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a moça Estrellada, bella, rica e illustre. Esta senhora, que cultivava a musica e a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel á dynastia decahida. Bernardão offereceu-lhe as cousas mais sumptuosas e raras, e, por outro lado, a familia bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o illustre Bernardão lhes acenava com o principado que os thronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais aquillo. Estrellada, porém, resistia á seducção. Não resistiu muito tempo, mas também não cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que estava prompta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor madrigal, em concurso. Bernardão aceitou a clausula, louco de amor e confiado em si: tinha mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças. Concorreram ao certamen, que foi anonymo e secreto, vinte pessoas. Um dos madrigaes foi julgado superior aos outros todos: era justamente o do poeta amado. Bernardão annullou por um decreto o concurso, e mandou abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne machiavelismo, ordenou que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos annos de idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável de os vencer. Não venceu ainda assim, porque o poeta amado leu á pressa o que pôde, e o seu madrigal foi outra vez o melhor, Bernardão annullou esse segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções antigas davam singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as modernas e particularmente as da moda. Terceiro concurso, e terceira victoria do poeta amado. Bernardão, furioso, abriu-se com os dous ministros, pedindo-lhes um remedio prompto e energico, porque, se não ganhasse a mão de Estrellada, mandaria cortar trezentas mil cabeças. Os dous, tendo consultado algum tempo, voltaram com este alvitre: — Nós, Alpha e Omega, estamos designados pelos nossos nomes para as cousas que respeitam á linguagem. A nossa ideia é que Vossa Sublimidade mande recolher todos os diccionarios e nos encarregue de compor um vocabulário novo que lhe dará a victoria. Bernardão assim fez, e os dous metteram-se em casa durante trez mezes, findos os quaes depositaram nas augustas mãos a obra acabada, um livro a que chamaram Diccionario de Babel, porque era realmente a confusão das lettras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado; as consoantes trepavam nas consoantes, as vogaes diluiam-se nas vogaes, palavras de duas syllabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado, nenhuma energia, nenhuma graça, uma lingua de cacos e trapos. — Obrigue Vossa Sublimidade esta lingua por um decreto, e está tudo feito. Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a mão da bella Estrellada. A confusão passou do diccionario aos espiritos; toda a gente andava attonita. Os farçolas comprimentavam-se na rua pelas novas locuções: diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia, como passou? — Pflerrgpxx, rouph, aa? A propria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, propoz-lhe que fugissem; elle, porém, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma cousa. Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte madrigaes. O melhor d’elles, apezar da lingua barbara, foi o do poeta amado. Bernardão, allucinado, mandou cortar as mãos aos dous ministros, e foi a unica vingança. Estrellada era tão admiravelmente bella, que elle não se atreveu a magoal-a, e cedeu. Desgostoso, encerrou-se oito dias na bibliotheca, lendo, passeando ou meditando. Parece que a ultima cousa que leu foi uma satyra do poeta Garção, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de encommenda: O raro Apelles, Rubens e Raphael, inimitáveis Não se fizeram pela cor das tintas; A mistura elegante os fez eternos. UM ERRADIO A porta abria-se... Deixa-me contar a historia á laia de novella, disse Tosta á mulher, um mez depois de casados, quando ella lhe perguntou quem era o homem representado n’uma velha photographia, achada na secretária do marido. A porta abriu-se, e appareceu este homem, alto e serio, moreno, mettido n’uma infinita sobrecasaca côr de rapé, que os rapazes chamavam opa. — Ahi vem a opa do Elisiario. — Entre a opa só. — Não, a opa não póde; entre só o Elisiario, mas, primeiro hade glosar um mote. Quem da o mote? Ninguém dava o mote. A casa era uma simples sala, sublocada por um alfaiate, que morava nos fundos com a familia; rua do Lavradio, 1866. Era a segunda vez que ia alli, a convite de um dos rapazes. Não pódes ter ideia da sala e da vida. Imagina um municipio do paiz da Bohemia, tudo desordenado e confuso; além dos poucos moveis pobres, que eram do alfaiate, havia duas redes, uma canastra, um cabide, um bahú de folha de Flandres, livros, chapéos, sapatos. Moravam cinco rapazes, mas appareciam outros, e todos eram tudo, estudantes, traductores, revisores, namoradores, e ainda lhes sobrava tempo para redigir uma folha politica e litteraria, publicada aos sabbados. Que longas palestras que tinhamos! Solapavamos as bases da sociedade, descobriamos mundos novos, constellações novas, liberdades novas. Tudo era novissimo. — La vae mote, disse afinal um dos rapazes, e recitou: Podia embrulhar o mundo A opa do Elisiario. Parado á porta, o homem cerrou os olhos por alguns instantes, abriu-os, passou pela testa o lenço que trazia fechado na mão, em forma de bolo, e recitou uma glosa de improviso. Rimo-nos muito; eu, que não tinha ideia do que era improviso, cuidei a principio que a composição era velha e a scena um logro para mim. Elisiario despiu a sobrecasaca, levantou-a na ponta da bengala, deu duas voltas pela sala, com ar triumphal, e foi pendural-a a um prego, porque o cabide estava cheio. Em seguida, atirou o chapéo ao tecto, apanhou-o entre as mãos, e foi pol-o em cima do aparador. — Lugar para um! disse finalmente. Dei-me pressa em ceder-lhe o sophá; elle deitou-se, fincou os joelhos no ar, e perguntou que novidades havia. — Que o jantar é duvidoso, respondeu o redactor principal do Cenaculo; o Chico foi ver se cobrava alguma assignatura. Se arranjar dinheiro, traz logo o jantar da casa de pasto. Você já jantou? — Já e bem, respondeu Elisiario, jantei n’uma casa de commercio. Mas vocês porque é que não vendem o Chico? é um bonito creoulo. É livre, não lia duvida, mas por isso mesmo comprehenderá que, deixando-se vender como escravo, terão vocês com que pagar-lhe os ordenados... Dous mil réis chegam? Romeu, vê alli no bolso da sobrecasaca. Hade haver uns dous mil réis. Havia só mil e quinhentos, mas não foram precisos. Cinco minutos depois voltava o Chico, trazendo um taboleiro com o jantar e o resto da assignatura de um semestre. — Não é possivel! bradou Elisiario. Uma assignatura! Vem cá, Chico. Quem foi que pagou? Que figura tinha o homem? Baixo? Não é possivel que fosse baixo; a acção é tão sublime que nenhum homem baixo podia pratical-a. Confessa que era alto. Confessa ao menos que era de meia altura. Confessas? Ainda bem! Como se chama? Guimarães? Rapazes, vamos perpetuar este nome em uma placa de bronze. Acredito que não lhe déste recibo, Chico. — Dei, sim, senhor. — Recibo! Mas a um assignante que paga não se dá recibo, para que elle pague outra vez; não se matam esperanças, Chico. Tudo isto, dito por elle, tinha muito mais graça que contado. Não te posso pintar os gestos, os olhos e um riso que não ria, um riso unico, sem alterar a face, nem mostrar os dentes. Essa feição era a menos sympathica; mas tudo o mais, a fala, as ideias, e principalmente a imaginação fecunda e moça, que se desfazia em ditos, anecdotas, epigrammas, versos, descripções, ora serio, quasi sublime, ora familiar, quasi rasteiro, mas sempre original, tudo attrahia e prendia. Trazia a barba por fazer, o cabello á escovinha; a testa, que era alta, tinha grossas rugas verticaes. Galado, parecia estar pensando. Voltava-se a miudo no sophá, erguia-se, sentava-se tornava a deitar-se. Lá o deixei, quando saí, ás nove horas da noite. Comecei a frequentar a casa da rua do Lavradio, mas durante os primeiros dias não appareceu o Elisiario. Disseram-me que era muito incerto. Tinha temporadas. Ás vezes, ia todos os dias; repentinamente, falhava uma, duas, tres semanas seguidas, e mais. Era professor de latim e explicador de mathematicas. Não era formado em cousa nenhuma, posto estudasse engenharia, medicina e direito, deixando em todas as faculdades fama de grande talento sem applicação. Seria bom prosador, se fosse capaz de escrever vinte minutos seguidos; era poeta de improviso, não escrevia os versos, os outros é que os ouviam e trasladavam ao papel, dando-lhe copias, muitas das quaes perdia. Não tinha familia; tinha um protector, o Dr. Lousada, operador de algum nome, que devera obséquios ao pae de Elisiario, e quiz pagal-os ao filho. Era atrevido por causa de uma sombrinha de amor-proprio, que não tolerava a menor picada. N’aquella casa era bonachão. Trinta e cinco annos; o mais velho dos rapazes contava apenas vinte e um. A familiaridade entre elle e os outros era como a de um tio com sobrinhos, um pouco menos de autoridade, um pouco mais de liberdade. No fim de uma semana, appareceu Elisario na rua do Lavradio. Vinha com a ideia de escrever um drama, e queria dictal-o. Escolheram-me a mim, por escrever depressa. Esta collaboração mental e manual durou duas noites e meia. Escreveu-se um acto e as primeiras scenas de outro; Elisiario não quiz absolutamente acabar a peça. A principio disse que depois, mais tarde, estava indisposto, e falava de outras cousas; afinal, declarou-nos que a peça não prestava para nada. Espanto geral, porque a obra parecia-nos excedente, e ainda agora creio que o era. Mas o autor pegou da palavra e demonstrou que nem o escrito prestava, nem o resto do plano valia cousa nenhuma. Falou como se tratasse de outrem. Nós contestavamos; eu principalmente achava um crime, e repetia esta palavra com alma, com fogo — achava um crime não acabar o drama, que era de primeira ordem. — Não vale nada, dizia elle sorrindo para mim com sympathia, Menino, você quantos annos tem? — Dezoito. — Tudo é sublime aos dezoito annos. Cresça e appareça. O drama não presta; mas, deixe estar que havemos de escrever outro d’aqui a dias. Ando com uma ideia. — Sim? — Uma boa ideia, continuou elle com os olhos vagos; essa, sim, creio que dará um drama. Cinco actos; talvez faça em verso. O assumpto presta-se... Nunca mais falou em tal ideia; mas o drama começado fez com que nos ligássemos um pouco mais intimamente. Ou sympathia, ou amor-proprio satisfeito, por ver que o mais consternado com a interrupção e condemnação do trabalho fui eu, — ou qualquer outra causa que não achei nem vale a pena buscar, Elisiario entrou a distinguir-me entre os outros. Quiz saber quem eram meus paes e o que fazia. Disse-lhe que não tinha mãe; meu pae era lavrador em Baturité, eu estudava preparatórios, intercalando-os com versos, e andava com idéias de compor um poema, um drama e um romance. Tinha já uma lista de subscriptores para os versos. Parece que, de envolta com as noticias litterarias, alguma cousa lhe disse ou elle percebeu ácerca dos meus sentimentos de moço. Propoz-se a ajudar-me nos estudos com o seu proprio ensino, latim, francez, inglez, história... Cheio de orgulho, não menos que de sensibilidade, proferi algumas palavras que elle gostou de ouvir, e a que respondeu gravemente: — Quero fazer de você um homem. Estavamos sós; eu nada contei aos outros, para os não molestar, nem sei se elles perceberam dahi em deante alguma differença no trato do Elisiario, em relação a mim. É certo, porém, que a differença não era grande, nem o plano de « fazer-me um homem » foi além da sympathia e da benevolencia. Ensinava-me algumas matérias, quando eu lhe pedia lições, e eu raramente as pedia. Queria só ouvil-o, ouvil-o, ouvil-o até não acabar. Não imaginas a eloquência desse homem, callida e forte, mansa e doce, as imagens que lhe brotavam no discurso, as idéias arrojadas, as formas novas e graciosas. Muita vez ficavamos os dous sós na rua do Lavradio, elle fallando, eu ouvindo. Onde morava? Disseram-me vaeamente que para os lados da Gamboa, mas nunca me convidou a lá ir, nem ninguém sabia positivamente onde era. Na rua era lento, direito, circumspecto. Nada faria então suspeitar o desengonçado da casa do Lavradio, e, se falava, eram poucas e meias palavras. Nos primeiros dias, encontrava-me sem alvoroço, quasi sem prazer, ouvia-me attento, respondia pouco, estendia os dedos e continuava a andar. Ia a toda parte; era commum achal-o nos lugares mais distantes uns dos outros, Botafogo, S. Christovão, Andarahy. Quando lhe dava na veneta, mettia-se na barca e ia a Nitheroy. Chamava-se a si mesmo erradio. — Eu sou um erradio. No dia em que parar de vez, jurem que estou morto. Um dia encontrei-o na rua de S. José. Disse-lhe que ia ao Gastello ver a egreja dos Jesuitas, que nunca vira. Pois vamos, disse elle. Subimos a ladeira, achamos a egreja aberta e entramos. Em quanto eu mirava os altares, elle ia falando, mas em poucos minutos o expectaculo era elle só, um expectaculo vivo, como se tudo renascera tal qual era. Vi os primeiros templos da cidade, os padres da companhia, a vida monastica e leiga, os nomes principaes e os factos culminantes. Quando saimos, e fomos até á muralha, descobrindo o mar e parte da cidade, Elisiario fez-me viver dous séculos atraz. Vi a expedição dos francezes, como se a houvesse commandado ou combatido. Respirei o ar da colonia, contemplei as figuras velhas e mortas. A imaginação evocativa era a grande prenda desse homem, que sabia dar vida ás cousas extinctas e realidade ás inventadas. Mas não era só do passado local que elle sabia, nem unicamente dos seus sonhos. Vês aquella estatuasinha que alli tenho na parede? Sabes que é uma reducção da Venus de Milo. Uma vez, abrindo-se a exposição das bellas-artes, fui visital-a; achei lá o meu Elisiario, passeando grave, com a sua immensa sobrecasaca. Acompanhou-me; ao passar pela sala de esculptura, dei com os olhos na copia desta Venus. Era a primeira vez que a via. Soube que era ella pela falta dos braços. — Oh! admiravel! exclamei. Elisiario entrou a commentar a bella obra anonyma, com tal abundancia e agudeza que me deixou ainda mais pasmado. Que de cousas me disse a proposito da Vênus de Milo, e da Venus em si mesma! Falou da posição dos braços, que gesto fariam, que attitude dariam á figura, formulando uma porção de hypotheses graciosas e naturaes. Falou da esthetica, dos grandes artistas, da vida grega, do mármore grego, da alma grega. Era um grego, um puro grego, que alli me apparecia e transportava de uma rua estreita para deante do Parthenon. A opa do Elisiario transformou-se em chlamyde, a lingua devia ser a da Hellade, comquanto eu nada soubesse a tal respeito, nem então, nem agora. Mas era feiticeiro o diabo do homem. Saimos; fomos até o Campo da Acclamação, que ainda não possuia o parque de hoje, nem tinha outra policia além da natureza, que fazia brotar o capim, e das lavadeiras, que batiam e ensaboavam a roupa defronte do quartel. Eu ia cheio do discurso do Elisiario, ao lado delle, que levava a cabeça baixa e os olhos pensativos. De repente, ouvi dizer baixinho: — Adeus, Yoyô! Era uma quitandeira de doces, uma creoula bahiana, segundo me pareceu pelos bordados e crivos da saia e da camisa. Vinha da Cidade Nova e atravessava o campo. Elisiario respondeu á saudação: — Adeus, Zeferina. Estacou e olhou para mim, rindo sem riso, e, depois de alguns segundos: — Não se espante, menino. Ha muitas especies de Venus. O que ninguém dirá é que a esta lhe faltem braços, continuou olhando para os braços da quitandeira, mais negros ainda pelo contraste da manga curta e alva da camisa. Eu, de vexado, não achei resposta. Não contei esse episodio na rua do Lavradio; podiam metter á bulha o Elisiario, e não queria parecer indiscreto. Tinha-lhe não sei que veneração particular, que a familiaridade não enfraquecia. Chegamos á jantar juntos algumas vezes, e uma noite fomos ao theatro. O que mais lhe custava no theatro era estar muito tempo na mesma cadeira, apertado entre duas pessoas, com gente adiante e atraz de si. Nas noites de enchente, em que eram precisas travessas na platéa, ficava afflicto com a ideia de não poder sair no meio de um acto, se quizesse. Naquella, acabado o terceiro acto (a peça tinha cinco), disse-me que não podia mais e que ia embora. Fomos tomar chá ao botequim proximo, e deixei-me estar, esquecido do expectaculo. Ficamos até o fechar das portas. Tinhamos falado de viagens: eu contei-lhe a vida do sertão cearense, elle ouviu e projectou mil jornadas ao sertão do Brazil inteiro por serras, campos e rios, de mula e de canoa. Colheria tudo, plantas, lendas, cantigas, locuções. Narrou a vida do caipira, falou de Enéas, citou Virgilio e Camões, com grande espanto dos criados, que paravam boquiabertos. — Você era capaz de ir daqui a pé, até S. Christovão, agora? perguntou-me na rua. — Póde ser. — Não, você está cançado. — Não estou, vamos. — Está cançado, adeus; até depois, concluiu. Realmente, estava fatigado, precisava dormir. Quando ia a voltar para casa, perguntei a mim mesmo se elle iria sosinho, áquella hora, e deu-me vontade de acompanhal-o de longe, até certo ponto. Ainda o apanhei na rua dos Ciganos. Ia devagar, com a bengala debaixo do braço, e as mãos ora atrás, ora nas algibeiras das calças. Atravessou o Campo da Acclamação, enfiou pela rua de S. Pedro e metteu-se pelo Aterrado acima. Eu, no Campo, quiz voltar, mas a curiosidade fez-me ir andando também. Quem sabe se esse erradio não teria pouso certo de amores escondidos? Não gostei d’esta reflexão, e quiz punir-me desandando; mas a curiosidade levara-me o somno e dava-me vigor ás pernas. Fui andando atrás do Elisiario. Chegamos assim á ponte do Aterrado, enfiamos por ella, desembocamos na rua de S. Christovao. Elle algumas vezes parava, ou para accender um charuto, ou para nada. Tudo deserto, uma ou outra patrulha, algum tilbury raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo. Assim chegamos ao caes da Igrejinha. Junto ao cáes dormiam os botes que, durante o dia, conduziam gente para o Sacco do Alferes. Maré frouxa, apenas o resomnar manso da agua. Após alguns minutos, quando me pareceu que ia voltar pelo mesmo caminho, accordou os remadores de um bote, que de acaso alli dormiam, e propoz-lhes leval-o á cidade. Não sei quanto offereceu; vi que, depois de alguma reluctancia, acceitaram a proposta. Elisiario entrou no bote, que se afastou logo, os remos feriram a agua, e lá se perdeu na noite e no mar o meu professor de latim e explicador de mathematicas. Também eu me achei perdido, longe da cidade e exhausto. Valeu-me um tilbury, que atravessava o Campo de S. Christovão, tão cançado como eu, mas piedoso e necessitado. — Você não quiz ir commigo ante-hontem a S. Christovão? Não sabe o que perde; á noite estava linda, o passeio foi muito agradavel. Chegando ao cáes da Igrejinha, metti-me n’um bote e vim desembarcar no Sacco do Alferes. Era um bom pedaço até a casa; fiquei n’uma hospedaria do campo de Santa Anna. Fui atacado por um cachorro, no caminho do Sacco, e por dous na rua de S. Diogo, mas não senti as pulgas da hospedaria, porque dormi como um justo. E você que fez? — Eu? Não querendo mentir, se elle me tivesse presentido, nem confessar que o acompanhára de longe, respondi summariamente: — Eu? Eu também dormi como um justo. — Justus, justa, justum. Estavamos na casa da rua do Lavradio. Elisiario trazia no peito da camisa um botão de coral, objecto de grande espanto e acclamação da parte dos rapazes, que nunca jamais o viram com joias. Maior, porém, foi o meu espanto, depois que os rapazes sairam. Tendo ouvido que me faltava dinheiro para comprar sapatos, Elisiario saccou o botão de coral e disse que me fosse calçar com elle. Recusei energicamente, mas tive de acceital-o á força. Não o vendi nem empenhei; no dia seguinte pedi algum dinheiro adiantado ao correspondente de meu pae, calçei-me de novo, e esperei que chegasse o paquete do Norte, para restituir o botão ao Elisiario. Se visses a cara de desconsolo com que o recebeu! — Mas o senhor não disse outro dia que lhe tinham dado este botão de presente? repliquei á proposta que me fez de ficar com a joia. — Sim, disse e é verdade; mas para que me servem joias? Acho que ficam melhor nos outros. Bem pensado, como é presente, posso guardar o botão. Devéras, não o quer para si? — Não, senhor; um presente... — Presente de annos, continuou mirando a pedra com o olhar vago. Fiz trinta e cinco. Estou velho, meu menino; não tardo em pedir reforma e irei morrer em algum buraco. Tinha acabado de repor o botão na camisa. — Fez annos, e não me disse. — Para que? Para visitar-me? Não recebo nesse dia; de costume janto com o meu velho amigo Dr. Louzada, que também faz o seu versinho, ás vezes, e outro dia brindou-me com um soneto impresso em papel azul... Lá o tenho em casa; não é máu. — Foi elle que lhe deu o botão... — Não, foi a filha... o soneto tem um verso muito parecido com outro de Camões; o meu velho Louzada possue as suas lettras classicas, além de ser excellente medico... Mas o melhor delle é a alma... Quizeram fazel-o deputado. Ouvi que dois amigos delle, homens politicos, entenderam que o Elisiario daria um bom orador parlamentar. Não se oppoz, pediu apenas aos inventores do projecto que lhe emprestassem algumas idéias politicas; riram-se, e o projecto não foi adeante. Quero crer que lhe não faltassem idéias, talvez a tivesse de sobra, mas tão contrarias uma ás outras que não chegariam a formar uma opinião. Pensava segundo a disposição do dia, liberal exaltado ou conservador corcunda. O principal motivo da recusa era a impossibilidade de obedecer a um partido, a um chefe, a um regimento de camara. Se houvesse liberdade de alterar as horas da sessão, uma de manhã, outra de noite, outra de madrugada, ao accaso da frequência, sem ordem do dia, com direito de discutir o annel de Saturno ou os sonetos de Petrarcha, o meu erradio Elisiario aceitaria o cargo, comtanto que não fosse obrigado a estar calado, nem a falar, quando lhe chegasse a vez. Ahi tens o que era esse homem photographado em 1862. Em summa, boa creatura, muito talento, excellente conversador, alma inquieta e doce, desconfiada e irritadiça, sem futuro nem passado, sem saudades nem ambições, um erradio. Se não quando… Mas é muito falar sem fumar um charuto... Consentes? Em quanto accendo o charuto, olha para esse retrato, descontando-lhe os olhos, que não sairam bem; parecem olhos de gato e inquisidor, espetados na gente, como querendo furar a consciência. Não eram isso; olhavam mais para dentro que para fóra, e quando olhavam para fóra derramavam-se por toda a parte. Se não quando, uma tarde, jé escuro, por volta das sete horas, appareceu-me na casa de pensão, o meu amigo Elisiario. Havia très semanas que o não via, e, como tratava de fazer exames, e passava mais tempo mettido em casa, não me admirei da ausencia nem cuidei della. Demais, já me acostumara aos seus eclypses. O quarto estava escuro, eu ia sair e acabava de apagar a vela, quando a figura alta e magra do Elisiario appareceu á porta. Entrou, foi direito a uma cadeira, sentei-me ao pé delle, perguntei-lhe por onde andara. Elisiario abraçou-me chorando. Fiquei tão assombrado que não pude dizer nada; abracei-o também, elle enxugou os olhos com o lenço, que de costume trazia fechado na mão, e suspirou largo. Creio que ainda chorou silenciosamente, porque enxugava os olhos de quando em quando. Eu, cada vez mais assombrado, esperava que elle me dissesse o que tinha; afinal murmurei: — Que é? que foi? — Tosta, casei-me sabbado... Cada vez mais espantado, não tive tempo de lhe pedir outra explicação, porque o Elisiario continuou logo, dizendo que era um casamento de gratidão, não de amor, uma desgraça. Não sabia que respondesse á confidencia, não acabava de crer na noticia, e principalmente, não entendia o abatimento nem a dor do homem. A figura do Elisiario, qual a recompuz depois, não me apparecia por esse tempo com a significação verdadeira.. Cheguei a suppôr alguma cousa mais que o simples casamento; talvez a mulher fosse idiota ou tisica; mas quem o obrigaria a desposar uma doente? — Uma desgraça! repetia baixinho, falando para si, uma desgraça! Como eu me levantasse dizendo que ia accender uma vela, Elisiario reteve-me pela aba do fraque. — Não accenda, não me vexe, o escuro é melhor, para lhe expor esta minha desgraça. Ouça-me. Uma desgraça. Casado! Não é que ella me não ame; ao contrario, morria por mim ha sete annos. Tem vinte e cinco... Boa creatura! Uma desgraça! A palavra desgraça era a que mais vezes lhe tornava ao discurso. Eu, para saber o resto, quasi não respirava; mas não ouvi grande cousa, pois o homem, depois de algumas palavras descosidas, suspendeu a conferência. Fiquei sabendo só que a mulher era filha do Dr. Louzada, seu protector e amigo, a mesma que lhe dera o botão de coral. Elisiario calou-se de repente, e depois de alguns instantes, como arrependido ou vexado, pediu-me que não referisse a pessoa alguma aquella scena delle commigo. — O senhor deve conhecer-me... — Conheço, e porque o conheço é que vim aqui. Não sei que outra pessoa me merecesse agora igual confiança. Adeus, não lhe digo mais nada, não vale a pena. Você é moço. Tosta; se não tiver vocação para o casamento, não se case nunca, nem por gratidão, nem por interesse. Ha de ser um supplicio. Adeus. Não lhe digo onde moro, moro com meu sogro, mas não me procure. Abraçou-me e saiu. Fiquei á porta do quarto. Quando me lembrei de acompanhal-o até á escada, era tarde; ia descendo os últimos degráos. O lampião de azeite allumiava mal a escada, e a figura descia vagarosa, apoiada ao corrimão, cabeça baixa e a vasta sobrecasaca alegre, agora triste. Só dez mezes depois tornei a ver o Elisiario. A primeira ausência foi minha; tinha ido ao Ceará, ver meu pae, durante as ferias. Quando voltei, soube que elle fora ao Rio Grande do Sul. Um dia, almoçando, li nos jornaes que chegara na vespera, e corri a buscal-o. Achei-o em Santa Thereza, uma casinha pequena, com um jardim, pouco maior que ella. Elisiario abraçou-me com alvoroço; fallamos de cousas passadas; perguntei-lhe pelos versos. — Publique! um volume em Porto-Alegre. Não foi por minha vontade, mas minha mulher teimou tanto que afinal cedi; ella mesma os copiou.. Tem alguns erros; heide fazer aqui uma segunda edição. Elisiario deu-me um exemplar do livro, mas não consentiu que lesse alli nada. Queria só falar dos tempos idos. Perdera o sogro, que lhe deixara alguma cousa, e ia continuar a leccionar, para ver se achava as impressões de outr’ora. Onde estavam os rapazes da rua do Lavradio? Recordava scenas antigas, noitadas, algazarra, grandes risotas, que me iam lembrando cousas analogas, e assim gastamos duas boas horas compridas. Quando me despedi, pegou-me para jantar. — Você ainda não viu minha mulher, disse elle. E indo á porta que dava para dentro: — Cintinha! — Lá vou! respondeu uma voz doce. D. Jacintha chegou logo depois, com os seus vinte e seis annos, mais baixa que alta, mais feia que bonita, expressão boa e séria, grande quietação de maneiras. Quando elle lhe disse o meu nome, olhou para mim espantada. — Não é um bonito rapaz? Ella confirmou a opinião inclinando modestamente a cabeça. Elisiario disse-lhe que eu jantava com elles; a moça retirou-se da sala. — Boa creatura, disse-me elle; dedicada, serviçal. Parece que me adora. Já me não faltam botões nos paletós que trago... Pena! melhor que elles eram os botões que faltavam. A sobrecasaca de outr’ora, lembra-se? Podia embrulhar o mundo A opa do Elisiario. — Lembra-me. — Creio que me durou cinco annos. Onde vae ella! Heide fazer-lhe um epicedio, com uma epigraphe de Horacio... Jantámos alegremente. D. Jacintha falou pouco; deixou que eu e o marido gastássemos o tempo em relembrar o passado. Naturalmente, o marido tinha surtos de eloquência, como outr’ora; a mulher era pouca para ouvil-o. Elisiario esquecia-se de nós, ella de si, e eu achava a mesma nota antiga, tão viva e tão forte. Era costume delle concluir um discurso desses e ficar algum tempo calado. Resumia dentro de si o que acabava de dizer? Continuava a mesma ordem de idéas? Deixava-se ir ainda pela musica da palavra? Não sei; achei-lhe o velho costume de ficar calado sem dar pelos outros. Nessas occasiões a mulher calava-se tambem, a olhar para elle, não cheia de pensamento, mas de admiração. Succedeu isso duas vezes. Em ambas chegou a ser bonita. Elisiario disse-me, ao café, que viria commigo abaixo. — Você deixa, Cintinha? D. Jacintha sorriu para mim, como se dissesse que o pedido era desnecessário. Também ella falou no livro de versos do marido. — Elisiario é preguiçoso; o senhor hade ajudar-me a fazer com que elle trabalhe. Meia hora depois desciamos a ladeira. Elisiario confessou-me que, desde que casara, não tivera occasião da relembrar a vida de solteiro, e ao chegarmos abaixo declarou-me que iriamos ao theatro. — Mas você não avisou em casa... — Que tem? Aviso depois. Cintinha é boa, não se zanga por isso. Que theatro hade ser? Não foi nenhum; falamos de outras cousas, e ás nove horas, tornou para casa. Voltei a Santa Thereza poucos dias depois, não o achei, mas a mulher disse-me que o esperasse, não tardaria. — Foi a uma visita aqui mesmo no morro, disse ella; hade gostar muito de o ver. Emquanto falava, ia fechando dissimuladamente um livro, e foi pol-o em uma mesa, a um canto. Tratámos do marido; ella pediu-me que lhe dissesse o que pensava delle, se era um grande espirito, um grande poeta, um grande orador, um grande homem, em stimma. As palavras não seriam propriamente essas, mas vinham a dar nellas. Eu, que o admirava, confirmei-lhe o sentimento, e o gosto com que me ouviu foi paga bastante ao tal ou qual esforço que empreguei para dar á minha opinião a mesma emphasis. — Faz bem em ser amigo delle, concluiu; elle sempre me falou bem do senhor; dizia que era um menino muito serio. O gabinete tinha flores frescas e uma gaiola com passarinho. Tudo em ordem, cada cousa em seu logar, obra visivel da mulher. D’ahi a pouco entrou Elisiario, com a gravata no pescoço, o laço na frente, a barba rabiada, correcto e em flor. Só então notei a differença entre este Elisiario e o outro. A incoherencia dos gestos era já menor, ou estava prestes a acabar inteiramente. A inquietação desapparecera. Logo que elle entrou, a mulher deixou-nos para ir mandar fazer café, e voltou pouco depois, com um trabalho de agulha. — Não, senhora, vamos primeiro ao latim, bradou o marido. D. Jacintha corou extraordinariamente, mas obedeceu ao marido e foi buscar o livro, que estava lendo quando eu cheguei. — Tosta é de confiança, continuou Elisiario, não vai dizer nada a ninguém. E voltando-se para mim: — Não pense que sou eu que lhe imponho isto; ella mesma é que quiz aprender. Não crendo o que elle me dizia, quiz poupar á moça a licção de latim, mas foi ella própria que me dispensou o auxilio, indo buscar alegremente a grammatica do padre Pereira. Vencida a vergonha, deu a licção, como um simples alumno. Ouvia com attenção, articulava com prazer, e mostrava aprender com vontade. Acabado o latim, o marido quiz passar a licção de historia; mas foi ella, dessa vez, que recusou obedecer, para me não roubal-o a mim. Eu, pasmado, desfiz-me em louvores; realmente achava tao fóra de proposito aquella escola de latim conjugal, que não alcançava explicação, nem ousava pedil-a. Amiudei as visitas. Jantava com elles algumas vezes. Ao domingo ia só almoçar. D. Jacintha era um primor. Não imaginas a graça que tinha em falar e andar, tudo sem perder a compostura dos modos nem a gravidade dos pensamentos. Sabia muitos trabalhos de maos, apezar do latim e da historia que o marido lhe ensinava. Vestia com simplicidade, usava os cabellos lisos e não trazia joia alguma; podia ser affectação, mas tal era a sinceridade que punha em tudo, que parecia natural nisso como no resto. Ao domingo, o almoço era no jardim. Já achava o Elisiario á minha espera, á porta, ancioso que eu chegasse. A mulher estava acabando de arranjar as flores e folhagens que tinham de adornar a mesa. Além disso e do mais, adornava cartões contendo a lista dos pratos, com emblemas poéticos e nomes de musas para as comidas. Nem todas as musas podiam entrar, elles não eram ricos, nem nós tão comilões; entravam as que podiam. Era ao almoço que Elisiario, nos primeiros tempos, mais geralmente improvisava alguma cousa. Improvisava décimas, — elle preferia essa estrophe a qualquer outra; mais tarde, foi diminuindo o numero dellas, e para deante não passava de duas ou de uma. D. Jacintha pedia-lhe então sonetos; sempre eram quatorze versos. Ella e eu copiavamos logo, a lapis, com rectificações que elle fazia, rindo: — « Para que querem vocês isso? » Afinal perdeu o costume, com grande magoa da mulher, e minha também. Os versos eram bons, a inspiração facil; faltava-lhes só o calor antigo. Um dia perguntei a Elisario porque não reimprimia o livro de versos, que elle dizia ter sabido com incorrecções; eu ajudaria a ler as provas. D. Jacintha apoiou com enthusiasmo a proposta. — Pois, sim, disse elle, um dia destes; começaremos domingo. No domingo, D. Jacintha, estando a sós commigo, um instante, pediu-me que não esquecesse a revisão do livro. — Não, senhora, deixe estar. — Não enfraqueça, se elle quizer adiar o trabalho, continuou a moça; é provável que elle fale em guardar para outra vez, mas teime sempre, diga que não, que se zanga, que não volta cá... Apertou-me a mão com tanta força, que me deixou abalado. Os dedos tremiam-lhe; parecia um aperto de namorada. Cumpri o que disse, ella ajudou-me, e ainda assim gastamos meia hora antes que elle se dispuzesse ao trabalho. Afinal pediu-nos que esperássemos, ia buscar o livro. — Desta vez, vencemos, disse eu. D. Jacintha fez com a hocca um gesto de desconfiança, e passou da alegria ao abatimento. — Elisiario está preguiçoso. Hade ver que não acabamos nada. Pois não vê que não faz versos senão á força de muito pedido, e poucos? Podia escrever também, quando mais não fosse alguns daquelles discursos que costuma improvisar, mas os proprios discursos são raros e curtos. Tenho-me offerecido tantas vezes para escrever o que elle mandar. Chego a preparar o papel, pego na penna e espero, elle ri, disfarça, diz um gracejo, e responde que não está disposto. — Nem sempre estará. — Pois sim; mas então declaro que estou prompta para quando vier a inspiração, e peço-lhe que me chame. Não chama nunca. Uma ou outra vez tem planos; eu vou animando, mas os planos ficam no mesmo. Entretanto, o livro que elle imprimiu em Porto-Alegre foi bem recebido, podia animal-o. — Animal-o? Mas elle não precisa de animações; basta-lhe o grande talento que tem. — Não é verdade? disse ella chegando-se a mim com os olhos cheios de fogo. Mas é pena! tanto talento perdido! — Nós o acharemos; hei-de tratal-o como se elle fosse mais moço que eu. O mau foi deixal-o cair na ociosidade... Elisiario tornou com um exemplar do livro. Não trazia tinta nem penna; ella foi buscal-as. Começamos o trabalho da revisão; o plano era emendar, não só os erros de imprensa, mas o proprio texto. A novidade do caso interessou grandemente o nosso poeta, durante perto de duas horas. Verdade é que a maior parte do tempo era interrompido com a historia das poesias, a noticia das pessoas, se as havia, e havia muitas; uma boa porção das composições era dedicada a amigos ou homens públicos. Naturalmente fizemos pouco: não passamos de vinte paginas. Elisiario confessou que estava com somno, adiamos o trabalho, e nunca mais pegamos nelle. D. Jacintha chegou a pedir ao marido que nos deixasse a nós a tarefa de emendar o livro; elle veria depois o texto emendado e prompto. Elisiario respondeu que não, que elle mesmo faria tudo, que esperássemos, não havia pressa. Mas, como disse, nunca mais pegamos no livro. Já raro improvisava, e, como não tinha paciência para compor escrevendo, os versos iam escasseando mais. Já lhe saíam frouxos; o poeta repetia-se. Quizemos ainda assim propor-lhe outro livro, recolhendo o que havia, e antes de o propôr, tratamos de compilal-o. O todo precisava de revisão; Elisiario consentiu em fazel-a, mas a tentativa teve o mesmo resultado que a outra. Os proprios discursos iam acabando. O gosto da palavra morria. Falava como todos nós falamos; não era já nem sombra daquella catadupa de ideias, de imagens, de phrases, que mostravam no orador um poeta. Para o fim, nem falava; já me recebia sem enthusiasmo, ainda que cordialmente. Afinal vivia aborrecido. Com poucos annos de casada, D. Jacintha tinha no marido um homem de ordem, de socego, mas sem inspiração nem calor. Ella própria foi mudando também. Não instava já pela composição de versos novos, nem pela correcção dos velhos. Ficou tão desinteressada como elle. Os jantares e os almoços eram como os de qualquer pessoa que não cuide de lettras. D. Jacintha buscava não tocar em tal assumpto que era penoso ao marido e a ella; eu imitava-os. Quando me formei, Elisiario compoz um soneto em honra minha; mas já lhe custou muito, e, a falar verdade, não era do mesmo homem de outro tempo. D. Jacintha vivia então, não direi triste, mas desencantada. A razão não se comprehenderá bem, se não sabendo as origens da affeição que a levára ao casamento. Pelo que pude colher e observar, nunca essa moça amou verdadeiramente o homem com quem casou. Elisiario acreditou que sim, é o disse, porque o pae della pensava que era deveras um amor como os outros. A verdade, porém, é que o sentimento de D. Jacintha era pura admiração. Tinha uma paixão intellectual por esse homem, nada mais, e nos primeiros annos não pensou em casar com elle. Quando Elisiario ia á casa do Dr. Louzada, D. Jacintha vivia as melhores horas da vida, escutando-lhe os versos, novos ou velhos, — os que trazia de cór e os que improvisava alli mesmo. Possuia boa copia delles. Mas, ainda que não fossem versos, contentava-se em ouvil-o para admiral-o. Elisiario, que a conhecia desde pequena, falava-lhe como a uma irmã mais moça. Depois viu que era intelligente, mais do que o commum das mulheres, e que havia nella um sentimento de poesia e de arte que a faziam superior. O apreço em que a tinha era grande, mas não passava disso. Assim se passaram annos. D. Jacintha começou a pensar em um acto de pura dedicação. Conhecia a vida de Elisiario, os dias perdidos, as noitadas, a incoherencia e o desarranjo de uma existência que ameaçava acabar na inutilidade. Nenhum estimulo, nenhuma ambição de futuro. D. Jacintha acreditava no genio de Elisiario. Muitos eram os admiradores; nenhum tinha a fé viva, a devoção calada e profunda daquella moça. O projecto era desposal-o. Uma vez casados, ella lhe daria a ambição que não tinha, o estimulo, o habito do trabalho regular, methodico, e naturalmente abundante. Em vez de perder o tempo e a inspiração em cousas futeis ou conversas ociosas, comporia obras de folego, nas boas horas, para elle quasi todas as horas eram excellentes. O grande poeta affirmar-se-hia perante o mundo. Assim disposta, não lhe foi difficil obter a collaboração do pae, sem todavia confessar-lhe o motivo secreto da acção; seria dizer que se casava sem amor. O que ella disse foi que o amava devéras. Que haja nisso uma nota romanesca, é verdade; mas o romanesco era aqui obra de piedade, vinha de um sentimento de admiração, e podia ser um sacrificio. Talvez mais de um tentasse casar com ella. D. Jacintha não pensou em ninguém, até que lhe surdiu a ideia generosa de seduzir o poeta. Já sabes que este casou por obediência. O resultado foi inteiramente opposto ás esperanças da moça. O poeta, em vez dos louros, enfiou uma carapuça na cabeça, e mandou bugiar a poesia. Acabou em nada. Para o fim dos tempos nem lia já obras de arte. D. Jacintha padeceu grandemente; viu esvair-se-lhe o sonho, e, se não perdeu, antes ganhou o latim, perdeu aquella lingua sublime em que cuidou falar ás ambições de um grande espirito. A conclusão a que chegou foi ainda um desconsolo para si. Concluiu que o casamento esterilisára uma inspiração que só tinha ambiente na liberdade do celibato. Sentiu remorsos. Assim, além de não achar as doçuras do casamento na união com Elisiario, perdeu a unica vantagem a que se propuzera no sacrifício. Errava naturalmente. Para mim Elisiario era o mesmo erradio, ainda que parecesse agora pousado; mas era também um talento de pouca dura; tinha, de acabar, ainda que não casasse. Não foi a ordem que lhe tirou a inspiração. Certamente, a desordem ia mais com elle que tanto tinha de agitado, como de solitário; mas a quietação e o methodo não dariam cabo do poeta, se a poesia nelle não fosse uma grande febre da mocidade... Em mim é que não passou de ligeira constipação da adolescência. Pede-me tu amor, que o terás; não me peças versos, que desaprendi ha muito, concluiu Tosta, beijando a mulher. ETERNO! — Não me expliques nada, disse eu entrando no quarto; é o negocio da baroneza. Norberto enxugou os olhos e sentou-se na cama, com as pernas pendentes. Eu, cavalgando uma cadeira, pousei a barba no dorso, e proferi este breve discurso: — Mas, meu pateta, quantas vezes queres que te diga que acabes com essa paixão ridicula e humilhante? Sim, senhor, humilhante e ridicula, porque ella não faz caso de ti; e demais, é arriscado. Não? Verás se o é, quando o barão desconfiar que lhe arrastas a aza á mulher. Olha que elle tem cara de máus bofes. Norberto metteu as unhas na cabeça, desesperado. Tinha-me escripto cedo, pedindo que fosse confortal-o e dar-lhe algum conselho; esperára-me na rua, até perto de uma hora da noite, defronte da casa de pensão em que eu morava; contava-me na carta que não dormira, que recebera um golpe terrível, falava o em atirar-se ao mar. Eu, apezar de outro golpe que também recebera, acudi ao meu pobre Norberto. Éramos da mesma idade, estudavamos medicina, com a differença que eu repetia o terceiro anno, que perdera, por vadio. Norberto vivia com os pais; não me cabendo igual fortuna, por havel-os perdido, vivia de uma mezada que me dava um tio da Bahia, e das dividas que o bom velho pagava semestralmente. Pagava-as, e escrevia-me logo uma porção de cousas amargas, concluindo sempre que, pelo menos, fosse estudando até ser doutor. Doutor, para que? dizia commigo. Pois se nem o sol, nem a lua, nem as moças, nem os bons charutos Villegas eram ir doutores, que necessidade tinha eu de o ser? E toca a rir, a folgar, a deixar correr semanas e credores. Falei de um golpe recebido. Era uma carta do tio, vinda com a do Norberto, naquella mesma manhã. Abri-a antes da outra, e li-a com pasmo. Já me não tuteava; dizia ceremoniosamente: « Sr. Simeão Antonio de Barros, estou farto de gastar á toa o meu dinheiro com o senhor. Se quizer concluir os estudos, venha matricular-se aqui, e morar commigo. Senão, procure por si mesmo recursos; não lhe dou mais nada. » Amarrotei o papel, finquei os olhos n’uma lithographia muito ruim do visconde de Sepetiba, que já achei pendente de um prego, no meu quarto de pensão, e disse-lhe os nomes mais feios, de maluco para baixo. Bradei que podia guardar o seu dinheiro, que eu tinha vinte annos, — o primeiro dos direitos do homem, anterior aos tios e outras convenções sociaes. A imaginação, madre amiga, apontou-me logo uma infinidade de recursos que bastavam a dispensar os magros cobres de um velho avarento; mas, passada essa primeira impressão, e relida a carta, entrei a ver que a solução era mais ardua do que parecia. Os recursos podiam ser bons e até certos; mas eu estava tão afeito a ir á rua da Quitanda receber a pensão mensal e a gastal-a em dobro, que mal podia adoptar outro systema. Foi n’este ponto que abri a carta do amigo Norberto e corrí á casa d’elle. Já sabem o que lhe disse; viram que elle metteu as unhas na cabeça, desesperado. Saibam agora que, depois do gesto, disse com olhar sombrio que esperava de mim outros conselhos. — Quaes? Não me respondeu. — Que compres uma pistola ou uma gazúa? Algum narcotico? — Para que estás caçoando commigo? — Para fazer-te homem. — Norberto deu de hombros, com um laivosinho de escarneo ao canto da bocca. Que homem! Que era ser homem, senão amar a mais divina creatura do mundo e morrer por ella? A baroneza de Magalhães, causa d’aquella demencia, viera pouco antes da Bahia, com o marido, que antes do baronato, adquirido para satisfazer noiva, era Antonio José Soares de Magalhães. Vinham casados de fresco; a baroneza tinha menos trinta annos que o barão; ia em vinte e quatro. Realmente era bella. Chamavam-lhe, em familia, Yayá Lindinha. Como o barão era velho amigo do pai de Norberto, as duas familias uniram-se desde logo. — Morrer por ella? disse eu. Jurou-me que sim; era capaz de matar-se. Mulher mysteriosa! A voz d’ella entrava-lhe pelos ossos. E, dizendo isto, rolava na cama, balia com a cabeça, mordia os travesseiros. Ás vezes, parava, arquejando; logo depois tornava ás mesmas convulsões, abafando os soluços e os gritos, para que os não ouvissem do primeiro andar. Já acostumado ás lagrimas do meu amigo, desde a vinda da baroneza, esperei que ellas acabassem, mas não acabavam. Descavalguei a cadeira, fui a elle, bradei-lhe que era uma criançada, e despedi-me; Norberto pegou-me na mão, para que ficasse, não me tinha dito ainda o principal. — É verdade; que é? — Vão-se embora. Estivemos lá hontem, e ouvi que embarcam sabbado. — Para a Bahia? — Sim. — Então, vão commigo. Contei-lhe o caso da carta, e as ordens de meu tio para ir matricular-me na Bahia, e estudar ao pé delle. Norberto escutou-me alvoroçado. Na Bahia? Iriamos juntos; éramos intimos, os pais não recusariam este lavor á nossa joven amizade. Confessa que o plano pareceu-me excellente, e demo-nos a elle com affinco. A mãe, apezar de muita lagrima que teria de verter ao despegar-se do filho, cedeu mais promptamente do que suppunhamos. O pae é que não cedeu nada. Não houve rogos nem empenhos; o proprio barão, que eu tive a arte de trazer ao nosso proposito, não alcançou do velho amigo que deixasse ir o filho, nem ainda com a promessa de o aposentar em casa e velar por elle. O pai foi inflexivel. Podem imaginar o desespero do meu amigo. Na noite de sexta-feira esteve em casa d’ella, com a familia, até onze horas; mas, com o pretexto de passar commigo a ultima noite da minha estada aqui, veiu realmente chorar tantas e taes lagrimas, como nunca as vi chorar jámais, nem antes nem depois. Não podia descrer da paixão, nem presumir consolal-a; era a primeira. Até então, ambos nós só conheciamos os trocos miúdos do amor; e, por desgraça d’elle a primeira moeda grande que achara, não era ouro nem prata, senão ferro, duro ferro, como a do velho Lycurgo, forjada com o mesmo amargo vinagre. Não dormimos. Norberto chorava, arrepellava-se, pedia a morte, construia planos absurdos ou terriveis. Eu, arranjando as malas, ia-lhe dizendo alguma cousa que o consolasse; era peior, era como se fallasse de dança a uma perna dolorida. Consegui que fumasse um cigarro, depois outro, e afinal fumou-os ás dúzias, sem acabar nenhum. Ás tres horas tratava do mudo de fugir ao Rio de Janeiro, — não logo, mas dahi a dias, no primeiro vapor. Tirei-lhe essa ideia da cabeça unicamente no interesse d’elle proprio. — Ainda se fosse util, vá; disse-lhe eu; mas ir sem certeza de nada, ir dar com o nariz na porta, porque a mulher, se não gosta de ti, e te vê lá, é capaz de perceber logo o motivo da tua viagem, e não te recebe. — Que sabes tu? — Póde receber-te, mas não ha certeza, acho eu. Crês que ella goste de ti? — Não digo que sim, nem que não. Contou-me episodios, gestos, ditos, cousas ambiguas ou insignificantes; depois vinha uma reticencial de lagrimas, murros no peito, clamor de angustia, a dor ia-se-me communicando; padecia com elle, a razão cedia á compaixão, as nossas naturezas fundiam-se em uma só lastima. D’ahi esta promessa que lhe fiz. Tenho uma ideia. Vou com elles, já nos conhecemos, é provável que frequente a casa; eu então, farei uma cousa: sondo-a a teu respeito. Se vir que nem pensa em ti, escrevo-te francamente que penses em outra cousa; mas se achar alguma inclinação, pouca que seja, aviso-te, e, ou por bem ou por mal, embarca. Norberto aceitou alvoroçado a proposta: era uma esperança. Fez-me jurar que cumpriria tudo, que a observaria bem, sem temor, e, pela sua parte, jurou-me que não hesitaria um instante. E teimava commigo que não perdesse nada; que, ás vezes, um indicio pequeno valia muito, uma palavrinha era um livro; que, se pudesse, alludisse ao desespero em que o deixava. Para peitar a minha sagacidade, affirmou que o desengano matal-o-hia, porque esse amor, eterno como era, iria fartar-se na morte e na eternidade. Não achei bocca para replicar-lhe que isto era o mesmo que obrigar-me a só mandar boas noticias. N’aquella occasião, apenas sabia chorar com elle. A aurora registrou o nosso pacto immoral. Não consenti que elle fosse a bordo despedir-se. Parti. Não falemos da viagem... Ó mares de Homero, flagellados por Euros, Boreas e o violento Zephyro, mares epicos, podeis sacudir Ulysses, mas não lhe daes as afílicções do enjôo. Isso é bom para os mares de agora, e particularmente para aquelles que me levaram d’aqui à Bahia. Só depois de chegar ante a cidade, ousei apparecer á nossa dona magnifica, tão senhora de si, como se acabasse de dar um passeio apenas longo. — Não tem saudades do Rio de Janeiro? disse-lhe eu logo, de introito. — Certamente. O barão veiu indicar-me os logares que a gente via do paquete, — ou a direcção de outros. Offereceu-me a casa d’elle, no Bomfim. Meu tio veiu a bordo, e, por mais que quizesse fazer-se tetrico, senti-lhe o coração amigo. Via-me, unico filho da irmã finada, — e via-me obediente. Vão podia haver para mim melhores impressões de entrada. Divina juventude! as cousas novas pagavam-me em dobro as cousas velhas. Dei os primeiros dias ao conhecimento da cidade; mas não tardou que uma carta do meu amigo Norberto me chamasse a attenção para elle. Fui ao Bonfim. A baroneza — ou Yayá Lindinha, que era ainda o nome dado por toda a gente, — recebeu-me com tanta graça, e o marido era tão hospedeiro e bom, que me envergonhei da particular commissão que trazia. Mas durou pouco a vergonha, vi o desespero do meu amigo, e a necessidade de consolal-o ou desesenganal-o era superior a qualquer outra consideração. Confesso até uma singularidade; agora que estavam separados entrou-me na alma a esperança de que ella não desgostasse d’elle, — justamente o que eu negava antes. Talvez fosse o desejo de o ver feliz; podia ser uma instigação da vaidade que me acenasse com a victoria em favor do desgraçado. Naturalmente, conversámos do Rio de Janeiro. Eu dizia-lhe as minhas saudades, falava das cousas que estava acostumado a ver, das ruas que faziam parte da minha pessoa, das caras de todos os dias, das casas, das affeições... Oh! as affeiçõcs eram os laços mais apertados. Tinha amigos: os pais de Norberto... — Dous santos, interrompeu a moça; meu marido, que conhece o velho desde muitos annos, conta d’elle cousas curiosas. Sabe que casou por uma paixão fortissima? — Adivinha-se. O filho é o fructo expressivo do amor dos dous. Conheceu bem o meu pobre Norberto? — Conheci; ia lá á casa muitas vezes. — Não conheceu. Yayá Lindinha franziu levemente a testa. — Perdoe-me se a desminto, continuei com vivacidade. Não conheceu a melhor alma, a mais pura e a mais ardente que Deus creou. Talvez que ache parcial por ser amigo. A verdade é que ninguém me prende mais ao Rio de Janeiro. Coitado do meu Norberto! Não imagina que homem talhado para dous officios ao mesmo tempo, archanjo e heróe. — para dizer á terra as delicias do céu, e para escalar o céu, se for preciso ir lá levar as lamentações humanas… Só no fim d’esta fala comprehendi que era ridícula. Yayá Lindinha, ou não a entendeu assim, ou disfarçou a opinião; disse-me somente que a minha amizade era enthusiasta, mas que o meu amigo parecia boa pessoa. Não era alegre, ou tinha crises melancólicas. Disseram-lhe que elle estudava muito... — Muito. Não insisti para não atropellar os acontecimentos... Que o leitor me não condemne sem remissão nem aggravo. Sei que o papel que eu fazia não era bonito, mas já lá vão vinte e sete annos. Confio do Tempo, que é um insigne alchimista. Dá-se-lhe um punhado de lodo, elle o restitue em diamantes; quando menos, em cascalho. Assim é que, se um homem de Estado escrever e publicar as suas memórias, tão sem escrupulo, que lhes não falte nada, nem confidencias pessoaes, nem segredos do governo, nem até amores, amores particularissimos e inconfessáveis, verá que escandalo levanta o livro. Dirão, e dirão bem, que o auctor é um cynico, indigno dos homens que confiaram n’elle e das mulheres que o amaram. Clamor sincero e legitimo; porque o caracter publico impõe muitos resguardos; os bons costumes e o proprio respeito ás mulheres amadas constrangem ao silencio... ... Mas deixai pingar os annos na cuba de um século. Cheio o século, passa o livro a documento historico, psychologico, anectiotico. Hão de lel-o a frio; estudar-se-hia nelle a vida intima do nosso tempo, a maneira de amar, a de compor os ministérios e deital-os abaixo, se as mulheres eram mais animosas que dissimuladas, como é que se faziam eleições e galanteios, se eram usados chalés ou capas, que vehiculos tínhamos se os relogios eram trazidos á direita ou á esquerda, e multidão de cousas interessantes para a nossa historia publica e intima. D’ahi a esperança que me fica, de não ser condemnado absolutamente pela consciência dos que me lêm. Já lá vão vinte e sete annos! Gastei mais de meio em bater á porta d’aquelle coração, a vér se lá achava o Norberto; mas ninguém me respondia de dentro, nem o proprio marido. Não obstante, as cartas que mandava ao meu pobre amigo, se não levavam esperanças, também não levavam desenganos. Houve-as até mais esperançosas que desenganadas. A affeição que elle tinha e o meu amor-proprio conjugavam as forças todas para espertar n’ella a curiosidade e a seducção de um mysterio remoto e possivel. Já então as nossas relações eram familiares. Visitava-os a miudo. Quando lá não ia tres noites seguidas, vivia afflicto e inquieto; corria a vél-os na quarta noite, e era ella que me esperava ao portão da chacara, para dizer-me nomes feios, ingrato, preguiçoso, esquecido. Os nomes foram cessando, mas a pessoa não deixava de estar alli á espera, com a mão prestes a apertar a minha, — ás vezes, tremula, — ou seria a minha que tremia; mão sei. — Amanhã não posso vir, dizia-lhe algumas noites, á despedida, baixo, no vão de uma janella. — Por que? Explicava-lhe a causa, estudo ou alguma obrigação de meu tio. Nunca tentou dissuadir-me de promessa, mas ficava desconsolada. Comecei a escrever menos ao Norberto e a falar pouco de Yayá Lindinha, como quem não ia á casa d’ella. Tinha formulas differentes: « Hontem encontrei o barão no largo do Palacio; disse-me que a mulher está boa. » Ou então: « Sabes quem vi ha tres dias no theatro? A baroneza. » Não relia as cartas, para não encarar a minha hypocrisia. Elle, pela sua parte, também ia escrevendo menos, e bilhetes curtos. Entre mim e a moça não apparecia mais o nome de Norberto; convencionamos, sem palavras, que era um defunto, e um triste defunto sem galas mortuárias. Beiravamos o abysmo, ambos teimando que era um reflexo da cupula celeste, — incongruência para os que não andam namorados. A morte resolveu o problema, levando comsigo o barão, por meio de um ataque de apoplexia, no dia vinte e tres de março de 1861, ás seis horas da tarde. Era um excellente homem, a quem a viuva pagou em preces o que lhe não dera em amor. Quando eu lhe pedi, tres mezes depois, que, acabado o luto, casasse commigo, Yayá Lindinha não extranhou nem me despediu. Ao contrario, respondeu que sim, mas não tão cedo; punha uma condição: que concluisse primeiro os estudos, que me formasse. E disse isto com os mesmos lábios, que pareciam ser o unico livro do mundo, o livro universal, a melhor das academias, a escola das escolas. Appellei d’ella para ella; escutou-me inflexível. A razão que me deu foi que mentio podia receiar que, uma vez casado, interromperia a carreira. — E com razão, concluiu. Ouça-me : só me caso com um doutor. Cumprimos ambos a promessa. Durante algum tempo andou ella pela Europa, com uma cunhada e o marido d’esta; e as saudades foram então as minhas disciplinas mais duras. Estudei pacientemente; despeguei-me de todas as vadiações antigas. Recebi o capello na vespera da benção matrimonial; e posso dizer, sem hypocrisia, que achei o latim do padre muito superior ao discurso acadêmico. Semanas depois, pediu-me Yayá Lindinha que viessemos ao Rio de Janeiro. Cedi ao pedido, confesso que um pouco atordoado. Cá viria achar o meu amigo Norberto, se é que elle ainda residia aqui. Ia em mais de tres annos que nos não escreviamos; já antes d’isso as nossas cartas eram breves e sem interesse. Saberia do nosso casamento? Dos precedentes? Viemos; não contei nada a minha mulher. Para que? Era dar-lhe noticia de uma aleivosia occulta, dizia commigo. Ao chegar, puz esta questão a mim mesmo, se esperaria a visita d’elle, se iria visital-o antes; escolhi o segundo alvitre, para avisal-o das cousas. Engenhei umas circumstancias especiaes, curiosas, acarretadas pela Providencia, cujos fios ficam sempre occultos aos homens. Não me ria, note-se bem; minha imaginaçao compunha tudo isso com seriedade. No fim de quatro dias, soube que Norberto morava para os lados do Rio Comprido; estava casado. Tanto melhor. Corri a casa d’elle. Vi no jardim uma preta amamentando uma criança, outra criança de anno e meio, que recolhia umas pedrinhas do chão, acocorada. — Nhõ Bertinho, vai dizer a mamai que está aqui um moço procurando papai. O menino obedeceu; mas, antes que voltasse, chegava de fóra o meu velho amigo Norberto. Conheci-o logo, apezar das grandes suissas que usava; lançámo-nos nos braços um do outro. — Tu aqui? Quando chegaste? — Hontem. — Estás mais gordo, meu velho! Gordo e bonito. Entremos. Que é? continuou elle inclinando-se para Nhõ Bertinho, que lhe abraçava uma das pernas. Pegou d’elle, alçou-o, deu-lhe trinta mil beijos ou pouco menos; depois, tendo-o n’um braço, apontou para mim. — Conheces este moço? Nhõ Bertinho olhava espantado, com o dedo na bocca. O pai contou-lhe então que eu era um amigo de papai, muito amigo, desde o tempo em que vovô e vovó eram vivos... — Teus pais morreram? Norberto lez-me signal que sim, e acudiu ao filho, que com as maosinhas espalmadas pegava da cara do pai, pedindo-lhe mais beijos. Depois, foi á criança que mamava, não a tirou do regaço da ama, mas disse-lhe muitas cousas ternas, chamou-me para vêl-a; era uma menina. Revia-se n’ella, encantado. Tinha cinco mezes por ora; mas se eu voltasse alli quinze annos depois, veria que mocetona. Que bracinhos! que dedos gordos! Não podendo ter-se, inclinou-se e beijou-a. — Entra, anda vêr minha mulher. Jantas comnosco. — Não posso. — Mamai está espiando, disse Nhõ Bertinho. Olhei, vi uma moça á porta da sala, que dava para o jardim; a porta estava aberta, ella esperava-nos. Subimos os cinco degraus; entrámos na sala. Norberto pegou-lhe nas mãos, e deu-lhe dous beijos. A moça quiz recuar, não pôde, ficou muito corada. — Não te vexes, Carmella, disse elle. Sabes quem é este sujeito? É aquelle Barros de quem te falei muitas vezes, um Simeão, estudante de medicina… A proposito, por que é que me não respondeste á participação do casamento? — Não recebi nada, respondi. — Pois affirmo que foi pelo correio. Carmella ouvia o marido com admiração; elle tanto fez, que foi sentar-se ao pé della, para lhe reter a mão, ás escondidas. Eu fingia não vêr nada; falava dos tempos acadêmicos, de alguns amigos, da politica, da guerra, tudo para evitar que elle me perguntasse se estava ou não casado. Já me arrependia de ter ido alli; que lhe diria, se elle tocasse no ponto e indagasse da pessoa? Não me falou em nada; talvez soubesse tudo. A conversação prolongou-se; mas eu teimei em sair, e levantei-me, Carmella despediu-se de mim com muita affabilidade. Era bella; os olhos pareciam dar-lhe um resplendor de santa. Certo é que o marido tinha-lhe adoração. — Viste-a bem? perguntou-me elle á porta do jardim. Não te digo o sentimento que nos prende, estas cousas sentem-se, não se exprimem. De que sorris? Achas-me naturalmente criança. Creio que sim; criança eterna, como é eterno o meu amor. Entrei no tilbury, promettendo ir lá jantar uns d’aquelles dias. — Eterno! disse commigo. Tal qual o amor que elle tinha a minha mulher. E, voltando-me para o cocheiro, perguntei-lhe. — O que é eterno? — Com perdão de V. S., acudiu elle, mas eu acho que eterno é o fiscal da minha rua, um maroto que, se lhe não quebro a cara um d’estes dias a minha alma se não salve. Pois o maroto parece eterno no logar; tem ahi não sei que compadres... Outros dizem que... Não me metto n’isso... Lá quebrar-lhe a cara... Não ouvi o resto; fui mergulhando em mim mesmo, ao zunzum do cocheiro. Quando dei por mim, estava na rua da Gloria. O demonio continuava a falar; paguei, e desci até á praia da Gloria, metti-me pela do Russell e fui sair á do Flamengo. O mar batia com força. Moderei o passo, e puz-me a olhar para as ondas que vinham alli bater e morrer. Cá dentro, resoava, como um trecho musical, a pergunta que fizera ao cocheiro; o que é eterno? As ondas, mais discretas que elle, não me contaram os seus particulares, vinham vindo, morriam, vinham vindo, morriam. Cheguei ao hotel de Estrangeiros ao declinar da tarde. Minha mulher esperava-me para jantar. Eu, ao entrar no quarto, peguei-lhe das mãos, e perguntei-lhe: — O que eterno, Yayá Lindinha? Ella, suspirando: — Ingrato! é o amor que te tenho. Jantei sem remorsos; ao contrario, tranquillo e jovial. Cousas do Tempo! Dá-se-lhe um punhado de lodo, elle o restitue em diamantes... MISSA DO GALLO Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, ha muitos annos, contava eu desesete, ella trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um visinho irmos á missa do gallo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordal-o á meia-noite. A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Menezes, que fora casado, em primeiras núpcias com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, mezes antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquillo, naquella casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A familia era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Ás dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; ás dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao theatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Menezes que ia ao theatro, pedi-lhe que me levasse comsigo. Nessas occasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam á socapa; elle não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o theatro era um euphemismo em acção. Menezes trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fóra de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a principio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acustumára-se, e acabou achando que era muito direito. Boa Conceição! Chamavam-lhe « a santa », e fazia jus ao titulo, tão facilmente supportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lagrimas, nem grandes risos. No capitulo de que trato, dava para mahometana; acceitaria um harem, com as apparencias salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nella era attenuado e passivo. O proprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa sympathica. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; póde ser até que não soubesse amar. Naquella noite de Natal foi o escrivão ao theatro. Era pelos annos de 1861 ou 1802. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver « a missa do gallo na Corte ». A familia recolheu-se á hora do costume; eu metti-me na sala da frente, vestido e prompto. Dalli passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha tres chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa. — Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição. — Leio, D. Ignacia. Tinha commigo um romance, os Tres Mosqueteiros, velha traducção creio do Jornal do Commercio. Sentei-me á mesa que havia no centro da sala, e á luz de um candieiro de kerozene, emquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavallo magro de D’Artagnan e fui-me ás aventuras. Dentro em pouco estava completamente ebrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrario do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quasi sem dar por ellas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veiu acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas á de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar á porta da sala o vulto de Conceição. — Ainda não foi? perguntou ella. — Não fui; parece que ainda não é meia-noite. — Que paciência! Conceição entrou na sala, arrastando as chinellinhas da alcova. Vestia um roupão branco mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romantica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ella foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza: — Não! qual! Acordei por acordar. Fitei-a um pouco e duvidei da affirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no somno. Essa observação, porém, que Valeria alguma cousa em outro espirito, depressa a botei fóra, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não affligir ou aborrecer. Já disse que ella era boa, muito boa. — Mas a hora já hade estar próxima, disse eu. — Que paciência a sua de esperar acordado, emquanto o visinho dorme! E esperar sosinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu. — Quando ouvi os passos extranhei; mas a senhora appareceu logo. — Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros. — Justamente: é muito bonito. — Gosta de romances? — Gosto. — Já leu a Moreninha? — Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba. — Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido? Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as palpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a lingua pelos beiços, para humedecel-os. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre elles pousar o queixo, tendo os cotovellos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos. — Talvez esteja aborrecida, pensei eu. E logo alto: — D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu... — Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relogio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia? — Já tenho feito isso. — Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, beide passar pelo somno. Mas também estou ficando velha. — Que velha o quê, D. Conceição? Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as attitudes tranquillas; agora, porem, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janella da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distincta como naquella noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posição de algum objecto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o circulo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver esperar accordado; eu repeti-lhe o que ella sabia, isto é, que nunca ouvira missa do gallo na Corte, e não queria perdel-a. — E a mesma missa da roça; todas as missas se parecem. — Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo Antonio... Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovellos no mármore da mesa e mettera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas, cairam naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam suppor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse commum; naquelle momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azues, que apezar da pouca claridade, podia contal-as do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras cousas que me iam vindo á bocca. Falava emendando os assumptos, sem saber porquê, variando delles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazel-a sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos eguaesinhos. Os olhos della não eram bem negros, mas escuros; o nariz, secco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ella reprimia-me: — Mais baixo! mamãe póde accordar. E não saía daquella posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichavamos os dous, eu mais que ella, porque falava mais; ella, ás vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cançou; trocou de attitude e de lugar. Deu volta á mesa e veiu sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinellas; mas foi só o tempo que ella gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho: — Mamãe está longe, mas tem o somno muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no somno. — Eu também sou assim. — O que? perguntou ella inclinando o corpo para ouvir melhor. Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ella tinha o somno leve; éramos tres somnos leves. — Ha occasiões em que sou como mamãe; acordando, custa-me dormir outra vez, rólo na cama, á toa, levanto-me, accendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada. — Foi o que lhe aconteceu hoje. — Não, não, atalhou ella. Não entendi a negativa; ella póde ser que tambem não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com ellas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma historia de sonhos, e affirmou-me que só tivera um pesadelo, em creança. Quiz saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ella inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me: — Mais baixo, mais baixo... Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem somno nem fadiga, como se ella os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Ha impressões dessa noite, que me apparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa occasião, ella, que era apenas sympathica, ficou linda, ficou lindissima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ella, quiz levantar-me; não consentiu, poz uma das mãos no meu hombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dalli relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede. — Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros. Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negocio deste homem. Um representava « Cleopatra »; não me recordo o assumpto do outro, mas eram mulheres, vulgares ambos; naquelle tempo não me pareciam feios. — São bonitos, disse eu. — Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro. — De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro. — Mas imagino que os freguezes, em quanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista delles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho proprio. É o que eu penso; mas eu penso muita cousa assim exquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de esculptura, não se póde pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratorio. A ideia do oratorio trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quiz dizel-o. Penso que cheguei a abrir a hocca, mas logo a fechei para ouvir o que ella contava, com doçura, com graça, com tal molleza que trazia preguiça á minha alma e fazia esquecer a missa e a egreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anecdotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quasi sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negocios da casa, das canceiras de familia, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete annos. Já agora não trocava de lugar, como a principio, e quasi não saira da mesma attitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar á toa para as paredes. — Precisamos mudar o papel da sala, disse dahi a pouco, como se falasse comsigo. Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da especie de somno magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos della, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silencio era completo. Chegamos a ficar por algum tempo, — não posso dizer quanto, — inteiramente calados. O rumor unico e escasso, era um roer de comondongo no gabinete, que me acordou daquella especie de somnolencia; quiz falar delle, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janella, do lado de fóra, e uma voz que bradava: « Missa do gallo! missa do gallo! » — Ahi está o companheiro, disse ella levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordal-o, elle é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus. — Já serão horas? perguntei. — Naturalmente. — Missa do gallo! repetiram de fóra, batendo. — Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã. E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pizando mansinho. Saí á rua e achei o visinho que esperava. Guiamos dalli para a egreja. Durante a missa, a ligeira de Conceição interpoz-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto á conta dos meus desesete annos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do gallo e da gente que estava na egreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da vespera. Pelo [Anno-Bom] fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido. IDEIAS DE CANARIO Um homem dado a estudos de ornithologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu credito. Alguns chegam a suppor que Macedo virou o juizo. Eis aqui o resumo da narração. No principio do mez passado, — disse elle, indo por uma rua, succedeu que um tilbury a disparada, quasi me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de uma loja de belchior. Nem o estrepito do cavallo e do vehiculo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negocio, que cochilava ao fundo, sentado n’uma cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba côr de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava delle nenhuma historia, como podiam ter alguns dos objectos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas. A loja era escura, atulhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panellas sem tampa, tampas sem panella, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéos de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinellas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de velludo, dous cabides, um bodoque, um thermometro, cadeiras, um retrato lithografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas immediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, commodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão. Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vasia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais, abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio d’aquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume. — Quem seria o dono execrável d’este bichinho, que teve animo de se desfazer d’elle por alguns pares de nickeis? Ou que mão indifferente não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniella? E o canario, quedando-se em cima do poleiro, trillou isto: — Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juizo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo... — Como? interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemiterio, como um raio de sol? — Não sei que seja sol nem cemiterio. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que confundes. — Perdão, mas tu não vieste para aqui á toa sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquelle homem que alli está sentado. — Que dono? Esse homem que ahi está é meu creado, dá-me agua e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, nao seria com pouco; mas os canarios não pagam creados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canarios, seria extravagante que elles pagassem o que está no mundo. Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trillos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e húmida. O canario, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito... — Mas caro homem, trillou o canario, que quer dizer espaço azul e infinito? — Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo? — O mundo, redarguiu o canario com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prégo; o canario é senhor da gaiola que habita e a loja que o cerca. Fora dahi, tudo é illusão e mentira. Nisto acordou o velho, e veiu a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canario, indaguei se o adquirira, como o resto dos objectos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma collecção de navalhas. — As navalhas estão em muito bom uso, concluiu elle. — Quero só o canario. Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a puzessem na varanda da minha casa, d’onde o passarinho podia vêr o jardim, repuxo e um pouco do ceu azul. Era meu intuito fazer um longo estudo do phenomeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alphabetar a lingua do canario, por estudar-lhe a estructura, as relações com a musica, os sentimentos estheticos do bicho, as suas ideias e reminiscências. Feita essa analyse philologica e psychologica, entrei propriamente na historia dos canarios, na origem delles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se elle tinha conhecimento da navegação, etc. Conversavamos longas horas, eu escrevendo as notas, elle esperando, saltando, trillando. Não tendo mais familia que dous criados, ordenava-lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegramma urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas occupações scientificas, acharam natural a ordem, e, não suspeitaram que o canario e eu nos entendiamos. Não é mister dizer que dormia pouco, accordava duas e tres vezes por noite, passeava á toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, accrescentar, emendar. Rectifiquei mais de uma observação, — ou por havel-a entendido mal, ou porque elle não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma dellas. Tres semanas depois da entrada do canario em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo. — O mundo, respondeu elle, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma gramma, ar claro e um pouco de azul por cima: o canario, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, d’onde mira o resto. Tudo o mais é illusão e mentira. Também a linguagem soffreu algumas rectificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias. Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Historico e ás universidades allemaes, não porque faltasse materia, mas para accumular primeiro todas as observações e ratifical-as. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quiz saber de amigos nem parentes, todo eu era canario. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e por-lhe agua e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo scientifico. Também o serviço era o mais summario do mundo; o creado não era amador de passaros. Um sabbado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doiam-me. O medico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canario, estando o creado a tratar d’elle, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o creado; a indignação suffocou-me, cai na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto... — Mas não o procuraram? — Procuramos, sim, senhor; a principio trepou ao telhado, trepei também, elle fugiu, foi para uma arvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde hontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada. Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair á varanda e ao jardim. Nem sombra de canario. Indaguei, corri, annunciei, e nada. Tinha ja recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me succedeu visitar um amigo, que occupa uma das mais bellas e grandes chacaras dos arrabaldes. Passeiavamos n’ella antes de jantar, quando ouvi trillar esta pergunta: — Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desappareceu? Era o canario; estava no galho de uma arvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doudo; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canario com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquelle nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular... — Que jardim? que repuxo? — O mundo, meu querido. — Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solemnemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima. Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe désse credito, o mundo era tudo; até já fóra uma loja de belchior... — De belchior? trillou elle ás bandeiras despregadas. Mas ha mesmo lojas de belchior? LAGRIMAS DE XERXES Supponhamos (tudo é de suppor) que Julieta e Romeo, antes que Frei Lourenço os casasse, travavam com elle este dialogo curioso: Julieta. — Uma só pessoa? Frei Lourenço. — Sim, filha, e, logo que eu houver leito de vós ambos uma só pessoa, nenhum outro poder vos desligará mais. Andai, andai, vamos ao altar, que estão accendendo as velas... (Saem da cella e vão pelo corredor.) Romeo. — Para que velas? Abençoai-nos aqui mesmo. (Pára diante de uma janella.) Para que altar e velas? O céu é o altar: não tarda que a mão dos anjos accenda alli as eternas estrellas; mas, ainda sem ellas, o altar é este. A igreja está aberta; podem descobrir-nos. Eia, abençoai-nos aqui mesmo. Frei Lourenço. — Não, vamos para a igreja; d’aqui a pouco estará tudo prompto. Curvarás a cabeça, filha minha, para que olhos extranhos, se alguns houver, ruão cheguem a reconhecer-te... Romeo. — Vã dissimulação; não ha, em toda Verona, um talhe igual ao da minha bella Julieta, nenhuma outra dama chegaria a dar a mesma impressão que esta. Que impede que seja aqui? O altar não é mais que o céu. Frei Lourenço. — Mais efficaz que o céu. Romeo. — Como? Frei Lourenço. — Tudo o que elle abençoa perdura. As velas que lá verás arder hão de acabar antes dos noivos e do padre que os vai ligar; tenho-as visto morrer infinitas; mas as estrellas... Romeo. — Que tem? arderão ainda, nem alli nasceram senão para dar ao céu a mesma graça da terra. Sim, minha divina Julieta, a via-lactea é como o pó luminoso dos teus pensamentos; todas as pedrarias e claridades altas e remotas, tudo isso está aqui; perto e resumido na tua pessoa, porque a lua placida imita a tua indulgência, e Venus, quando scintilla, é com os fogos da tua imaginação. Aqui mesmo, padre. Que outra formalidade nos pedes tu? Nenhuma formalidade exterior, nenhum consentimento alheio. Nada mais que amor e vontade. O odio de outros separa-nos, mas o nosso amor conjuga-nos. Frei Lourenço. — Para sempre. Julieta. — Conjuga-nos, e para sempre. Que mais então? Vai a tua mão fazer com que parem todas as horas de uma vez. Em vão o sol passará de um céu a outro céu, e tornará a vir e tornará a ir, não levará comsigo o tempo que fica a nossos pés como um tigre domado. Monge amigo, repele essa palavra amiga. Frei Lourenço. — Para sempre. Julieta. — Para sempre! amor eterno! eterna vida! Juro-vos que não entendo outra lingua senão essa. Juro-vos que não entendo a lingua de minha mãe. Frei Lourenço. — Pode ser que tua mãe não entendesse a lingua da mãi d’ella. A vida é uma Babel, filha; cada um de nós vale por uma nação. Romeo. — Não aqui, padre; ella e eu somos duas provincias da mesma linguagem, que nos alliamos para dizer as mesmas orações, com o mesmo alphabeto e um só sentido. Nem ha outro sentido que tenha algum valor na terra. Agora, quem nos ensinou essa linguagem divina não o sei eu nem ella; foi talvez alguma estrella... Olhai, pode ser que fosse aquella primeira que começa a scintillar no espaço. Julieta. — Que mão celeste a terá accendido? Raphael, talvez, ou tu, amado Romeo. Magnifica estrella, serás a estrella na minha vida, tu, que marcas a hora do meu consorcio. Que nome tem ella, padre? Frei Lourenço. — Não sei de astronomias, filha. Julieta. — Has de saber por força. Tu conheces as lettras divinas e humanas, as proprias hervas do chão, as que matam e as que curam... Dize, dize... Frei Lourenço. — Eva eterna! Julieta. — Dize o nome d’essa tocha celeste, que vai allumiar as minhas bodas, e casai-nos aqui mesmo. Os astros valem mais que as tochas da terra. Frei Lourenço. — Valem menos. Que nome tem aquelle? Não sei. A minha astronomia não é como as dos outros homens. (Depois de alguns instantes de reflexão.) Eu sei o que me contaram os ventos, que andam cá e lá, abaixo e acima, de um tempo a outro tempo, e sabem muito, porque são testemunhas de tudo. A dispersão não lhes tira a unidade, nem a inquietação a constância. Romeo. — E que vos disseram elles? Frei Lourenço. — Cousas duras. Herodoto conta que Xerxes um dia chorou; mas não conta mais nada. Os ventos é que me disseram o resto, porque elles lá estavam ao pé do capitão, e recolheram tudo… Escutai; ahi começam elles a agitar-se; ouviram-nos falar e murmuram... Uivai, amigos ventos, uivai como nos jovens dias das Termopylas. Romeu. — Mas que te disseram elles? Contai, contai depressa. Julieta. — Fala a gosto, nós te esperaremos. Frei Lourenço. — Gentil creatura, aprende cora ella, filho, aprende a tolerar as demasias de um velho lunático. O que é que me disseram? Melhor fora não repetil-o; mas, se teimais em que vos case aqui mesmo, ao clarão das estrellas, dir-vos-hei a origem d’aquella, que parece governar todas as outras... Vamos, ainda é tempo, o altar espera-nos... Não? teimosos que sois... Contar-vos hei o que me disseram os ventos, que lá estavam em torno de Xerxes, quando este vinha destruir a Hellade com tropas innumeraveis. As tropas marchavam diante d’elle, a poder de chicote, porque esse homem crú amava particularmente o chicote e empregava-o a miudo, sem hesitação nem remorso. O proprio mar, quando ousou destruir a ponte que elle mandara construir, recebeu em castigo trezentas chicotadas. Era justo; mas para não ser sómente justo, para ser também abominável, Xerxes ordenou que decapitassem a todos os que tinham construido a ponte e não souberam fazel-a imperecivel. Chicote e espada; pancada e sangue. Julieta. — Oh! abominável! Frei Lourenço. — Abominável, mas forte. Força vale alguma cousa; a prova é que o mar acabou aceitando o jugo do grande persa. Ora, um dia, á margem do Hellesponto, curioso de contemplar as tropas que alli ajuntara, no mar e em terra, Xerxes trepou a um alto morro feitiço, donde espalhou as vistas para todos os lados. Calculai o orgulho que elle sentiu? Viu alli gente infinita, o melhor leite mugido á vacca asiatica, centenas de milhares ao pé de centenas de milhares, varias armas, povos diversos, cores e vestiduras differentes, mescladas, baralhadas, flexa e gladio, tiara e capacete, pelle de cabra, pelle de cavallo, pelle de panthera, uma algazarra infinita de cousas. Viu e riu; farejava a victoria. Que outro poder viria contrastal-o? Sentia-se indestructivel. E ficou o a rir e a olhar com longos olhos ávidos e felizes, olhos de noivado, como os teus, moço amigo... Romeo. — Comparação falsa. O maior déspota do universo é um miserável escravo, se não governa os mais bellos olhos femininos de Verona. E a prova é que, a despeito do poder, chorou. Frei Lourenço. — Chorou, é certo, logo depois, tão depressa acabára de rir. A cara embruscou-se-lhe de repente, e as lagrimas saltaram-lhe grossas e irreprimiveis. Um tio do guerreiro, que alli estava, interrogou-o espantado; elle respondeu melancolicamente que chorava, considerando que de tantos milhares e milhares de homens que alli tinha diante á de si, e as suas ordens, não existiria um só ao cabo de um século. Até aqui Heródoto; escutai agora os ventos. Os ventos ficaram attonitos. Estavam justamente perguntando uns aos outros se esse homem feito de ufania e rispidez teria nunca chorado em sua vida, e concluiam que não, que era impossivel, que elle não conhecia mais que injustiça e crueldade, não a compaixao. E era a compaixão que alli vinha lacrimosa, era ella que soluçava na garganta do tyranno... Então elles rugiram de assombro; depois é pegaram das lagrimas de Xerxes... Que farias tu d’ellas? Romeo. - Seccal-as-hia, para que a piedade humana não ficasse deshonrada. Frei Lourenço. — Não fizeram isso: pegaram das lagrimas todas e deitaram a voar pelo espaço fóra, bradando às constellações: Aqui estão! olhai! olhai! aqui estão os primeiros diamantes da alma barbara! Todo o firmamento ficou alvoroçado; póde crer-se que, por um instante, a marcha das cousas parou. Nenhum astro queria acabar de crer nos ventos. Xerxes! Lagrimas de Xerxes eram impossiveis; tal planta não dava em tal rochedo. Mas alli estavam ellas; elles as mostravam, contando a sua curiosa historia, o riso que servira de concha a essas pérolas as palavras delle, e as constellações não tiveram remedio, e creram finalmente que o duro Xerxes houvesse chorado. Os planetas miraram longo tempo essas lagrimas inverosimeis; não havia negar que traziam o amargo da dor e o travo da melancolia. E quando pensaram que o coração que as brotara de si tinha particular amor ao estalido do chicote, deitaram um olhar obliquo á terra, como perguntando de que contradicções era ella feita. Um delles disse aos ventos que devolvessem as lagrimas ao barbaro, para que as engolisse; mas os ventos responderam que não e detiveram-se para deliberar. Não cuideis que só os homens dissentem uns dos outros. Julieta. — Também os ventos? Frei Lourenço. — Também elles. O aquilão queria convertel-as em tempestades do mundo, violentas e destruidoras, como o homem que as gerára; mas os outros ventos não aceitaram a ideia. As tempestades passam ligeiras; elles queriam alguma cousa que tivesse perennidade, um rio, por exemplo, ou um mar novo; mas não combinaram nada e foram ter com o sol e a lua. Tu conheces a lua, filha. Romeo. — A lua é ella mesma; uma e outra são a placida imagem da indulgência e do carinho; é o que ou te disse ha pouco, meu bom confessor. Julieta. — Não, não creias nada do que elle disser, freire amigo; a lua é a minha rival, é a rival que allumia de longe o hello rosto do galhardo Romeo, que lhe dá um resplendor de opala, á noite, quando elle vem pela rua... Frei Lourenço. — Terão ambos razão. A lua e Julieta podem ser a mesma pessoa, e é por isso que querem o mesmo homem. Mas, se a lua és tu, filha, deves saber o que ella disse ao vento. Julieta . — Nada, não me lembra nada. Frei Lourenço. — Os ventos foram ter com ella, perguntaram-lhe o que fariam das lagrimas de Xerxes e a resposta foi a mais piedosa do mundo. Crystalisemos essas lagrimas, disse a lua, e façamos dellas uma estrella que brilhe por todos os séculos, com a claridade da compaixão, e onde vão residir todos e aquelles que deixarem a terra, para achar alli a perpetuidade que lhes escapou. Julieta. — Sim, eu diria a mesma cousa, (olhando pela janella). Lume eterno, berço de renovação, mundo do amor continuado e infinito, estavamos ouvindo a tua bella historia. Frei Lourenço. — Não, não, não. Julieta. — Não? Frei Lourenço. — Não, porque os ventos foram também ao sol, e tu que conheces a lua, não conheces o sol, amiga minha. Os ventos levaram-lhe as lagrimas, contaram a origem d’ellas e o conselho do astro da noite, e falaram da belleza que teria essa estrella nova e especial. O sol ouviu-os e redarguiu que sim, que crystalisassem as lagrimas e fizessem d’ellas uma estrella; mas nem tal como o pedia a lua, nem para igual fim. lla de ser eterna e brilhante, disse elle, mas para a compaixão basta a mesma lua com a sua enjoada e dulcissima poesia. Não; essa estrella feita das lagrimas que a brevidade da vida arrancou um dia ao orgulho humano ficará pendente do céu como o astro da ironia, luzirá cá de cima sobre todas as multidões que passam, cuidando não acabar mais e sobre todas as cousas construidas fim desafio dos tempos. Onde as bodas cantarem a eternidade, ella fará descer um dos seus raios, lagrima de Xerxes, para escrever a palavra da extincção, breve, total, irremissivel. Toda epiphania receberá esta nota de sarcasmo. Não quero melancolias, que sao as rosas pallidas da lua e suas congeneres; — ironia, sim, uma dura bocca, gelada e sardonica... Romeo. — Como? Esse astro esplendido... Frei Lourenço. — Justamente, filho; e é por isso que o altar é melhor que o céu; no altar a benta vela arde depressa e morre ás nossas vistas. Julieta. — Conto de ventos! Frei Lourenço. — Não, não. Julieta. — Ou ruim sonho de lunático. Velho lunático disseste ha pouco; és isso mesmo. Vão sonho ruim, como os teus ventos, e o teu Xerxes, e as tuas lagrimas, e o teu sol, e toda essa dança de figuras imaginarias, Frei Lourenço. — Filha minha... Julieta. — Padre meu, que não sabes que ha, quando menos, uma cousa immortal, que é o meu amor, e ainda outra, que é o incomparável Romeo. Olha bem para elle; vê se ha aqui um soldado de Xerxes. Não, não, não. Viva o meu amado, que não, estava no Hellesponto, nem escutou os desvarios dos ventos nocturnos, como este frade, que é a um tempo amigo e inimigo. Sê só amigo, e casa-nos. Casa-nos onde quizeres, aqui ou alem, diante das velas ou debaixo das estrellas, sejam ellas de ironia ou de piedade; mas casa-nos, casa-nos, casa-nos... PAPEIS VELHOS Brotero é deputado. Entrou agora mesmo em casa, ás duas horas da noite, agitado, sombrio, respondendo mal ao moleque, que lhe pergunta se quer isto ou aquillo, e ordenando-lhe, finalmente, que o deixe só. Uma vez so, despe-se, enfia um chambre e vai estirar-se no canapé do gabinete com os olhos no tecto e o charuto na bocca. Não pensa tranquillamente; resmunga e estremece. Ao cabo de algum tempo senta-se; logo depois levanta-se, vai a uma janella, passeia, para no meio da sala, batendo com o pé no chão; emfim resolve ir dormir, entra no quarto, despe-se, mette-se na cama, rola inutilmente de um lado para outro, torna a vestir-se e volta para o gabinete. Mal se sentou outra vez no canapé, bateram très horas no relogio da casa. O silencio era profundo; e, como a divergência dos relogios é o principio fundamental da relojoaria, começaram todos os relogios da vizinhança a bater, com intervalos desiguaes, uma, duas, tres horas. Quando o espirito padece, a cousa mais indifferente do mundo traz uma intenção recôndita, um proposito do destino. Brotero começou a sentir esse outro genero de mortificação. As tres pancadas seccas, cortando o silencio da noite, pareciam-lhe as vozes do proprio tempo, que lhe bradava: Vai dormir. Emfim, cessaram; e elle pôde ruminar, resolver, e levantar-se, bradando: — Não há outro alvitre, é isto mesmo. Dito isso, foi á secretária, pegou da penna e de uma folha de papel, e escreveu esta carta ao presidente do conselho de ministros « Excellentissimo senhor, « Ha de parecer extranho a V. Ex. tudo o que vou dizer n’este papel; mas, por mais extranho que lhe pareça, e a mim também, ha situações tão extraordinárias que só comportam soluções extraordinárias. Nao quero desabafar nas esquinas, na rua do Ouvidor, ou nos corredores da camara. Também não quero manifestar-me na tribuna, amanhã ou depois, quando V. Ex. for apresentar o programma do seu ministério; seria digno, mas seria aceitar a complicidade de uma ordem de cousas, que inteiramente repudio. Tenha um só alvitre: renunciar a cadeira de deputado e voltar á vida intima. « Não sei se, ainda assim, V. Ex. me chamará despeitado. Se o fizer, creio que terá razão. Mas rogo-lhe que advirta que ha duas qualidades de despeito, e o meu é da melhor. « Não pense V. Ex. que recuo diante de certas deputações influentes, nem que me senti ferido pelas intrigas do A... e por tudo o que fez o B... para metter o C... no ministério. Tudo isso são cousas minimas. A questão para mim é de lealdade, já não digo politica, mas pessoal; a questão é com V. Ex. Foi V. Ex. que me obrigou a romper com o ministerio dissolvido, mais cedo do que era minha intenção, e, talvez, mais cedo do que convinha ao partido. Foi V. Ex. que, uma vez, em casa do Z... me disse, a uma janella, que os meus estudos de questões diplomáticas me indicavam naturalmente a pasta de estrangeiros. Ha de lembrar-se que lhe respondi então ser para mim subir indifferente ao ministério, uma vez que servisse ao meu paiz. V. Ex. replicou: — É muito bonito, mas os bons talentos querem-se no ministério. « Na camara, já pela posição que fui adquirindo, já pelas distincções especiaes de que era objecto, dizia-se, acreditava-se que eu seria ministro na primeira occasião; e, ao ser chamado V. Ex. hontem para organisar o novo gabinete, não se jurou outra cousa. As combinações variavam, mas o meu nome figurava em todas ellas. É que ninguém ignorava as finezas de V. Ex. para commigo, os bilhetes em que me louvava, os seus reiterados convites, etc. Confesso a V. Ex. que acompanhei a opinião geral. « A opinião enganou-se, eu enganei-me; o ministerio está organisado sem mim. Considero esta exclusão um desdouro irreparável, e determinei deixam a cadeira de deputado a algum mais capaz, e, principalmente, mais docil. Não será difficil a V. Ex. achal-o entre os seus numerosos admiradores. Sou com elevada estima e consideração. De V. Ex. desobrigado amigo, Brotero. » Os verdadeiros politicos dirão que esta carta é só verosimil no despeito, e inverosimil na resolução. Mas os verdadeiros politicos ignoram duas cousas, penso eu. Ignoram Boileau, que nos adverte da possivel inverosimilliança da verdade, em matérias de arte, e a politica, segundo a definiu um padre da nossa lingua, e a arte das artes; e ignoram que um outro golpe feria a alma do Brotero n’aquella occasião. Se a exclusão do ministério não bastava a explicara renuncia da cadeira, outra perda a ajudava. Já tem noticia do desastre politico; sabem que houve crise ministerial, que o conselheiro recebeu do Imperador o encargo de organisar um gabinete, e que a diligencia de um certo B... conseguiu metter n’elle um certo G... A pasta d’este foi justamente a de estrangeiros; e o fim secreto da diligencia era dar um logar na galeria do Estado á viuva Pedroso. Esta senhora, não menos gentil que abastada, elegera dias antes para seu marido o recente ministro. Tudo isso iria menos mal, se o Brotero não cobiçasse ambas as fortunas, a pasta e a viuva; mas, cobiçal-as, cortejal-as e perdel-as, sem que ao menos uma viesse consolal-o da perda da outra, digam-me francamente se não era bastante a explicar a renuncia do nosso amigo? Brotero releu a carta, dobrou-a, encapou-a, sobrescriptou-a; depois atirou-a a um lado, para remettel-a no dia seguinte. O destino lançára os dados. Cesar transpunha o Rubicon, mas em sentido inverso. Que fique Roma com os seus novos cônsules e patricias ricas e volúveis! Elle volve á região dos obscuros; não quer gastar o aço em pelejas de apparato, sem utilidade nem grandeza. Reclinou-se na cadeira e fechou o rosto na mão. Tinha os olhos vermelhos quando se levantou; e levantou-se, porque ouviu bater quatro horas, e recomeçar a procissão dos relogios, a cruel e implicante monotonia das pêndulas. Uma, duas, tres, quatro... Não tinha somno; não tentou sequer metter-se na cama. Entrou a andar de um lado para outro, passeando, planeando, relembrando. De memória em memória, reconstruiu as illusões de outro tempo, comparou-as com as sensações de hoje, e achou-se roubado. Voluptuoso até na dôr, mirou afincadamente essas illusões perdidas, como uma velha contempla as suas photographias da mocidade. Lembrou-se de um amigo que lhe dizia que, em todas as difficuldades da vida, olhasse para o futuro. Que futuro? Elle nao via nada. E foi-se achegando da secretária, onde tinha guardadas as cartas dos amigos, dos amores, dos co-religionarios politicos, todas as cartas. Já agora não podia conciliar o somno; ia reler esses papeis velhos. Não se reléem livros antigos? Abriu a gaveta; tirou dois ou tres maços e desatou-os. Muitas das cartas estavam encardidas do tempo. Posto nem todos os signatários houvessem morrido, o aspecto geral era de cemiterio; d’onde se pode inferir que, em certo sentido, estavam mortos e enterrados. E elle começou a relel-as, uma a uma, as de dez paginas e os simples bilhetes, mergulhando n’esse mar morto de recordações apagadas, negocios pessoaes ou públicos, um expectaculo, um baile, dinheiro emprestado, uma intriga, um livro novo, um discurso, uma tolice, uma confidencia amorosa. Uma das cartas, assignada Vasconcellos, fel-o estremecer: « A L... a, dizia a carta, chegou a S. Paulo, ante-hontem. Custou-me muito e muito obter as tuas cartas, mas alcancei-as, e d’aqui a uma semana estarão comtigo; levo-as eu mesmo. Quanto ao que me dizes na tua de H... estimo que tenhas perdido a tal ideia funebre; era um desproposito. Conversaremos á vista. » Esse simples trecho trouxe-lhe uma penca de lembranças. Brotero atirou-se a ler todas as cartas do Vasconcellos. Era um companheiro dos primeiros annos, que n’aquelle tempo cursava a academia, e agora estava de presidente no Piauhy. Uma das cartas, muito anterior áquella, dizia-lhe: « Com que então a L... a, agarrou-te deveras? Não faz mal; é boa moça e socegada. E bonita, maganão! Quanto ao que me dizes do Chico Souza, não acho que devas ter nenhum escrupulo; vocês não são amigos; dão-se. E depois, não ha adultério. Elle devia saber que quem edifica em terreno devoluto... » Treze dias depois: « Está bom, retiro a expressão terreno devoluto; direi terreno que, por direito divino, humano e diabolico, pertence ao meu amigo Brotero. Estás satisfeito? » Outra, no fim de duas semanas: « Dou-te a minha palavra de honra que não ha no que disse a menor falta de respeito aos teus sentimentos; gracejei, por suppor que a tua paixão não era tão seria. O dito por não dito. Custa pouco mudar de estylo, e custa muito perder um amigo, como tu...» Quatro ou cinco cartas referiam-se ás suas effusoes amorosas. N’esse intervallo, o Chico Souza farejou a aventura e deixou a L.... a; e o nosso amigo narrou o lance ao Vasconcellos, contente de a possuir sosinho. O Vasconcellos felicitou-o, mas fez-lhe um reparo. « ...Acho-te exigente e transcendente. A cousa mais natural do mundo é que essa moça, perdendo um homem a quem devia attenções e que lhe dera certo relevo, recebesse com alguma dòr o golpe. Saudade, infidelidade, dizes tu. Realmente, é demais. Isso não prova senão que ella sabe ser grata aos benefícios recebidos. Quanto á ordem que lhe déste de não ficar com um só traste, uma só cadeira, um pente, nada do que foi do outro, acho que não a entendi bem. Dizes-me que o fizeste por um sentimento de dignidade; acredito. Mas não será também um pouco de ciume retrospectivo? Creio que sim. Se a saudade é uma infidelidade, o leque é um beijo; e tu não queres beijos nem saudades em casa. São maneiras de ver... » Brotero ia assim relendo a aventura, um capitulo inteiro da vida, não muito longo, é verdade, mas callido e vivo. As cartas abrangiam um periodo de dez mezes; desde o sexto mez começaram os arrufos, as crises, as ameaças de separação. Elle era ciumento; ella professava o aphorismo de que o ciume significa falta de confiança; chegava mesmo a repetir esta sentença vulgar e enigmática: « zelos, sim, ciúmes, nunca. » E dava de hombros, quando o amante mostrava uma suspeita qualquer, ou lhe fazia alguma exigencia. Então elle excedia-se; e ahi vinham as scenas de irritação, de reproches, de ameaças, e por fim de lagrimas. Brotero ás vezes deixava a casa, jurando não voltar mais; e voltava logo no dia seguinte, contricto e manso. Vasconcellos reprima-o de longe; e, em relação ás deixada e tornadas, dizia-lhe uma vez: « Má politica, Brotero; ou lê o livro até o fim, ou fecha-o de uma vez; abril-o e fechal-o, fechal-o e abril-o, é máu, porque traz sempre a necessidade de reler o capitulo anterior para ligar o sentido, e livros relidos sao livros eternos. » A isto respondia o Brotero que sim, que elle tinha razão, que ia emendar-se de uma vez, tanto mais que agora viviam como os anjos no céu. Os anjos dissolveram a sociedade. Parece que o anjo L...a, exhausto da perpetua antiphona, ouviu cantar Daphnis e Chloé, cá em baixo, e desceu a ver o que é que podiam dizer tão melodiosamente as duas creaturas. Daphnis vestia então uma casaca e uma commenda, administrava um banco, e pintava-se; o anjo repetiu-lhe a licção de Chloé; adivinha-se o resto. As cartas de Vasconcellos neste periodo eram de consolação e philosophia. Brotero lembrou-se de tudo o que padeceu, das imprudências que praticou, dos desvarios que lhe trouxe aquella evasão de uma mulher, que realmente o tinha nas mãos. Tudo empregára para rehavel-a e tudo falhára. Quiz ver as cartas que ibe escreveu por esse tempo, e que o Vasconcellos, mais tarde, póde alcançar d’ella em S. Paulo e foi á gaveta onde as guardára com as outras. Era um maço atado com fita preta. Brotero sorriu da fita preta; deslaçou o maço e abriu as cartas. Não saltou nada, data ou virgula; leu tudo, explicações, imprecações, supplicas, promessas de amor e paz, uma phraseologia incoerente e humilhante. Nada faltava a essas cartas; lá estava o infinito, o abysmo, o eterno. Um dos eternos, escripto na dobra do papel, não se chegava a lêr, mas suppunha-se. A phrase era esta: « Um só minuto do teu amor, e estou prompto a padecer um supplicio et... » Uma traça bifara o resto da palavra; comeu o eterno e deixou o minuto. Não se póde saber a que attribuir essa preferencia, se á voracidade, se á philosophia das traças. A primeira causa é mais provável; ninguém ignora que as traças comem muito. A ultima carta falava de suicidio. Brotero, ao reler esse topico, sentiu uma cousa indefinivel; chamemos-lhe o « calafrio do ridículo evitado. » Realmente se elle se houvesse eliminado, não teria o presente desgosto politico e pessoal; mas o que não diriam d’elle nos pasmatorios da rua do Ouvidor, nas conversações á mesa? Viria tudo á rua, viria mais alguma cousa; chamar-lhe-iam frouxo, insensato, libidinoso, e depois falariam de outro assumpto, uma opera, por exemplo. — Uma, duas, tres, quatro, cinco, principiaram a dizer os relogios. Brotero recolheu as cartas, fechou-as uma a uma, ammaçou-as, atou-as o metteu-as na gaveta. Emquanto fazia esse trabalho, e ainda alguns minutos depois, deu-se a um esforço interessante: rehaver a sensação perdida. Tinha recomposto mentalmente episodio, queria agora recompol-o cordialmente; e o fim nao era outro senão cotejar o effeito e a causa saber, e se a ideia do suicídio tinha sido um producto natural da crise. Logicamente, assim era; mas Brotero não queria julgar atravéz do raciocínio e sim da sensação. Imaginai um soldado a quem uma bala levasse o nariz, e que, acabada a batalha, fosse procurar no campo o desgraçado appendice. Supponhamos que o dia entre um grupo de braços e pernas; pega d’elle, levanta-o entre os dedos, — mira-o, examina-o, é seu proprio... Mas é um nariz ou um cadaver de nariz? Se o dono lhe puzer diante os mais finos perfumes da Arabia, receberá em si mesmo a sensação do aroma? Não: esse cadaver de nariz nunca mais lhe transmittirá nenhum cheiro bom ou máu; póde leval-o para casa, reserval-o, embalsamal-o; é o mesmo. A propria acção de assoar o nariz, embora elle a veja e comprehenda nos outros, nunca mais ha de podel-a comprehender em si, não chegará a reconhecer que effeito lhe causava o contacto a ponta do nariz com o lenço. Racionalmente, sabe o que é; sensorialmente, não saberá mais nada. — Nunca mais? pensou o Brotero... Nunca mais poderei... Não podendo obter a sensação extinta, cogitou se não aconteceria o mesmo á sensação presente, isto é, se a crise política e pessoal, tão dura de roer agora, não teria algum dia tanto valor como os velhos diários, em que se houvesse dado a noticia do novo gabinete e do casamento da viuva. Brotero acreditou que sim. Já então a arraiada vinha clareando o céo. Brotero ergueu-se; pegou da carta que escrevera ao presidente do conselho, e chegou-a vela; mas recuou a tempo. — Não, disse elle comsigo; juntemol-a aos outros papeis velhos; inda ha de ser um nariz cortado. A ESTATUA DE JOSÉ DE ALENCAR DISCURSO PROFERIDO NA CEREMONIA DO LANÇAMENTO DA PRIMEIRA PEDRA DA ESTATUA DE JOSÉ DE ALENCAR Senhores, Tenho ainda presente a eça em que, por algumas horas ultimas, pousou o corpo de José de Alencar. Creio que jamais o expectaculo da morte me fez tão singular impressão. Quando entrei na adolescência, fulgiam os primeiros raios daquelle grande engenho; vi-os depois em tanta copia e com tal esplendor que eram já um sol, quando entrei na mocidade. Gonçalves Dias e os homens do seu tempo estavam feitos; Alvares de Azevedo, cujo livro era a boa-nova dos poetas, fallecera antes de revelado ao mundo. Todos elles influiam profundamente no animo juvenil que apenas balbuciava alguma cousa; mas a acção crescente de Alencar dominava as outras. A sensação que recebi no primeiro encontro pessoal com elle foi extraordinária; creio ainda agora que não lhe disse nada, contentando-me de fital-o com os olhos assombrados do menino Heine ao ver passar Napoleão. A fascinação não diminuiu como trato do homem e do artista. D’ahi o espanto da morte. Não podia crer que o autor de tanta vida: estivesse alli, dentro de um feretro, mudo e inhabil por todos os tempos dos tempos. Mas o mysterio e a realidade impunham-se; não havia mais que enterral-o e ir conversal-o em seus livros. Hoje, senhores, assistimos ao inicio de outro monumento, este agora de vida, destinado a dar á cidade, á patria e ao mundo a imagem d’aquelle que um dia acompanhamos ao cemiterio. Volveram annos; volveram cousas; mas a consciência humana diz-nos que, no meio das obras e dos tempos fugidios, subsiste a flor da poesia, ao passo que a consciência nacional nos mostra na pessoa do grande escriptor o robusto e vivaz representante da litteratura brasileira. Não é aqui o lugar adequado á narração da carreira do autor de Iracema. Todos vós sabeis que foi rapida, brilhante e cheia; podemos dizer que elle saiu da Academia para a celebridade. Quem o lê agora, em dias e horas de escolha, e nos livros que mais lhe aprazem, não tem ideia da fecundidade extraordinaria que revelou tão depressa entrou na vida. Desde logo poz mãos á chronica, ao romance, á critica e ao theatro, dando a todas essas formas do pensamento um cunho particular e desconhecido. No romance que foi a sua forma por excellencia, a primeira narrativa, curta e simples, mal se espaçou da segunda e da terceira. Em très sallos estava o Guarany diante de nós; e d’ahi veiu a successao crescente de força, de explendor, de variedade o espírito de Alencar percorreu as diversas partes de nossa terra, o norte e o sul, a cidade e o sertao, a mata e o pampa, fixando-as em suas paginas, compondo assim com as differenças da vida, das zonas e dos tempos a unidade nacional da sua obra. Nenhum escriptor teve em mais alto gráo a alma brasileira. E não é só porque houvesse tratado assumptos nossos. Há um modo de ver e de sentir, que dá a nota íntima da nacionalidade, independente da face externa das cousas. O mais francez dos trágicos franceses é Racine, que só fez falar a antigos. Schiller é sempre alemão, quando recompõe Filippe II e Joana d'Arc. O nosso Alencar juntava a esse dom a natureza dos assuntos, tirados da vida ambiente e da história local. Outros o fizeram também; mas a expressão do seu gênio era mais vigorosa e mais íntima. A imaginação, que sobrepujava nele o espírito de anallyse, dava a tudo o calor dos trópicos e as galas viçosas de nossa terra. O talento descriptivo, a riqueza, o mimo e a originalidade do estylo completavam a sua phisionomia litteraria. Não lembro aqui as letras políticas, os dias de governo e de tribuna. Toda essa parte de Alencar fica para a biographia. A glória contenta-se da outra parte. A política era incompatível com ele, alma solitária. A disciplina dos partidos e a natural sujeição dos homens às necessidades e interesses comuns não podiam ser acceitas a um espírito que, em outra esphera, dispunha da soberania e da liberdade. Primeiro em Athenas, era-lhe difficil ser segundo ou terceiro em Roma. Quando um illustre homem de Estado, respondendo a Alencar, já então apeado do Governo, comparou a carreira política à do soldado, que tem de passar pelos serviços ínfimos e ganhar os postos gradualmente, dando-se a si mesmo como exemplo dessa lei, usou de uma imagem feliz e verdadeira, mas inintelligível para o autor das Minas de Prata. Um ponto há que notar, entretanto, naquele curto estádio político. O autor do Gaúcho carecia das qualidades necessárias à tribuna, mas quis ser orador, e foi orador. Sabemos que se bateu galhardamente com muitas das primeiras vozes do parlamento Desenganado dos homens e das cousas, Alencar volveu de todo ás suas queridas lettras. As lettras sao boas amigas; não lhe fizeram esquecer inteiramente as amarguras, é certo; senti-lhe mais uma vez a alma enojada e abatida. Mas a arte que é a liberdade, era a força medicatriz do seu espírito. Emquanto a imaginação inventava, compunha e polia novas obras, a contemplação mental ia vencendo as tristezas do coração, e o misanthropo amava os homens. Agora que os annos vão passando sobre o obito do escriptor, é justo perpetual-o, pela mão do nosso illustre estatuario nacional. Concluindo o livro de Iracema, escreveu Alencar esta palavra melancólica « A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro, mas, não repetia já o mavioso nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra. » Senhores, a philosophia do livro não podia ser outra, mas a posteridade é aquella jandaia que não deixa o coqueiro, e que ao contraindo da que emmudeceu na novella, repete e repetirá o nome da linda tabajara e do seu immortal autor. Nem tudo passa sobre a terra. HENRIQUETA RENAN Um spartano, convidado a ouvir alguém que imitava o canto do rouxinol, respondeu friamente: Já ouvi o rouxinol. O mesmo dirás tu, se leste Henriqueta Renan, a quem quer que se proponha falar desta senhora que tamanha influência teve no autor da Vida de Jesus. A differença é que aqui ninguém te convida a ver imitar o inimitável. Renan e o proprio rouxinol; ninguém poderá dizer nada depois do estylo incomparável e da grande emoção daquellas paginas. Assim é que não venho contar o que leste ou podes ler nessa lingua unica, mas trazer sómente, com os subsidios posteriores, um esboço da amiga pia e discreta, intelligencia fina e culta, vontade forte e longa, capaz de esforços grandes para cumprir deveres altos, ainda que obscuros. Os renanistas da nossa terra são como todos os devotos de um espirito eminente, não lhe amam só os livros e actos públicos, mas tudo o que a elle se refere, seja goso intimo ou tristeza particular. De um sei eu, que talvez por vir também do seminário, é o mais absoluto de todos. Esse se estivesse agora na antiga Byblos, iria até á aldêa de Amschit, onde descançam os restos da irman querida do mestre. Sentar-se-ia ao pé das palmeiras para evocar a sombra daquella nobre creatura. A memória lhe traria novamente os passos de uma vida feita de sacrifício e de trabalho, começada em uma cidadesinha da Bretanha, continuada em Pariz, na Polonia e na Italia, e acabada no recanto modesto de um pedaço da Asia. A vida de Henriqueta Renan completa-se pelas cartas trocadas entre os dois irmãos, ella nos confins da Polonia, elle na provincia e em Paris. Destas me servirei principalmente. A impressão original do opusculo de Renan, feita em 1862, não foi divulgada: cem exemplares bastaram para recordar Henriqueta ás pessoas que a tinham conhecido. No prologo dos Souvenirs d'enfance et de jeunesse, Renan declara que não queria profanar a memória da irman juntando aquelle opusculo a este livro. « Inserindo essas paginas em um volume posto á venda, andaria tão mal como si levasse o retrato della a um leilão. » Não obstante, autorizou a reimpressão depois delle morto. A reimpressão fez-se integralmente em 1895, trazendo os retratos de ambos. Não imagines, se não viste o della, que é uma formosa creatura moça. Aos dezenove annos, segundo o irmão, fóra em extremo graciosa, de olhos meigos e mãos finissimas. O retrato representa uma senhora edosa, com a sua touca de folhos, atada debaixo do queixo, um vestido sem feitio; mas a doçura que elle tanto louva lá se lhe vê na gravura, copia da photographia. Conta o proprio irmão que, em 1830, voltando da Polonia, Henriqueta estava inteiramente mudada; trazia as rugas da velhice prematura, « não lhe restando da graça antiga mais que a deleitosa expressão de sua ineffavel bondade. » Camões, mestre em figuras poéticas, disse do Filho de Semele, que era nascido de duas mães, — e não dá o proprio nome de Baccho si não por allusão é áquelle que traz a perpetua mocidade no rosto. De Renan, eterno moço, se póde dizer egual cousa; mas aqui a imagem pagan e graciosa, não menos que atrevida, é uma austera e doce verdade, Henriqueta, mais velha que elle doze annos, dividiu com a mãe de ambos a maternidade do irmãosinho. « Uma das tuas mães », escreve-lhe ella em 28 de fevereiro de 1845, dia em que elle fazia vinte e dois annos. Já antes (carta de 30 de outubro de 1842) havia-lhe dito que era seu filho de adopção. Os primeiros tempos da infancia de Ernesto são deliciosos sem alegria, unicamente pela affeição reciproca, pela docilidade daquella moça, que deixava de ir ter com as amigas, para não affligir o pequeno que a queria só para si. Henriqueta é que o leva á egreja, agazalhadinho em sua capa, quando era inverno. Um dia, como o visse disfarçar envergonhado o casaquinho surrado pelo uso, não pode reter as lagrimas. Já então haviam perdido o pae, — naufrago ou suicida, — que não deixara de si mais que dividas e saudades. Um mez inteiro gastaram a esperar alguma noticia ou o cadaver. Parece que esses dramas são communs na costa bretan; lembrai-vos do pescador da Islandia e das angustias da pobre Maud, á espera que voltem Yann e o seu barco, e vendo que todos voltam, menos elles. — Já vieram todos os de Tréguier e Saint-Brieuc, diz á pobre Maud uma das mulheres que tambem iam esperar á praia. Tréguier é justamente a cidadesinha em que nasceu Renan. O navio do pae voltou, ao envez da Leopoldine de Yann, mas voltou sem o dono, e só depois de longos dias é que o cadaver foi arrojado á praia entre Saint-Brieuc e o cabo Fréhel. Os pormenores e o quadro são outros; da invenção de Loti resultou um livro; da realidade de 1828 nasceu e cresceu a nobre figura de Henriqueta. Ella enfrentou com o trabalho, disposta a resgatar as dividas do pae e acudir ás necessidades da familia. Rejeitou um casamento rico, unicamente pela condição que trazia de deixar os seus. Abriu uma escola, mas foi obrigada a fechal-a, e pouco depois aceitou emprego em uma pensão de meninas em Pariz. Renan diz que as suas estréas na capital foram horriveis, e pinta o contraste da provinciana, e particularmente da bretan, com aquelle mundo novo para ella, feito de «sequidão, de frieza e de charlatanismo.» Henriqueta aceitou a direcçcão de outro collegio, onde trabalhou descommunalmente sem prosperidade, mas onde fez crescer a sua propria instrucção, que chegou a ser excepcional; é a palavra do irmão. Este viera então a Pariz, a chamado delle, para entrar no seminário dirigido por Dupanloup, e continuar os estudos começados em um collegio de padres da cidade natal: era em 1838. Dois annos depois, não podendo tirar da vida de mestra em Pariz os meios necessários para liquidar as dividas do pae, contratou Henriqueta os seus serviços de professora em casa de uma familia polaca, e começou novo exilio, mais longo (dez annos) e mais remoto, em um castello da Polonia, a sessenta léguas de Varsóvia. Aqui entra naturalmente a correspondência (Lettres intimes), publicada agora em volume, uma collecção que vai de 1842 a 1815. lia outras cartas (1845-1848), dadas mais recentemente em uma revista franceza; não as li. A correspondência que tenho á vista mostra, ainda melhor que a narração de Renan, o sentimento raro, a affeiçao profunda, e a dedicação sem apparato daquella boa e grave Henriqueta. As cartas desta senhora são a sua propria alma. Escrevem-se muitas para o prelo, alguma para a posteridade; nenhum desses destinos podia attrail-a. Fala do irmão ao irmão. Raro trata de si, e quando o faz é para completar um conselho ou uma reflexão. Também não conta o que se passa em torno della. Comquanto a vida fosse solitaria, algum incidente interior, alguma observaçcão do meio em que estava, podia cair no papel, por desabafo sequer, não digo por malicia; nada disso. Uma vez falará de dinheiro pedido ao pae das educandas, para explicar a demora de uma remessa. Outra vez, em poucas linhas, dirá do camponio polaco que é o mais pobre e embrutecido que se possa imaginar, e notará os excessos de fanatismo e de odio religioso entre os judeus que enchem as cidades e os christãos, e entre os proprios dissidentes do christianismo. Pouco mais dirá na longa correspondência de quatro annos. A distancia era tamanha que não dá tempo a desperdiçar papel com assumpto alheio. Todo elle é pouco para tratar sómente do irmão. Henriqueta aperta as linhas e as letras, aproveita as margens das folhas para não acabar de lhe falar. « Custa-me deixar-te » conclue a primeira carta impressa. Era inútil dizel-o; todas as seguintes fazem sentir que mui difficilmente Henriqueta suspende a mao do papel. São verdadeiramente cartas intimas, medrosas de apparecer, receiosas de violação. Desde logo revelam a força do affecto e a gravidade do espírito. Nenhum floreio de rhetorica, nenhum arrebique de sabichona, mais um alinho natural, muita simpleza de arte, fino estylo e commoção sincera. As expressões de ternura são intensas e abundantes. Meu filho, meu amado, meu querido, meu bom e mil vezes querido, são umas de tantas palavras inspiradas por um amor unico. Henriqueta Renan é melancólica. Segundo o irmão, herdou essa disposição do pae; a mãe era vivaz e alegre. A tristeza, em verdade, resumbra das suas cartas. O meio em que vive era apropriado a aggravar essa inclinação de nascença. Nem o interior do castello nem as temporadas de Varsóvia podiam trazer-lhe a alegria que não vinha della. Querendo dar ideia da terra em que habita, fala de « immensas e monotonas planicies de areia que fariam pensar na Arabia ou na Africa, se intermináveis pinhaes, interrompendo-as, não viessem lembrar a vizinhança do norte. » Junta a isso a extranheza das gentes, as saudades dos seus, maiores que as da terra natal; não esqueças a distancia no espaço, que é enorme, e no tempo que parece infinito, e comprehenderás que em toda a correspondência de Henriqueta não haja o reflexo de um sorriso. O sentimento que tem da vida, aos trinta annos, aqui o dá ella ao irmão, uma vez que fala de o ver feliz: « Feliz! Quem é, feliz nesta terra de dores e desassocegos? E, sem contar os lances da sorte e as acções dos homens, não é certo que em nosso coração ha uma fonte perenne de agitações e de misérias? » Entretanto, a melancolia de Henriqueta não lhe abate as forças, não é daquella especie que faz da alma uma simples expectadora da vida. Henriqueta não se contenta de gemer; a queixa não parece que seja a sua voz natural. Aconselha ao irmão que lute e que conte com ella para ajudal-o. Exhorta-o a ser homem. Um dia, achando-Ilie resolução, louva a força de vontade, « sem a qual não passamos de creançolas. » Henriqueta tira do sentimento do dever, não menos que do amor, energia necessária para amparar Renan, primeiro nas duvidas, depois nos estudos e na carreira nova. Ha um ponto na narrativa de Renan, que as cartas de Henriqueta completam e explicam: é o que se refere aos laços de affeição e estima existentes entre ella e a família do conde Zamosky com quem contratara os seus serviços de preceptora; taes laços que lhe faziam esquecer a tristeza da posição e o rigor do clima. As cartas de Henriqueta não deixam tão simples impressão. Se a queixa não parece ser a sua voz natural, alguma vez, como na carta de 12 de março de 1843, referindo-se ás faculdades de cada um, e a liberdade interior, confessa que só com a grande luta se consegue fazer crêr áquelles que pagam que ha coisas de que só se dão contas a Deus e a consciência. Foi nessa mesma carta que falou do dinheiro pedido ao pae das educandas, a que alludi acima, era para mandal-o á mae, e não conhecia outra pessoa. O conde demorou-se em satisfazel-a, e por fim ausentou-se e ainda não voltára « sem má intenção » acrescenta; o que não a impede de exclamar: « Deus meu! Porque é que os grandes não pensam naquelles que só tem o fruto do seu trabalho, e que este lhes é preciso receber regularmente! » E conclue com esta maxima, que porventura resgatará o que achares banal n’aquella exclamação: « É que o homem não póde comprehender senão as penas que já padeceu; tudo o mais não existe para elle. » N’outro lugar, respondendo a um reparo do irmão, concorda cpie a vida para muitos é passada no meio de pessoas com quem só lia relações de fria polidez, e « nem tu nem eu somos desses a quem taes relações bastem. « Uma organização dessas poderia conquistar a estima da família, e mui provavelmente a affeição das educandas, mas não esquecia tão de leve a tristeza do officio nem a aspereza dos ares. Henriqueta ia de um lado para outro sem levar saudades; é que tudo lhe era extranho no campo e na cidade, e bem póde ser que quasi tudo lhe fosse aborrecido, A paixão grande e real estava fóra d’alli. Assim se explicam os dez annos de exilio para concluir a obra contratada com outros e com a sua consciencia. Durante metade desse prazo, Renan frequentou os seminários de Issy e de Saint-Sulpice. Daquelle, abas dependencia deste, data a primeira carta da collecção respondendo a outra da irman, que não vem nella. Comquanto o livro dos Souvenirs nos conte abreviadamente a estada em ambos os seminários, e certo que melhor se sentem na correspondência as hesitações e duvidas do autor da Vida de Jesus em relação á carreira ecclesiastica e ao proprio fundador da igreja. As cartas acompanham o movimento psychologico do homem, fazem-nos assistirás alterações de um espirito destinado pela familia ao serviço do altar e á gloria catholica ao mesmo tempo que nos mostram a influencia de Henriqueta na alma do seu querido Ernesto. « Minha irman (Souvenirs) cuja razão era desde annos como a columna luminosa caminhando ante mim, animava-me do fundo da Polonia com suas cartas cheias de horn senso. » Não propriamente iniciativa ou tentação da parte della. É certo que nunca desejou vel-o padre; assim o declarou mais tarde (28 de fevereiro de 1845), quando as confissões de Renan estão quasi todas feitas; diz-lhe então que previra as duvidas que ora o assediam, e accrescenta que ninguém a quiz ouvir, e não podia resistir, sosinha. Mas então, como antes, como depois, a arte que emprega é tal que antes parece ir ao encontro dos novos sentimentos do irmão que suggerir-lh’os. A este respeito as duas cartas de 15 de setembro e 30 de outubro de 1842 são cheias de interesse. Renan conta naquella os effeitos do primeiro anno de philosophia e mathematicas. A primeira destas disciplinas fal-o julgar as cousas de modo diversos que antes, e troca-lhe uma porção de suppostas verdades em erros e preconceitos; ensina a ver tudo claro. Assim disposto á reflexão, e com o socego e a liberdade de espirito que lhe dá o seminário, Renan pensou em si e no seu futuro. Fala demoradamente da influencia que tem sobre este os actos iniciaes da vida; não se arrepende dos seus, e, se tivesse de escolher novamente uma carreira, não escolheria outra senão a ecclesiastica. Mas, em seguida, confessa os inconvenientes desta, que declara immensos; cousas ha que metteram na cabeça do clero, e que jamais entrarão na delle; allude tambem á frivolidade, á duplicidade, ao caracter cortezão de alguns « seus futuros collegas », e finalmente a submissão a uma autoridade por vezes suspicaz, á qual não poderia obedecer. Taes inconvenientes encontral-os-ia em qualquer carreira, e ainda maiores que esses, verdadeiras impossibilidades; louva o retiro, a independência, o estudo, e affirma a execração que tem á vida social com as suas futilidades. Não fala assim por zelo de devoção espiritual, diz elle... « Oh! não! é defeito que já não tenho; a philosophia é bom remedio para cortar excessos, e, se ha nella que receiar, será antes uma violenta reacção. » Emfim, chega a conclusão inesperada em um seminarista: « ainda que o christianismo não passasse de um devaneio, o sacerdócio seria divino. » Mais uma vez lastima que o sacerdócio seja exercido por pessoas que o rebaixam, e que o mundo superficial confunda o homem com o ministério; mas logo reduz isto a uma opinião, « e, graças a Deus, creio estar acima da opinião. » Parece que esta palavra é definitiva? Nao é; na parte seguinte e final da carta declara á irman que continua a pensar naquelle grave negocio a ver se esclarece, e pede que não escreva á mae sobre as suas hesitações. Ha duas explicações para esse vae-vem de ideias e de impressões, — ou hesitação pura ou calculo. Mas ha uma terceira, que é talvez a única real. Creio juntamente na hesitação e no calculo. Uma parte da alma de Renan vacilla deveras entre a vida mundana, que lhe não offerece as delicias intimas, e a vida ecclesiaslica, onde a condição terrena não corresponde muita vez ao seu ideal christão. A outra parte calcula de modo que a confissão lhe não saia tão accentuada e decisiva que destoe do espirito geral do homem, e desminta a compostura do seminarista. Ao cabo, é já um esboço de renanismo. Entretanto, se examinarmos bem as duas tendências alternadas, veremos que a negação para a vida ecclesiastica é mais forte que a outra; falta-lhe vocação. Também se sente que a duvida relativamente ao dogma começa de ensombrar a alma do estudante de philosophia. Renan confessa a Henriqueta gostar muito dos seus pensadores allemães, posto que um tanto scepticos e pantheistas. Recommenda-lhe que, se for a Königsberg, faça por elle uma visita ao tumulo de Kant. O pedido de nada dizer á mãe, repetido em outras cartas, é porque a mãe conta vel-o padre, e vive dessa esperança velha. Que esses dous espiritos eram irmãos ve-se bem na carta que Henriqueta escreve a Renan, em 30 de outubro, respondendo á de 15 de setembro. Também ella, sem dizer francamente que não deseja vel-o padre, sabe insinual-o; menos ainda que insinual-o, parece apenas repetir o que elle balbuciou. A carta della tem a mesma condiçao que a delle. Henriqueta declara estremecer ao vel-o tratar tão graves questões em edade geralmente descuidosa; entretanto, gosta que elle encare com seriedade o que outros fazem leviana ou apaixonadamente. Concorda que as estréas da vida influem no resto della, e insinua que ás vezes de modo irreparável. » Tem para si que elle não deve precipitar nada; não quer aconselhal-o para que lhe fique a liberdade de escolha. Quando allude á vida retirada e independente, diz-se mais que ninguém capaz de entendel-o; mas pergunta logo onde encontral-a? Crê que a raros caiba, e não póde esperar que o irmão a encontre n’uma sociedade hierarchica, onde já antevê a autoridade suspicaz. Tam[1] ella acha suspicaz a autoridade, mas acrescenta que o mesmo se dá com todas as profissões; e quando parece que esta fatalidade de caracter deva enfraquecer qualquer argumento contra o ministério ecclesiastico, lembra interrogativamente o vinculo perpetuo do juramento. Quer que elle pense por si, que escolha por si, appela para a razão e a consciência do irmão. Insiste em lhe não dar conselhos; mas já lhe tem dito que, se uma parte do clero é pessoal e ambiciosa, elle Renan, póde vir a ser a mesma cousa. A phrase em que o diz é velada e cautelosa: « o numero. e o costume não levarão atraz de si a minoria e o dever? » Essa pergunta, todas as demais perguntas que lhe faz pela carta adiante, trazem o fim evidente de evocar uma ideia ou attenuar outra, e porventura crear-lhe novos casos e motivos de repugnância á milicia da igreja. É uma serie de suggestões e de esquivanças. A differença de um a outro espirito é que Henriqueta, insinuando as desvantagens que o irmão possa achar na carreira ecclesiastica, entre palavras dúbias e alternação de pensamentos, aceital-o-ia sacerdote, senão com egual prazer, certamente com egual dedicação. Nem lhe quer impor o que julga melhor, nem lhe doerá a escolha do irmão, se for contraria aos seus sentimentos, uma vez que o faça feliz. Certo é, porém, que as preferencias de Renan, que ora vemos a meio século de distancia, á vista da carta impressa, elle mesmo as sentiria lendo a carta manuscripta. Com effeito, por mais que equilibre os sentimentos, Renan está inclinado á vida leiga. Não importa que a situação se prolongue por vinte mezes. Em 1844, Renan communica á irman (16 de abril) que havia dado o primeiro passo na carreira ecclesiastica. Hesitou até á ultima hora, e ainda assim não se decidiu senão porque o primeiro passo não era irrevogável; exprimia a intenção actual. Parte dessa epistola é destinada a explicar o ajuste entre o sentimento e o acto, entre o alcance deste e a liberdade effectiva. Não fazia mais que renunciar ás frivolidades do mundo. A 11 de julho escreve-lhe que deu um passo mais na carreira, menos importante que o primeiro sem vinculo novo, pelo que não lhe custou muito; é um complemento daquelle, — um annexo, como lhe chama. O terceiro, o subdiaconato, é que seria deffinitivo, mas, como o prazo era longo, um anno mais tarde, a anciedade era menor. Durante esse tempo, o seminarista entrega-se aos estudos hebraicos, ás linguas orientaes, e, mais tarde, á lingua alleman. Pelos fins de 1844, é encarregado de leccionar hebreu, porque o professor effectivo não podia com os dous cursos; aceitou a posição, já pela vantagem scientifica que lhe trará, já « porque póde leval-o a alguma cousa. » Assim começara o então professor da Sorbonna. Tres mezes depois, a 11 de abril de 1845, escreve Renan a carta mais importante da situação. Resolveu não atar naquelle anno o laço indissolúvel, o subdiaconato, e solta a palavra exiplicativa: não crê bastante para ser padre. Expoe assim, e mais longamente, o estado em que se acha ante o catholicismo e os seus dogmas, dos quaes fala com respeito, proclamando que Jesus será sempre o seu Deus; mas, tendo procedido ao que chama « verificação racional do christianismo » descobriu a verdade. Descobriu também um meio termo, que exprime a natureza moral do futuro exegeta: o christianismo não é falso, mas não é a verdade absoluta. Não repareis na contradicção do seminarista, para quem o sacerdócio era divino, ha vinte mezes, ainda que o christianismo fosse um devaneio, e agora encontra na meia verdade da egreja razão bastante para deixal-a. Ou reparar nella, com o unico fim de entendei a formacao intellectual do homem. Contradicção aqui é sinceridade, Não ha espanto da parte de Henriqueta, quando Renan lhe faz a confissão de 11 de abril. Tinha soletrado a alma delle, á medida que lhe recebia as letras, assim como tu e eu podemos lel-a agora de vez e integralmente. Tambem não ha no primeiro momento nenhuma manifestaçao de alegria, que alguns possam dizer impia. A alma desta senhora conserva-se fundamentalmente religiosa, cheia daquella caridade do Evangelho que falava ao coração de Rousseau. Demais, além de conhecer o estado moral do irmão, foi ella propria que o aconselhou a adiar o subdiaconato. Não sabe, — pelo menos não lh’o contou elle nas cartas do volume, — não sabe da scena que occorreu no seminário de Issy, muito antes da confissão de 11 de abril, que é datada de Saint-Sulpice. Foi após uma das argumentaçcães latinas, que o professor Gottofey, desconfiando das inclinações de Renan, em conversação particular, á noite, concluiu por estas palavras que o aterraram: « Vós não sois christão! » (Souvenirs). Já antes disso sentia Renan em si mesmo a negação do espiritualismo; mas elle explica a conservação do christianismo, apezar da concepção positiva de mundo que ia adquirindo « por ser moço, inconsequente e falho de critica » (Souvenirs). De resto, a confissão á irman não foi unica; escreveu por esse tempo outras cartas a vários, uma ao seu director, apenas designado por ***, em 6 de setembro de I845, outra a um de seus companheiros, Cognat, que mais tarde tomou ordens, em 24 de agosto, ambas datadas da Bretanha, Henriqueta, ao que se póde suppor, teve as primícias da confissão; foi para ella que elle rompeu, antes que para extranhos, os véus todos da incredulidade mal encoberta. Ficou entendido que occultariam á mãe a resolução nova e ultima. Trataram dos meios de acudir a necessidade presente, se aceitar um lugar de preceptor na Allemanha, se adoptar estudos livres; o fim era proceder de modo que a renuncia da carreira ecclesiastica se fizesse cautelosamente sem dor para a mãe nem escandalo publico. Ha aqui uma divergência de datas em que não vale a pena insistir; segundo a carta de Renan de 13 de outubro de 1845, á irman, foi na noite de 9 que elle deixou o seminário para ir morar na hospedaria próxima; segundo o livro dos Souvenirs foi a 6 (1). A alma delicada de Henriqueta manifesta-se vivamente no que respeita ao dinheiro. Henriqueta custeia as despezas todas da ida e dos estudos do ------------------------------------------------------------------------------------------------ (1) É mais interessante citar uma coincidência. Na carta que Renan escreveu ao collega Cognat, datada de 12 de novembro de 1845, o na que escreveu á irman em data de 13 de outubro, a narração da chegada e saida do seminário de Saint-Sulpice é feita com as mesmas palavras, pouco mais ou menos (Conf. Lettres intimes, e Souvenirs, appendice). É mais que coincidência, é repetição de textos, o sentimento final é expresso em ambos os lugares com este mesmo suspiro: Que de liens, mon ami (ma bonne amie) rompus en quelques heures! ------------------------------------------------------------------------------------------------- irmão. A vida deste, antes da saida do seminário, quasi nao passa dos livros; mas, depois da saida, é preciso alojamento e alimentação, é preciso que elle ande « vestido como toda gente, » e Henriqueta não esquece nada. Não esquecer é pouco; um coração daquelle melindre tem cuidados que escapariam á previsão commum. « Espero de Varsóvia uma letra de cambio de mil e quinhentos francos; mandal-a-hei a Pariz a uma pessoa de confiança, que acreditará que esta somma é só tua... » Em que é que podia vexar ao irmão esse auxilio pecuniário? Henriqueta quer poupar-lhe até a sombra de algum acanhamento. Conhecendo-lhe a nenhuma pratica da vida, a absorpção dos estudos, a mesma indole da pessoa, desce ás minúcias derradeiras, ao modo de entrar na posse do valor da letra, por bimestre ou trimestre, segundo as necessidades; é o orçamento de um anno. Manda-lhe outras sommas por intermédio do outro irmão, a quem incumbe tambem da tarefa de comprar a roupa em Saint-Malo, por conta della; a razão é a inexperiencia de Ernesto. Mas ainda aqui prevalece o respeito á liberdade; se este preferir compral-a em Pariz, Henriqueta recommenda que lhe seja entregue mais um tanto em dinheiro. Que te não enfadem estas particularidades, grave leitor amigo; aqui as tens ainda mais íntimas. Henriqueta desce á indicação da cor e forma do vestuário, uma sobrecasaca escura, o resto preto, é o que lhe parece mais adequado. Ao pe disto não ha falar de conselhos sobre hospedagens e tantas outras miudezas, intercaladas de expressões tão d’alma, que é como se vissemos uma joven mae ensinando o filhinho a dar os primeiros passos. A influencia da Henriqueta avulta com o tempo e as necessidades da carreira nova. O zelo cresce-lhe na mesma proporção. Pelo outro irmão, por uma amiga de Pariz, Mlle. Uilliac, e pelas cartas, Henriqueta governa a vida de Renan, e não cuida mais que de lhe incutir confiança e de lhe abrir caminho. O que lhe escreve sobre o bacharelado. Escola Normal, estudo de linguas orientaes e o resto é apoiado pela amiga. Uma e outra suscitam-lhe protecções e auxiliares de boa vontade. Renan faz daquella amiga da irman excellente juizo; não o diz so nas cartas do tempo, mas ainda no opusculo de 1862. Era uma senhora bella, virtuosa e instruida. Com grande arte, ao que parece, insinuou-lhe ella que lhe era preciso relacionar-se com alguma senhora boa e amavel. « Ri-me, escreve Renan a Henriqueta, mas não por mofa. » E confessando que não é bom que o homem esteja só, pergunta se alguém está só tendo uma irman (carta de 31 de outubro de 1845). Henriqueta é-lhe necessária á vida moral é intellectual. De novembro em diante insta com a irman para que volte da Polonia. A amiga falou-lhe da saude de Henriqueta como estando muito alterada, e deti-lhe noticias que profundamente o affligiram; desvendou-lhe o mysterio. É a expressão delle. Foi na noite de 3 de novembro que Mlle. Ulliae abriu os olhos de Renan, confiamlo-lhe Henrqueta tiveira grandes padecimentos, dos quaes nem elle nem a mãe souberam nada. Nao se deduz bem do texto se eram moléstias recentes e antigas; sabe-se que eram caladas, e por isso ainda mais tocantes. As cartas do volume não passam de 25 de dezembro daquelle anno; as instancias repetem-se um longo silencio da irman assusta o irmao; afinal vimos que ella só voltou da Polonia cinco annos depois, em 1850. Trazia-uma larygite chronica. Tudo, porém, estava pago. Os sacrifícios é que não estavam cumpridos. A vida desta senhora tinha de continuar com elles, e acabar por elles. O maior de todos foi o casamento do irmão. Quando Renan resolveu casar, Henriqueta recebeu um grande golpe e quiz separar-se delle. Essa irman e mãe tinha ciúmes de esposa. Renan quiz desfazer o casamento; foi então que o coração de Henriqueta cedeu, e consentiu em vel-o feliz com outra. A dor nao morreu; o irmão confessa que o nascimento do seu primeiro filho é que lhe enxugou a ella todas as lagrimas, mas foi só dias antes de morrer que, por algumas palavras della, reconheceu haver a ferida cicatrizado inteiramente. As palavras seriam talvez estas, transcriptas no opusculo; « Amei-te muito; cheguei a ser injusta, exclusiva, mas foi porque te amei como ja se nao ama, como talvez ninguém deva amar. » Viveram juntos os tres; juntos foram em 1800 para aquella missão da Phenicia, a que o imperador Napoleão convidou Renan. A esposa deste regressou pouco depois; Renan e Henriqueta continuaram a jornada de explorações e de estudos, durante a qual ella padeceu largamente, trabalhando longas horas por dia, curtindo violentas dores nevrálgicas, até contrair a febre perniciosa que a levou deste mundo. As paginas em que Renan conta a viagem, a doença e a morte de Henriqueta são das mais hellas que lhe sairam das mãos. Morreu trabalhando; os últimos auxilios que prestou ao irmão foi copiar as laudas da Vida de Jesus, á medida que elle as ia escrevendo, em Gazhir. Renan confessa que lhe deveu muito, não só na orientação das idéias, mas ainda em relação ao estylo, e explica porque e de que maneira. Antes da missão da Phenicia trabalhavam juntos, em matéria de arte e de archeologia; além disso, ella compunha trabalhos para jornaes de educação; mas os seus melhores escriptos diz elle que eram as cartas. Moralmente, tinham ambos alcançado as mesmas vistas e o mesmo sentimento; ainda ahi porém reconhece Renan alguma superioridade nella. Que impressão final deixa a correspondência daquelles dois corações? O de Henriqueta, mais exclusivo, era tambem mais terno e o amor mais profundo. As cartas de Henriqueta são talvez únicas, como expressão de sentimento fraternal. Mais de uma vez lhe diz que a vida delle e a sua felicidade são o seu principal cuidado, e até único. Não temos aqui o que escreveu á mãe ; mas nao creio que a nota fosse mais forte, nem talvez tanto. Renan ama a irman, é-lhe gratíssimo, ia-lhe sacrificando o consorcio; mas, emfim, pode amar outra mulher, e, feliz com ambas, viver dessas duas dedicações. Henriqueta, por mais que Renan nos affirme o contrario, tinha um fundo pessimista. Que amasse a vida, creio, mas por elle; se « podia sorrir a um enfeite, como se póde sorrir a uma flor », estava longe da inalterável bemaventurança do irmão. O scepticismo optimista de Renan nunca seria entendido por ella; temperamento e experiencia tinham dado a Henriqueta uma philosophia triste que se lhe sente nas cartas. Todos conhecem a confissão geral feita pelo autor dos Souvenirs d’enfance et de jeunesse. Renan affirma ter sido tão feliz que, se houvesse de recomeçar a vida com direito de emendal-a, não faria emenda alguma! Henriqueta, se tivesse igual sentimento, seria unicamente para servil-o e amal-o, e, caso pudesse, creio que usaria do direito de eliminar, quando menos, as moléstias que padeceu. Renan tinha da vida e dos homens um sentimento que, apezar das agruras dos primeiros annos, ja lhe apparece em alguma parte da correspondência. « Um livro, — diz elle na ultima carta do volume, — é o melhor introductor no mundo scientifico. A sua composição obriga a consultar uma porção de sabios, que nunca ficam tão lisongeados como quando se lhes vai prestar homenagem à sicencia delles. As dedicatórias, fazem amigos e protectores elevados. Tenciono dedicar o meu ao Sr. Quairemère. » Na confissão dos Souvenirs é já o sabio que fala em relacção aos estreantes: « Um poeta, por exemplo, apresenta-nos os seus versos. E preciso dizer que são admiráveis; o contrario equivale a dizer-lhe que não valem nada, e fazer sangrenta injuria a um homem cuja intenção é fazer-nos uma fineza. » um clássico da nossa lingua, Sá de Miranda, põe na bocca de um personagem de uma das suas comédias alguma cousa que resume toda essa arte e polidez ahi recommendadas: « A mór sciencia que no mundo ha assim é, saber conversar com os homens; bom rosto, bom barrete, boas palavras não custam nada, e valem muito... Vou-me a comer. » « Vou-me a comer », applicado a Renan, é a gloria que lhe ficou das suas admiráveis paginas de escriptor unico. A gloria de Henriqueta seria a contemplação daquella, o goso intimo de uma adoração e de um amor, que a vida achou realmente excessivos, tanto que a despegou de si, com um derradeiro e terrivel soffrimento, talvez mais inútil que os outros. O VELHO SENADO A proposito de algumas lithografias de Sisson, tive ha dias uma visão do Senado de 1860. Visões valem o mesmo que a retina em que se operam. Um politico, tornando a ver aquelle corpo, acharia nelle a mesma alma dos seus co-religionarios extinctos, e um historiador colheria elementos para a historia. Um simples curioso não descobre mais que o pintoresco do tempo e a expressão das linhas com aquelle tom geral que dão as cousas mortas e enterradas. Nesse anno entrara eu para a imprensa. Uma noite, como saissemos do theatro Gymnasio, Quintino Bocayuva e eu fomos tomar chá. Bocayuva era então uma gentil figura de rapaz, delgado, tez macia, fino bigode e olhos serenos. Já então tinha os gestos lentos de hoje, e um pouco d’aquelle ar distant que Taine achou em Merimée. Disseram cousa analoga de Challemel-Lacour, que alguém ultimamente definia como très républicain de conviction et très aristocrate de tempérament. O nosso Bocayuva era só a segunda parte, mas já então liberal bastante para dar um republicano convicto. Ao chá, conversámos primeiramente de lettras, e pouco depois de política, materia introduzida por elle, o que me espantou bastante; não era usual nas nossas praticas. Nem é exacto dizer que conversámos de politica, eu antes respondia as perguntas que Bocayuva me ia fazendo, como se quizesse conhecer as minhas opiniões. Provavelmente não as teria fixas nem determinadas; mas, quaesquer que fossem, creio que as exprimi na proporção e com a precisão apenas adequadas ao que elle me ia offerecer. De facto, separamo-nos com prazo dado para o dia seguinte, na loja de Paula Brito, que era na antiga praça da Constituição, lado do theatro S. Pedro, a meio caminho das ruas do Cano e dos Ciganos. Relevai esta nomenclatura morta; é vicio de memória velha. Na manha seguinte, achei ali Bocayuva escrevendo um bilhete. Tratava-se do Diário do Rio de Janeiro, que ia reapparecer, sob a direcção política de Saldanha Marinho. Vinha dar-me um lugar na redacção com elle e Henrique Cesar Muzzio. Estas minudencias, agradaveis de escrever, sel-o-hão menos de ler. É difficil fugir a ellas, quando se recordam cousas idas. Assim, dizendo que no mesmo anno, abertas as camaras, fui para o Senado, como redactor do Diário do Rio, não posso esquecer que nesse ou no outro ali estiveram commigo, Bernardo Guimarães, representante do Jornal do Commercio, e Pedro Luiz, por parte do Correio Mercantil, nem as boas horas que vivemos os tres. Posto que Bernardo Guimarães fosse mais velho que nós, partiamos irmanmente o pão da intimidade. Desciamos juntos aquella praça da Acclamação, que não era então o parque de lioje, mas um vasto espaço inculto e vasio como o campo de S. Christovão. Algumas vezes iamos jantar a um restaurant da rua dos Latoeiros, hoje Gonçalves Dias, nome este que se lhe deu por indicação justamente do Diário do Rio; o poeta morára ali outr’ora, e foi Muzzio, seu amigo, que pela nossa folha o pediu á Camara Municipal. Pedro Luiz não tinha só a paixão que poz nos bellos versos á Polonia e no discurso com que, pouco depois, entrou na Camara dos Deputados, mas ainda a graça, o sarcasmo, a observação fina e aquelle largo riso em que os grandes olhos se faziam maiores. Bernardo Guimarães não falava nem ria tanto, incumbia-se de pontuar o dialogo com um bom dito, um reparo, uma anecdota. O Senado não se prestava menos que o resto do mundo á conversação dos tres amigos. Poucos membros restarão da velha casa. Paranaguá e Sinimbú carregam o peso dos annos com muita facilidade e graça, o que ainda mais admira em Sinimbú, que supponho mais idoso. Ouvi falar a este bastantes vezes; não apaixonava o debate, mas era simples, claro, interessante, e, physicamente, não perdia a linha. Esta geração conhece a firmeza daquelle homem politico, que mais tarde foi presidente do conselho e teve de lutar com opposições grandes. Um incidente dos últimos annos mostrará bem a natureza delle. Saindo da Camara dos Deputados para a secretaria da Agricultura, com o Visconde de Ouro Preto, collega de gabinete, eram seguidos por enorme multidão da gente em assuada. O carro parou em frente á secretaria; os dous apearam-se e pararam alguns instantes, voltados para a multidão, que continuava a bradar e apupar, e então vi bem a differença dos dois temperamentos. Ouro Preto fitava-a com a cabeça erguida e certo gesto de repto; Sinimbú parecia apenas mostrar ao collega um trecho de muro, indifferente. Tal era o homem que conheci no Senado. Para avaliar bem a minha impressão diante daquelles homens que eu via ali juntos, todos os dias, é preciso nao esquecer que não poucos eram contemporâneos da Maioridade, algum da Regencia, do primeiro reinado e da Constituinte. Tinham feito ou visto fazer a historia dos tempos iniciaes do regimen, e eu era um adolescente espantado e curioso. Achava-lhes uma feição particular, metade militante, metade triumphante, um pouco de homens, outro pouco de instituição. Parallelamente, iam-me lembrando os apodos e chufas que a paixão politica desferira contra alguns delles, e sentia que as figuras serenas e respeitáveis que ali estavam agora naquellas cadeiras estreitas não tiveram outr’ora o respeito dos outros, nem provavelmente a serenidade propria. E tirava-lhes as cans e as rugas, e fazia-os outra vez moços, ardegos e agitados. Comecei a aprender a parte do presente que lia no passado, e vice-versa. Trazia commigo a oligarchia, o golpe de Estado de 1848, e outras notas da politica em opposição ao domínio conservador, e ao ver os cabos deste partido, risonhos, familiares, gracejando entre si e com os outros, tomando juntos café e rapé, perguntava a mim mesmo se eram elles que podiam fazer, desfazer e refazer os elementos e governar com mão de ferro este paiz. Os senadores compareciam regularmente ao trabalho. Era raro não haver sessão por falta de quorum. Uma particularidade do tempo é que muitos vinham em carruagem propria, como Zacharias, Monte-Alegre, Abrantes, Caxias e outros, começando pelo mais velho, que era o marquez de Itanhaém. A edade deste fazia-o menos assiduo, mas ainda assim era-o mais do que cabia esperar delle. Mal se podia apear do carro, e subir as escadas; arrastava os pés até á cadeira, que ficava do lado direito da mesa. Era secco e mirrado, usava cabelleira e trazia oculos fortes. Nas ceremonias de abertura e encerramento aggravava o aspecto com a farda de senador. Se usasse barba, poderia disfarçar o chupado e engelhado dos tecidos, a cara rapada accentuava-lhe a decrepitude; mas a cara rapada era o costume de outra quadra, que ainda existia na maioria do Senado. Uns, como Nabuco e Zacharias, traziam a barba toda feita; outros deixavam pequenas suissas, como Abrantes e Paranhos, ou, como Olinda e Euzebio, a barba em forma de collar; raros usavam bigodes, como Caxias e Montezuma, — um Montezuma de segunda maneira. A figura de Itanhaem era uma razão visivel contra a vitaliciedade do Senado, mas é também certo que a vitaliciedade dava áquella casa uma consciência de duração perpetua, que parecia ler-se no rosto e no trato de seus membros. Tinham um ar de familia, que se dispersava durante a estação calmosa, para ir ás aguas e outras diversões, e que se reunia depois, em prazo certo, annos e annos. Alguns não tornavam mais, e outros novos appareciam; mas também nas familias se morre e nasce. Dissentiam sempre, mas é proprio das familias numerosas brigarem, fazerem as pazes e tornarem a brigar; parece até que é a melhor prova de estar dentro da humanidade. Já então se evocavam contra a vitaliciedade do Senado os princípios liberaes, como se fizera antes. Algumas vozes, vibrantes cá fóra, calavam-se lá dentro, e certo, mas o germen da reforma ia ficando, os programmas o acolhiam, e, como em vários outros casos, os successos o fizeram lei. Nenhum tumulto nas sessões. A attenção era grande e constante. Geralmente, as galerias não eram mui frequentadas, e, para o fim da hora. poucos expectadores ficavam, alguns dormiam. Naturalmente, a discussão do voto de graças e outras chamavam mais gente. Nabuco e algum outro dos principaes da casa gosavam do privilégio de attrair grande auditorio, quando se sabia que elles rompiam um debate ou respondiam a um discurso. Nessas occasiões, mui excepcionalmente, eram admittidos ouvintes no proprio salão do Senado, como aliás era commum na Camara temporária; como nesta, porém, os expectadores não intervenham com aplausos nas discussões. A presidência de Abaeté redobrou a disciplina do regimento, porventura menos apertada no tempo da presidência de Cavalcanti. Não faltavam oradores. Uma só vez ouvi falar a Eusebio de Queiroz, e a impressão que rne deixou foi viva; era fluente, abundante, claro, sem prejuizo do vigor e da energia. Não foi discurso de ataque, mas de defesa, falou na qualidade de chefe do partido conservador, ou papa; Itaborahy, Uruguay, Sayão Lobato e outros eram cardeaes e todos formavam o consistorio segundo a célebre definição de Octaviano no Correio Mercantil. Não reli o discurso, não teria agora tempo nem opportunidade de fazel-o, mas estou que a impressão não haveria diminuido muito, posto lhe falte o effeito da propria voz do orador, que seduzia. A materia era sobremodo ingrata: tratava-se de explicar e defender o accumulo dos cargos públicos, accusaçao feita na imprensa da opposição. Era a tarde da oligarchia, o crepúsculo do dominio conservador. As eleições de 1800, na capital, deram o primeiro golpe na situação; se também deram o ultimo, não sei; os partidos nunca se entenderam bem acerca das; causas immediatas da propria quéda ou subida, salvo no ponto de serem alternadamente a violação ou a restauração da carta constitucional. Quaesquer que fossem, então, a verdade é que as eleições da capital naquelle anno podem ser contadas como uma Victoria liberal. Ellas trouxeram á minha imaginação adolescente uma visão rara e especial do poder das urnas. Não cabe inseril-a aqui; não direi o movimento geral e o calor sincero dos votantes, incitados pelos artigos da imprensa e pelos discursos de Theophilo Ottoni, nem os lances, scenas e brados de taes dias. Não me esqueceu a maior parte delles; ainda guardo a impressão que me deu um obscuro votante que veiu ter com Ottoni, perto da matriz do Sacramento. Ottoni não o conhecia, nem sei se o tornou a ver. Elle chegou-se-lhe e mostrou-lhe um a maço de cédulas, que acabava de tirar ás escondidas da algibeira de um agente contrario. O riso que acompanhou esta noticia nunca mais se me apagou da memória. No meio das mais ardentes reivindicações deste mundo, alguma vez me despontou ao e longe aquella bocca sem nome, acaso veridica e honesta em tudo o mais da vida, que ali viera confessar candidamente, e sem outro prêmio pessoal, o fino roubo praticado. Não mofes desta insistência pueril da minha memória; eu a tempo advirto que as mais claras aguas podem levar de enxurro alguma palha pôdre, — si é que é podre, si é que é mesmo palha. Eusebio de Queiroz era justamente respeitado dos seus e dos contrários. Não tinha a figura esbelta de um Paranhos, mas ligava-se-lhe uma historia particular e celebre, dessas que a chronica social e politica de outros paizes escolhe e examina, mas que os nossos costumes, — aliás demasiado soltos na palestra, — não consentem inserir no escripto. De resto, pouco Valeria repetir agora o que se divulgava então, não podendo pôr aqui a propria e extremada belleza da pessoa que as ruas e salas desta cidade viram tantas vezes. Era alta e robusta; não me ficaram outros pormenores. O Senado contava raras sessões ardentes; muitas, porém, eram animadas. Zacharias fazia reviver o debate pelo sarcasmo e pela presteza e vigor dos golpes. Tinha a palavra cortante fina e rapida, com uns effeitos de sons gutturaes, que a tornavam mais penetrante e irritante. Quando elle se erguia, era quasi certo que faria deitar sangue a alguém. Chegou até hoje a reputação de debater, como opposicionista, e como ministro e chefe de gabinete. Tinha audacias, como a da escolha « nao acertada », que a nenhum outro acudiria, creio eu. Politicamente, era uma natureza secca e sobranceira. Um livro que foi de seu uso, uma historia de Clarendon (History of the rebellion and civil wars in England), marcado em partes, a lapis encarnado, tem uma sublinha nas seguintes palavras (vol. I, pag. 44) attribuidas ao conde de Oxford, em resposta ao duque de Buckingham, « que não buscava a sua amizade nem temia o seu odio ». E arriscado ver sentimentos pessoaes nas simples notas ou lembranças postas em livros de estudo, mas aqui parece que o espirito de Zacharias achou o seu parceiro. Particularmente, ao contrário, e desde que se inclinasse a alguém, convidava fortemente a amal-o; era lhano e simples, amigo e confiado. Pessoas que o frequentavam, dizem e affirmam que, sob as suas arvores da rua do Conde ou entre os seus livros, era um gosto ouvil-o, e raro haverá esquecido a graça e a polidez dos seus obséquios. No Senado, sentava-se á esquerda da mesa, ao pé da janella, abaixo de Nabuco, com quem trocava os seus reparos e reflexões. Nabuco, outra das principaes vozes do Senado, era especialmente orador para os debates solemnes. Não tinha o sarcasmo agudo de Zacharias, nem o epigramma alegre de Cotegipe. Era então o centro dos conservadores moderados que, com Olinda e Zacharias, fundaram a liga e os partidos progressista e liberal. Joaquim Nabuco, com a eloquência de escriptor politico e a affeição de filho, dirá toda essa historia no livro que está consagrando á memória de seu illustre pae. A palavra do velho Nabuco era modelada pelos oradores da tribuna liberal franceza. A minha impressão é que preparava os seus discursos, e a maneira por que os proferia realçava-lhes a matéria e a forma solida e brilhante. Gostava das imagens litterarias: uma dessas, a compararão do poder moderador á estatua de Glauco, fez então fortuna. O gesto não era vivo, como o de Zacharias, mas pausado, o busto cheio era tranquillo, e a voz adquiria uma sonoridade que habitualmente não tinha. Mas eis que todas as figuras se atropelam na evocação commum, as de grande peso, como Uruguay, com as de pequeno ou nenhum peso, como o Padre Vasconcellos, senador creio que pela Parahyba, um bom homem que ali achei e morreu pouco depois. Outro, que se podia incluir nesta segunda categoria, era um de quem só me lembram duas circumstancias, as longas barbas grisalhas e sérias, e a cautela e pontualidade com que não votava os artigos de uma lei sem ter os olhos pregados em Itaborahy. Era um modo de cumprir a fidelidade politica e obedecer ao chefe, que herdara o bastão de Eusebio. Como o recinto era pequeno, viam-se todos esses gestos, e quasi se ouviam todas as palavras particulares. E, comquanto fosse assim pequeno, nunca vi rir a Itaborahy, creio que os seus músculos difficilmente ririam — o contrario de S. Vicente, queria com facilidade, um riso bom, mas que lhe não ia bem. Quaesquer que fossem, porém, as deselegâncias physicas do senador por S. Paulo, e mau grado a palavra sem sonoridade, era ouvido com grande respeito, como Itaborahy. De Abrantes dizia-se que era um cariario falando. Não sei até que ponto merece a definição; em verdade, achava-o fluente, acaso doce, e, para um povo mavioso como o nosso, a qualidade era preciosa; nem por isso Abrantes era popular. Tambem não o era Olinda, mas a autoridade deste sabe-se que era grande. Olinda apparecia-me envolvido na aurora remota do reinado, e na mais recente aurora liberal ou « situação nascente » mote de um dos chefes da liga, penso que Zacharias, que os conservadores glosaram por todos os feitios, na tribuna e na imprensa. Mas não deslisemos a reminiscencias de outra ordem; fiquemos na surdez de Olinda, que competia com Beethoven nesta qualidade, menos musical que politica. Não seria tão surdo. Quando tinha de responder a alguém, ia sentar-se ao pé do orador, e escutava attento, cara de mármore, sem dar um aparte, sem fazer um gesto, sem tomar uma nota. E a resposta vinha logo; tão de pressa o adversário acabava, como elle principiava, e, ao que me ficou, lúcido e completo. Em dia vi ali aparecer um homem alto, suissas e bigodes brancos e compridos. Era um dos remanescentes da Constituinte, nada menos que Montesuma, que voltava da Europa. Foi-me impossivel reconhecer naquella cara barbada a cara rapada que eu conhecia da lithographia Sisson; pessoalmente nunca o vira. Era, muito mais que Olinda, um typo de velhice robusta. Ao meu espirito de rapaz affigurava-se que elle trazia ainda os rumores e os gestos da assembleia de 1823. Era o mesmo homem; mas foi preciso ouvil-o agora para sentir toda a vehemencia dos seus ataques de outr’ora. Foi preciso ouvir-lhe a ironia de hoje para entender a ironia daquella rectificação que elle poz ao texto de uma pergunta ao ministro do Imperio, na celebre sessao permanente de 11 a 12 de novembro: « Eu disse que o Sr. ministro do Imperio, por estar ao lado de Sua Majestade, melhor conhecerá o « espírito da tropa », e um dos senhores secretários escreveu « o espirito de Sua Magestade », quando não disse tal, porque deste não duvido eu. Agora o que eu mais ouvia dizer delle, alem do talento, eram as suas infidelidades, e sobre isto corriam anecdotas; mas eu nada tenho com anecdotas politicas. Que se não pudesse fiar muito em seus carinhos parlamentares, creio. Uma vez, por exemplo, encheu a alma de Souza Franco de grandes alleluias. Querendo criticar o ministro da Fazenda (não me lembra quem era) começou por affirmar que nunca tivêramos ministros da Fazenda, mas tão somente ministros do Thesouro. Encarecia com adjectivos: excellentes, illustrados, conspicuos ministros do Thesouro, mas da Fazenda nenhum. « Um houve, Sr. presidente, que nos deu alguma cousa do que deve ser um ministro da Fazenda; foi o nobre senador pelo Pará. » E Souza Franco sorria alegre, deleitava-se com a excepção, que devia doer ao seu forte rival em finanças, Itaborahy; não passou muito tempo que não perdesse o gosto. De outra vez, Montezuma atacava a Souza Franco, e este novamente sorria, mas agora a expressão não era alegre, parecia rir de desdem. Montezuma empina o busto, encara-o irritado, e com a voz e o gesto intima-lhe que recolha o riso; e passa a demonstrar as suas criticas, uma por uma, com esta especie de estribilho. « Recolha o riso o nobre senador. Tudo isto aceso e torvo. Souza Franco quiz resistir; mas o riso recolheu-se por si mesmo. Era então um homem magro e cançado. Gozava ainda agora a popularidade ganha na Camara dos Deputados, annos antes, pela campanha que sustentou, sósinho e parece que enfermo, contra o partido conservador. Contrastando com Souza Franco, vinha a figura de Paranhos, alta e forte. Não é preciso dizel-o a uma geração que o conheceu e admirou, ainda bello e robusto na velhice. Nem é preciso lembrar que era uma das primeiras vozes do Senado. Eu trazia de cór as palavras que alguém me confiou haver dito, quando elle era simples estudante da Escola Central: « Sr. Paranhos, você ainda ha de ser ministro. » O estudante respondia modestamente, sorrindo; mas o propheta dos seus destinos tinha apanhado bem o valor e a direcção da alma do moço. Muitas recordações me vieram do Paranhos de então, discursos de attaque, discursos de defesa, mas, uma basta, a justificação do convênio de 20 de fevereiro. A noticia deste acto entrou no Rio de Janeiro, como as outras desse tempo, em que não havia telegrapho. Os successos do exterior chegavam-nos ás braçadas, por atacado, e uma batalha, uma conspiração, um acto diplomático eram conhecidos com todos os seus pormenores. Por um paquete do sul soubemos do convênio da villa da União. O facto foi mal recebido, fez-se uma manifestação de rua, e um grupo de populares, com tres ou quatro chefes á frente, foi pedir ao governo a demissão do plenipotenciário. Paranhos foi demitido, e, aberta a sessão parlamentar, cuidou de produzir a sua defesa. Tornei a ver aquelle dia, e ainda agora me parece vel-o. Galerias e tribunas estavam cheias de gente; ao salão do Senado foram admittidos muitos homens politicos ou simplesmente curiosos. Era uma hora da tarde quando o presidente deu a palavra ao senador por Matto-Grosso; começava a discussão do voto de graças. Paranhos costumava falar com moderação e pausa; firmava os dedos, erguia-os para o gesto lento e sobrio, ou então para chamar os punhos da camisa, e a voz ia saindo meditada e colorida. Naquelle dia, porém, a ancia de produzir a defesa era tal, que as primeiras palavras foram antes bradadas que ditas. « Não a vaidade, Sr. presidente... » D’ahi a um instante, a voz tornava ao diapasão habitual, e o discurso continuou como nos outros dias. Eram nove horas da noite, quando elle acabou; estava como no principio, nenhum signal de fadiga nelle nem no auditorio, que o applaudiu. Foi uma das mais fundas impressões que me deixou a eloquência parlamentar. A agitação passara com os successos, a defesa estava feita. Annos depois do attaque, esta mesma cidade acclamava o autor da lei de 28 de setembro de 1871, como uma gloria nacional; e ainda depois, quando elle tornou da Europa, foi recebel-o e conduzil-o até á casa. Ao clarao de um bello sol, rubro de commoção, levado pelo enthusiasmo publico, Paranhos seguia as mesmas ruas que, annos antes, voltando do Sul, pisara sozinho e condemnado. A visão do Senado foi-se-me assim alterando nos gestos e nas pessoas, como nos dias, e sempre remota e velha: era o Senado daquelles tres annos. Outras figuras vieram vindo, Além dos cardeaes, os Muritibas, os Souza e Mellos, vinham os de menor graduação politica, o risonho Penna, zeloso e miudo em seus discursos, o Jobim, que falava algumas vezes, o Ribeiro, do Uio Grande do Sul, que não falava nunca, — não me lembra, ao menos. Este philosopho ephilologo, tinha junto a si, no tapete, encostado ao pé da cadeira, um exemplar do diccionario de Moraes. Era commum vel-o consultar um e outro tomo, no correr de um debate, quando ouvia algum vocabulo, que lhe parecia de incerta origem ou duvidosa aceitação. Em contraste com a abstenção delle, eis aqui outro. Silveira da Motta, assiduo na tribuna, opposicionista por temperamento, e este noutro, D. Manoel de Assis Mascarenhas, bom exemplar da geração que acabava. Era um homemzinho secco e baixo, cara lisa, cabello raro e branco, tenaz, um tanto impertinente, creio que desligado de partidos. Da sua tenacidade dará ideia o que lhe vi fazer em relação a um projecto de subvenção ao theatro lyrico, por meio de loterias. Não era novo; continuava o de annos anteriores. D. Manoel oppunha-se por todos os meios á passagem delle, e fazia extensos discursos. A mesa, para acabar com o projecto, já o incluia entre os primeiros na ordem do dia, mas nem assim desanimava o senador. Um dia foi elle collocado antes de nenhum. D. Manoel pediu a palavra, e francamente declarou que era seu intuito de falar toda a sessão; portanto, aquelles de seus collegas que tivessem algum negocio extranho e fóra do Senado podiam retirar-se: não se discutiria mais nada. E falou até o fim da hora, consultando a miudo o relogio para ver o tempo que lhe ia faltando. Naturalmente não haveria muito que dizer em tão escassa matéria, mas a resolução do orador e a liberdade do regimento davam-lhe meio de compor o discurso. D’ahi nascia uma infinidade de episodios, reminiscências, argumentos e explicações; por exemplo, não era recente a sua aversão ás loterias, vinha do tempo em que, andando a viajar, foi a Hamburgo; ali offereceram-lhe com tanta instancia um bilhete de loteria, que elle foi obrigado a comprar, e o bilhete saiu branco. Esta anedocta era contada com todas as minúcias necessárias para amplial-a. Uma parte do tempo falou sentado, e acabou diante da mesa e tres ou quatro collegas. Mas, imitando assim Catão, que também falou um dia inteiro para impedir uma petição de Cesar, foi menos feliz que o seu collega romano. Gesar retirou a petição, e aqui as loterias passaram, não me lembra se por fadiga ou omissão de D. Manoel; annuencia é que não podia ser. Taes eram os costumes do tempo. E após elle vieram outros, e ainda outros, Sapucahy, Maranguape, Itaúna, e outros mais, até que se confundiram todos e desappareceu tudo, cousas e pessoas, como succede ás visões. Pareceu-me vel-os enfiar por um corredor escuro, cuja porta era fechada por um homem de capa preta, meias de seda preta, calções pretos e sapatos de fivela. Este era nada menos que o proprio porteiro do Senado, vestido segundo as praxes do tempo, nos dias de abertura e encerramento da assembléa geral. Quanta cousa obsoleta! Alguém ainda quiz obstar á acção do porteiro, mas tinha o gesto tão cançado e vagaroso que não alcançou nada; aquelle deu volta a chave, envolveu-se na capa, saiu por uma das janellas e esvaiu-se no ar, a caminho de algum cemiterio, provavelmente. Se valesse a pena saber o nome do cemiterio, iria eu catal-o, mas nao vale; todos os cemitérios se parecem. TU SÓ, TU, PURO AMOR… COMEDIA Tu, só, tu, puro amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga… (Luziadas, 3, CXIX.) O desfecho dos amores palacianos de Camões e de D. Catharina de Athayde é o objecto da comedia, desfecho que deu logar á subsequente aventura de Africa, e mais tarde á partida para a India, donde o poeta devia regressar um dia com a immortalidade não mãos. Não pretendi fazer um quadro da côrte de D. João III, nem sei se o permittiam as proporções minimas do escripto e a urgência da occasião (1). Busquei, sim, haver-me de maneira que o poeta fosse contemporaneo de seus amores, não lhe dando feições epicas, e, por assim dizer, posthumas. Na primeira impressão escrevi uma nota, que reprodusi na segunda, accrescentando-lhe alguma cousa explicativa. Como na scena primeira se trata da anecdota que motivou o epigramma de Camões ao duque de Aveiro, disse eu alli que, posto se lhe não possa fixar data, usára desta por me parecer um -------------------------------------------------------------------------------------------------- (1) A peça foi escripta para as festas organisadas no Rio de Janeiro, pelo Gabinete Portuguez de Leitura, no tricentenario de Camões e representada no theatro de D. Pedro II, em 10 de Junho de 1880. Imprimiu-se a primeira vez na Revista Brasileira (1 de Julho de 1880) e a segunda em cem exemplares numerados e assignados pelo autor (edição Lombaerts, Rio de Janeiro, MDCCCLXXXI). -------------------------------------------------------------------------------------------------- curioso rasgo de costumes. E adduzi: « Engana-se, creio eu, o Sr. Theophilo Braga, quando affirma que ella só podia ter occorrido depois do regresso de Camões a Lisboa, allegando para fundamentar essa opinião, que o titulo de duque de Aveiro foi creado em 1557. Digo que se engana o illustre escriptor, porque eu encontro o duque de Aveiro, cinco annos antes, em 1552, indo receber, na qualidade de embaixador, a princesa D. Joanna, noiva do principe D. João (Veja Mem. e Doc., annexos aos Annaes de D. João III, pags. 440 e 441); e, se Camões só em 1553 partiu para a India, não é impossivel que o epigramma e o caso que lhe deu origem fossem anteriores. » Temos ambos razão, o Sr. Theophilo Braga e eu. Bom effeito, o ducado de Aveiro só foi creado formalmente em 1557, mas o agraciado usava o titulo desde muito antes, por mercê de D. João III; é o que confirma a propria carta regia de 30 de Agosto, daquelle anno, textualmente inserta na Hist. Geneal. de D. Antonio Caetano de Souza, que cita em abono da assersão o testemunho de Andrade, na Chronica d’El-rei D. João III. Naquella mesma obra se lê (liv. IV, cap. V) que em 1551, na trasladação dos ossos d’el-rei D. Manoel estivera presente o duque de Aveiro. Não é, pois, impossivel que a anecdota occorresse antes da primeira ausencia de Camões. PESSOAS CAMÕES. D. ANTONIO DE LIMA. CAMINHA. D. MANOEL DE PORTUGAL. D. CATHARINA DE ATHAYDE. D. FRANCISCA DE ARAGÃO Tu só, tu, puro amor… COMEDIA Sala no paço. SCENA I CAMINHA, D. MANOEL DE PORTUGAL (Caminha vem do fundo, á esquerda; vae a entrar pela porta da, direita, quando lhe sae D. M anoel de Portugal, a rir). CAMINHA. Alegre vindes, senhor D. Manoel de Portugal. Disse-vos El-rei alguma cousa graciosa, de certo... D. MANOEL. Não; não foi El-rei. Adivinhae o que seria, se é que o não sabeis já. CAMINHA. Que foi? D. MANOEL. Sabeis o caso da gallinha do duque de Aveiro? CAMINHA. Não. D. MANOEL. Não sabeis? — Pois é isto; uns versos mui galantes do nosso Camões. (Caminha estremece e faz um gesto de má vontade) Uns versos como elle os sabe fazer. (A parte) Dóe-lhe a noticia. (Alto) Mas, deveras, não sabeis do encontro de Camões com o duque de Aveiro? CAMINHA. Não. D. MANOEL. Foi o proprio duque que m’o contou agora mesmo, ao vir de estar com El-rei... CAMINHA. Que houve então ? D. MANOEL. Eu vol-o digo; achavam-se hontem, na egreja do Amparo, o duque e o poeta... CAMINHA, com enfado. O poeta! o poeta! Não é mais que engenhar ahi uns pêccos versos, para ser logo poeta! Desperdiçaes o vosso enthusiasmo, senhor D. Manoel. Poeta é o nosso Sá, o meu grande Sá! Mas, esse arruador, esse brigão de horas mortas… D. MANOEL. Parece-vos então…? CAMINHA.' Que esse moço tem algum engenho, muito menos do que lhe diz a presumpção d’elle e a cegueira dos amigos; algum engenho não lhe nego eu. Faz sonetos soffriveis. E canções... digo-vos que li uma ou duas, não de todo mal alinhavadas. Pois então? Com bôa vontade, mais esforço, menos soberba, gastando as noites, não a folgar pelas locandas de Lisboa, mas a meditar os poetas italianos, digo-vos que póde vir a ser... D. MANUEL. Acabae. CAMINHA. Está acabado: um poeta soffrivel. D. MANOEL. Devéras? Lembra-me que já isso mesmo lhe negastes. CAMINHA, sorrindo. No meu epigramma, não? E nego-lh’o o ainda agora, se não fizer o que vos digo. Pareceu-vos gracioso o epigramma? Fil-o por desenfado, não por odio... Dizei, que tal vos pareceu elle? D. MANOEL. Injusto, mas gracioso. CAMINHA. Sim? Tenho em mui boa conta o vosso parecer. Algum tempo suppuz que me desdenhaveis. Não era impossivel que assim fosse. Intrigas da côrte dão azo a muita injustiça; mas principalmente acreditei que fossem artes d’esse rixôso... Turo-vos que elle me tem odio. D. MANOEL, O Camões? CAMINHA. Tem, tem... D. MANOEL. Porque? CAMINHA. Não sei, mas tem. Adeus. D. MANOEL. Ides-vos? CAMINHA. Vou a El-rei, e depois ao meu senhor infante. (Corteja-o e dirige-se para a porta da direita D. Manoel dirige-se para o fundo.) D. MANOEL, andando. Eu já vi a taverneiro Vender vacca por carneiro... CAMINHA, volta-se. Recitaes versos?... São vossos?... Não me negueis o gosto de vos ouvir. D. MANOEL. Meus não; são de Camões... (Repete-os descendo a scena.) Eu já vi a taverneiro Vender vacca por carneiro... CAMINHA, sarcastico. De Camões?... Galantes são. Nem Virgilio os daria melhores. Ora, fazei o favor de repetir commigo: Eu já vi a taverneiro Vender vacca por carneiro... E depois? vá, dizei-me o resto, que não quero perder iguaria de tão fino sabor. D. MANOEL. O duque do Aveiro e o poeta encontraram-se hontem na egreja do Amparo. O duque prometteu ao poeta mandar-lhe uma gallinha da sua mesa, mas só lhe mandou um assado. Camões retorquiu-lhe com estes versos, que o proprio duque me mostrou agora a rir: Eu já vi a taverneiro, Vender vacca por carneiro; Mas, não vi, por vida minha, Vender vacca por gallinha, Senão ao duque de Aveiro. Confessae, confessae, senhor Caminha, vós que sois poeta, confessae que ha ahi certo pico, e uma simpleza de dizer... Não vale tanto de certo como os sonetos d’elle, alguns dos quaes são sublimes, aquelle, por exemplo: De amor escrevo, de amor trato e vivo... ou este: Tanto do meu estado me acho incerto... Sabeis a continuação? CAMINHA. Até lhe sei o fim: Se me pergunta alguem porque assim ando Respondo que não sei, porém suspeito Que só porque vos vi, minha senhora. (Fitando-lhe muito os olhos.) Esta senhora... Sabeis vós, de certo, quem é esta senhora do poeta como eu o sei, como o sabem todos... Naturalmente amam-se ainda muito?... D. MANOEL, aparte. Que quererá elle? CAMINHA. Amam-se por força. D. MANOEL. Cuido que não. CAMINHA. Que não? D. MANOEL. Acabou como tudo acaba. CAMINHA, sorrindo. Andae lá; não sei se me dizeis tudo. Amigos sois, e não é impossivel que tambem vós... Onde está a nossa gentil senhora D. Francisca de Aragão? D. MANOEL. Que tem? CAMINHA. Vêde: um simples nome vos faz estremecer de cólera. Mas, abrandae a cólera, que não sou vosso inimigo; mui ao contrario; amo-vos, e a ella tambem... e respeito-a muito. Um para o outro nascestes. Mas, adeus, faz-se tarde, vou ter com El-rei. (Sáe pela direita.) SCENA II D. MANOEL DE PORTUGAL Este homem! Este homem!... Como se os versos d’elle, duros e ensôssos... (Vae á porta por onde Caminha saiu, e levanta o reposteiro). Lá vae elle; vae cabisbaixo; rumina talvez alguma cousa. Que não sejam versos! (Ao fundo apparecem D. Antonio de Lima e D. Catharina de Athayde.) SCENA III D. MANOEL DE PORTUGAL, D. CATHARINA DE ATHAYDE, D. ANTONIO DE LIMA D. ANTONIO DE LIMA. Que espreitaes ahi, senhor D. Manoel? D. MANOEL. Estava a vêr o porte elegante de nosso Caminha. Não vades suppôr que era alguma dama. (Levanta o reposteiro.) Olhae, lá vae elle a desapparecer. Vae a El-rei. D. ANTONIO. Também eu. Tu, não, minha boa Catharina. A rainha espera-vos. (D. Catharina faz uma reverencia e caminha para a porta da esquerda.) Ide, ide, minha gentil flôr... (A D. Manoel.) Gentil, não a achaes? D. MANOEL. Gentilissima. D. ANTONIO. Agradecei, Catharina. D. CATHARINA. Agradeço; mas o certo é que o senhor D. Manoel é rico de louvores... D. MANOEL. Eu podia dizer que a natureza é que foi comvosco pródiga de graças; mas, não digo; seria repetir mal aquillo que só poetas podem dizer bem. (D. Antonio fecha o rosto.) Dizem que também sou poeta, é verdade; não sei; faço versos. Adeus, senhor D. Antonio... (Corteja-os e sáe. D. Catharina vae a entrar á esquerda. D. Antonio detem-n'a.) SCENA IV D. ANTONIO DE LIMA, D. CATHARINA DE ATHAYDE D. ANTONIO. Ouviste aquillo? D. CATHARINA, parando. Aquillo? D. ANTONIO. « Que só poetas podem dizer bem » foram as palavras d’elle. (D. Catharina approxima-se.) Vês tu, filha? Tão divulgadas andam já essas cousas, que até se dizem nas barbas de teu pae! D. CATHARINA. Senhor, um gracejo... D. ANTONIO, enfadando-se. Um gracejo injurioso, que eu não consinto, que não quero, que me dóe... Que só poetas podem dizer bem! E que poeta! Pergunta ao nosso Caminha o que é esse atrevido, o que vale a sua poesia... Mas, que seja outra e melhor, não a quero para mim, nem para ti. Não te criei para entregar-te ás mãos do primeiro que passa, e lhe dá na cabeça haver-te. D. CATHARINA, procurando moderal-o. Meu pae... D. ANTONIO. Teu pae, e teu senhor ! D. CATHARINA. Meu senhor e pae... juro-vos que... juro-vos que vos quero e muito... Por quem sois, não vos irriteis contra mim! D. ANTONIO. Jura que me obedecerás. D. CATHARINA. Não é essa a minha obrigação ? D. ANTONIO. Obrigação é, e a mais grave de todas. Olha-me bem, filha; eu amo-te como pae que sou. Agora, anda, vae. SCENA V D. ANTONIO DE LIMA, D. CATHARINA DE ATHAYDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO D. ANTONIO. Mas não, não vás sem falar á senhora D. Francisca de Aragão, que ahi nos apparece, fresca como a rosa que desabotoou agora mesmo, ou como dizia a farça do nosso Gil Vicente, que eu ouvi ha tantos annos, por tempo do nosso serenissimo senhor D. Manoel... Velho estou, minha formosa dama... D. FRANCISCA. E que dizia a farça? D. ANTONIO. A farça dizia: É bonita como estrella, Uma rosinha de Abril, Uma frescura de Maio, Tão manhosa, tão subtil! Vêde que a farça adivinhava já a nossa D. Francisca de Aragão, uma frescura de Maio, tão manhosa, tão subtil... D. FRANCISCA. Manhosa, eu? D. ANTONIO. E subtil. Não vos esqueça a rima, que é de lei. (Vae a sair pela porta da direita; apparece Camões.) SCENA VI Os MESMOS, CAMÕES D. CATHARINA, aparte. Elle! D. FRANCISCA, baixo a D. Catharina. Socegae! D. ANTONIO. Vinde cá, senhor poeta das gallinhas. Já me chegou aos ouvidos o vosso lindo epigramma. Lindo, sim; e estou que não vos custaria mais tempo a fazel-o do que eu a dizer-vos que me divertiu muito... E o duque? O duque, ainda não emendou a mão? Ha de emendar, que não é nenhum mesquinho. CAMÕES, alegremente. Pois El-rei deseja o contrario... D. ANTONIO. Ah! Sua Alteza falou-vos d’isso?... Contar-m’o- heis em tempo. (A D. Catharina, com intenção.) Minha filha e senhora, não ides ter com a rainha? eu vou falar a El-rei. (D. Catharina corteja-os e dirige-se para a esquerda; D. Antonio sae pela direita.) SCENA VII Os MESMOS, menos D. ANTONIO DE LIMA (D. Catharina quer sair, D. Francisca de Aragão detem-n' a.) D. FRANCISCA. Ficae, ficae... D). CATHARINA. Deixae-me ir! CAMÕES. Fugis de mim ? D. CATHARINA. Fujo... Assim o querem todos. CAMÕES. Todos! todos quem? D. FRANCISCA, indo a Camões. Socegae. Tendes, na verdade, um genio, uns espiritos... Que ha de ser? Corre a mais e mais a noticia dos vossos amores... e o senhor D. Antonio, que é pae, e pae severo... CAMÕES, vivamente, a D. Catharina. Ameaça-vos? D. CATHARINA. Não; dá-me conselhos... bons conselhos, meu Luiz. Não vos quer mal, não quer... Vamos lá; eu é que sou desatinada. Mas, passou. Dizei-nos lá esses versos de que falaveis ha pouco. Um epigramma, não é? Ha de ser tão bonito como os outros... menos um. CAMÕES. Um? D. CATHARINA. Sim, o que fizestes a D. Guiomar de Blasfé. CAMÕES, com desdem. Que monta? Bem frouxos versos. D. FRANCISCA. Não tanto; mas eram feitos a D. Guiomar, e os peiores versos d’este mundo são os que se fazem a outras damas. (A D. Cathiarina.) Acertei? (A Camões.) Ora, andae, vou deixar-vos; dizei o caso do vosso epigramma, não a mim, que já o sei de cór, porém a ella que ainda não sabe nada... E que foi que vos disse El-rei ? CAMÕES. El-rei viu-me, e dignou-se chamar-me; fitou-me um pouco a sua real vista, e disse com brandura: — « Tomára eu, senhor poeta, que todos os duques vos faltem com gallinhas, por que assim nos alegrareis com versos tão chistosos. » D. FRANCISCA. Disse-vos isto? é um grande espirito El-rei! D. CATHARINA, a D. Francisca. Não é? (A Camões.) E vós que lhe dissestes? CAMÕES. Eu? nada... ou quasi nada. Era tão inopinado o louvor que me tomou a fala. E, comtudo, se eu pudesse responder agora... agora que recobrei os espiritos... dir-lhe-hia que ha aqui (leva a mão á fronte), alguma cousa mais do que simples versos de desenfado... dir-lhe-hia que... (Fica absorto um instante, depois olha alternadamente para as duas damas, entre as quaes se acha.) Um sonho... A’s vezes cuido conter cá dentro mais do que a minha vida e o meu seculo... Sonhos... sonhos! A realidade é que vós sois as duas mais lindas damas da christandade, e que o amor é a alma do universo! D. FRANCISCA. O amor e a espada, senhor brigão! CAMÕES, alegremente. Porque me não dáes logo as alcunhas que me hão de ter posto os poltrões do Rocio? Vingam-se com isso, que é a desforra da poltroneria... Não sabeis? Naturalmente não; vós gastaes as horas nos lavores e recreios do paço; mora aqui a doce paz do espirito... D. CATHARINA, com intenção. Nem sempre. D. FRANCISCA, a Camões, sorrindo. Isto é comvosco; e eu, que posso ser indiscreta, não me detenho a ouvir mais nada. (Dá alguns passos para o fundo.) D. CATHARINA. Vinde cá... D. FRANCISCA. Vou-me... vou a consolar o nosso Caminha, que ha de estar um pouco enfadado... Ouviu elle o que El-rei vos disse? CAMÕES. Ouviu; que tem ? D. FRANCISCA. Não ouviria de boa sombra. CAMÕES. Póde ser que não... dizem-me que não. (A D. Catharina) Pareceis inquieta... D. CATHARINA, a D. Francisca. Não vades, não vades; ficae um instante. CAMÕES, a D. Francisca. Irei eu. D. FRANCISCA. Não, senhor; irei eu só. (Sae pelo fundo.) SCENA VIII CAMÕES, D. CATHARINA DE ATHAYDE CAMÕES, com uma reverencia. Irei eu. Adeus, minha senhora D. Catharina de Athayde! (D. Catharina dá um passo para elle.) Mantenha-vos Deus na sua santa guarda. D. CATHARINA. Não... vinde cá... (Camões detem-se.) Enfadei-vos? Vinde um pouco mais perto. (Camões approxima-se.) Que vos fiz eu? Duvidaes de mim? CAMÕES Cuido que me querieis ausente. D. CATHARINA. Luiz! (Inquieta.) Vêde esta sala, estas paredes… falarmos a sós... Duvidaes de mim? CAMÕES. Não duvido de vós; não duvido da vossa ternura; da vossa firmeza é que eu duvido. D. CATHARINA. Receiaes que fraqueie algum dia? CAMÕES. Receio; chorareis muitas lagrimas, muitas e amargas... mas, cuido que fraqueareis. D. CATHARINA. Luiz! juro-vos... CAMÕES. Perdoae, se vos offende esta palavra. Ella é sincera; subiu-me do coração á boca. Não posso guardar a verdade; perder-me-hei algum dia por dizel-a sem rebuço. Assim me fez a natureza, assim irei á sepultura. D. CATHARINA. Não, não fraquearei, juro-vos. Amo-vos muito, bem o sabeis. Posso chegar a affrontar tudo, até a cólera de meu pae. Vêde lá, estamos a sós; se nos vira alguem... (Camões dá um passo para sair.) Não, vinde cá. Mas, se nos vira alguem, defronte um do outro, no meio de uma sala deserta, que pensaria? Não sei que pensaria; tinha medo ha pouco; já não tenho medo... amor sim... O que eu tenho é amor, meu Luiz. CAMÕES. Minha boa Catharina. D. CATHARINA. Não me chameis boa, que eu não sei se o sou... Nem boa, nem má. CAMÕES. Divina sois! D. CATHARINA. Não me deis nomes que são sacrilegios. CAMÕES. Que outro vos cabe? D. CATHARINA. Nenhum. CAMÕES. Nenhum? — Simplesmente a minha doce e formosa senhora D. Catharina de Athayde, uma nympha do paço, que se lembrou de amar um triste escudeiro, sem reparar que seu pae a guarda para algum solar opulento, algum grande cargo de camareira-mór. Tudo isso havereis, emquanto que o coitado de Camões irá morrer em Africa ou Asia... D. CATHARINA. Teimoso sois! Sempre essas ideias de Africa... CAMÕES. Ou Asia. Que tem isso? Digo-vos que, ás vezes, a dormir, imagino lá estar, longe dos galanteios da corte, armado em guerra, diante do gentio. Imaginae agora... D. CATHARINA. Não imagino nada; vós sois meu, tão só meu, tão sómente meu. Que me importa o gentio, ou o Turco, ou que quer que é, que não sei, nem quero? Tinha que ver, se me deixaveis, para ir ás vossas Africas... E os meus sonetos? Quem m’os havia de fazer, meu rico poeta? CAMÕES. Não faltará quem vol-os faça, e da maior perfeição. D. CATHARINA Póde ser; mas eu quero-os ruins, como os vossos... como aquelle da Circe, o meu retrato, dissesteis vós. CAMÕES, recitando. Um mover de olhos, brando e piedoso, Sem ver de que um riso brando e honesto, Quasi forçado; um doce e humilde gesto, De qualquer alegria duvidoso... D. CATHARINA Não acabeis, que me obrigarieis a fugir de vexada. CAMÕES. De vexada! Quando é que a rosa se vexou, porque o sol a beijou de longe? D. CATHARINA. Bem respondido, meu claro sol. CAMÕES. Deixae-me repetir que sois divina. Nathercia minha, póde a sorte separar-nos, ou a morte de um ou de outro; mas o amor subsiste, longe ou perto, na morte ou na vida, no mais baixo estado, ou no cimo das grandezas humanas, não é assim? Deixae-me crêl-o, ao menos; deixae-me crêr que ha um vinculo secreto e forte, que nem os homens, nem a propria natureza poderia já destruir. Deixae-me crêr... Não me ouvis? D. CATHARINA, enlevada. Ouço, ouço. CAMÕES. Crér que a ultima palavra de vossos labios será o meu nome. Será?... Tenha eu esta fé, e não se me dará da adversidade; sentir-me-hei afortunado e grande. Grande, ouvis bem? Maior que todos os demais homens. D. CATHARINA. Acabae! CAMÕES. Que mais? D. CATHARINA. Não sei; mas é tão doce ouvir-vos! Acabae, acabae, meu poeta! Ou antes, não, não acabeis; falae sempre, deixae-me ficar perpetuamente a escutar-vos. CAMÕES. Ai de nós! A perpetuidade é um simples instante, um instante em que nos deixam sós n’esta sala! (D. Catharina afasta-se rapidamente.) Olhae; só a ideia do perigo vos arredou de mim. D. CATHARINA. Na verdade, se nos vissem... Se alguém ahi, por esses reposteiros... Adeus... CAMÕES. Medrosa, eterna medrosa! D. CATHARINA. Póde ser que sim; mas não está isso mesmo no meu retrato? Um encolhido ousar, uma brandura, Um medo sem ter culpa; um ar sereno, Um longo e obediente sofrimento... CAMÕES. Esta foi a celeste formosura Da minha Circe, e o mágico veneno Que pôde transformar meu pensamento. D. CATHARINA, indo a elle. Pois então? A vossa Circe manda-vos que não duvideis d’ella, que lhe perdoeis os medos, tão proprios do logar e da condição; manda-vos crer e amar. Se ella ás vezes foge, é porque a espreitam; se vos não responde, é porque outros ouvidos poderiam escutal-a. Entendeis? É o que vos manda dizer a vossa Circe, meu poeta... e agora... (Estende-lhe a mão.) Adeus! CAMÕES. Ides-vos? D. CATHARINA. A rainha espera-me. Audazes fomos, Luiz. Não desafiemos o paço... que esses reposteiros... CAMÕES. Deixa-me ir ver! D. CATHARINA, detendo-o. Não, não. Separemos-nos. CAMÕES. Adeus! (D. Catharina dirige-se para a porta da esquerda; Camões olha para a porta da direita.). D. CATHARINA. Andae, andae! CAMÕES. Um instante ainda! D. CATHARINA. Imprudente! Por quem sois, ide-vos, meu Luiz CAMÕES. A Rainha espera-vos! D. CATHARINA. Espera. CAMÕES. Tão raro é ver-vos! D. CATHARINA. Não affrontemos o céu... podem dar comnosco... CAMÕES. Que venham! Tomara eu que nos vissem! Bradaria a todos o meu amor, e á fé quc o faria respeitar! D. CATHARINA, afflicta, pegando-lhe na mão. Reparae, meu Luiz, reparae; onde estaes, quem eu sou, o que são estas paredes... domae esse genio arrebatado. Peço-vol-o eu. Ide-vos em boa paz, sim? CAMÕES. Viva a minha corça gentil, a minha timida corça! Ora vos juro que me vou, e de corrida. Adeus! D. CATHARINA. Adeus! CAMÕES, com mão della presa. Adeus! D. CATHARINA. Ide... deixae-me ir! CAMÕES. Hoje ha luar; se virdes um embuçado deante das vossas janellas, quedado a olhar para cima, desconfiae que sou eu; e então, já não é sol a beijar de longe uma rosa, é o goivo que pede calor a uma estrella. D. CATHARINA. Cautela, não vos reconheçam. CAMÕES. Cautela haverei; mas que me reconheçam, que tem isso? embargarei a palavra ao importuno. D. CATHARINA. Socegae. Adeus! CAMÕES. Adeus! (D. Catharina dirige-se para a porta da esquerda, e pára deante d'ella, á espera que Camões sáia. Camões corteja-a com um gesto gracioso, e dirige-se para o fundo. — Levanta-se o reposteiro da porta da direita, e apparece Caminha. D. Catharina dá um pequeno grito, e sae precipitadamente. — Camões detem-se. Os dous homens olham-se por um instante.) SCENA IX CAMÕES, CAMINHA. CAMINHA, entrando. Discreteaveis com alguem, ao que parece. CAMÕES. É verdade. CAMINHA. Ouvi de longe a vossa fala, e reconheci-a. Vi logo que era o nosso poeta, de quem tratava ha pouco com alguns fidalgos. Sois o bem amado, entre os ultimos de Coimbra. — Com que, discreteaveis... Com alguma dama? CAMÕES. Com uma dama. CAMINHA. Certamente formosa, que não as ha de outra casta n’estes reaes paços. Sua Alteza, cuido que continuará, e ainda em bem, algumas boas tradições de El-rei seu pae. Damas formosas, e, quanto possivel, lettradas. São estes, dlizem, os bons costumes italianos. É vós, senhor Camões, porque não ides a Italia? CAMÕES. Irei á Italia, mas passando por Africa. CAMINHA. Ah! ah! para lá deixar primeiro um braço, uma perna, ou um olho... Não, poupae os olhos, que são o feitiço d’essas damas da côrte; poupae também a mão, com que nos haveis de escrever tão lindos versos; isto vos digo que poupeis... CAMÕES. Uma palavra, senhor Pedro de Andrade, uma só palavra, mas sincera. CAMINHA. Dizei. CAMÕES. Dissimulaes algum outro pensamento. Revelaem’o... intimo-vos que m’o reveleis. CAMINHA. Ide a Italia, senhor Camões, ide a Italia. CAMOES. Não resistireis muito tempo ao que vos mando. CAMINHA. Ou a Africa, se o quereis... ou a Babylonia... A Babylonia é melhor; levae a harpa ao desterro, mas em vez de a pendurar de um salgueiro, como na Escriptura, cantar-nos-heis a linda copia da gallinha, ou comporeis umas outras voltas ao mote, que já vos serviu tão bem: Perdigão perdeu a penna, Não ha mal que lhe não venha, Ide a Babylonia, senhor Perdigão! CAMÕES, pegando-lhe no pulso. Por vida minha, calae-vos! CAMINHA. Vêde o lugar em que estaes. CAMÕES, solta-o. Vejo; vejo também quem sois; só não vejo o que odiaes em mim. CAMINHA. Nada. CAMÕES. Nada? CAMINHA. Cousa nenhuma. CAMÕES. Mentis pela gorja, senhor camareiro. CAMINHA. Minto? Vêde lá; ia-me deixando arrebatar, ia conspurcando com alguma villania esta sala de El-iei. Retraí-me a tempo. Menti, dizeis vós? Póde ser que sim, porque eu creio que effectivamente vos odeio, mas só ha um instante, depois que me pagastes com uma injuria o aviso que vos dei. CAMÕES. Um aviso? CAMINHA. Nada menos. Queria eu dizer-vos que as paredes do paço nem são mudas, nem sempre são caladas. CAMÕES. Não serão; mas eu as farei caladas. CAMINHA. Póde ser. Essa dama era... CAMÕES. Não reparei bem, CAMINHA. Fizestes mal; é prudencia reparar nas damas; prudencia e cortezia. Com quê, ides a Africa? Lá estão os nossos em Mazagão, commettendo façanhas contra essa canalha de Mafamede; imitae-os. Vede, não deixeis lá esse braco, com que nos haveis de calar as paredes e os reposteiros. É conselho de amigo. CAMÕES. Porque serieis meu amigo? CAMINHA. Não digo que o seja; o conselho é o que é. CAMÕES. Credes, então...? CAMINHA. Que poupareis uma grande dôr e um maior escandalo. CAMÕES. Percebo-vos. Imaginaes que amo alguma dama? Supponhamos que sim. Qual é o meu delicto? Em que ordenação, em que rescripto, em que bulla, em que escriptura, divina ou humana, foi já dado como delicto amarem-se duas creaturas? CAMINHA. Deixae a côrte. CAMÕES. Digo-vos que não. CAMINHA. Oxalá que não! CAMÕES, áparte. Este homem... que ha neste homem? lealdade ou perfidia? (Alto) Adeus, senhor Caminha. (Pára no meio da scena.) Porque nao tratámos de versos?... Fôra muito melhor... CAMINHA. Adeus, senhor Camões. (Camões sae.) SCENA X CAMINHA, logo D . CATHARINA DE ATHAYDE CAMINHA. Ide, ide, magro poeta de camarins... (Desce ao proscênio) Era ella, de certo, era ella que ahi estava com elle, no meio do paço, esquecidos de El-rei e de todos... Oh temeridade do amor! Do amor ?... elle... elle... Mas seria ella devéras?... Que outra podia ser? D. CATHARINA, espreita e entra. Senhor... senhor!... CAMINHA. Ella ! D. CATHARINA. Ouvi tudo... tudo o que lhe dissestes... e peço-vos que não nos façaes mal. Sois amigo de meu pae, elle é vosso amigo; não lhe digaes nada. Fui imprudente, fui, mas que quereis? (Vendo que Caminha não diz nada) Então? falae... poderei contar comvosco? CAMINHA. Commigo? (D. Catharina, inquieta e afflicta, pega-lhe na mão; elle retira-lh’a com aspereza) Contar commigo! Para que, minha senhora D. Catharina? Amaes um mancebo digno, porque vós o amaes... muito, não? D. CATHARINA. Muito. CAMINHA. Muito! Muito, dizeis... E éreis vós que estaveis aqui, com elle, nesta sala solitaria, juntos um do outro, a falarem naturalmente do céu e da terra... ou só do céu, que é a terra dos namorados. Que dizieis?... D. CATHARINA, baixando os olhos. Senhor... CAMINHA. Galanteios, galanteios, de que se ha de falar lá fóra... (Gesto de D. Catharina) Ah! Cuidaes que estes amores nascem e morrem no paço? — Não; passam além; descem á rua, são o mantimento dos ociosos, e ainda dos que trabalham, porque, ao serão, principalmente nas noites de inverno, em que se ha de occupar a gente, depois de fazer as suas orações? Com quê, éreis vós? Pois digo-vos que o não sabia; suspeitava, porque não podia talvez ser outra... E confessaes que lhe quereis muito. Muito? D. CATARINA. Póde ser fraqueza; mas crime... onde está ocrime? CAMINHA. O crime está em deshonrar as cans de um nobre homem, arrastando-lhe o nome por viélas e praças; o crime está em escandalisar a côrte, com essas ternuras, improprias do alto cargo cjue exerceis, do vosso sexo e estado... esse é o crime. E parece-vos pequeno? D. CATHARINA. Bem; desculpae-me, não direis nada... CAMINHA. Não sei. D. CATHARINA. Peço-vol-o... de joelhos até... (Faz um gesto para ajoelhar-se, elle impede-lh’o.) CAMINHA. Perdereis o tempo; eu sou amigo de vosso pae. D. CATHARINA. Contar-lhe-heis tudo? CAMINHA. Talvez. D. CATHARINA. Bem m’o diziam sempre; sois inimigo de Camões. CAMINHA. E sou. D. CATHARINA. Que vos fez elle? CAMINHA. Que me fez? (Pausa) D. Catharina de Athayde, quereis saber o que me fez o vosso Camões? Não é só a sua soberba que me affronta; fosse só isso, e que me importava um frouxo cirzidor de palavras, sem arte, nem conceito? D. CATHARINA. Acabae. CAMINHA. Também não é porque elle vos ama, que eu o odeio; mas vós, senhora D. Catharina de Athayde, vós o amaes... eis o crime de Camões. Entendeis? D. CATHARINA, depois de um instante de assombro. Não quero entender. CAMINHA. Sim, que tambem eu vos quero, ouvis? — E quero-vos muito... mais do que elle, e melhor do que elle; porque o meu amor tem o impulso do odio, nutre-se do silencio, o desdem o avigora, e não faço alarde nem escandalo; é um amor... D. CATHARINA. Caláe-vos! Pela Virgem, calae-vos! CAMINHA. Que me cale? Obedecerei. (Faz uma reverencia) Mandaes alguma outra cousa? D. CATHARINA. Não, ficae. Jurae-me que não direis cousa nenhuma... CAMINHA. Depois da confissão que vos fiz, esse pedido chega a ser mofa. Que não diga nada? Direi tudo, revelarei tudo a vosso pae. Não sei se a acção é má ou bôa; sei que vos amo, e que detesto esse rufião, a quem vadios deram fóros de lettrado. D. CATHARINA. Senhor! É de mais!... CAMINHA. Defendeil-o, não é assim? D. CATHARINA. Odeae-o, se vos apraz; insultal-o, é que não é de cavalleiro... CAMINHA. Que tem? O amor despresado sangra e fere. D. CATHARINA. Deixae que lhe chame um amor villão. CAMINHA. Sois vós agora que me injuriaes. Adeus, senhora D. Catharina de Athayde! (Dirige-se para o fundo.) D. CATHARINA, tomando-lhe o passo. Não! Agora não vos peço... intimo-vos que vos caleis. CAMINHA. Que recompensa me daes? D. CATHARINA. A vossa consciência. CAMINHA. Deixae em paz os que dormem. Não vos peço nada. Quereis que vos prometta alguma cousa? Uma só cousa prometto; não contar a vosso pae o que se passou. Mas, se por denuncia ou desconfiança, fôr interrogado por elle, então lhe direi tudo. E duas vezes farei bem: — não faltarei á verdade, que é dever de cavalleiro; e depois... chorareis lagrimas de sangue; e eu prefiro ver-vos chorar a ver-vos sorrir. A vossa angustia será a minha consolação. Onde fallecerdes de pura saudade, ahi me glorificarei eu. Chamae-me agora perverso, se o quereis, eu respondo que vos amo... e que não tenho outra virtude. (Vae a sair, encontra-se com D. Francisca de Aragão; corteja-a e sae.) SCENA XI D. CATHARINA DE ATHAYDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO D. FRANCISCA. Vae affrontado o nosso poeta. Que terá elle? (Reparando em D. Catharina) Que tendes vós?... que foi? D. CATHARINA. Tudo sabe. D. FRANCISCA. Quem? D. CATHARINA. Esse homem. Achou-nos n’esta sala; eu tive medo ; disse-lhe tudo. D. FRANCISCA. Imprudente ! D. CATHARINA. Duas vezes imprudente; dei-me estar ao lado do meu Luiz, a ouvir-lhe as palavras tão nobres, tão apaixonadas... e o tempo corria... e podiam espreitar-nos... Crêdes que o Caminha diga alguma cousa a meu pae? D. FRANCISCA. Talvez não. D. CATHARINA. Quem sabe? Elle ama-me. D. FRANCISCA. O Caminha? D. CATHARINA. Disse-m’o agora. Que admira? acha-me formosa como os outros. Triste dom é esse. Sou formosa para não ser feliz, para ser amada ás occultas, odiada ás escancaras, e, talvez... Se meu pae vier a saber... que fará elle, amiga minha ? D. FRANCISCA. O senhor D. Antonio é tão severo! D. CATHARINA. Irá ter com El-iei, pedir-lhe-ha que o castigue, que o encarcere, não? E por minha causa... Não; primeiro irei eu... (Dirige-se para a porta da direita). D. FRANCISCA. Onde ides? D. CATHARINA. Vou falar a El-rei... Ou, não... (Encaminha-se para a porta da esquerda). Vou ter com a rainha; contar-lhe-hei tudo; ella me amparará. Credes que não? D. FRANCISCA. Creio que sim. D. CATHARINA. Irei, ajoelhar-me-hei a seus pés. Ella é rainha, mas é também mulher... e ama-me. (Sae pela esquerda.) SCENA XII D. FRANCISCA DE ARAGÃO, D. ANTONIO DE LIMA, depois D. MANOEL DE PORTUGAL. D. FRANCISCA, depois de um instante de reflexão. Talvez chegue cedo de mais. (Dá um passo para a porta da esquerda.) Não; melhor é que lhe fale... mas, se se aventa a noticia? Meu Deus, não sei... não sei... Ouço passos... (Entra D. Antonio de Lima). Ah! D. ANTONIO. Que foi? D. FRANCISCA. Nada, nada... não sabia quem era. Sois vós... (Risonha.) Chegaram galeões da Asia; boas noticias, dizem... D. ANTONIO, sombrio. Eu não ouvi dizer nada. (Querendo retirar-se.) Permittis?... D. FRANCISCA. Jesus! Que tendes?... que ar é esse? (Vendo entrar D. Manoel de Portugal.) Vinde cá, senhor. D. Manoel de Portugal, vinde saber o que tem este meu bom e velho amigo, que me não quer... (Segurando na mão de D. Antonio.) Então, eu já não sou a vossa frescura de Maio?... D. ANTONIO. sorrindo, a custo. Sois, sois. Manhosamente subtil, ou subtilmente manhosa, á escolha; eu é que sou uma triste seccura de Dezembro, que me vou e vos deixo. Permittis, não? (Corteja-a e dirige-se para a porta.) D. MANOEL, interpondo-se. Deixae que vos levante o reposteiro. (Levanta o reposteiro.) Ides ter com Sua Alteza, supponho? D. ANTONIO. Vou. D. MANOEL. Ides levar-lhe noticias da India? D. ANTONIO. Sabeis que não é o meu cargo... D. MANOEL... Sei. sei; mas dizem que... Senhor D. Antonio, acho-vos o rosto annuviado, alguma cousa vos penalisa ou turva. Sabeis que sou vosso amigo; perdoae se vos interrogo. Que foi? que ha? D. ANTONIO, gravemente. Senhor D. Manoel, tendes vinte e sete annos, eu conto sessenta; deixae-me passar. (D. Manoel inclina-se, levantando o reposteiro. D. Antonio desapparece.) SCENA XIII D. MANOEL DE PORTUGAL, D. FRANCISCA DE ARAGÃO. D. MANOEL. Vae dizer tudo a El-rei. D. FRANCISCA Crêdes? D. MANOEL. Camões contou-me o encontro que tivera com o Caminha aqui; eu ia falar ao senhor D. Antonio; achei-o agora mesmo, ao pé de uma janella, com o dissimulado Caminha, que lhe dizia? « Não vos nego, senhor D. Antonio, que os achei naquella sala, a sós, e que vossa filha fugiu desde que eu lá entrei. » D. FRANCISCA. Ouvistes isso? D. MANOEL. D. Antonio ficou severo e triste. « Querem escandalo?... » foram as suas palavras. E não disse outras; apeitou a mão ao Caminha, e seguiu para cá... Penso que foi pedir alguma cousa a El-rei. Talvez o desterro. D. FRANCISCA. O desterro? D. MANOEL. Talvez, Camões ha de voltar agora aqui; disse-me que viria falar ao senhor D Antonio. Para que? Que outros lhe falem sim: mas o meu Luiz que não sabe conter-se... D. Catharina? D. FRANCISCA. Foi lançar-se aos pés da rainha, a pedir-lhe protecção. D. MANOEL. Outra imprudencia. Foi ha muito? D. FRANCISCA. Pouco ha. D. MANOEL. Ide ter com ella, se é tempo, e dizei-lhe que não, que não convem falar nada. (D. Francisca vae a sair, e pára.) Recusaes? D. FRANCISCA. Vou, vou. Pensava commigo uma cousa. (D. Manoel vae a ella.) Pensava que é preciso querer muito áquelles dois para nos esquecermos assim de nós. D. MANOEL. É verdade. E não ha mais nobre motivo da nossa mutua indifferença. Indifferença, não; não o é, nem o podia ser nunca. No meio de toda essa angustia que nos cérca, poderia eu esquecer a minha doce Aragão? Podereis vos esquecer-me? Ide agora, nós que somos felizes, temos o dever de consolar os desgraçados, (D. Francisca sae pela esquerda.) SCENA XIV D. MANOEL DE PORTUGAL, logo D. ANTONIO DE LIMA. D. MANOEL. Se pérco o confidente dos meus amores, da minha mocidade, o meu companheiro de longas horas... Não é impossivel. — El-rei concederá o que lhe pedir D. Antonio. A culpa, — força é confessal-o — a culpa é d’elle, do meu Camões, do meu impetuoso poeta; um coração sem freio… (Abre-se o reposteiro, apparece D. Antonio.) D. Antonio! D. ANTONIO, da porta, jubiloso. Interrogastes-me ha pouco; agora hei tempo de vos responder. D. MANOEL. Talvez não seja preciso. D. ANTONIO, adianta-se. Adivinhaes então? D. MANOEL. Póde ser que sim. D. ANTONIO. Creio que adivinhaes. D. MANOEL. Sua Alteza concedeu-vos o desterro de Camões. D. ANTONIO. Esse é o nome da pena; a realidade é que Sua Alteza restituiu a honra a um vassallo, e a paz a um ancião. D. MANOEL. Senhor D. Antonio... D. ANTONIO. Nem mais uma palavra, senhor D. Manoel de Portugal, nem mais uma palavra. — Mancebo sois; é natural que vos ponhaes do lado do amor; eu sou velho, e a velhice ama o respeito. Até á vista, senhor D. Manoel, e não turveis o meu contentamento. (Dá um passo para sair.) D. MANOEL. Se mataes vossa filha? D. ANTONIO. Não a matarei. Amores faceis de curar sao esses que ahi brotam no meio de galanteios e versos. Versos curam tudo. Só não curam a honra os versos; mas para a honra dá Deus um rei austero, e um pae inflexivel... Até á vista, senhor D. Manoel. (Sae pela esquerda.) SCENA XV D. MANOEL DE PORTUGAL, CAMÕES. D. MANOEL. Perdido... está tudo perdido. (Camões entra pelo fundo.) Meu pobre Luiz! Se soubesses... CAMÕES. Que ha? D. MANOEL. El-rei... El-rei attendeu ás supplicas do Senhor D. Antonio. Está tudo perdido. CAMÕES E que pena me cabe? D. MANOEL. Desterra-vos da côrte. CAMÕES. Desterrado! Mas eu vou ter com Sua Alteza, eu direi... D. MANOEL, aquietando-o. Nao direis nada; não tendes mais que cumprir a real ordem; deixae que os vossos amigos façam alguma cousa; talvez logrem abrandar o rigor da pena. Vós não fareis mais do que aggraval-a. CAMÕES. Desterrado! E para onde? D. MANOEL. Não sei. Desterrado da côrte é o que é certo. Vêde... não ha mais demorar no paço. Saiamos. CAMÕES. Ahi me vou eu, pois, caminho do desterro, e não sei se da miséria! Venceu então o Caminha? Talvez os versos d’elle fiquem assim melhores. Se nos vae dar uma nova Eneida, o Caminha? Pode ser, tudo póde ser... Desterrado da côrte! Cá me ficam os melhores dias, e as mais fundas saudades. Crêde, senhor D. Manoel, podeis crêr que as mais fundas saudades cá me ficam. D. MANOEL. Tornareis, tornareis... CAMÕES. E ella? Já o saberá ella? D. MANOEL. Cuido que o senhor D. Antonio foi dizer-lh’o em pessoa. Deus! Ahi vem elles. SCENA XVI Os mesmos, D. ANTONIO DE LIMA, D. CATHARINA DE ATHAYDE. (D. Antonio apparece á porta da esquerda, trazendo D. Catharina pela mão. — D. Catharina vem profundamente abatida.) D. CATHARINA, áparte, vendo Camões. Elle! Dae-me forças; meu Deus! (D. Antonio corteja os dois, e segue na direcção do fundo. Camões dá um passo para falar-lhe, mas D. Manoel contem-n'o. D. Catharina, prestes a saír, volve a cabeça, para traz.) SCENA XVII D. MANOEL DE PORTUGAL, CAMÕES. CAMÕES. Ella ahi vae... talvez para sempre... Credes que para sempre? D. MANOEL. Não. Saiamos! CAMÕES. Vamos lá; deixemos estas salas que tão funestas me foram. (Indo ao fundo e olhando para dentro.) Ella ahi vae, á minha estrella, ahi vae a resvalar no abysmo, d’onde não sei se a levantarei mais... Nem eu... (voltando-se para D. Manoel) nem vós, meu amigo, nem vós que me quereis tanto, ninguem. D. MANOEL. Desanimaes depressa, Luiz. Porque ninguem? CAMÕES. Não saberia dizer-vos; mas sinto o aqui no coração. Essa clara luz, essa doce madrugada da minha vida, apagou-se agora mesmo, e de uma vez. D. MANOEL. Confiae em mim, nos meus amigos, nos vossos amigos. Irei ter com elles; induzil-os-hei a... CAMÕES. A que? A mortificarem um camareiro-mór, afim de servir um triste escudeiro, que já estará caminho de Africa? D. MANOEL. Ides a Africa? CAMÕES. Póde ser; sinto umas tonteiras africanas. Pois que, me fecham a porta dos amores, abrirei eu mesmo as da guerra. Irei lá pelejar, ou não sei se morrer... Africa, disse eu? Póde ser que Asia também, ou Asia só; o que me der na imaginação. D. MANOEL. Saiámos. CAMÕES. E agora, adeus, infieis paredes; sêde ao menos compassivas; guardae-m’a, guardae-m’a bem, a minha formosa D. Catharina! (A D. Manoel) Crêdes que tenho vontade de chorar? D. MANOEL. Saiámos, Luiz! CAMÕES. E não chóro, não; não chóro... não quero... (Forcejando por ser alegre.) Vedes? até rio! Vou-me para bem longe. Considerando bem, Asia é melhor; lá rematou a audacia luzitana o seu edificio, lá irei escutar o rumor dos passos do nosso Vasco. E este sonho, esta chimera, esta cousa que me flammeja cá dentro, quem sabe se... Um grande sonho, senhor D. Manoel... Vêde lá, ao longe, na immensidade d’esses mares, nunca d’antes navegados, uma figura rútila, que se debruça dos balcões da aurora, coroada de palmas indianas? É a nossa gloria, é a nossa gloria que alonga os olhos, como a pedir o seu esposo occidental. E nenhum lhe vae dar o osculo que a fecunde; nenhum filho d’esta terra, nenhum que empunhe a tuba da immortalidade, para dizel-a aos quatro ventos do céu... Nenhum... (Vae amortecendo a voz.) Nenhum... (Pausa, fita D. Manoel como se acordasse e dá de hombros.) Uma grande chimera, senhor D. Manoel. Vamos ao nosso desterro. Entre 1892 e 1894 VAE SOLI! 1892, Julho. Um dia d’esta semana, farto de vendavaes, naufrágios, boatos, mentiras, polemicas, farto de ver como se descompõem os homens, accionistas e directores, importadores e industriaes, farto de mim, de ti, de todos, de um tumulto sem vida, de um silencio sem quietação, peguei de uma pagina de annuncios, e disse commigo: — Eia, passemos em revista as procuras e offertas, caixeiros desempregados, pianos, magnesias, sabonetes, officiaes de barbeiro, casas para alugar, amas de leite, cobradores, coqueluche, hypothecas, professores, tosses chronicas... E o meu espirito, estendendo e juntando as mãos e os braços, como fazem os nadadores, que caem do alto, mergulhou por uma columna abaixo. Quando voltou á tona, trazia entre os dedos esta pérola: « Uma viuva interessante, distincta, de boa familia e independente de meios, deseja encontrar por esposo um homem de meia idade, sério, instruido, e tambem com meios de vida, que esteja como ella cançado de viver só; resposta por carta ao escriptorio d’esta folha, com as iniciaes M. R..., annunciando, afim de ser procurada essa carta. » Gentil viuva, eu não sou o homem que procuras, mas desejava ver-te, ou, quando menos, possuir o teu retrato, porque tu não és qualquer pessoa, tu vales alguma cousa mais que o commum das mulheres. Aí de quem está só! dizem as sagradas lettras, mas não foi a religião que te inspirou esse annuncio. Nem motivo theologico, nem metaphysico. Positivo tambem não, porque o positivismo é infenso ás segundas nupcias. Que foi então, senão a triste, longa e aborrecida experiencia? Não queres amar; estas cançada de viver só. E a clausula de ser o esposo outro aborrecido, farto de solidão, mostra que tu não queres enganar, nem sacrificar ninguém. Ficam desde já excluidos os sonhadores, os que amem o mysterio e procurem justamente esta occasião de comprar um bilhete na loteria da vida. Que não pedes um dialogo de amor, é claro, desde que impões a clausula da meia idade, zona em que as paixões arrefecem, onde as flôres vão perdendo a côr purpurea e o viço eterno. Não ha de ser um naufrago, á espera de uma taboa de salvação, pois que exiges que também possua. E ha de ser instruido, para encher com as luzes do espirito as longas noites do coração, e contar sem as mãos presas a tomada de Constantinopla. Viuva dos meus peccados, quem és tu que sabes tanto? O teu annuncio lembra a carta de certo capitão da guarda de Nero. Rico, interessante, aborrecido, como tu, escreveu um dia ao grave Seneca, perguntando-lhe como se havia de curar do tedio que sentia, e explicava-se por figura: « Não é a tempestade que me afflige, é o enjôo do mar. » Viuva minha, o que tu queres realmente, nao é um marido, é um remedio contra o enjôo. Ves que a travessia ainda é longa, — porque a tua idade esta entre trinta e dous e trinta e oito annos, — o mar e agitado, o navio joga muito; precisas de um preparado para matar esse mal cruel e indefinivel. Nao te contentaes com o remedio de Seneca, que era justamente a solidão « a vida retirada, em que a alma acha tudo o seu socego ». Tu já provaste esse preparado; não te fez nada. Tentas outro; mas queres menos um companheiro que uma companhia. Póde ser que a esta hora já tenhas achado o esposo nas condições definidas. Não estás ainda casada, porque é preciso fazer correr os pregões, e tens alguns dias diante de ti, para examinar bem o homem. Lembra-te de Xisto V, amiga minha; não vá elle sair, em vez de um coração arrimado a bengala, um coração com pernas, e umas pernas com musculos e sangue; não vás tu ouvir, em vez da tomada de Constantinopla, a quéda de Margarida nos bracos de Fausto. Ha d’esses corações, nevados por cima, como estão agora as serras do Itatiaya e de Itajuba e contendo em si as lavas que o Etna está cuspindo desde alguns dias. Mas, se elle te sair o que queres, que grande premio de loteria! Junto á amurada do navio, vendo a furia do mar e dos ventos, tu ouvirás muitas cousas serias e graciosas a um tempo, seguindo com os olhos a furia dos ventos e o tumulto das ondas, livre do enjoo, como pedia aquelle capitão de Nero, e por differente regimen do que lhe aconselhou o philosopho. E a tua conclusão será como a tua premissa; em caso de tedio, antes um marido que nada. SALTEADORES DA THESSALIA 1893, Novembro. Tudo isto cança, tudo isto exhaure. Este sol é o mesmo sol debaixo do qual, segundo uma palavra antiga, nada existe que seja novo. A lua não é outra lua. O céo azul ou embruscado, as estrellas e as nuvens, o gallo da madrugada, é tudo a mesma cousa. Lá vai um para a banca da advocacia, outro para o gabinete medico, este vende, aquelle compra, aquelle outro empresta, enquanto a chuva cai ou não cai, e o vento sopra ou não; mas sempre o mesmo vento e a mesma chuva. Todo isto cança, tudo isto exhaure. Tal era a reflexão que eu fazia commigo, quando me trouxeram os jornaes. Que me diriam elles que não fosse velho? A guerra é velha, quasi tão velha como a paz. Os proprios diarios são decrépitos. A primeira chronica do mundo é justamente a que conta a primeira semana delle, dia por dia, até o setimo em que o Senhor descançou. O chronista biblico omitte a causa do descanço divino; podemos suppôr que não foi outra senão o sentimento da caducidade da obra. Repito, que me trariam os diários? As mesmas noticias locaes e estrangeiras, os furtos do Rio e de Londres, as damas da Bahia e de Constantinopla, um incêndio em Olinda, uma tempestade em Chicago, as cebolas do Egypto, os juizes de Berlim, a paz de Varsovia, os Mysterios dc Pariz, a Lua de Londres o Carnaval de Veneza... Abri-os sem curiosidade, li-os sem interesse, deixando que os olhos caíssem pelas columnas abaixo, ao peso do proprio fastio. Mas os diabos estacaram de repente, leram, releram e mal puderam crer o que liam. Julgai por vós mesmos. Antes de ir adiante, é preciso saber a ideia que faço de um legislador, e a que faço de um salteador. Provavelmente, é a vossa. O legislador é o homem deputado pelo povo para votar os seus impostos e leis. É um cidadão ordeiro, ora implacavel e violento, ora tolerante e brando, membro de uma camara que redige, discute e vota as regras do governo, os deveres do cidadão, as penas do crime. O salteador é o contrario. O officio d’este é justamente infringir as leis que o outro decreta. Inimigo d’ellas, contrario á sociedade e à humanidade, tem por gosto, pratica e religião tirar a bolsa aos homens, e, se fôr preciso, a vida. Foge naturalmente aos tribunaes, e, por antecipação, aos agentes de policia. A sua arma é uma espingarda; para que lhe serviriam pennas, a não serem de ouro? Uma espingarda, um punhal, olho vivo, pé leve, e matto, eis tudo o que elle pede ao céo. O mais é com elle. Dadas estas noções elementares, imaginai com que alvoroço li esta noticia de uma de nossas folhas : « Na Grécia foi preso o deputado Talis, e expediu-se ordem de prisão contra outros deputados, por fazerem parte de uma quadrilha de salteadores, que infesta a provincia da Thessalia. » Dou-vos dez minutos de incredulidade para o caso de não haverdes lido a noticia; e, se vós accommodaes da monotonia da vida, podeis clamar contra semelhante accumulação. Chamai barbara á moderna Grécia, chamai-lhe opereta, pouco importa. Eu chamo-lhe sublime. Sim, essa mistura de discurso e carabina, esse apoiar o ministerio com um voto de confiança ás duas horas da tarde, e ir espreital-o ás cinco, á beira da estrada, para tirar-lhe os restos do subsidio, não é commum, nem rara, é unica. As instituições parlamentares não apresentam em parte nenhuma esta variante. Ao contrario, quaesquer que sejam as modificações de clima, de raça ou de costumes, o regimen das camaras differe pouco, e, ainda que diffira muito, não irá ao ponto de pôr na mesma curul Catão e Caco. Ha alguma cousa nova debaixo do sol. Durante meia hora fiquei como fóra de mim. A situação é, na verdade, aristophanesca. Só a mão de grande comico podia inventar e cumprir tão extraordinaria facecia. A folha que dá a noticia, não conta nada da provavel confusão de linguagem que ha de haver nos dous ofíicios. Quando algum d’aquelles deputados tivesse de falar na camara, em vez de pedir a palavra, podia muito bem pedir a bolsa ou a vida. Vice-versa, aggredindo um viajante, pedir-lhe-hia dous minutos de attenção. E nada ficaria, em absoluto, fóra do seu logar; com dous minutos de attenção se tira o relogio a um homem, e mais de um na camara preferiria entregar a bolsa a ouvir um discurso. Mas, por todos os deuses do Olympo! não ha gosto perfeito na terra. No melhor da alegria, acudiu-me á lembrança o livro de Edmond About, onde me pareceu que havia alguma cousa semelhante á noticia. Corri a elle; achei a scena dos maniotas, que ameaçavam brandamente um dos amigos do autor, se lhes não désse uma pequena quantia. O chefe do grupo era empregado subalterno da administração local. About chega, ameaça por sua vez os homens. e, para assustal-os, cita o nome de um deputado para quem levava carta de recommendação. « Fulano! exclamou o chefe da quadrilha, rindo; conheço muito, é dos nossos. » Assim, pois, nem isto é novo! Já existia ha quarenta annos! A novidade está no mandado de prisão, se é a primeira vez que elle se expede, ou se até agora os homens faziam um dos dous officios discretamente. Fiquei triste. Eis ahi, tornamos á velha divisão de classes, que a terra de Homero podia destruir pela fórma audaz de Talis. Ahi volta a monotonia das funcções separadas, isto é, uma restricção á liberdade das profissões. A propria poesia perde com isto; ninguem ignora que o salteador, na arte, é um caracter generoso e nobre. Talis, se é assim que se lhe escreve o nome, póde ser que tivesse ganho um par de sapatos a tiro de espingarda; mas estou certo que proporia na camara uma pensão á viuva da victima. São duas operações diversas, e a diversidade é o proprio espirito grego. Adeus, minha illusão de um instante! Tudo continua a ser velho; nihil sub sole novum. Eu pediria o perdão de Talis, se pudesse ser ouvido. Condemnem os demais, se querem, mas deixem um, Talis ou outro qualquer, um funccionario duplo, que tire ao parlamento grego o aspecto de uma instituição aborrecida. Que a Hellade deite os ministerios abaixo, se lhe apraz, mas não atire ás aguas do Eurotas um elemento de aventura e de poesia. Acabou com o turco, acabe com este modernismo, que é outro turco, differente do primeiro em não ser silencioso. Não esqueça que Byron, um dos seus grandes amigos, deixou o parlamento britannico para fugir á discussão da resposta á fala do throno. E repare que não ba, entre os seus poemas, nenhum que se chame O presidente do conselho, mas ha um que se chama O Corsário. O SERMAO DO DIABO 1893, Setembro. Nem sempre respondo por papeis velhos; mas aqui está um que parece authentico; e, se o não é, vale pelo texto, que é substancial. É um pedaço do evangelho do Diabo, justamente um sermão da montanha, á maneira de S Matheus. Não se apavorem as almas catholicas. Já Santo Agostinho dizia que « a igreja do Diabo imita a igreja de Deus. » D’ahi a semelhança entre os dois evangelhos. La vai o do Diabo. « l.º E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a elle os seus discipulos. « 2.º E elle, abrindo a bocca, ensinou dizendo as palavras seguintes. « 3.º Bemaventurados aquelles que embaçam, porque elles não serão embaçados. « 4.º Bemaventurados os afoutos, por que elles possuirão a terra. « 5.º Bemaventurados os limpos das algibeiras, porque elles andarão mais leves. « 6.º Bemaventurados os que nascem finos, porque elles morrerão grossos. « 7.º Bemaventurados sois, quando vos injuriarem e disserem todo o mal, por meu respeito. « 8.º Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra. « 9.º Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra cousa se ha de salgar? « 10. Vós sois a luz do mundo. Não se põe uma vela accesa debaixo de um chapéo, pois assim se perdem o chapéo e a vela. « 11. Não julgueis que vim destruir as obras imperfeitas, mas refazer as desfeitas. « 12. Não acrediteis em sociedades arrebentadas. Em verdade vos digo que todas se concertam, e se não fôr com remendo da mesma côr, será com remendo de outra côr. « 13. Ouvistes que foi dito aos homens: Amai-vos uns aos outros. Pois eu digo-vos: Comei-vos uns aos outros; melhor é comer que ser comido; o lombo alheio é muito mais nutritivo que o proprio. « 14. Também foi dito aos homens: não matareis a vosso irmão, nem a vosso inimigo, para que não sejaes castigados. Eu digo-vos que não é preciso matar a vosso irmão para ganhardes o reino da terra; basta arrancar-lhe a ultima camisa. « l5. Assim, se estiveres fazendo as tuas contas, e te lembrar que teu irmão anda meio desconfiado de ti, interrompe as contas, sai de casa, vai ao encontro de teu irmão na rua, restitue-lhe a confiança, e tira-lhe o que elle ainda levar comsigo. « 16. Igualmente ouvistes que foi dito aos homens: Não jurareis falso, mas cumpri ao Senhor os teus juramentos. « 17 . Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade nua e crua, além de indecente, é dura de roer; mas jurai sempre e a proposito de tudo, porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso, do que nos que não juram nada. Se disseres que o sol acabou, todos accenderão velas. « 18. Não façaes as vossas obras diante de pessoas que possam ir contal-o á policia. « 19. Quando, pois, quizerdes tapar um buraco, entendei-vos com algum sujeito habil, que faça treze de cinco e cinco. « 20. Não queiraes guardar para vós thesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e d’onde os ladrões os tiram e levam. « 21. Mas remettei os vossos thesouros para algum banco de Londres, onde a ferrugem, nem a traça os consomem, nem os ladrões os roubam, e onde ireis vel-os no dia do juizo. « 22. Não vos fieis uns nos outros. Em verdade vos digo, que cada um de vós é capaz de comer o seu visinho, e boa cara não quer dizer bom negocio. « 23. Vendei gato por lebre, e concessões ordinarias por excellentes, afim de que a terra se não despovoe das lebres, nem as más concessões pereçam nas vossas mãos. « 24. Não queiraes julgar para que não sejais julgados; não examineis os papéis do proximo para que elle não examine os vossos, e não resulte irem os dous para a cadeia, quando é melhor não ir nenhum. « 25. Não tenhaes medo as assembléas de accionistas, e affagai-as de preferencia ás simples commissões, porque as commissões amam a vangloria e as assembléas as boas palavras. « 26. As porcentagens são as primeiras flôres do capital; cortai-as logo, para que as outras flores brotem mais viçosas e lindas. « 27. Não deis conta das contas passadas, porque passadas são as contas contadas, e perpetuas as contas que se não contam. « 28. Deixai falar os accionistas prognosticos; uma vez alliviados, assignam de boa vontade. « 29. Podeis excepcionalmante amar a um homem que vos arranjou um bom negocio; mas não até o ponto de o não deixar com as cartas na mão, se jogardes juntos. « 30. Todo aquelle que ouve estas minhas palavras, e as observa, será comparado ao homem sábio, que edificou sobre a rocha e resistiu aos ventos; ao contrario do homem sem consideração, que edificou sobre a arêa, e fica o ver navios... » Aqui acaba o manuscripto que me foi trazido pelo proprio Diabo, ou alguem por elle; mas eu creio que era o proprio. Alto, magro, barbicula ao queixo, ar de Mephistopheles. Fiz-lhe uma cruz com os dedos e elle sumiu-se. Apezar de tudo, não respondo pelo papel, nem pelas doutrinas, nem pelos erros de cópia. A SCENA DO CEMITERIO 1891, Junho. Não mistureis alhos com bugalhos; é o melhor conselho que posso dar ás pessoas que leem de noite na cama. A noite passada, por infringir essa regra, tive um pesadelo horrivel. Escutai; não perdereis os cinco minutos de audiencia. Foi o caso que, como não tinha acabado de ler os jornaes de manhã, fil-o á noite. Pouco já havia que ler, tres noticias e a cotação da praça. Noticias da manhã, lidas á noite, produzem sempre o effeito de modas velhas, donde concluo que o melhor encanto das gazetas está na hora em que apparecem. A cotação da praça, comquanto tivesse a mesma feição, não a li com igual indifferença, em razão das recordações que trazia do anno terrivel (1890-91). Gastei mais tempo a lel-a e relel-a. Afinal puz os jornaes de lado, e, não sendo tarde, peguei de um livro, que acertou de ser Shakspeare. O drama era Hamlet. A pagina, aberta ao acaso, era a scena do cemiterio, acto V. Não ha que dizer ao livro nem á pagina; mas essa mistura de poesia e cotação de praça, de gente morta e dinheiro vivo, não podia gerar nada bom; eram alhos com bugalhos. Succedeu o que era de esperar; tive um pesadelo. A principio, não pude dormir; voltava-me de um lado para outro, vendo as figuras de Hamlet e de Horacio, os coveiros e as caveiras, ouvindo a ballada e a conversação. A muito custo, peguei no somno. Antes não pegasse! Sonhei que era Hamlet; trazia a mesma capa negra, as meias, o gibão e os calções da mesma côr. Tinha a propria alma do principe da Dinamarca. Até ahi nada houve que me assustasse. Também não me aterrou ver, ao pé de mim, vestido de Horacio, o meu fiel criado José. Achei natural: elle não o achou menos. Saimos de casa para o cemiterio ; atravessamos uma rua que nos pareceu ser a Primeiro de Março e entramos em um espaço que era metade cemiterio, metade sala. Nos sonhos ha confusões d’essas, imaginações duplas ou incompletas, mistura de cousas oppostas, dilacerações, desdobramentos inexplicáveis; mas, emfim, como eu era Hamlet e elle Horacio, tudo aquillo devia ser cemiterio. Tanto era que ouvimos logo a um dos coveiros esta estrophe: Era um titulo novinho, Valia mais de oitocentos; Agora que está velhinho Não chega a valer duzentos. Entramos e escutamos. Como na tragedia, deixamos que os coveiros falassem entre si, enquanto faziam a cova de Ophelia. Mas os coveiros eram ao mesmo tempo corretores, e tratavam de ossos e papeis. A um d’elles ouvia bradar que tinha trinta acções da Companhia Promotora das Batatas Economicas. Respondeu-lhe outro que dava cinco mil réis por ellas. Achei pouco dinheiro e disse isto mesmo a Horacio, que me respondeu, pela bocca de José: « Meu senhor, as batatas d’esta companhia foram prosperas emquanto os portadores dos titulos não as foram plantar. A economia da nobre instituição consistia justamente em não plantar o precioso tuberculo; uma vez que o plantassem era indicio certo da decadencia e da morte. » Não entendi bem; mas os coveiros, fazendo saltar caveiras do solo, iam dizendo graças e apregoando titulos. Falavam de bancos, do Banco Unico, do Banco Eterno, do Banco dos Bancos, e os respectivos titulos eram vendidos ou não, segundo offerecessem por elles sete tostões ou duas patacas. Não eram bem titulos nem bem caveiras; eram as duas cousas juntas, uma fusão de aspectos, lettras com buracos de olhos, dentes por assignaturas. Demos mais alguns passos, até que elles nos viram. Não se admiraram; foram indo com o trabalho de cavar e vender. — Cem da Companhia Balsamica! — Tres mil réis. — São suas. — Vinte e cinco da Companhia Salvadora! — Mil réis! — Dous mil réis! — Dous mil e cem! — E duzentos! — E quinhentos! — São suas. Cheguei-me a um, ia a falar-lhe, quando fui interrompido pelo proprio homem: « — Prompto Allivio! meus senhores! Dez do Banco Prompto Allivio! Não dão nada, meus senhores? Prompto Allivio! senhores... Quanto dão? Dous tostões? Oh! não! não! valem mais! Prompto Allivio! Prompto Allivio! » O homem calou-se afinal, não sem ouvir de outro coveiro que, como allivio, o banco não podia ter sido mais prompto. Faziam trocadilhos, como os coveiros de Shakspeare. Um d’elles, ouvindo apregoar sete acções do Banco Pontual, disse que tal banco foi realmente pontual até o dia em que passou do ponto á reticencia. Como espirito, não era grande cousa, d’ahi a chuva de tibias que caiu em cima do autor. Foi uma scena lugubre e alegre ao mesmo tempo. Os coveiros riam, as caveiras riam, as arvores, torcendo-se aos ventos da Dinamarca, pareciam torcer-se de riso, e as covas abertas riam, á espera que fossem chorar sobre ellas. Surdiram muitas outras caveiras ou titulos. Da Companhia Exploradora de Alem-Tumulo appareceram cincoenta e quatro, que se venderam a dez réis. O fim d’esta companhia era comprar para cada accionista um lote de trinta metros quadrados no Paraiso, Os primeiros titulos, em maio de 1891, subiram a conto de réis; mas se nada ha seguro n’este mundo conhecido, póde havel-o no incognoscivel? Esta duvida entrou no espirito do caixa da companhia, que aproveitou a passagem de um paquete transatlantico, para ir consultar um theologo europeu, levando comsigo tudo o que havia mais cognoscivel entre os valores. Foi um coveiro que me contou este antecedente da companhia. Eis aqui, porém, surdiu uma voz do fundo da cova, que estavam abrindo. Uma debenture! uma debenture! Era já outra cousa. Era uma debenture. Cheguei-me ao coveiro, e perguntei que era que estava dizendo. Repetiu o nome do titulo. Uma debenture? — Uma debenture. Deixe ver, amigo. E, pegando n’ella, como Hamlet, exclamei, cheio de melancolia: — Alas, poor Yorick! Eu a conheci, Horacio. Era um titulo magnifico. Estes buracos de olhos foram algarismos de brilhantes, saphyras e opalas. Aqui, onde foi nariz, havia um promontorio de marfim velho lavrado; eram de nacar estas faces, os dentes de ouro, as orelhas de granada e saphyra. Desta bocca sahiam as mais sublimes promessas em estylo alevantado e nobre. Onde estão agora as bellas palavras de outro tempo? Prosa eloquente e fecunda, onde param os longos periodos, as phrases galantes, a arte com que fazias ver a gente cavallos soberbos com ferraduras de prata e arreios de ouro? Onde os carros de crystal, as almofadas de setim? Diz-me cá, Horacio. — Meu senhor... — Crês que uma lettra de Socrates esteja hoje no mesmo estado que este papel? — Seguramente. — Assim que, uma promessa de divida do nobre Socrates não será boje mais que uma debenture escangalhada? — A mesma cousa. — Até onde podemos descer, Horacio! Uma lettra de Socrates póde vir a ter os mais tristes empregos d’este mundo; limpar os sapatos, por exemplo. Talvez ainda valha menos que esta debenture. — Saberá Vossa Senhoria que eu não dava nada por ella. — Nada? Pobre Socrates! Mas espera, calemo-nos, ahi vem um enterro. Eia o enterro da Ophelia. Aqui o pesadelo foi-se tornando cada vez mais afflictivo. Vi os padres, o rei e a rainha, o séquito, o caixão. Tudo se me fez turvo e confuso. Vi a rainha deitar flores sobre a defunta. Quando o joven Laertes saltou dentro da da cova, saltei tambem; alli dentro atracámo-nos, esbofeteámo-nos. Eu suava, eu matava, eu sangrava, eu gritava... — Acorde, patrão! acorde! CANÇAO DE PIRATAS 1894, Julho. Telegramma da Bahia refere que o conselheiro está em Canudos com 2,000 homens (dous mil homens) perfeitamente armados. Que Conselheiro? O Conselheiro. Não lhe ponhas nome algum, que é sair da poesia e do mysterio. É o Conselheiro, um homem, dizem que fanatico, levando comsigo a toda a parte aquelles dous mil legionarios. Pelas ultimas noticias tinha já mandado um contingente a Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros lugares os seus assaltos. Jornaes recentes affirmam tambem que os celebres clavinoteiros de Belmonte têm fugido, em turmas, para o sul, atravessando a comarca de Porto Seguro. Essa outra horda, para empregar o termo do profano vulgo que odeio, não obedece ao mesmo chefe. Tem outro ou mais de um, entre elles o que responde ao nome de Cara de Graxa. Jornaes e tele- grammas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que são criminosos; nem outra palavra póde sair de cerebros alinhados, registrados, qualificados, cerebros eleitores e contribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que, atravéz da chuva miuda e aborrecida, vem dourar-nos a janella e a alma. É a poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura d’este fim de século. Nos climas asperos, a arvore que o inverno despiu, é novamente enfolhada pela primavera, essa eterna florista que apprendeu não sei onde e não esquece o que lhe ensinaram. A arte é a arvore despida: eis que lhe rebentam folhas novas e verdes. Sim, meus amigos. Os dous mil homens do Conselheiro, que vão de villa em villa, assim como os clavinoteiros de Belmonte, que se mettem pelo sertão, comendo o que arrebatam, acampando em vez de morar, levando moças naturalmente, moças captivas, chorosas e bellas, são os piratas dos poetas de 1830. Poetas de 1894, ahi tendes materia nova e fecunda. Recordai vossos pais; cantai, como Hugo, a canção dos piratas: En mer, les hardis écumeurs! Nous allions de Fez à Catane… Entrai pela Hespanha, é ainda a terra da imaginação de Hugo, esse homem de todas as patrias; puxai pela memoria, ouvireis Espronceda dizer outra canção de pirata, um que desafia a ordem e a lei, como o nosso Conselheiro. Ide a Veneza; ahi Byron recita os versos do Corsario no regaço da bella Guiccioli. Tornai á nossa America, onde Gonçalves Dias tambem cantou o seu pirata. Tudo pirata. O romantismo é a pirataria, é o banditismo, é a aventura do salteador que estripa um homem e morre por uma dama. Crêde-me, esse Conselheiro que está em Canudos com os seus dous mil homens, não é o que dizem telegrammas e papeis publicos. Imaginai uma legião de aventureiros galantes, audazes, sem officio nem beneficio, que detestam o calendario, os relogios, os impostos, as reverencias, tudo o que obriga, alinha e apruma. São homens fartos d’esta vida social e pacata, os mesmos dias, as mesmas caras, os mesmos acontecimentos, os mesmos delictos, as mesmas virtudes. Não podem crer que o mundo seja uma secretaria de Estado, com o seu livro do ponto, hora de entrada e de saida, e desconto por faltas. O proprio amor é regulado por lei; os consorcios celebram-se por um regulamento em casa do pretor, e por um ritual na casa de Deus, tudo com a etiqueta dos carros e casacas, palavras symbolicas, gestos de convenção. Nem a morte escapa á regulamentação universal; o finado ha de ter velas e responsos, um caixão fechado, um carro que o leve, uma sepultura numerada, como a casa em que viveu... Não, por Satanaz! Os partidarios do Conselheiro lambraram-se dos piratas romanticos, sacudiram as sandalias á porta da civilisação e sairam á vida livre. A vida livre, para evitar a morte igualmente livre, precisa comer, e d’ahi alguns possiveis assaltos. Assim tambem o amor livre. Elles não irão ás villas pedir moças em casamento. Supponho que se casam a cavallo, levando as noivas á garupa, emquanto as mãis ficam soluçando e gritando á porta das casas ou á beira dos rios. As esposas do Conselheiro, essas são raptadas em verso, naturalmente: Sa Hautesse aime les primeurs, Nous vous ferons mahométane… Mahometana ou outra cousa, pois nada sabemos da religião d’esses, nem dos clavinoteiros, a verdade é que todas ellas se affeiçoarão ao regimen, se regimen se póde chamar a vida erratica. Tambem ha estrellas erraticas, dirão ellas, para se consolarem. Que outra cousa podemos suppor de tamanho numero de gente? Olhai que tudo cresce, que os exercitos de hoje não são já os dos tempos romanticos, nem as armas, nem os legisladores, nem os contribuintes, nada. Quando tudo cresce, não se ba de exigir que os aventureiros de Canudos, Alagoinhas e Belmonte contem ainda aquelle exiguo numero de piratas da cantiga: Dans la galère capitane. Nous étions quatre-vingts rameurs, mas mil, dous mil, no minimo. Do mesmo modo, ó poetas, devemos compor versos extraordinarios e rimas inauditas. Fóra com as cantigas de pouco folego. Vamos fazel-as de mil estrophes, com estribilho de cincoenta versos, e versos compridos, dous decasyllabos atados por um alexandrino e uma redondillia. Pelion sobre Ossa, versos de Adamastor, versos de Encelado. Rimemos o Atlantico com o Pacifico, a via-lactea com as areias do mar, ambições com mal-logros, emprestimos com calotes, tudo ao som das polkas que temos visto compor, vender e dançar só no Rio de Janeiro. O vertigem das vertigens! GARNIER 1893, Outubro. Segunda-feira d’esta semana, o livreiro Garnier saiu pela primeira vez de casa para ir a outra parte que não a livraria. Revertere ad locum tuum — está escripto no alto da porta do cemiterio de S. João Baptista. Não, murmurou elle talvez dentro do caixão mortuario, quando percebeu para onde o iam conduzindo, não é este o meu lugar; o meu lugar é na rua do Ouvidor 71, ao pé de uma carteira de trabalho, ao fundo, á esquerda; é alli que estão os meus livros, a minha correspondência, as minhas notas, toda a minha escripturação. Durante meio seculo, Garnier não fez outra cousa, senão estar alli, naquelle rnesmo lugar, trabalhando. Já enfermo desde alguns annos, com a morte no peito, descia todos os dias de Santa Thereza para a loja, de onde regressava antes de cair a noite. Uma tarde, ao encontral-o na rua, quando se recolhia, andando vagaroso, com os seus pés direitos, mettido em um sobretudo, perguntei-lhe porque não descançava algum tempo. Respondeu-me com outra pergunta: Pourriez-vous résister, si vous étiez forcé de ne plus faire ce que vous auriez fait pendant cinquante ans? Na vespera da morte, se estou bem informado, achando-se de pé, ainda planejou descer na manhã seguinte, para dar uma vista de olhos á livraria. Essa livraria é uma das ultimas casas da rua do Ouvidor; falo de uma rua anterior e acabada. Não cito os nomes das que se foram, porque não as conhecerieis, vós que sois mais rapazes que eu, e abristes os olhos em uma rua animada e populosa onde se vendem, ao par de bellas joias, excellentes queijos. Uma das ultimas figuras desapparecidas foi o Bernardo, o perpetuo Bernardo, cujo nome achei ligado aos charutos do duque de Caxias, que tinha fama de os fumar unicos, ou quasi unicos. Ha casas como a Laemmert e o Jornal do Commercio, que ficaram e prosperaram, embora os fundadores se fossem; a maior parte, porém, desfizeram-se com os donos. Garnier é das figuras derradeiras. Não apparecia muito; durante os 20 annos das nossas relações, conheci-o sempre no mesmo lugar, ao fundo da livraria, que a principio era em outra casa, n. 69, abaixo da rua Nova. Não pude conhecel-o na da Quitanda, onde se estabeleceu primeiro. A carteira é que póde ser a mesma, como o banco alto onde elle repousava, ás vezes, de estar em pé. Ahi vivia sempre, penna na mão, diante de um grande livro, notas soltas, cartas que assignava ou lia. Com o gesto obsequioso, a fala lenta, os olhos mansos, attendia a toda gente. Gostava de conversar o seu pouco. N’este caso, quando a pessoa amiga chegava, se não era dia de mala, ou se o trabalho ia adiantado e não era urgente, tirava logo os oculos, deixando ver no centro do nariz uma depressão do longo uso d’elles. Depois vinham duas cadeiras. Pouco sabia da politica da terra, acompanhava a de França, mas só o ouvi falar com interesse por occasião da guerra de 1870. O francez sentiu-se francez. Não sei se tinha partido; presumo que haveria trazido da patria, quando aqui aportou, as sympathias da classe media para com a monarchia orleanista. Não gostava do imperio napoleonico. Acceitou a republica, e era grande admirador de Gambetta. D’aquellas conversações tranquillas, algumas longas, estão mortos quasi todos os interlocutores, Liais, Fernandes Pinheiro, Macedo, Joaquim Norberto, José de Alencar, para só indicar estes. De resto, a livraria era um ponto de conversação e de encontro. Pouco me dei com Macedo, o mais popular dos nossos autores, pela Moreninha e pelo Fantasma Branco, romance e comedia que fizeram as delicias de uma geração inteira. Com José de Alencar foi differente; alli travamos as nossas relações litterarias. Sentados os dons, em frente á rua, quantas vezes tratámos d’aquelles negocios de arte e poesia, de estylo e imaginação, que valem todas as canceiras d’este mundo. Muitos outros iam ao mesmo ponto de palestra. Não os cito, porque teria de nomear um cemiterio, e os cemiterios são tristes, não em si mesmos, ao contrario. Quando outro dia fui a enterrar o nosso velho livreiro, vi entrar no de S. João Baptista, já acabada a ceremonia e o trabalho, um bando de crianças que iam divertir-se. Iam alegres, como quem não pisa memorias nem saudades. As figuras sepulchraes eram, para ellas, lindas bonecas de pedra; todos esses mármores faziam um mundo unico, sem embargo das suas flores mofinas, ou por ellas mesmas, tal é a visão dos primeiros annos. Não citemos nomes. Nem mortos, nem vivos. Vivos ha-os ainda, e dos bons, que alguma cousa se lembrarão daquella casa e do homem que a fez e perfez. Editar obras juridicas ou escolares, não é mui difficil; a necessidade é grande, a procura certa. Garnier, que fez custosas edições dessas, foi tambem editor de obras litterarias, O primeiro e o maior de todos. Os seus catalogos estão cheios dos nomes principaes, entre os nossos homens de lettras. Macedo e Alencar, que eram os mais fecundos, sem igualdade de mérito, Bernardo Guimarães, que tambem produziu muito nos seus ultimos annos, figuram ao pé de outros, que entraram já consagrados, ou acharam n’aquella casa a porta da publicidade e o caminho da reputação. Não é mister lembrar o que era essa livraria tão copiosa e tão variada, em que havia tudo, desde a theologia até á novella, o livro classico, a composição recente, a sciencia e a imaginação, a moral e a technica. Já a achei feita: mas vi-a crescer ainda mais, por longos annos. Quem a ve agora, fechadas as portas, trancados os mostradores, á espera da justiça, do inventario e dos herdeiros, ha de sentir que falta alguma cousa á rua. Com effeito, falta uma grande parte d’ella, e bem pode ser que não volte, se a casa não conservar a mesma tradição e o mesmo espirito. Pessoalmente, que proveito deram a esse homem as suas labutações? O gosto do trabalho, um gosto que se transformou em pena, porque no dia em que devera libertar-se d’elle, não pôde mais; o instrumento da riqueza era tambem o do castigo. Esta é uma das misericórdias da Divina Natureza. Não importa: laboremus. Valha sequer a memória, ainda que perdida nas paginas dos diccionarios biographicos. Perdure a noticia, ao menos, de alguem que n’este paiz novo occupou a vida inteira em criar uma industria liberal, ganhar alguns milhares de contos de réis, para ir afinal dormir em sete palmos de uma sepultura perpetua. Perpetua! FIM INDICE O caso da vara........................................................................ 1 O diccionario.......................................................................... 17 Um erradio.............................................................................. 25 Eterno!.....................................................................................57 Missa do gallo........................................................................77 Idéias de canario....................................................................89 Lagrimas de Xerxes.............................................................. 99 Papeis velhos........................................................................111 A estatua de José Alencar.....................................................125 Henriqueta Renan................................................................ 183 O velho senado.......................................................................159 Tu, só, tu, puro amor ............................................................. 179 Entre 1892 e 1894 .................................................................233 Vae soli! ..........................................................................235 Salteadores da Thessalia..................................................238 O sermão do Diabo..........................................................243 A scena do cemitério .....................................................247 Canção de piratas............................................................253 Garnier............................................................................257 Verifircar.