PHALENAS Paris. — Typ. de Ad. Lainé, rua dos Santos-Padres, 19. PHALENAS POR MACHADO DE ASSIS VARIA. — LYRA CHINEZA. UMA ODE DE ANACREONTE. PALLIDA ELVIRA. RIO DE JANEIRO B. L. GARNIER, EDITOR, RUA DO OUVIDOR, 69. PARIS E. BELHATTE, L1VREIRO, RUA DE L'ABBAYE, 14. INDICE. VARIA: Preludio ……………………………………………………………………………….11 Ruinas ………………………………………………………………………………....15 Musa dos olhos verdes ……………………………………………………………......19 La marchesa de Miramar ……………………………………………………………...21 Sombras …………………………………………………………………………….....27 Quando ella falia ……………………………………………………………………...29 Visão …………………………………………………………………………………..31 Manhã de inverno …………………………………………………………………......35 Ita missa est …………………………………………………………………………...39 Flôr da mocidade ……………………………………………………………………...43 Noivado ……………………………………………………………………………….45 Menina e moça ……………………………………………………………………......49 A Elvira ……………………………………………………………………………….53 Lagrimas de cêra ……………………………………………………………………...57 No espaço …………………………………………………………………………......59 Os deoses da Grecia …………………………………………………………………...65 Livros e flôres ………………………………………………………………………...73 Passaros ……………………………………………………………………………......75 Cegonhas e rodovalhos ………………………………………………………………..79 A um legista …………………………………………………………………………...85 O verme …………………………………………………………………………….....89 Estancias a Emma ……………………………………………………………………..91 Un vieux pays ………………………………………………………………………...101 A morte de Ophelia …………………………………………………………………..103 Luz entre sombras ……………………………………………………………………107 LYRA CHINEZA: I . Coração triste fallando ao sol ……………………………………………………....111 II. A folha do salgueiro ………………………………………………………………..113 III. O poeta a rir ………………………………………………………………………...115 IV. A uma mulher ……………………………………………………………………....117 V. O imperador ………………………………………………………………………....119 VI. O leque ……………………………………………………………………………..121 VIL As flôres e os pinheiros …………………………………………………………...123 VIII. Reflexos ………………………………………………………………………….125 UMA ODE DE ANACREONTE ……………………………………………………...127 PALLIDA ELVIRA …………………………………………………………………....167 Labouring up. Tennyon. VARIA PRELUDIO ... land of dreams. ... land of song. LONGFELLOW. Lembra-te a ingenua moça, imagem da poesia, Que a André Roswein amou, e que implorava um dia. Como infallivel cura á sua mágoa estranha, Uma simples jornada ás terras da Allemanha O poeta é assim: tem, para a dôr e o tedio. Um refugio tranquillo, um suave remedio És tu, casta poesia, ó terra pura e santa! Quando a alma padece, a lyra exhorta e canta; E a musa que, sorrindo, os seus balsamos verte, Cada lagrima nossa em perola converte. Longe d’aquelle asylo, o espirito se abate; A existencia parece um frivolo combate, Um eterno anciar por bens que o tempo leva, Flôr que resvala ao mar, luz que se esvai na treva, Pelejas sem ardor, victorias sem conquista! Mas, quando o nosso olhar os páramos avista, Onde o peito respira o ar sereno e agreste, Tansforma-se o viver. Então, á voz celeste, Acalma-se a tristeza; a dôr se abranda e cala; Canta a alma e suspira; o amor vem resgatal-a; O amor, gotta de luz do olhar de Deos cahida, Rosa branca do céo, perfume, alento, vida. Palpita o coração já crente, já desperto; Povôa-se n’um dia o que era agro deserto; Falla dentro de nós uma boca invisivel; Esquece-se o real e palpa-se o impossivel. A outra terra era má, o meu paiz é este; Este o meu céo azul. Se um dia padeceste Aquella dôr profunda, aquelle anciar sem termo Que leva o tedio e a morte ao coração enfermo: Se queres mão que enxugue as lagrimas austeras, Se te apraz ir viver de eternas primaveras, O’ alma de poeta, ó alma de harmonia, Volve ás terras da musa, ás terras da poesia! Tens, para atravessar a azul immensidade, Duas azas do céo: a esperança e a saudade. Uma vem do passado, outra cahe do futuro; Com ellas vôa a alma e paira no ether puro, Com ellas vai curar a sua mágoa estranha. A terra da poesia é a nossa Allemanha. RUINAS No hay pájaros en los nidos de antaño. PROVERBIO HESPANHOL. Cobrem plantas sem flôr crestados muros; Range a porta anciã; o chão de pedra Gemer parece aos pés do inquieto vate. Ruina é tudo: a casa, a escada, o horto, Sitios caros da infancia. Austera moça Junto ao velho portão o vate aguarda; Pendem-lhe as tranças soltas Por sobre as rôxas vestes. Risos não tem, e em seu magoado gesto Transluz não sei que dôr occulta aos olhos; — Dôr que á face não vem, — medrosa e casta, Intima e funda; — e dos cerrados cilios Se uma discreta e muda Lagrima cahe, não murcha a flôr do rosto; Melancolia tacita e serena, Que os échos não acorda em seus queixumes, Respira aquelle rosto. A mão lhe estende O abatido poeta. Eil-os percorrem Com tardo passo os relembrados sitios, Ermos depois que a mão da fria morte Tantas almas colhêra. Desmaiavão, Nos serros do poente, As rosas do crepusculo. « Quem és? pergunta o vate; o sol que foge « No teu languido olhar um raio deixa; « — Raio quebrado e frio; — o vento agita « Timido e frouxo as tuas longas tranças. « Conhecem-te estas pedras; das ruinas « Alma errante pareces condemnada « A contemplar teus insepultos ossos. « Conhecem-te estas arvores. E eu mesmo « Sinto não sei que vaga e amortecida « Lembrança de teu rosto. » Desceu de todo a noite, Pelo espaço arrastando o manto escuro Que a loura Vesper nos seus hombros castos, Como um diamante, prende. Longas horas Silenciosas corrêrão. No outro dia, Quando as vermelhas rosas do oriente Ao já proximo sol a estrada ornavão, Das ruinas sahião lentamente Duas pallidas sombras: O poeta e a saudade. MUSA DOS OLHOS VERDES Musa dos olhos verdes, musa alada, O’ divina esperança, Consolo do ancião no extremo alento, E sonho da criança; Tu que junto do berço o infante cinges C’os fulgidos cabellos; Tu que transformas em dourados sonhos Sombrios pesadelos; Tu que fazes pulsar o seio ás virgens; Tu que ás mãis carinhosas Enches o brando, tepido regaço Com delicadas rosas; Casta filha do céo, virgem formosa Do eterno devaneio, Sê minha amante, os beijos meus recebe, Acolhe-me em teu seio! Já cansada de encher languidas flôres Com as lagrimas frias, A noite vê surgir do oriente a aurora Dourando as serranias. Azas batendo á luz que as trevas rompe, Pião nocturnas aves, E a floresta interrompe alegremente Os seus silencios graves. Dentro de mim, a noite escura e fria Melancolica chora; Rompe estas sombras que o meu ser povôão; Musa, sê tu a aurora! LA MARCHESA DE MIRAMAR A miserrima Dido Pelos paços reaes vaga ululando. GARÇÃO. De quanto sonho um dia povoaste A mente ambiciosa, Que te resta? Uma pagina sombria, A escura noite e um tumulo recente. Ó abysmo! Ó fortuna! Um dia apenas Vio erguer, vio cahir teu fragil throno. Meteoro do seculo, passaste, Ó triste imperio, allumiando as sombras. A noite foi teu berço e teu sepulcro. Da tua morte os goivos inda achárão Fuscas as rosas dos teus breves dias; E no livro da historia uma só folha A tua vida conta: sangue e lagrimas. No tranquillo castello, Ninho d’amor, asylo de esperanças, A mão de aurea fortuna preparára, Menina e moça, um tumulo aos teus dias. Junto do amado esposo, Outra c’rôa cingias mais segura, A corôa do amor, dadiva santa Das mãos de Deos. No céo de tua vida Uma nuvem sequer não sombreava A esplendida manhã; estranhos erão Ao recatado asylo Os rumores do seculo. Estendia-se Em frente o largo mar, tranquilla face Como a da consciencia alheia ao crime, E o céo, cupula azul do equoreo leito. Alli, quando ao cahir da amena tarde, No thalamo encantado do occidente, O vento melancolico gemia, E a onda murmurando, Nas convulsões do amor beija a areia, Ias tu junto d’elle, as mãos travadas, Os olhos confundidos, Correr as brandas, somnolentas aguas, Na gondola discreta. Amenas flôres Com suas mãos tecião As namoradas Horas; vinha a noite, Mãi de amores, solicita descendo, Que em seu regaço a todos envolvia, O mar, o céo, a terra, o lenho e os noivos. Mas além, muito além do céo fechado, O sombrio destino, contemplando A par do teu amor, a etherea vida, As santas effusões das noites bellas, O terrivel scenario preparava A mais terriveis lances. Então surge dos thronos A prophetica voz que annunciava Ao teu credulo esposo: « Tu serás rei, Macbeth! » Ao longe, ao longe, No fundo do oceano, envolto em nevoas, Salpicado de sangue, ergue-se um throno. Chamão-no a elle as vozes do destino. Da tranquilla mansão ao novo imperio Cobrem flôres a estrada, — estereis flôres Que mal podem cobrir o horror da morte. Tu vais, tu vais tambem, victima infausta; O sopro da ambição fechou teus olhos.... Ah! quão melhor te fôra No meio d’essas aguas Que a regia náo cortava, conduzindo Os destinos de um rei, achar a morte: A mesma onda os dous envolveria. Uma só convulsão ás duas almas O vinculo quebrára, e ambas irião, Como raios partidos de uma estrella, Á eterna luz juntar-se. Mas o destino, alçando a mão sombria, Já traçára nas paginas da historia O terrivel mysterio. A liberdade Vela n’aquelle dia a ingenua fronte. Pejão nuvens de fogo o céo profundo. Orvalha sangue a noite mexicana.... Viuva e moça, agora em vão procuras No teu placido asylo o extincto esposo. Interrogas em vão o céo e as aguas. Apenas surge ensanguentada sombra Nos teus sonhos de louca, e um grito apenas, Um soluço profundo reboando Pela noite do espirito, parece Os échos acordar da mocidade. No emtanto, a natureza alegre e viva, Ostenta o mesmo rosto. Dissipão-se ambições, imperios morrem. Passão os homens como pó que o vento Do chão levanta ou sombras fugitivas. Transformão-se em ruina o templo e a choça. Só tu, só tu, eterna natureza, Immutavel, tranquilla, Como rochedo em meio do oceano, Vês baquear os seculos. Sussurra Pelas ribas do mar a mesma briza; O céo é sempre azul, as aguas mansas; Deita-se ainda a tarde vaporosa No leito do occidente; Ornão o campo as mesmas flôres bellas... Mas em teu coração magoado e triste, Pobre Carlota! o intenso desespero Enche de intenso horror o horror da morte. Viuva da razão, nem já te cabe A illusão da esperança. Feliz, feliz, ao menos, se te resta, Nos macerados olhos, O derradeiro bem: — algumas lagrimas! SOMBRAS Que tienes? que estás pensando Gloria de mi pensamiento? CERVANTES. Quando, assentada á noite, a tua fronte inclinas, E cerras descuidada as palpebras divinas, E deixas no regaço as tuas mãos cahir, E escutas sem fallar, e sonhas sem dormir, Acaso uma lembrança, um écho do passado, Em teu seio revive? O tumulo fechado Da ventura que foi, do tempo que fugio, Por que razão, mimosa, a tua mão o abrio? Com que flôr, com que espinho, a importuna memoria Do teu passado escreve a mysteriosa historia? Que espectro ou que visão resurge aos olhos teus? Vem das trevas do mal ou cahe das mãos de Deos? É saudade ou remorso? é desejo ou martyrio? Quando em obscuro templo a fraca luz de um cirio Apenas alumia a nave e o grande altar E deixa todo o resto em treva, — e o nosso olhar Cuida ver resurgindo, ao longe, d’entre as portas, As sombras immortaes das creaturas mortas, Palpita o coração de assombro e de terror; O medo augmenta o mal. Mas a cruz do Senhor, Que a luz do cirio innunda, os nossos olhos chama; O animo esclarece aquella eterna chamma; Ajoelha-se contrito, e murmura-se então A palavra de Deos, a divina oração. Pejão sombras, bem vês, a escuridão do templo; Volve os olhos á luz, imita aquelle exemplo; Corre sobre o passado impenetravel véo; Olha para o futuro e vem lançar-te ao céo. QUANDO ELLA FALLA She speaks O speake again, bright angel! SHAKESP. Quando ella falla, parece Que a voz da briza se cala; Talvez um anjo emmudece Quando ella falla. Meu coração dolorido As suas mágoas exhala, E volta ao gozo perdido Quando ella falla. Pudeste eu eternamente, Ao lado d’ella, escutal-a, Ouvir sua alma innocente Quando ella falla. Minh’alma, já semi-morta, Conseguíra ao céo alçal-a, Porque o céo abre uma porta Quando ella falla. VISÃO A LUIZ DE ALVARENGA PEIXOTO. Vi de um lado o Calvario, e do outro lado O Capitolio, o templo-cidadella. E torvo mar entre ambos agitado, Como se agita o mar n’uma procella. Pousou no Capitolio uma aguia; vinha Cansada de voar. Cheia de sangue as longas azas tinha; Pousou; quiz descansar. Era a aguia romana, a aguia de Quirino; A mesma que, arrancando as chaves ao destino, As portas do futuro abrio de par em par. A mesma que, deixando o ninho aspero e rude, Fez do templo da força o templo da virtude, E lançou, como emblema, a espada sobre o altar. Então, como se um deos lhe habitasse as entranhas, A victoria empolgou, venceu raças estranhas, Fez de varias nações um só dominio seu. Era-lhe o grito agudo um tremendo rebate. Se cahia, perdendo acaso um só combate, Punha as azas no chão e remontava Anteo. Vezes tres, respirando a morte, o sangue, o estrago, Sahio, lutou, cahio, ergueu-se... e jaz Cartago; É ruina; é memoria; é tumulo. Transpõe, Impetuosa e audaz, os valles e as montanhas. Lança a ferrea cadeia ao collo das Hespanhas. Gallia vence; e o grilhão a toda Italia põe. Terras d’Asia invadio, aguas bebeu do Euphrates, Nem tu mesma fugiste á sorte dos combates, Grecia, mãi do saber. Mas que póde o oppressor, Quando o genio sorrio no berço de uma serva? Pallas despe a couraça e veste de Minerva; Faz-se mestra a captiva; abre escola ao senhor. Agora, já cansada e respirando a custo, Desce; vem repousar no monumento augusto. Gottejão-lhe inda sangue as azas colossaes. A sombra do terror assoma-lhe á pupilla. Vem tocada das mãos de Cesar e de Sylla. Vê quebrar-se-lhe a força aos vinculos mortaes. D’um lado e de outro lado, azulão-se Os vastos horizontes; Vida resurge esplendida Por toda a creação. Luz nova , luz magnifica Os valles enche e os montes.... E além, sobre o Calvario, Que assombro! que visão! Fitei o olhar. Do pincaro Da colossal montanha Surge uma pomba, e placida Azas no espaço abrio. Os ares rompe, embebe-se No ether de luz estranha: Olha-a minha alma attonita Dos céos a que subio. Emblema audaz e lugubre, Da força e do combate, A aguia no Capitolio As azas abateu. Mas vôa a pomba, symbolo Do amor e do resgate, Santo e apertado vinculo Que a terra prende ao céo. Depois... Ás mãos de barbaros, Na terra em que nascêra, Após sangrentos seculos, A aguia expirou; e então Desceu a pomba candida Que marca a nova éra. Pousou no Capitolio, Já berço, já christão. MANHÃ DE INVERNO Coroada de nevoas, surge a aurora Por detrás das montanhas do oriente; Vê-se um resto de somno e de preguiça, Nos olhos da fantastica indolente. Nevoas enchem de um lado e de outro os morros Tristes como sinceras sepulturas, Essas que têm por simples ornamento Puras capellas, lagrimas mais puras. A custo rompe o sol; a custo invade O espaço todo branco; e a luz brilhante Fulge através do espesso nevoeiro, Como através de um véo fulge o diamante. Vento frio, mas brando, agita as folhas Das larangeiras humidas da chuva; Erma de flôres, curva a planta o collo, E o chão recebe o pranto da viuva. Gelo não cobre o dorso das montanhas, Nem enche as folhas tremulas a neve; Galhardo moço, o inverno d’este clima Na verde palma a sua historia escreve. Pouco a pouco, dissipão-se no espaço As nevoas da manhã; já pelos montes Vão subindo as que encheráõ todo o valle; Já se vão descobrindo os horizontes. Sobe de todo o panno; eis apparece Da natureza o esplendido scenario; Tudo alli preparou co’ os sabios olhos A suprema sciencia do emprezario. Canta a orchestra dos passaros no matto A symphonia alpestre, — a voz serena Acorda os échos timidos do valle; E a divina comedia invade a scena. ITE MISSA EST Fecha o missal do amor e a benção lança Á pia multidão Dos teus sonhos de moço e de criança; A benção do perdão. Sôa a hora fatal, — reza contrito As palavras do rito: Ite missa est. Foi longo o sacrifício; o teu joelho De curvar-se cansou; E acaso sobre as folhas do Evangelho A tua alma chorou. Ninguem vio essas lagrimas (ai tantas!) Cahir nas folhas santas. Ite missa est. De olhos fitos no céo rezaste o credo, O credo do teu deos; Oração que devia, ou tarde ou cedo, Travar nos labios teus. Palavra que se esvai qual fumo escasso E some-se no espaço. Ite missa est. Votaste ao céo, nas tuas mãos alçada, A hostia do perdão, A victima divina e profanada Que chamas coração. Quasi inteiras perdeste a alma e a vida Na hóstia consumida. Ite missa est. Pobre servo do altar de um deos esquivo É tarde; beija a cruz; Na lampada em que ardia o fogo activo, Vê, já se extingue a luz. Cubra-te agora o rosto macilento O véo do esquecimento. Ite missa est. FLOR DA MOCIDADE Eu conheço a mais bella flôr; És tu, rosa da mocidade, Nascida, aberta para o amor. Eu conheço a mais bella flôr. Tem do céo a serena côr, E o perfume da virgindade. Eu conheço a mais bella flôr, És tu, rosa da mocidade. Vive ás vezes na solidão, Coma filha da briza agreste. Teme acaso indiscreta mão; Vive ás vezes na solidão. Poupa a raiva do furacão Suas folhas de azul celeste. Vive ás vezes na solidão, Como filha da briza agreste. Colhe-se antes que venha o mal, Colhe-se antes que chegue o inverno; Que a flôr morta já nada vai. Colhe-se antes que venha o mal. Quando a terra é mais jovial Todo o bem nos parece eterno. Colhe-se antes que venha o mal, Colhe-se antes que chegue o inverno. NOIVADO Vês, querida, o horizonte ardendo em chammas? Além d’esses outeiros Vai descambando o sol, e á terra envia Os raios derradeiros; A tarde, como noiva que enrubece, Traz no rosto um véo molle e transparente; No fundo azul a estrella do poente Já timida apparece. Como um bafo suavissimo da noite, Vem sussurrando o vento As arvores agita e imprime ás folhas O beijo somnolento. A flôr ageita o calix: cedo espera O orvalho, e emtanto exhala o doce aroma; Do leito do oriente a noite assoma Como uma sombra austera. Vem tu, agora, ó filha de meus sonhos, Vem, minha flôr querida; Vem contemplar o céo, pagina santa Que amor a ler convida; Da tua solidão rompe as cadeias; Desce do teu sombrio e mudo asylo; Encontrarás aqui o amor tranquillo…. Que esperas? que receias? Olha o templo de Deos, pomposo e grande; Lá do horizonte opposto A lua, como lampada, já surge A alumiar teu rosto; Os cirios vão arder no altar sagrado, Estrellinhas do céo que um anjo acende; Olha como de balsamos rescende A c’rôa do noivado. Irão buscar-te em meio do caminho As minhas esperanças; E voltaráõ comtigo, entrelaçadas Nas tuas longas tranças; No emtanto eu preparei teu leito ás sombra Do limoeiro em flôr; colhi contente Folhas com que alastrei o solo ardente De verde e molle alfombra. Pelas ondas do tempo arrebatados, Até á morte iremos, Soltos ao longo do baixel da vida Os esquecidos remos. Calmos, entre o fragor da tempestade, Gozaremos o bem que amor encerra; Passaremos assim do sol da terra Ao sol da eternidade. MENINA E MOÇA A ERNESTO CYBRÃO. Está n’aquella idade inquieta e duvidosa, Que não é dia claro e é já o alvorecer; Entre-aberto botão, entre-fechada rosa, Um pouco de menina e um pouco de mulher. Ás vezes recatada, outras estouvadinha, Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor; Tem cousas de criança e modos de mocinha, Estuda o catechismo e lê versos de amor. Outras vezes valsando, e seio lhe palpita, De cansaço talvez, talvez de commoção. Quando a boca vermelha os labios abre e agita, Não sei se pede um beijo ou faz uma oração. Outras vezes beijando a boneca enfeitada, Olha furtivamente o primo que sorri; E se corre parece, á briza enamorada, Abrir azas de um anjo e tranças de uma huri. Quando a sala atravessa, é raro que não lance Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance Em que a dama conjugue o eterno verbo amar. Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia, A cama da boneca ao pé do toucador; Quando sonha, repete, em santa companhia, Os livros do collegio e o nome de um doutor. Alegra-se em ouvindo os compassos da orchestra; E quando entra n’um baile, é já dama do tom; Compensa-lhe a modista os enfados da mestra; Tem respeito á Geslin, mas adora a Dazon. Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo Para ella é o estudo, exceptuando talvez A lição de syntaxe em que combina o verbo To love, mas sorrindo ao professor de inglez. Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço, Parece acompanhar uma etherea visão; Quantas cruzando ao seio o delicado braço Comprime as pulsações do inquieto coração! Ah! se n’esse momento hallucinado, fôres Cahir-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã, Has de vêl-a zombar dos teus tristes amores, Rir da tua aventura e contal-a á mamã. É que esta creatura, adoravel, divina, Nem se póde explicar, nem se póde entender: Procura-se a mulher e encontra-se a menina, Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher! A ELVIRA (LAMARTINE). Quando, comtigo a sós, as mãos unidas, Tu, pensativa e muda; e eu, namorado, Ás volupias do amor a alma entregando, Deixo correr as horas fugidias; Ou quando ás solidões de umbrosa selva Comigo te arrebato; ou quando escuto — Tão só eu, — teus ternissimos suspiros; E de meus labios solto Eternas juras de constancia eterna; Ou quando, emfim, tua adorada fronte Nos meus joelhos tremulos descansa, E eu suspendo meus olhos em teus olhos, Como ás folhas da rosa avida abelha; Ai, quanta vez então dentro em meu peito Vago terror penetra, como um raio! Empallideço, tremo; E no seio da gloria em que me exalto, Lagrimas verto que a minha alma assombrão! Tu, carinhosa e tremula, Nos teus braços me cinges, — e assustada, Interrogando em vão, comigo choras! « Que dôr secreta o coração te opprime? » Dizes tu, « Vem, confia os teus pezares.... « Falla! eu abrandarei as penas tuas! « Falla! eu consolarei tua alma afflicta! » Vida do meu viver, não me interrogues! Quando enlaçado em teus niveos braços A confissão de amor te ouço, e levanto Languidos olhos para ver teu rosto, Mais ditoso mortal o céo não cobre! Se eu tremo, é porque n’essas esquecidas Afortunadas horas, Não sei que voz do enleio me desperta, E me persegue e lembra Que a ventura co’ o tempo se esvaece, E o nosso amor é facho que se extingue! De um lance, espavorida, Minha alma vôa ás sombras do futuro, E eu penso então: « Ventura que se acaba Um sonho vale apenas. » LAGRIMAS DE CÊRA Passou; vio a porta aberta. Entrou; queria rezar. A vela ardia no altar. A igreja estava deserta. Ajoelhou-se defronte Para fazer a oração; Curvou a pallida fronte E pôz os olhos no chão. Vinha tremula e sentida. Commettêra um erro. A Cruz É a ancora da vida, A esperança, a força, a luz. Que rezou? Não sei. Benzeu-se Rapidamente. Ajustou O véo de rendas. Ergueu-se E á pia se encaminhou. Da vela benta que ardêra, Como tranquillo fanal, Umas lagrimas de cêra Cahião no castiçal. Ella porém não vertia Uma lagrima sequer. Tinha a fé, — a chamma a arder, — Chorar é que não podia. NO ESPAÇO II n'y a qu'une sorte d'amour, mais H y en a mille différentes copies. LA ROCHEFOUCAULD. Rompendo o ultimo laço Que ainda á terra as prendia, Encontrárão-se no espaço Duas almas. Parecia Que o destino as convocára Para aquella mesma hora; E livres, livres agora, Correm a estrada do céo, Vão ver a divina face: Uma era a de Lovelace, Era a outra a de Romeo. Voavão... porém, voando Fallavão ambas. E o céo Ia as vozes escutando Das duas almas. Romeo De Lovelace indagava Que fizera n’esta vida E que saudades levava. «Eu amei... mas quantas, quantas, E como, e como não sei; Não seria o amor mais puro, Mas o certo é que as amei. Se era tão fundo e tão vasto O meu pobre coração! Cada dia era uma gloria, Cada hora uma paixão. Amei todas; e na historia Dos amores que senti Nenhuma d’aquellas bellas Deixou de escrever por si. « Nem a patricia de Helena, De verde myrtho c’roada, Nascida como açucena Pelos zephyros beijada, Aos brandos raios da lua, Á voz das nymphas do mar, Trança loura, espadua nua, Calma fronte e calmo olhar. « Nem a belleza latina, Nervosa, ardente, robusta, Levantando a voz augusta Pela margem peregrina, Onde do écho em seus lamentos, Por virtude soberana, Repete a todos os ventos A nota virgiliana. « Nem a doce, aerea Ingleza, Que os ventos frios do norte Fizerão fria de morte, Mas divina de belleza. « Nem a ardente Castelhana, Córada ao sol de Madrid, Belleza tão soberana, Tão despotica no amor, Que troca os trophéos de um Cid Pelo olhar de um trovador. « Nem a virgem pensativa Que as margens do velho Rheno, Como a pura sensitiva Vive das auras do céo E murcha ao mais leve aceno De mãos humanas; tão pura Como aquella Margarida Que a Fausto um dia encontrou. « E muitas mais, e amei todas, Todas minha alma encerrou. Foi essa a minha virtude, Era esse o meu condão. Que importava a latitude? Era o mesmo coração, Os mesmos labios, o mesmo Arder na chamma fatal.... Amei a todas e a esmo. » Lovelace concluíra; Entravão ambos no céo; E o Senhor que tudo ouvíra, Voltou os olhos immensos Para a alma de Romeo: « E tu? — Eu amei na vida Uma só vez, e subi D’aquella cruenta lida, Senhor, a acolher-me em ti. » Das duas almas, a pura, A formosa, olhando em face A divindade ficou; E a alma de Lovelace De novo á terra baixou. D’aqui vem que a terra conta, Por um decreto do céo, Cem Lovelaces n’um dia E em cem annos um Romeo. OS DEOSES DA GRECIA (SCHILLER.) Quando, co' os tenues vinculos de gozo, O’ Venus de Amathonte, governavas Felices raças, encantados povos Dos fabulosos tempos; Quando fulgia a pompa do teu culto, E o templo ornavão delicadas rosas, Ai! quão diverso o mundo apresentava A face aberta em risos! Na poesia envolvia-se a verdade; Plena vida gozava a terra inteira; E o que jamais hão de sentir na vida Então sentião homens. Lei era repousar no amor; os olhos Nos namorados olhos se encontravão; Espalhava-se em toda a natureza Um vestigio divino. Onde hoje dizem que se prende um globo Cheio de fogo, — outrora conduzia Helios o carro de ouro, e os fustigados Cavallos espumantes. Povoavão Orcades os montes, No arvoredo Doriades vivia, E agreste espuma despejava em flocos A urna das Danaides. Refugio de uma nympha era o loureiro; Tantalia moça as rochas habitava; Suspiravão no arbusto e no canniço Syrinx, Philomela. Cada ribeiro as lagrimas colhia De Ceres pela esquiva Persephone; E do outeiro chamava inutilmente Venus o amado amante. Entre as raças que o pio thessaliano Das pedras arrancou, — os deoses vinhão; Por captivar uns namorados olhos Apollo pastoreava. Vinculo brando então o amor lançava Entre os homens, heróes e os deoses todos; Eterno culto ao teu poder rendião, O’ deosa de Amathonte! Jejuns austeros, torva gravidade Banidos erão dos festivos templos; Que os venturosos deoses só amavão Os animos alegres. Só a belleza era sagrada outr’ora; Quando a pudica Thiemone mandava, Nenhum dos gozos que o mortal respira Envergonhava os deoses. Erão ricos palacios vossos templos; Lutas de heróes, festins e o carro e a ode, Erão da raça humana aos deoses vivos A jocunda homenagem. Saltava a dansa alegre em torno a altares; Louros c’roavão numes; e as capellas De abertas, frescas rosas, lhes cingião A fronte perfumada. Annunciava o galhofeiro Baccho O tyrso de Evohé; satyros fulvos Ião tripudiando em seu caminho; Ião bailando as Menades. A dansa revelava o ardor do vinho; De mão em mão corria a taça ardente, Pois que ao fervor dos animos convida A face rubra do hospede. Nenhum espectro hediondo ia sentar-se Ao pé do moribundo. O extremo alento Escapava n’um osculo, e voltava Um genio a tocha extincta. E além da vida, nos infernos, era Um filho de mortal quem sustentava A severa balança; e co’a voz pia Vate ameigava as Furias. Nos Elyseos o amigo achava o amigo; Fiel esposa ia encontrar o esposo; No perdido caminho o carro entrava Do destro automedonte. Continuava o poeta o antigo canto; Admeto achava os osculos de Alceste; Reconhecia Pylades o socio, E o rei thessalio as flechas. Nobre premio o valor retribuia Do que andava nas sendas da virtude; Acções dignas do céo, filhas dos homens, O céo tinhão por paga. Inclinavão-se os deoses ante aquelle Que ia buscar-lhe algum mortal extincto; E os gemeos lá no Olympo alumiavão O caminho ao piloto. Onde és, mundo de risos e prazeres? Porque não volves, florescente idade? Só a poeira conserva os teus divinos Vestigios fabulosos. Tristes e mudos vejo os campos todos; Nenhuma divindade aos olhos surge; D’essas imagens vivas e formosas Só a sombra nos resta. Do norte ao sopro, frio e melancolico, Uma por uma, as flôres se esfolhárão; E d’esse mundo rutilo e divino Outro colheu despojos. Os astros interrogo com tristeza, Seleno, e não te encontro; á selva fallo, Fallo á vaga do mar, e á vaga, e á selva, Inuteis vozes mando. Da antiga divindade despojada, Sem conhecer os extasis que inspira, D’esse esplendor que eterno a fronte lhe orna Não sabe a natureza. Nada sente, não goza do meu gozo; Insensivel á força com que impera, O pendulo parece condemnado Ás frias leis que o regem. Para se renovar, abre hoje a campa, Forão-se os numes ao paiz dos vates; Das roupas infantis despida, a terra Inuteis os rejeita. Forão-se os numes, forão-se; levárão Comsigo o bello, e o grande, e as vivas côres, Tudo que outr’ora a vida alimentava, Tudo que é hoje extincto. Ao diluvio dos tempos escapando, Nos recessos do Pindo se entranhárão: O que soffreu na vida eterna morte, Immortalise a musa! LIVROS E FLORES Teus olhos são meus livros. Que livro ha ahi melhor, Em que melhor se leia A pagina do amor Flôres me são teus labios. Onde ha mais bella flôr, Em que melhor se beba O balsamo do amor? PASSAROS (VERSOS ESCRIPTOS NO ALBUM DE MANOEL DE ARAUJO). Je veux changer mes pensées en oiseaux. C. MAROT. Olha como, cortando os leves ares, Passão do valle ao monte as andorinhas; Vão pousar na verdura dos palmares, Que, á tarde, cobre transparente véo; Voão tambem como essas avezinhas Meus sombrios, meus tristes pensamentos; Zombão da furia dos contrarios ventos, Fogem da terra, acercão-se do céo. Porque o céo é tambem aquella estancia Onde respira a doce creatura, Filha de nosso amor, sonho da infancia, Pensamento dos dias juvenis. Lá, como esquiva flôr, formosa e pura, Vives tu escondida entre a folhagem, O’ rainha do ermo, ó fresca imagem Dos meus sonhos de amor calmo e feliz! Vão para aquella estancia, enamorados, Os pensamentos de minh’ alma anciosa; Vão contar-lhe os meus dias mal gozados E estas noites de lagrimas e dôr; Na tua fronte pousaráõ, mimosa, Como as aves no cimo da palmeira; Dizendo aos échos a canção primeira De um livro escripto pela mão do amor. Dirão tambem como conservo ainda No fundo de minh’ alma essa lembrança Da tua imagen vaporosa e linda, Unico alento que me prende aqui. E dirão mais que estrellas de esperança Enchem a escuridão das noites minhas. Como sobem ao monte as andorinhas, Meus pensamentos voão para ti. CEGONHAS E RODOVALHOS (A ANISIO SEMPRONIO RUFO) (BOUILLET.) Salve, rei dos mortaes, Sempronio invicto, Tu que estreaste nas romanas mesas O rodovalho fresco e a saborosa Pedi-rubra cegonha! Desentranhando os marmores de Phrugia, Ou já rompendo ao bronze o escuro seio, Justo era que mandasse a mão do artista Teu nobre rosto aos evos. Porque fosses maior aos olhos pasmos Das nações do Universo, ó pai dos môlhos, O’ pai das comesainas, em crear-te Teu seculo esfalfou-se. A tua vinda ao mundo preparárão Os destinos, e acaso amiga estrella Ao primeiro vagido de teus labios Entre nuvens luzia. Antes de ti, no seu vulgar instincto, Que comião Romanos? Carne insossa Dos seus rebanhos vis, e uns pobres fructos, Pasto bem digno d’elles; A escudella de páo outr'ora ornava, Com o saleiro antigo, a mesa rustica, A mesa em que, tres seculos contados, Comêrão senadores. E quando, por salvar a patria em risco, Os velhos se ajuntavão, quantas vezes O cheiro do alho enchia a antiga curia, O portico sombrio, Onde vencidos reis o chão beijavão; Quantas, deixando em meio a mal cozida, A sem sabor chanfana, ião de um salto A’ conquista do mundo! Ao voltar dos combates, vencedores, Carga de gloria a náo trazia ao porto, Reis vencidos, tetrarcas subjugados, E rasgadas bandeiras.... Illudião-sé os miseros! Bem hajas, Bem hajas tu, grande homem, que trouxeste Na tua ovante barca á ingrata Roma Cegonhas, rodovalhos! Maior que esse marujo que estripava, Co’ o rijo arpéo, as náos carthaginezas, Tu, Sempronio, co’as redes apanhavas Ouriçado marisco; Tu, glotão vencedor, cingida a fronte Co’o verde myrtho, a terra percorreste, Por encontrar os fartos, os gulosos Ninhos de finos passaros. Roma desconheceu teu genio, ó Rufo! Dizem até (vergonha!) que negára Aos teimosos desejos que nutrias O voto da pretura. Mas a ti, que te importa a voz da turba? Ephemero rumor que o vento leva Como a vaga do mar. Não, não raiárão Os teus melhores dias. Viráõ, quando aspirar a invicta Roma As preguiçosas brizas do oriente; Quando co’a mitra d'ouro, o descorado, O cidadão romano, Pelo fôro arrastar o tardo passo E sacudir da toga roçagante, Ás virações os tepidos perfumes Como um satrapa assyrio. Viráõ, viráõ, quando na escura noite A orgia imperial encher o espaço De viva luz, e embalsamar as ondas Com os seus bafos quentes; Então do somno acordarás, e a sombra, A tua sacra sombra irá pairando Ao ruido das musicas nocturnas Nas rochas de Capréa. O’ martyr dos festins! Queres vingança? Têl-a-has e á farta, á tua gran memoria; Vinga-te o luxo que domina a Italia; Resurgirás ovante Ao dia em que na mesa dos Romanos Vier pompear o javali sylvestre, Prato a que der os finos môlhos Troya E rouxinol as linguas. A UM LEGISTA Tu foges á cidade? Feliz amigo! Vão Comtigo a liberdade, A vida e o coração. A estancia que te espera É feita para o amor Do sol co'a primavera, No seio de uma flôr. Do paço de verdura Transpõe-me esses humbraes; Contempla a architectura Dos verdes palmeiraes. Esquece o ardor funesto Da vida cortezã; Mais val que o teu Digesto A rosa da manhã. Rosa... que se enamora Do amante colibri, E desde a luz da aurora Os seios lhe abre e ri. Mas Zephyro bregeiro Oppõe ao beija-flôr Embargos de terceiro Senhor e possuidor. Quer este possuil-a, Tambem o outro a quer. A pobre flôr vacilla, Não sabe a que attender. O sol, juiz tão grave Como o melhor doutor, Condemna a briza e a ave Aos osculos da flôr. Zephyro ouve e appella. Appella a colibri. No emtanto a flôr singela Com ambos folga e ri. Tal a formosa dama Entre dous fogos, quer Aproveitar a chamma... Rosa, tu és mulher! Respira aquelles ares, Amigo. Deita ao chão Os tedios e os pezares. Revive. O coração É como o passarinho, Que deixa sem cessar A maciez do ninho Pela amplidão do ar. Pudesse eu ir comtigo, Gozar comtigo a luz; Sorver ao pé do amigo Vida melhor e a flux! Ir escrever nos campos, Nas folhas dos rosaes, E á luz dos pyrilampos, O’ Flora, os teus jornaes! Da estrella que mais brilha Tirar um raio, e então Fazer a gazetilha Da immensa solidão. Vai tu que pódes. Deixa Os que não podem ir, Soltar a inutil queixa, Mudar é reflorir. O VERME Existe uma flôr que encerra Celeste orvalho e perfume. Plantou-a em fecunda terra Mão benefica de um nume. Um verme asqueroso e feio, Gerado em lodo mortal, Busca esta flôr virginal E vai dormir-lhe no seio. Morde, sangra, rasga e mina, Suga-lhe a vida e o alento; A flôr o calix inclina; As folhas, leva-as o vento, Depois, nem resta o perfume Nos ares da solidão... Esta flôr é o coração, Aquelle verme o ciume. ESTANCIAS A EMMA ( ALEX. DUMAS, FILHO). I Sahímos, ella e eu, dentro de um carro, Um ao outro abraçados; e como era Triste e sombria a natureza em torno, Ia comnosco a eterna primavera. No cocheiro fiavamos a sorte D’aquelle dia, o carro nos levava Sem ponto fixo onde aprouvesse ao homem; Nosso destino em suas mãos estava. Quadrava-lhe Saint-Cloud. Eia! pois vamos! É um sitio de luz, de aroma e riso. Demais, se as nossas almas conversavão, Onde estivessem era o paraiso. Fomos descer junto ao portão do parque. Era deserto e triste e mudo; o vento Rolava nuvens côr de cinza; estavão Secco o arbusto, o caminho lamacento. Rímo-nos tanto, vendo-te, ó formosa, (E felizmente ninguém mais te via!) Arregaçar a ponta do vestido Que o lindo pé e a meia descobria! Tinhas o gracioso acanhamento Da fidalga gentil pisando a rua; Desaffeita ao andar, teu passo incerto Deixava conhecer a raça tua. Uma das tuas mãos alevantava O vestido de seda; as saias finas Ião mostrando as rendas e os bordados, Lambendo o chão, molhando-te as botinas. Mergulhavão teus pés a cada instante, Como se o chão quizesse alli guardal-os. E que afan! Mal podiamos nós ambos Da cubiçosa terra libertal-os. Doce passeio aquelle! E como é bello O amor no bosque, em tarde tão sombria! Tinhas os olhos humidos, — e a face A rajada do inverno enrubecia. Era mais bello que a estação das flôres; Nenhum olhar nos espreitava alli; Nosso era o parque, unicamente nosso; Ninguem! estava eu só ao pé de ti! Perlustrámos as longas avenidas Que o horizonte cinzento limitava, Sem mesmo ver as deosas conhecidas Que o arvoredo sem folhas abrigava. O tanque, onde nadava um niveo cysne Placidamente, — o passo nos deteve; Era a face do lago uma esmeralda Que reflectia o cysne alvo de neve. Veio este a nós, e como que pedia Alguma cousa, uma migalha apenas; Nada tinhas que dar-lhe; a ave arrufada Foi-se cortando as aguas tão serenas. E nadando parou junto ao repucho Que de agua viva aquelle tanque enchia; O murmurio das gottas que tombavão Era o unico som que alli se ouvia. Lá ficámos tão juntos um do outro, Olhando o cysne e escutando as aguas; Vinha a noite; a sombria côr do bosque Emmoldurava as nossas proprias mágoas. N'um pedestal, onde outras phrases ternas, A mão de outros amantes escreveu, Fui traçar, meu amor, aquella data E junto d'ella pôr o nome teu! Quando o estio volver aquellas arvores, E á sombra d'ellas fôr a gente a flux, E o tanque reflectir as folhas novas, E o parque encher-se de murmurio e luz, Irei um dia, na estação das flores, Ver a columna onde escrevi teu nome, O doce nome que minha alma prende, E que o tempo, quem sabe? já consome! Onde estarás então? Talvez bem longe, Separada de mim, triste e sombrio; Talvez tenhas seguido a alegre estrada, Dando-me aspero inverno em pleno estio. Porque o inverno não é o frio e o vento, Nem a erma alameda que hontem vi; O inverno é o coração sem luz, nem flores, É o que eu hei de ser longe de ti! II Correu um anno desde aquelle dia Em que fomos ao bosque, um anno, sim! Eu já previa o funebre desfecho D’esse tempo feliz, — triste de mim! O nosso amor nem vio nascer as flôres; Mal aquecia um raio de verão Para sempre, talvez, das nossas almas Começou a cruel separação. Vi esta primavera em longes terras, Tão ermo de esperanças e de amores, Olhos fitos na estrada, onde esperava Ver-te chegar, como a estação das flôres. Quanta vez meu olhar sondou a estrada Que entre espesso arvoredo se perdia, Menos triste, inda assim, menos escuro Que a duvida cruel que me seguia! Que valia esse sol abrindo as plantas E despertando o somno das campinas? Inda mais altas que as searas louras, Que valião as flôres peregrinas? De que servia o aroma dos outeiros? E o canto matinal dos passarinhos? Que me importava a mim o arfar da terra, E nas moutas em flôr os verdes ninhos? O sol que enche de luz a longa estrada, Se me não traz o que minh’alma espera, Póde apagar seus raios seductores: Não é o sol, não é a primavera! Margaridas, cahí, morrei nos campos, Perdei o viço e as delicadas côres; Se ella vos não aspira o halito brando, Já o verão não sois, já não sois flôres! Prefiro o inverno desfolhado e mudo, O velho inverno, cujo olhar sombrio Mal se derrama nas cerradas trevas, E vai morrer no espaço humido e frio, É esse o sol das almas desgraçadas; Venha o inverno, somos tão amigos! Nossas tristezas são irmãs em tudo: Temos ambos o frio dos jazigos! Contra o sol, contra Deos, assim fallava Dês que assomavão matinaes albores; Eu aguardava as tuas doces lettras Com que ao céo perdoasse as bellas côres! Ião assim, um após outro, os dias. Nada. — E aquelle horizonte tão fechado Nem deixava chegar aos meus ouvidos O écho longinquo do teu nome amado. Só, durante seis mezes, dia e noite Chamei por ti na minha angustia extrema; A sombra era mais densa a cada passo, E eu murmurava sempre: — Oh! minha Emma! Um quarto de papel — é pouca cousa; Quatro linhas escriptas — não é nada; Quem não quer escrever colhe uma rosa, No valle aberta, á luz da madrugada. Mandão-se as folhas n’um papel fechado; E o proscripto, anciando de esperança, Póde entre-abrir nos labios um sorriso Vendo n’aquillo uma fiel lembrança. Era facil fazêl-o e não fizeste! Meus dias erão mais desesperados; Meu pobre coração ia seccando Como esses fructos no verão guardados. Hoje, se o comprimissem, mal deitava Uma gotta de sangue; nada encerra. Era uma taça cheia: uma criança, De estouvada que foi, deitou-a em terra! É este o mesmo tempo, o mesmo dia. Vai o anno tocando quasi ao fim; É esta a hora em que, formosa e terna, Conversavas de amor, junto de mim. O mesmo aspecto: as ruas estão ermas, A neve coalha o lago preguiçoso; O arvoredo gastou as roupas verdes, E nada o cysne triste e silencioso. Vejo ainda no marmore o teu nome, Escripto quando alli comigo andaste. Vamos! Sonhei, foi um delirio apenas, Era um louco, tu não me abandonaste! O carro espera: vamos. Outro dia, Se houver bom tempo, voltaremos, não? Corre este véo sobre teus olhos lindos, Olha não caias, dá-me a tua mão! Choveu: a chuva humedeceu a terra. Anda! Ai de mim! Em vão minh’alma espera. Estas folhas que eu piso em chão deserto São as folhas da outra primavera! Não, não estás aqui, chamo-te embalde! Era ainda uma ultima illusão. Tão longe d’esse amor fui inda o mesmo, E vivi dous invernos sem verão. Porque o verão não é aquelle tempo De vida e de calor que eu não vivi; É a alma entornando a luz e as flôres, É o que hei de ser ao pé de ti! UN VIEUX PAYS ... juntamente choro e rio. CAMÕES, soneto. Il est un vieux pays, plein d'ombre et de lumière, Où l'on rêve le jour, où l'on pleure le soir; Un pays de blasphème, autant que de prière, Né pour le doute et pour l'espoir. On n'y voit point de fleurs sans un ver qui les ronge Point de mer sans tempête, ou de soleil sans nuit; Le bonheur y paraît quelquefois dans un songe Entre les bras du sombre ennui. L'amour y va souvent, mais c'est tout un délire, Un désespoir sans fin, une énigme sans mot; Parfois il rit gaîment, mais de cet affreux rire Qui n'est peut-être qu'un sanglot. On va dans ce pays de misère et d'ivresse, Mais on le voit à peine, on en sort, on a peur; Je 1'habite pourtant, j'y passe ma jeunesse.... Hélas! ce pays, c'est mon cœur. A MORTE DE OPHELIA (PARAPHRASE). Junto ao placido rio Que entre margens de relva e fina areia Murmura e serpenteia, O tronco se levanta, O tronco melancolico e sombrio De um salgueiro. Uma fresca e branda aragem Alli suspira e canta, Abraçando-se á tremula folhagem Que se espelha na onda voluptuosa. Alli a desditosa, A triste Ophelia foi sentar-se um dia. Enchião-lhe o regaço umas capellas Por suas mãos tecidas De varias flôres bellas, Pallidas margaridas, E rainunculos, e essas outras flôres A que dá feio nome o povo rude, E a casta juventude Chama — dedos da morte. — O olhar celeste Alevantando aos ramos do salgueiro, Quiz alli pendurar a offrenda agreste. N’um galho traiçoeiro Firmára os lindos pés, e já seu braço. Os ramos alcançando, Ia depôr a offrenda peregrina De suas flôres, quando Rompendo o apoio escasso, A pallida menina Nas aguas resvalou; forão com ella Os seus — dedos da morte — e as margaridas. As vestes estendidas Algum tempo a tiverão sobre as aguas, Como sereia bella, Que abraça ternamente a onda amiga. Então, abrindo a voz harmoniosa, Não por chorar as suas fundas mágoas, Mas por soltar a nota deliciosa De uma canção antiga, A pobre naufragada De alegres sons enchia os ares tristes, Como se alli não visse a sepultura, Ou fosse alli creada. Mas de subito as roupas embebidas Da lympha calma e pura Levão-lhe o corpo ao fundo da corrente, Cortando-lhe no labio a voz e o canto. As aguas homicidas, Como a lage de um tumulo recente, Fecharão-se; e sobre ellas. Triste emblema de dôr e de saudade, Forão nadando as ultimas capellas. LUZ ENTRE SOMBRAS É noite medonha e escura, Muda como o passament Uma só no firmamento Tremula estrella fulgura, Falia aos échos da espessura A chorosa harpa do vento, E n’um canto somnolento Entre as arvores murmura. Noite que assombra a memoria, Noite que os medos convida, Erma, triste, merencoria. No entanto... minh’alma olvida Dôr que se transforma em gloria, Morte que se rompe em vida. LIRA CHINEZA LYRA CHINEZA I CORAÇÃO TRISTE FALLANDO AO SOL. (Imitado de Su-Tchon). No arvoredo sussurra o vendaval do outono, Deita as folhas á terra, onde não ha florir E eu contemplo sem pena esse triste abandono; So eu as vi nascer, vejo-as só eu cahir. Como a escura montanha, esguia e pavorosa Faz, quando o sol descamba, o valle ennoitecer, A montanha da alma, a tristeza amorosa, Tambem de ignota sombra enche todo o meu ser. Transforma o frio inverno a agua em pedra dura, Mas torna a pedra em agua um raio de verão; Vem, ó sol, vem, assume o throno teu na altura, Vê se pódes fundir meu triste coração. II A FOLHA DO SALGUEIRO. (Tchan-Tiú-Lin). Amo aquella formosa e terna moça Que, á janella encostada, arfa e suspira; Não porque tem do largo rio á margem Casa faustosa e bella. Amo-a, porque deixou das mãos mimosas Verde folha cahir nas mansas aguas. Amo a briza de léste que sussurra, Não porque traz nas azas delicadas O perfume dos verdes pecegueiros Da oriental montanha. Amo-a porque impellio co’as tenues azas Ao meu batel a abandonada folha. Se amo a mimosa folha aqui trazida, Não é porque me lembre á alma e aos olhos A renascente, a amavel primavera, Pompa e vigor dos valles. Amo a folha por ver-lhe um nome escripto, Escripto, sim, por ella, e esse... é meu nome. III O POETA A RIR. (Han-Tiê.) Taça d’agua parece o lago ameno; Tem os bambús a fórma de cabanas, Que as arvores em flôr, mais altas, cobrem Com verdejantes tectos. As ponteagudas rochas entre flôres, Dos pagodes o grave aspecto ostentão... Faz-me rir ver-te assim, ó natureza, Cópia servil dos homens. IV A UMA MULHER. (Tchê-Tsi.) Cantigas modulei ao som da flauta, Da minha flauta d’ebano; N’ellas minh’alma segredava á tua Fundas, sentidas mágoas. Cerraste-me os ouvidos. Namorados Versos compuz de jubilo, Por celebrar teu nome, as graças tuas, Levar teu nome aos seculos. Olhaste, e meneando a airosa frente, Com tuas mãos purissimas, Folhas em que escrevi meus pobres versos Lançaste ás ondas tremulas. Busquei então por encantar tu’alma Uma saphira esplendida, Fui depôl-a a teus pés... tu descerraste Da tua boca as perolas. V O IMPERADOR. (Thu-Fu.) Olha. O Filho do Céo, em throno de ouro, E adornado com ricas pedrarias, Os mandarins escuta: — um sol parece De estrellas rodeado. Os mandarins discutem gravemente Cousas muito mais graves. E elle? Foge-lhe O pensamento inquieto e distrahido Pela janella aberta. Além, no pavilhão de porcellana, Entre donas gentis está sentada A imperatriz, qual flôr radiante e pura Entre viçosas folhas. Pensa no amado esposo, arde por vêl-o, Prolonga-se-lhe a ausencia, agita o leque... Do imperador ao rosto um sopro chega De rescendente briza. « Vem della este perfume, » diz, e abrindo Caminho ao pavilhão da amada esposa, Deixa na sala olhando-se em silencio Os mandarins pasmados. VI O LEQUE. (De-Tan-Jo-Lu.) Na perfumada alcova a esposa estava, Noiva ainda na véspera. Fazia Calor intenso; a pobre moça ardia Com fino leque as faces refrescava. Ora, no leque em boa lettra feito Havia este conceito: « Quando, immovel o vento e o ar pesado, « Arder o intenso estio, « Serei por mão amiga ambicionado; « Mas volte o tempo frio, « Ver-me-heis a um canto logo abandonado. » Lê a esposa este aviso, e o pensamento Volve ao joven marido. « Arde-lhe o coração n’este momento « (Diz ella) e vem buscar enternecido « Brandas auras de amor. Quando mais tarde « Tornar-se em cinza fria « O fogo que hoje lhe arde, « Talvez me esqueça e me desdenhe um dia. » VII AS FLÔRES E OS PINEHIROS. (Tin-Tun-Sing.) Vi os pinheiros no alto da montanha Ouriçados e velhos; E ao sopé da montanha, abrindo as flôres Os calices vermelhos. Contemplando os pinheiros da montanha, As flores tresloucadas Zombão d’elles enchendo o espaço em torno De alegres gargalhadas. Quando o outono voltou, vi na montanha Os meus pinheiros vivos, Brancos de neve, e meneiando ao vento Os galhos pensativos. Volvi o olhar ao sitio onde escutára Os risos mofadores; Procurei-as em vão; tinhão morrido As zombeteiras flôres. VIII REFLEXOS. (Thu-Fu.) Vou rio abaixo vogando No meu batel e ao luar; Nas claras aguas fitando, Fitando o olhar. Das aguas vejo no fundo, Como por um branco véo, Intenso, calmo, profundo, O azul do céo. Nuvem que no céo fluctua, Fluctua n’agua tambem; Se a lua cobre, á outra lua Cobril-a vem. Da amante que me extasia, Assim, na ardente paixão, As raras graças copia Meu coração. UMA ODE DE ANACREONTE (Quadro antigo). A MANOEL DE MELLO. PERSONAGENS LYSIAS. CLEON. MYRTO. TRES ESCRAVOS. A scena é em Samos. UMA ODE DE ANACREONTE Sala de festim em casa de Lysias. Á esquerda a mesa do festim; á direita uma mesa tendo em cima uma lampada apagada, e junto da alampada um rolo de papyro. SCENA I. LYSIAS, CLEON, MYRTO. (Estão no fim de um banquete; os dous homens deitados á maneira antiga, Myrto sentada entre os dous leitos. Tres escravos.) LYSIAS. Melancolica estás, bella Myrto. Bebamos! Aos prazeres! CLEON. Eu bebo á memoria de Samos. Samos vai terminar os seus dourados dias; Adeos, terra em que achei consolo ás agonias Da minha mocidade; adeos, Samos, adeos! MYRTO. Querem-lhe os deoses mal? CLEON. Não; dous olhos, os teus. LYSIAS. Bravo, Cleon! MYRTO. Poeta! os meus olhos? CLEON. São lumes Capazes de abrasar até os proprios numes, Samos é nova Troya, e tu és outra Helena, Quando Lesbos, a mãi de Sappho, a ilha amena, Não vir a bella Myrto, a alegre cortezã, Armar-se-ha contra nós. LYSIAS. Lesbos é boa irmã. MYRTO. Outras bellezas tem, dignas da loura Venus. CLEON. Menos dignas que tu. MYRTO. Mais do que eu. LYSIAS. Muito menos. CLEON. Tens vergonha de ser formosa e festejada, Myrto? Venus não quer belleza envergonhada. Pois que dos immortaes houveste esse condão De inspirar quantos vês, inspira-os, Myrto. MYRTO. Não; São teus olhos, poeta; eu não tenho a belleza Que arrasta corações. CLEON. Divina singeleza! LYSIAS (á parte). Vejo através do manto as galas da vaidade. (Alto.) Vinho, escravo! (O escravo deita vinho na taça de Lysias.) Poeta, um brinde á mocidade. Trava da lyra e invoca o deos inspirador. CLEON. « Feliz quem junto a ti, ouve a tua falla, amor! » MYRTO. Versos de Sapho! CLEON. Sim. LYSIAS. Vês? é modestia pura. Elle é na poesia o que és na formosura. Faz versos de primor e esconde-os ao profano; Tem vergonha. Eu não sei se o vicio é lesbiano... MYRTO. Ah! tu és… CLEON. Lesbos foi minha patria tambem, Lesbos, a flôr do Egeo. MYRTO. Já não é? CLEON. Lesbos tem Tudo o que me fascina e tudo o que me mata: As festas do prazer e os olhos de uma ingrata. Fugi da patria e achei, já curado e tranquillo, Em Lysias um irmão, em Samos um asylo. Bem hajas tu que veus encher-me o coração! LYSIAS. Insaciavel! Não tens em Lysias um irmão? MYRTO. Volto á patria. CLEON. Pois que! tu vais? MYRTO. Em poucos dias.... LYSIAS. Fazes mal; tens aqui os moços e as folias, O gozo, a adoração; que te falta? MYRTO. Os meus ares. CLEON. A que vieste então? MYRTO. Successos singulares. Vim por acompanhar Lysicles, mercador De Naxos; tanto póde a constancia no amor! Corrêmos todo o Egeo e a costa ionia; fomos Comprar o vinho a Creta e a Tenedos os pomos. Ah! como é doce o amor na solidão das aguas! Tem-se vida melhor; esquecem-se-lhe as mágoas. Zephyro ouvio por certo os osculos febris, Os jubilos do affecto; as fallas juvenis; Ouvio-os, delatou ao deos que o mar governa A indiscreta ventura, a effusão doce e terna. Para a furia acalmar da sombria deidade, Nave e bens varreu tudo a horrivel tempestade. Foi assim que eu perdi a Lysicles, assim Que eu semi-morta e fria á tua plaga vim. CLEON. Ó coitada! LYSIAS. O infortunio os animos apura; As feridas que faz o mesmo Amor as cura; Brandem armas iguaes Achilles e Cupido. Queres ver n'outro amor o teu amor perdido? Samos o tem de sobra. CLEON. Eu, Myrto, eu sei amar; Não fio o coração da inconstancia do mar. Não tenho galeões rompendo o seio a Thetys, Estrada tanta vez ao torvo e obscuro Lethes. Aqui me tens; sou teu; escreve a minha sorte; Pódes doar-me a vida ou decretar-me a morte. MYRTO. Mas se eu volto…. CLEON. Pois bem! aonde quer que tu vás Irei comtigo; a deosa indomita e fallaz Ser-me-ha hospede amiga; ao pé de ti a escura Noite parece aurora, e é berço a sepultura. MYRTO. Quando falla o dever, a vontade obedece; Eu devo ir só; tu fica, ama-me um pouco e esquece. LYSIAS. Tens razão, bella Myrto; escuta o teu dever. CLEON. Ai! é facil amar, difficil esquecer. LYSIAS (a Myrto). Queres pôr termo á festa? Um brinde a Venus, filha Da mar azul, belleza, encanto, maravilha; Nascida para ser perpetuamente amada. A Venus! (Depois do brinde os escravos trazem os vasos com agua perfumada em que os convivas lavão as mãos; os escravos sahem levando os restos do banquete. Levantão-se todos.) Queres tu, mimosa naufragada, Ouvir de hemonia serva, em lyra de marfim, Uma alegre canção? Preferes o jardim? O portico talvez? MYRTO. Lysias, sou indiscreta; Quizera antes ouvir a voz do teu poeta. LYSIAS. Nume não pede, impõe. CLEON. O mando é lisongeiro. LYSIAS. Pois começa. SCENA II. Os mesmos, um escravo. ESCRAVO. Procura a Myrto um mensageiro. MYRTO. Um mensageiro! a mim! LYSIAS. Manda-o entrar. ESCRAVO. Não quer. LYSIAS. Vai, Myrto. MYRTO (sahindo). Volto já. (Sahe o escravo.) SCENA III. LYSIAS, CLEON. CLEON. (Olhando para o lugar por onde Myrto sahio.) Oh! deoses! que mulher! LYSIAS. Ah! que perola rara! CLEON. Onde a encontraste? LYSIAS. Achei-a Com Parthenis que dava uma esplendida ceia; Parthenis, ex-bonita, ex-joven, ex-da moda, Sabes que vê fugir-lhe a enfastiada roda; E, para não perder o grupo adorador, Fez do templo deserto uma escola de amor. Foi ella quem achou a naufraga perdida, Exposta ao vento e ao mar, quasi a expirar-lhe a vida. A belleza pagava o emprego de uma esmola; Dentro em pouco era Myrto a flôr de toda a escola. CLEON. Lembrou-te convidal-a então para um festim? LYSIAS. Foi um pouco por ella e um pouco mais por mim. CLEON. Tambem amas? LYSIAS. Eu? não. Quiz ter á minha mesa Venus e o louro Apollo, a poesia e a belleza. CLEON. Oh! a belleza, sim! Viste já tanta graça, Tão celestes feições? LYSIAS. Cuidado! Aquella caça Zomba dos tiros vãos de ingenuo caçador! CLEON. Incredulo! LYSIAS. Eu sou mestre em materia de amor Se tu attento e calmo a narração lhe ouvisses Conhecêras melhor o engenho d’esta Ulysses. Aquelle ardente amor a Lysicles, aquelle Fundo e intenso pezar que á sua patria a impelle, Armas são com que a astuta os animos seduz. CLEON. Oh! não creio. LYSIAS. Porque? CLEON. Não vês como lhe luz Tanta expressão sincera em seus olhos divinos? LYSIAS. Sim, tem muita expressão.... para illudir meninos. CLEON. Pois tu não crês? LYSIAS. Em que? No naufragio? De certo. Em Lysicles? Talvez. No amor? é mais incerto. Na intenção de voltar a Lesbos ? isso não! Sabes o que ella quer? Prender um coração. CLEON. Impossivel! LYSIAS. Poeta! estás na alegre idade Em que a sciencia da vida é a credulidade. Vês tudo azul e em flôr; eu já me não illudo. Pois amar cortezãs! isso demanda estudo, Não vai assim, que as taes abelhitas do amor Correm de bolsa em bolsa e não de flôr em flôr. CLEON. Mas não as amas tu? LYSIAS. De certo.... á minha moda; Meu grande coração co’ os vicios se accommoda; Sacrificios de amor não sonha nem procura; Não lhes pede illusões, pede-lhes só ternura. Não me empenho em achar alma ungida no céo: Se é crime este sentir; confesso-me, sou réo. Não peço amor ao vinho; irei pedil-o ás damas? D’ellas e d’elle exijo apenas estas chammas Que ardem sem consumir, na pyra dos desejos. Lá protestos de boca, eternos e leaes, Tudo isso é fumo vão. Que queres? Os mortaes Somos todos assim. CLEON. Ai, os mortaes! dize antes Os philosophos máos, ridiculos pedantes, Os que não sabem crer, os fartos já de amores, Esses sim. Os mortaes! LYSIAS. Refreia os teus furores, Poeta; eu não quizera amargurar-te, e emfim Não podia suppôr que a amasses tanto assim. Caspité! Vais depressa! CLEON. Ai, Lysias, é verdade. Amo-a, como não amo a vida e a mocidade; De que modo nasceu esta affeição que encerra Todo o meu ser, ignoro. Acaso sabe a terra Porque é mais bella ao sol e ás auras matinaes? Amores estes são terríveis e fataes. LYSIAS. Vês com olhos do céo cousas que são do mundo; Acreditas achar esse affecto profundo, N’estas filhas do mal! Se a todo o transe queres Obter a casta flôr dos celicos prazeres, Deixa a alegre Corintho e todo o luxo seu; Outro porto acharás: procura o Gyneceo. Escolhe aquelle amor doce, innocente e puro, Que inda não tem passado e vive do futuro. Para mim, já t’o disse, o caso é differenle; Não me importa um nem outro; eu vivo no presente. CLEON. Deu-te amiga Fortuna um grande cabedal: Viver, sem illusões, no bem como no mal; Não conhecer o amor que morde, que se nutre Do nosso sangue, o amor funesto, o amor abutre; Não beber gotta a gotta este brando veneno Que requeima e destróe; não ver em mar sereno Subitamente erguer-se a voz dos aquilões. Afortunado és tu. LYSIAS. Lei de compensações! Sou philosopho máo, ridiculo pedante, Mas invejas-me a sorte; oh! logica de amante CLEON. É a do coração. LYSIAS. Terrivel mestre! CLEON. Ensina Dos seres immortaes a transfusão divina! LYSIAS. A lição é profunda e escapa ao meu saber; Outra escola professo, a escola do prazer! CLEON. Tu não tens coração. LYSIAS. Tenho, mas não me illudo É Circe que perdeu o encanto e a juventude. CLEON. Velho Satyro! LYSIAS. Justo: um semi-deos sylvestre. N’estas cousas do amor nunca tive outro mestre. Tu gostas de chorar; eu cá prefiro rir. Tres artigos da lei: gozar, beber, dormir. CLEON. Compras com isso a paz; a mim coube o tedio, A solidão e a dôr. LYSIAS. Queres um bom remedio, Um philtro da Thessalia, um balsamo infallivel? Esqueces emprezas vãs, não tentes o impossivel Prende o teu coração nos laços de Hymenêo; Casa-te; encontrarás o amor no gynecêo. Mas cortezãs! jamais! São Gorgones! Medusas! CLEON. Essas que conheceste e tão severo accusas — Pobres moças! — não são o universal modelo; De outras sei a quem coube um coração singelo, Que preferem a tudo a gloria singular De conhecer sómente a sciencia de amar; Capazes de sentir o ardor da intensa chamma Que eleva, que resgata a vida que as infama. LYSIAS. Se achares tal milagre, eu mesmo irei pedir-t’o. CLEON. Basta um passo, achal-o-hei. LYSIAS. Bravo! chama-se? CLEON. Myrto, Que póde conquistar até o amor de um deos! LYSIAS. Crês n’isso? CLEON. Porque não? LYSIAS. Tu és um nescio; adeos! SCENA IV. CLEON. Vai, sceptico! tu tens o vicio da riqueza: Farto, não crês na fome.... A minha singeleza Faz-te rir; tu não vês o amor que absorve e mata; Myrto, vinga-me tu da calumnia insensata; Amemo-nos. É ella! SCENA V. CLEON , MYRTO. MYRTO. Estás triste! CLEON. Oh! que não! Mas deslumbrado, sim, como se uma visão…. MYRTO. A visão vai partir. CLEON. Mas muito tarde.... MYRTO. Breve. CLEON. Quem te chama? MYRTO. O destino. Adivinha quem me escreve? CLEON. Tua mãi. MYRTO. Já morreu. CLEON. Algum antigo amante? MYRTO. Lysicles. CLEON. Vive. MYRTO. Sim. Depois de andar errante N’uma taboa, á mercê das ondas , quiz o céo Que viesse encontral-o um barco do Pyreo. Pobre Lysicles! teve em tão cruenta lida A dôr da minha morte e a dôr da propria vida. Em vão interrogava o mar cioso e mudo. Perdêra, de uma vez , n’uma só noite, tudo. A ventura, a esperança , o amor, e perdeu mais: Naufragárão com elle os poucos cabedaes. Entrou em Samos pobre, inquieto, semi-morto. Um barqueiro , que a tempo atravessava o porto, Disse-lhe que eu vivia, e contou-lhe a aventura Da malfadada Myrto. CLEON. É isso, a sorte escura Votou-se contra mim; não consente, não quer Que eu me farte de amor no amor de uma mulher. Vejo em cada paixão o fado que me opprime; O amar é já soffrer a pena do meu crime, Ixion foi mais audaz amando a deosa augusta; Transpôz o obscuro lago e soffre a pena justa; Mas eu não. Antes de ir ás regiões infernaes São as graças comigo Eumenides fataes! MYRTO. Caprichos de poeta! Amor não falta ás damas; Damas, tem-las aqui; inspira-lhe estas chammas. CLEON. Impõe-se leis ao mar? O coração é isto; Ama o que lhe convem; convém amar a Egistho Clytemnestra; convem a Cynthia Endymião; É caprichoso e livre o mar do coração; De outras sei que eu houvera em meus versos cantado; Não lhes quero... não posso. MYRTO. Ai, triste enamorado! CLEON. E tu zombas de mim! MYRTO. Eu zombar? Não; lamento A tua acerba dôr, o teu fatal tormento. Não conheço eu também esse cruel penar? Só dous remedios tens: esquecer, esperar. De quanto almeja e quer o amor nem tudo alcança; Contenta-se ao nascer co’ as auras da esperança; Vive da propria mágoa; a propria dôr o alenta. CLEON. Mas, se a vida é tão curta, a agonia é tão lenta! MYRTO. Não sabes esperar? Então cumpre esquecer. Escolhe entre um e outro; é preciso escolher. CLEON. Esquecer? sabes tu, Myrto, se a alma esquece O prazer que a fulmina, e a dôr que a fortalece? MYRTO. Tens na ausencia e no tempo os velhos pais do olvido, O bem não alcançado é como o bem perdido, Pouco a pouco se esvai na mente e coração; Põe o mar entre nós... dissipa-se a illusão. CLEON. Impossivel! MYRTO. Então espera; algumas vezes A fortuna transforma em glorias os revezes. CLEON. Myrto, valem bem pouco as glorias já tardias. MYRTO. Um só dia de amor compensa estereis dias. CLEON. Compensará, mas quando? A mocidade em flôr Bem cedo morre, e é essa a que convem a amor. Vejo cahir no occaso o sol da minha vida. MYRTO. Cabeça de poeta, exaltada e perdida! Pensas estar no occaso o sol que mal desponta? CLEON. A clepsydra do amor não conta as horas, conta As illusões; velhice é perdêl-as assim; Breve a noite abrirá seus véos por sobre mim. MYRTO. Não has de envelhecer; as illusões comtigo Flôres são que respeita Eolo brando e amigo. Guarda-as, talvez um dia, e não tarde, as colhamos. CLEON. Se eu a Lesbos não vou. MYRTO. Podem colher-se em Samos. CLEON. Voltas breve? MYRTO. Não sei. CLEON. Oh! sim, deves voltar! MYRTO. Tenho medo. CLEON. De que? MYRTO. Tenho medo... do mar. CLEON. Teu sepulcro já foi; o medo é justo; fica. Lesbos é para ti mais formosa, é mais rica. Mas a patria é o amor; o amor transmuda os ares. Muda-se o coração? Mudão-se os nossos lares. Da importuna memoria o teu passado exclue; Vida nova nos chama, outro céo nos influe. Fica; eu disfarçarei com rosas este exilio; A vida é um sonho máo: façamo-la um idylio. Cantarei a teus pés a nossa mocidade, A belleza que impõe, o amor que persuade. Venus que faz arder o fogo da paixão, Teu olhar, doce luz que vem do coração. Pericles não amou com tanto ardor a Aspasia, Nem esse que morreu entre as pompas da Asia, A Lais siciliana. Aqui as Horas bellas Teceráõ para ti vivissimas capellas. Nem morrerás; teu nome em meus versos ha de ir, Vencendo o tempo e a morte, aos seculos porvir. MYRTO. Tanto me queres tu! CLEON. Immensamente. Anceio Por sentir, bella Myrto, arfar teu brando seio, Bater teu coração, tremer teu lábio puro, Todo viver de ti. MYRTO. Confia no futuro. CLEON. Tão longe! MYRTO. Não, bem perto. CLEON. Ah! que dizes? MYRTO. Adeos! (Passa junto da mesa da direita e vê no rolo de papyro.) Curiosa que sou! CLEON. São versos. MYRTO. Versos teus? (Lysias apparece ao fundo.) CLEON. De Anacreonte, o velho, o amavel, o divino. MYRTO. A musa é toda ironia, e o estro é peregrino. (Abre o papyro e lê.) « Fez-se Niobe em pedra e Philomela em passaro. « Assim « Folgaria eu tambem me transformasse Jupiter « A mim. « Quizera ser o espelho em que o teu rosto magico « Sorri; « A tunica feliz que sempre se está proxima « De ti; « O banho de crystal que esse teu corpo candido « Contém; « O aroma de teu uso e d’onde effluvios magicos « Provem; « Depois esse listão que de teu seio turgido « Faz dous; « Depois do teu pescoço o rosicler de perolas; « Depois.... « Depois ao ver-te assim, unica e tão emulas « Qual és, « Até quizera ser teu calçado, e pisassem-me « Teus pés.» Que magníficos são! CLEON. Minha alma assim te falla. MYRTO. Attendendo ao poeta eu pensava escutal-a. CLEON. Écho do meu sentir foi o velho amador; Taes os desejos são do meu profundo amor. Sim, eu quizera ser tudo isto, — o espelho, o banho, O calçado, o collar... Desejo acaso estranho, Louca ambição talvez de poeta exaltado… MYRTO. Tanto sentes por mim? SCENA VI. CLEON, MYRTO, LYSIAS. LYSIAS (entrando.) Amor, nunca sonhado. Se a musa d’elle és tu! CLEON. Lysias! MYRTO. Ouviste? LYSIAS. Ouvi. Versos que Anacreonte houvera feito a ti, Se vivesses no tempo em que, pulsando a lyra, Estas odes compôz que a velha Grecia admira. (A Cleon.) Quer fallar-te um sujeito, um Clinias, um collega, Ex-mercador, como eu. MYRTO. Ai, que importuno! LYSIAS. Allega Que não póde esperar, que isto não póde ser, Que um processo... A final não n’o pude entender. Póde ser que comtigo o homem se accommode. Prometteste talvez compôr-lhe alguma ode? CLEON. Não. Adeos, bella Myrto; espera-me um instante. MYRTO. Não tardes! LYSIAS (á parte.) Indiscreta! CLEON. Espera. LYSIAS (á parte.) Petulante! SCENA VII. MYRTO, LYSIAS. MYRTO. Sou curiosa. Quem é Clinias, ex-mercador Amigo d'elle? LYSIAS. Mais do que isso; é um credor, MYRTO. Ah! LYSIAS. Que bello rapaz! que alma fogosa e pura, Bem digna de aspirar-te um hausto de ventura! Queira o céo pôr-lhe termo á profunda agonia, Surja emfim para elle o sol de um novo dia. Merece-o. Mas vê lá se ha destino peior: Quer o alado Mercurio obstar o alado Amor. Com beijos não se paga a pompa do vestido, O espectaculo e a mesa; e se o gentil Cupido Gosta de ouvir canções, o outro não vai com ellas; Vale uma drachma só vinte odezinhas bellas. Um poema não compra um simples borseguim. Versos! são bons de ler; mais nada; eu penso assim. MYRTO. Pensas mal! A poesia é sempre um dom celeste; Quando o genio o possue quem ha que o não requeste? Hermes, com ser o deos dos graves mercadores, Tocou lyra tambem. LYSIAS. Já sei que estás de amores. MYRTO. Que esperança! Bem vês que eu já não posso amar. LYSIAS. Perdeste o coração? MYRTO. Sim; perdi-o no mar. LYSIAS. Pesquemo-lo; talvez essa perola fina Venha ornar-me a existencia agourada e mofina. MYRTO. Mofina? LYSIAS. Pois então? Enfarão-me estas bellas Da terra samiana; assaz vivi por ellas. Outras desejo amar, filhas do azul Egeo. Varia de feições o Amor, como Protheo. MYRTO. Seu caracter melhor foi sempre o ser constante. LYSIAS. Serei menos fiel, não sou menos amante. Cada belleza em si toda a paixão resume. Pouco me importa a flôr; importa-me o perfume. MYRTO. Mas quem quer o perfume afaga um pouco a flôr; Nem fere o objecto amado a mão que implora o Amor. LYSIAS. Offendo-te com isto? Esquece a minha offensa. MYRTO. Já esqueci; passou LYSIAS. Quem falla como pensa Arrisca-se a perder ou por sobra ou por mingoa. Eu confesso o meu mal; não sei tentear a lingua. Pois que me perdoaste, escuta-me. Tu tens A graça das feições, o summo bem dos bens Moça, trazes na fronte o doce beijo de Hebe; Como um philtro de amor que, sem sentir, se bebe, De teus olhos distilla a eterna juventude; De teus olhos que um deos, por lhes dar mais virtude, Fez azues como o céo, profundos como o mar. Quem taes dotes reúne, ó Myrto, deve amar. MYRTO. Fallas como um poeta, e zombas da poesia! LYSIAS. Eu, poeta? jamais. MYRTO. A tua fantasia Respirou certamente o ar do monte Hymetto. Tem a expressão tão doce! LYSIAS. É a expressão do affecto. Sou em cousas de Apollo um simples amador. A minha grande musa é Venus, mãi de amor. No mais não aprendi (os fados meus adversos Vedárão-m’o!) a cantar bons e sentidos versos. Cleon esse é que sabe acender tantas almas, Conquistar de um só lance os corações e as palmas. MYRTO. Conquistar, oh! que não! LYSIAS. Mas agradar? MYRTO. Talvez. LYSIAS. Isso mesmo; é já muito. O que o poeta fez Fal-o-hei jamais? Comtudo, inda tental-o quero; Se não me inspira a musa, alma filha de Homero, Inspira-me o desejo, a musa que delira, E o seu canto concerta aos sons da eterna lyra. MYRTO. Tambem desejas ser alguma cousa? LYSIAS. Não; Eu caso o meu amor ás regras da razão. Cleon quizera ser o espelho em que teu rosto Sorri; eu bella Myrto, eu tenho melhor gosto. Ser espelho! ser banho! e tunica! tolice! Esteril ambição! loucura! criancice! Por Venus! sei melhor o que a mim me convem. Homem sisudo e grave outros desejos tem. Fiz, a este respeito, aprofundado estudo; Eu não quero ser nada; eu quero dar-te tudo. Escolhe o mais perfeito espelho de aço fino, A tunica melhor de panno tarentino, Vasos de oleo, um collar de perolas, — emfim Quanto enfeita uma dama aceital-o-has de mim. Brincos que vão ornar-te a orelha graciosa; Para os dedos o annel de pedra preciosa; A tua fronte pede áureo, rico anadema; Têl-o-has, divina Myrto. É este o meu poema. MYRTO. É lindo! LYSIAS. Queres tu, outras strophes mais? Dar-t’as-hei quaes as teve a celebrada Lais. Casa, rico jardim, servas de toda a parte; E estatuas e paineis, e quantas obras d’arte Podem servir de ornato ao templo da belleza, Tudo haverás de mim. Nem gosto nem riqueza Te ha de faltar, mimosa, e só quero um penhor. Quero.... quero-te-a ti. MYRTO. Pois que! já quer a flôr, Quem desdenhando a flôr, só lhe pede o perfume? LYSIAS. Esqueceste o perdão? MYRTO. Ficou-me este azedume. LYSIAS. Venus póde apagal-o. MYRTO. Eu sei! creio e não creio. LYSIAS. Hesitar é ceder: agrada-me o receio. Em asumpto de amor vontade que fluctua Está prestes a entregar-se. Entregas-te? MYRTO. Sou tua! SCENA VIII. LYSIAS, MYRTO, CLEON. CLEON. Demorei-me de mais? LYSIAS. Apenas o bastante Para que fosse ouvido um coração amante. A Lesbiana é minha. CLEON. És d’elle, Myrto! MYRTO. Sim; Eu ainda hesitava; elle fallou por mim. CLEON. Quantos amores tens, filha do mal? LYSIAS. Presinto Uma lamentação inutil, « A Corintho Não vai quem quer, » lá diz aquelle velho adagio. Navegavas sem leme; era certo o naufragio. Não me viste sulcar as mesmas aguas? CLEON. Vi, Mas contava com ella, e confiava em ti. Mais duas illusões! Que importa? Inda são poucas; Desfação-se uma a uma estas chimeras loucas. O’ arvore bemdita, ó minha juventude, Vão-te as flôres cahindo ao vento aspero e rude! Não vos maldigo, não; eu não maldigo o mar Quando a nave sossobra; o erro é confiar. Adeos, formosa Myrto; adeos, Lysias; não quero Perturbar vosso amor, eu que já nada espero; Eu que vou arrancar as profundas raizes D’esta paixão funesta; adeos, sede felizes! LYSIAS. Adeos! Saudemos nós a Venus e a Lyeo. AMBOS. Io Poean! ó Baccho! Hymenêo! Hymenêo! PALLIDA ELVIRA (CONTO). A FRANCISCO RAMOS PAZ. PALLIDA ELVIRA Ulysse, jeté sur les rives d'Ithaque, ne les reconnait pas et pleure sa patrie. Ainsi l’homme dans le bonheur possédé ne reconnaît pas son rêve et soupire. DANIEL STERN. I Quando, leitora amiga, no occidente Surge a tarde esmaiada e pensativa; E entre a verde folhagem rescendente Languida geme viração lasciva; E já das tênues sombras do oriente Vem apontando a noite, e a casta diva Subindo lentamente pelo espaço, Do céo, da terra observa o estreito abraço; II N’essa hora de amor e de tristeza, Se acaso não amaste e acaso esperas Ver coroar-te a juvenil belleza Casto sonho das tuas primaveras; Não sentes escapar tua alma acesa Para voar ás lúcidas espheras? Não sentes n'essa mágoa e n'esse enleio Vir morrer-te uma lagrima no seio? III Sentel-o? Então entenderás Elvira, Que assentada á janella, erguendo o rosto, O vôo solta á alma que delira E mergulha no azul de um céo de Agosto; Entenderás então porque suspira, Victima já de um intimo desgosto, A meiga virgem, pallida e calada, Sonhadora, anciosa e namorada. IV Mansão de riso e paz, mansão de amores Era o valle. Espalhava a natureza, Com dadivosa mão, palmas e flôres De agreste aroma e virginal belleza; Bosques sombrios de immortaes verdores, Asylo proprio á inspiração acesa. Valle de amor, aberto ás almas ternas N’este valle de lagrimas eternas. V A casa, junto á encosta de um outeiro, Alva pomba entre folhas parecia: Quando vinha a manhã, o olhar primeiro Ia beijar-lhe a verde gelosia: Mais tarde a fresca sombra de um coqueiro Do sol quente a janella protegia; Pouco distante, abrindo o solo adusto, Um fio d’agua murmurava a custo. VI Era uma joia a alcova em que sonhava Elvira, alma de amor. Tapete fino De apurado lavor o chão forrava. De um lado oval espelho crystallino Pendia. Ao fundo, á sombra, se occultava Elegante, engraçado, pequenino Leito em que, repousando a face bella, De amor sonhava a pallida donzella. VII Não me censure o critico exigente O ser pallida a moça; é meu costume Obedecer á lei de toda a gente Que uma obra compõe de algum volume. Ora, no nosso caso, é lei vigente Que um descorado rosto o amor resume. Não tinha Miss Smolen outras côres; Não n’as possue quem sonha com amores. VIII Sobre uma mesa havia um livro aberto; Lamartine, o cantor aereo e vago, Que enche de amor um coração deserto; Tinha-o lido; era a pagina do Lago. Amava-o; tinha-o sempre alli bem perto, Era-lhe o anjo bom, o deos, o orago; Chorava aos cantos da divina lyra.... É que o grande poeta amava Elvira! IX Elvira! o mesmo nome! A moça os lia, Com lagrimas de amor, os versos santos, Aquella eterna e languida harmonia Formada com suspiros e com prantos; Quando escutava a musa da elegia Cantar de Elvira os magicos encantos, Entrava-lhe a voar a alma inquieta, E co’ o amor sonhava de um poeta. X Ai, o amor de um poeta! amor subido! Indelevel, purissimo, exaltado, Amor eternamente convencido, Que vai além de um tumulo fechado, E que, através dos seculos ouvido, O nome leva do objecto amado, Que faz de Laura um culto, e tem por sorte Negra fouce quebrar nas mãos da morte. XI Fosse eu moça e bonita... N’este lance Se o meu leitor é já homem sisudo, Fecha tranquillamente o meu romance, Que não serve a recreio nem a estudo; Não entendendo a força nem o alcance De semelhante amor, condemna tudo; Abre um volume serio, farto e enorme, Algumas folhas lê, boceja... e dorme. XII Nada perdes, leitor, nem perdem nada As esquecidas musas; pouco importa Que tu, vulgar matéria condemnada, Aches que um tal amor é lettra morta. Podes, cedendo á opinião honrada, Fechar á minha Elvira a esquiva porta. Almas de prosa chã, quem vos daria Conhecer todo o amor que ha na poesia? XIII Ora, o tio de Elvira, o velho Antero, Erudito e philosopho profundo, Que sabia de cór o velho Homero, E compunha os annaes do Novo Mundo; Que escrevêra uma vida de Severo, Obra de grande tomo e de alto fundo; Que resumia em si a Grecia e Lacio, E n’um salão fallava como Horacio; XIV Disse uma noite á pallida sobrinha: « Elvira, sonhas tanto! devaneias! « Que andas a procurar, querida minha? « Que ambições, que desejos ou que idéas « Fazem gemer tua alma innocentinha? « De que esperança vã, meu anjo, anceias? « Teu coração de ardente amor suspira; « Que tens? — Eu nada, » respondia Elvira. XV « Alguma cousa tens! » tornava o tio; « Porque olhas tu as nuvens do poente, « Vertendo ás vezes lagrimas a fio, « Magoada expressão d’alma doente? « Outras vezes, olhando a agua do rio, « Deixas correr o espirito indolente, « Como uma flôr que ao vento alli tombára, « E a onda murmurando arrebatára. » XVI « — Latet anguis in herba... » Neste instante Entrou a tempo o chá... perdão, leitores, Eu bem sei que é preceito dominante Não misturar comidas com amores; Mas eu não vi, nem sei se algum amante Vive de orvalho ou petalas de flôres; Namorados estomagos consomem; Comem Romeos, e Julietas comem. XVII Entrou a tempo o chá, e foi servil-o, Sem responder, a moça interrogada, C’um ar tão soberano e tão tranquillo Que o velho emmudeceu. Ceia acabada, Fez o escriptor o costumado chylo, Mas um chylo de especie pouco usada, Que consistia em ler um livro velho; N’essa noite acertou ser o Evangelho. XVIII Abríra em S. Matheus, n’aquelle passo Em que o filho de Deos diz que a açucena Não labora nem fia, e o tempo escasso Víve, co’ o ar e o sol, sem dôr nem pena; Leu e estendendo o já tremulo braço A triste, á melancolica pequena, Apontou-lhe a passagem da Escriptura Onde lêra lição tão recta e pura. XIX « Vês? diz o velho, escusas de cansar-te; « Deixa em paz teu espirito, criança: « Se existe um coração que deva amar-te, « Ha de vir; vive só d’essa esperança. « As venturas do amor um deos reparte; « Queres têl-as? põe n’elle a confiança. « Não persigas com supplicas a sorte; « Tudo se espera; até se espera a morte! XX « A doutrina da vida é esta: espera, « Confia, e colherás a anciada palma; « Oxalá que eu te apague essa chimera « Lá diz o bom Demophilo que á alma; « Como traz a andorinha a primavera, « A palavra do sabio traz a calma, « O sabio aqui sou eu. Ris-te, pequena? « Pois melhor; quero ver-te uma açucena! » XXI Fallava aquelle velho como falla Sobre côres um cego de nascença. Pear a juventude! Condemnal-a Ao somno da ambição vivaz e intensa! Co’ as leves azas da esperança ornal-a E não querer que rompa a esphera immensa! Não consentir que esta manhã de amores Encha com frescas lagrimas as flôres. XXII Mal o velho acabava e justamente Na rija porta ouvio-se uma pancada. Quem seria? Uma serva diligente, Travando de uma luz, desceu a escada. Pouco depois rangia brandamente A chave, e a porta aberta dava entrada A um rapaz embuçado que trazia Uma carta, e ao doutor fallar pedia. XXIII Entrou na sala, e lento, e gracioso, Descobrio-se e atirou a capa a um lado; Era um rosto poetico e viçoso Por soberbos cabellos coroado; Grave sem gesto algum pretencioso, Elegante sem ares de enfeitado; Nos labios frescos um sorriso amigo, Os olhos negros e o perfil antigo. XXIV Demais, era poeta. Era-o. Trazia N’aquelle olhar não sei que luz estranha Que indicava um alumno da poesia, Um morador da classica montanha, Um cidadão da terra da harmonia, Da terra que eu chamei nossa Allemanha, N’uns versos que hei de dar um dia a lume, Ou n’alguma gazeta, ou n’um volume. XXV Um poeta! e de noite! e de capote! Que é isso, amigo autor? Leitor amigo. Imagina que estás n’um camarote Vendo passar-se em scena um drama antigo, Sem lança não conheço D. Quixote, Sem espada é apocrypho um Rodrigo; Heróe que ás regras classicas escapa, Póde não ser heróe, mas traz a capa. XXVI Heitor (era o seu nome) ao velho entrega Uma carta lacrada; vem do norte. Escreve-lhe um philosopho collega Já quasi a entrar no thalamo da morte. Recommenda-lhe o filho, e lembra, e allega, A provada amizade, o esteio forte, Com que outr’ora, acudindo-lhe nos transes, Salvou-lhe o nome de terriveis lances. XXVII Dizia a carta: « Crime ou virtude, « É meu filho poeta; e corre fama « Que já faz honra á nossa juventude « Co’ a viva inspiração de etherea chamma; « Diz elle que, se o genio não o illude, « Camões seria se encontrasse um Gama. « Deos o fade; eu perdôo-lhe tal sestro; « Guia-lhe os passos, cuida-lhe do estro. » XXVIII Lida a carta, o philosopho erudito Abraça o moço e diz em tom pausado: « Um sonhador do azul e do infinito! « É hospede do céo, hospede amado. « Um bom poeta é hoje quasi um mytho, « Se o talento que tem é já provado, « Conte co’ o meu exemplo e o meu conselho; « Boa lição é sempre a voz de um velho. » XXIX E trava-lhe da mão, e brandamente Leva-o junto d’Elvira. A moça estava Encostada á janella, e a esquiva mente Pela extensão dos ares lhe vagava. Voltou-se distrahida, e de repente Mal nos olhos de Heitor o olhar fitava, Sentio... Inutil fôra relatal-o; Julgue-o quem não puder experimental-o. XXX O’ santa e pura luz do olhar primeiro! Élo de amor que duas almas liga! Raio de sol que rompe o nevoeiro E casa a flôr á flôr! Palavra amiga Que, trocada um momento passageiro, Lembrar parece uma existencia antiga! Lingua, filha do céo, doce eloquencia Dos melhores momentos da existencia! XXXI Entra a leitora n’uma sala cheia; Vai isenta, vai livre de cuidado: Na cabeça gentil nenhuma idéa, Nenhum amor no coração fechado. Livre como a andorinha que volteia E corre loucamente o ar azulado. Venhão dous olhos, dous, que a alma buscava… Era senhora? ficará escrava! XXXII C’um só olhar escravos elle e ella Já lhes pulsa mais forte o sangue e a vida; Rapida corre aquella noite, aquella Para as castas venturas escolhida; Assoma já nos labios da donzella Lampejo de alegria esvaecida. Foi milagre de amor, prodigio santo. Quem mais fizera? Quem fizera tanto? XXXIII Preparára-se ao moço um aposento. Oh! reverso da antiga desventura! Têl-o perto de si! viver do alento De um poeta, alma languida, alma pura! Dá-lhe, ó fonte do casto sentimento, Aguas santas, baptismo de ventura! Emquanto o velho, amigo de outra fonte, Vai mergulhar-se em pleno Xenophonte. XXXIV Devo agora contar, dia por dia, O romance dos dous? Inutil fôra; A historia é sempre a mesma; não varia A paixão de um rapaz e uma senhora. Vivem ambos do olhar que se extasia E conversa co’a alma sonhadora; Na mesma luz de amor os dous se inflammão; Ou, como diz Philinto: « Amados, amão. » XXXV Todavia a leitora curiosa Talvez queira saber de um incidente; A confissão dos dous; — scena espinhosa Quando a paixão domina a alma que sente. Em regra, confissão franca e verbosa Revela um coração independente; A paz interior tudo confia, Mas o amor, esse hesita e balbucia. XXXVI O amor faz monosyllabos; não gasta O tempo com analyses compridas; Nem é proprio de boca amante e casta Um chuveiro de phrases estendidas; Um volver d’olhos languido nos basta Por conhecer as chammas comprimidas; Coração que discorre e faz estylo, Tem as chaves por dentro e está tranquillo. XXXVII Deu-se o caso uma tarde em que chovia, Os dous estavão na varanda aberta. A chuva peneirava, e além cobria Cinzento véo o occaso; a tarde incerta Já nos braços a noite a recebia, Como amorosa mãi que a filha aperta Por enxugar-lhe os prantos magoados. Eram ambos immoveis e calados. XXXVIII Juntos, ao parapeito da varanda, Vião cahir da chuva as gottas finas, Sentindo a viração fria , mas branda, Que balançava as frouxas casuarinas. Raras, ao longe, de uma e de outra banda, Pelas do céo tristissimas campinas, Vião correr da tempestade as aves Negras, serenas, lugubres e graves. XXXIX De quando em quando vinha uma rajada Borrifar e agitar a Elvira as trancas, Como se fôra a briza perfumada Que á palmeira sacode as tenues franças. A fronte gentilissima e engraçada Sacudia co’a chuva as más lembranças; E ao passo que chorava a tarde escura Ria-se n’ella a aurora da ventura. XL « Que triste a tarde vai! que véo de morte « Cobrir parece a terra! (o moço exclama). « Reproducção fiel da minha sorte, « Sombra e choro. — Porque? pergunta a dama; « Diz que teve dos céos uma alma forte... « — É forte o bronze e não resiste á chamma; « Leu versos meus em que zombei do fado? « Illusões de poeta mallogrado! » XLI « Somos todos assim. É nossa gloria « Contra o destino oppôr alma de ferro; « Desafiar o mal, eis nossa historia, « E o tremendo duello é sempre um erro. « Custa-nos caro uma fallaz victoria « Que nem consola as mágoas do desterro, « O desterro, — esta vida obscura e rude « Que a dôr enfeita e as victimas illude. XLII « Contra esse mal tremendo que devora « A seiva toda á nossa mocidade , « Que remedio haveriamos, senhora, « Senão versos de affronta e liberdade? « No emtanto, bastaria acaso um’ hora, « Uma só, mas de amor, mas de piedade, « Para trocar por seculos de vida « Estes de dôr acerba e envilhecida. » XLIII Al não disse, e, fitando olhos ardentes Na moça, que de enleio enrubecia, Com discursos mais fortes e eloquentes Na exposição do caso proseguia; A pouco e pouco as mãos intelligentes Travárão-se; e não sei se conviria Accrescentar que um osculo... Risquemos, Não é bom mencionar estes extremos. XLIV Duas sombrias nuvens afastando, Tenue raio de sol rompêra os ares, E, no amoroso grupo desmaiando, Testemunhou-lhe as nupcias singulares. A nesga azul do occaso contemplando, Sentírão ambos irem-lhe os pezares, Como nocturnas aves agoureiras Que á lua fogem medrosas e ligeiras. XLV Tinha mágoas o moço? A causa d’ellas? Nenhuma causa; fantasia apenas; O eterno devanear das almas bellas, Quando as dominão fervidas Camenas; Uma ambição de conquistar estrellas, Como se colhem lucidas phalenas; Um desejo de entrar na eterna lida, Um querer mais do que nos cede a vida. XLVI Com amores sonhava, ideal formado De celestes e eternos esplendores, A ternura de um anjo destinado A encher-lhe a vida de perpetuas flôres. Tinha-o emfim, qual fôra antes creado Nos seus dias de mágoas e amargores; Madrugavão-lhe n’alma a luz e o riso; Estava á porta emfim do paraiso. XLVII N’essa noite, o poeta namorado Não conseguio dormir. A alma fugíra Para ir velar o doce objecto amado, Por quem, nas ancias da paixão, suspira; E é provável que, achando o exemplo dado, Ao pé de Heitor viesse a alma de Elviva;[1] De maneira que os dous, de si ausentes, Lá se achavão mais vivos e presentes. XLVIII Ao romper da manhã, co’o sol ardente, Briza fresca, entre as folhas sussurrando, O não-dormido vate acorda, e a mente Lhe foi dos vagos sonhos arrancando. Heitor contempla o valle resplendente, A flôr abrindo, o passaro cantando; E a terra que entre risos acordava, Ao sol do estio as roupas enxugava. XLIX Tudo então lhe sorria. A natureza, As musas, o futuro, o amor e a vida; Quanto sonhára aquella mente acesa Dera-lhe a sorte, emfim, compadecida. Um paraiso, uma gentil belleza, E a ternura castissima e vencida De um coração creado para amores, Que exhala affectos como aroma as flôres. L E ella? Se cohreceste em tua vida, Leitora, o mal do amor, delirio santo, Dor que eleva e conforta a alma abatida, Embriaguez do ceo, divino encanto, Se a tua face ardente e enrubecida Pallejou com suspiros e com prantos, Se ardeste emfim, naquella intensa chamma, Entenderás o amor de ingenua dama. LI Repara que eu não fallo desse enleio De uma noite de baile ou de palestra; Amor que mal agita a flôr do seio, E ao chá termina e acaba com a orchestra; Não me refiro ao simples galanteio Em que cada menina é velha mestra, Avesso ao sacrifício, á dor e ao choro; Fallo do amor, não fallo do namoro. LII Eden de amor, ó solidão fechada, Casto asylo a que o sol dos novos dias Vai mandar, como a furto, a luz coada Pelas frestas das verdes gelosias, Guarda-os ambos; conserva-os recatada. Almas feitas de amor e de harmonias, Tecei, tecei as vividas capellas, Deixai correr sem susto as horas bellas. LIII Cá fóra o mundo insipido e profano Não dá, nem póde dar o enleio puro Das almas novas, nem o doce engano Com que se esquecem males do futuro. Não busqueis penetrar n’este oceano Em que se agita o temporal escuro. Por fugir ao naufragio e ao soffrimento, Tendes uma enseada, — o casamento. LIV Resumamos, leitora, a narrativa. Tanta strophe a cantar ethereas chammas Pede compensação, musa insensiva, Que fatigais sem pena o ouvido ás damas. Demais, é regra certa e positiva Que muitas vezes as maiores famas Perde-as uma ambição de tagarella; Musa, aprende a lição; musa, cautela! LV Mezes depois da scena relatada Nas strophes, a folhas, — o poeta Ouvio do velho Antero uma estudada Oração Ciceronica e selecta; A conclusão da arenga preparada Era mais agradavel que discreta. Dizia o velho erguendo olhos serenos: « Pois que se adorão, casem-se, pequenos! » LVI Lagrima santa, lagrima de gosto Vertem olhos de Elvira; e um riso aberto Veio inundar-lhe de prazer o rosto Como uma flôr que abrisse no deserto. Se ião já longe as sombras do desgosto; Inda até li era o futuro incerto; Fez-lh’o certo o ancião; e a moça grata Beija a mão que o futuro lhe resgata. LVII Correm-se banhos, tirão-se dispensas, Vai-se buscar um padre ao povoado; Prepara-se o enxoval e outras pertenças Necessarias agora ao novo estado. Notão-se até algumas differenças No modo de viver do velho honrado, Que sacrificia á noiva e aos deoses lares Um estudo dos classicos jantares. LVIII « Onde vás tu? — A’ serra! — Vou comtigo. « — Não, não venhas, meu anjo, é longa a estrada. « Se cansares? — Sou leve, meu amigo; « Descerei nos teus hombros carregada. « — Vou compôr encostado ao cedro antigo « Canto de nupcias. — Seguirei calada; « Junto de ti, ter-me-has mais em lembrança; « Musa serei sem perturbar. — Criança! » LIX Brandamente repelle Heitor a Elvira; A moça fica; o poeta lentamente Sobe a montanha. A noiva repetíra O primeiro pedido inutilmente. Olha-o de longe, e timida suspira. Vinha a tarde cahindo frouxamente, Não triste, mas risonha e fresca e bella, Como a vida da pallida donzella. LX Chegando, emfim, á c’rôa da collina, Vírão olhos de Heitor o mar ao largo, E o sol, que despe a veste purpurina, Para dormir no eterno leito amargo. Surge das aguas pallida e divina, Essa que tem por deleitoso encargo Velar amantes, proteger amores, Lua, musa dos candidos palores. LXI Respira Heitor; é livre. O casamento? Foi sonho que passou, fugaz idéa Que não pôde durar mais que um momento. Outra ambição a alma lhe incendeia. Dissipada a illusão, o pensamento Novo quadro a seus olhos patenteia, Não lhe basta aos desejos de sua alma A enseada da vida estreita e calma. LXII Aspira ao largo; pulsão-lhe no peito Uns impetos de vida; outro horizonte, Tumidas vagas, temporal desfeito, Quer com elles lutar fronte por fronte. Deixa o tranquillo amor, casto e perfeito, Pelos brodios de Venus de Amathonte; A existencia entre flôres esquecida Pelos rumores de mais ampla vida. LXIII Nas mãos da noite desmaiára a tarde; Descem ao valle as sombras vergonhosas; Noite que o céo, por mofa ou por alarde, Torna propicia ás almas venturosas. O derradeiro olhar frio e covarde E umas não sei que strophes lamentosas Solta o poeta, emquanto a triste Elvira, Viuva antes de noiva, em vão suspira! LXIV Transpõe o mar Heitor, transpõe montanhas; Tu, curiosidade, o ingrato levas A ir ver o sol das regiões estranhas. A ir ver o amor das peregrinas Evas. Vai, em troco de palmas e façanhas, Viver na morte, bracejar nas trevas; Faser do amor, que é livro aos homens dado, Copioso almanach namorado. LXV Inscreve n’elle a moça de Sevilha, Longas festas e noites hespanholas, A indiscreta e diabolica mantilha Que a fronte cinge a amantes e a carolas. Quantos encontra corações perfilha, Faz da bolsa e do amor largas esmolas; Esquece o antigo amor e a antiga musa Entre os beijos da lepida Andaluza. LXVI Canta no seio turgido e macio Da fogosa, indolente Italiana, E dorme junto ao laranjal sombrio Ao som de uma canção napolitana. Dão-lhe para os serões do ardente estio, Asti, os vinhos; mulheres, a Toscana. Roma adora, embriaga-se em Veneza, E ama a arte nos braços da belleza. LXVII Vê Londres, vê Paris, terra das ceias, Feira do amor a toda a bolsa aberta; No mesmo laço, as bellas como as feias, Por capricho ou razão, iguaes aperta; A idade não pergunta ás taças cheias, Só pede o vinho que o prazer desperta; Adora as outoniças, como as novas, Torna-se heróe de rua e heróe de alcovas. LXVIII Versos quando os compõe, celebrão antes O alegre vicio que a virtude austera; Canta os beijos e as noites delirantes, O esteril gozo que a volupia gera; Troca a illusão que o seduzia d’antes Por maior e tristissima chimera; Ave do céo, entre os osculos creada, Espalha as plumas brancas pela estrada. LXIX Um dia, emfim, cansado e aborrecido, Acorda Heitor; e olhando em roda e ao largo, Vê um deserto, e do prazer perdido Resta-lhe unicamente o gosto amargo; Não achou o ideal appetecido No longo e profundissimo lethargo; A vida exhausta em feitos e esplendores, Se alguma tinha, eram já murchas flôres. LXX Ora, uma noite, costeando o Rheno, Ao luar melancolico, — buscava Aquelle gozo simples, doce, ameno, Que á vida toda outr’ora lhe bastava; Voz remota, cortando o ar sereno, Em derredor os échos acordava; Voz aldeã que o largo espaço enchia, E uma canção de Schiller repetia. LXXI « A gloria! diz Heitor, a gloria é vida! Porque busquei nos gozos de outra sorte Esta felicidade appetecida, Esta resurreição que annulla a morte? O’ illusão fantastica e perdida! O’ mal gasto, ardentissimo transporte! Musa, restaura as apagadas tintas! Revivei, revivei, chammas extinctas! » LXXII A gloria? Tarde vens, pobre exilado! A gloria pede as illusões viçosas, Estro em flôr, coração electrisado, Mãos que possão colher ethereas rosas; Mas tu, filho do ocio e do peccado, Tu que perdeste as forças portentosas Na agitação que os animos abate, Queres colher a palma do combate? LXXIII Chamas em vão as musas; deslembradas, Á tua voz os seus ouvidos cerrão; E nas paginas virgens, preparadas, Pobre poeta, em vão teus olhos errão; Nega-se a inspiração; nas despregadas Cordas da velha lyra, os sons que encerram Inertes dormem; teus cansados dedos Correm debalde; esquecem-lhe os segredos. LXXIV Ah! se a taça do amor e dos prazeres Já não guarda licor que te embriague; Se nem musas nem languidas mulheres Têm coração que o teu desejo apague; Busca a sciencia, estuda a lei dos seres, Que a mão divina a tua dor esmague; Entra em ti, vê o que és, observa em roda, Escuta e palpa a natureza toda. LXXV Livros compra, um philosopho procura; Revolve a creação, prescruta a vida; Vê se espancas a longa noite escura Em que a esteril razão andou mettida; Talvez aches a palma da ventura No campo das sciencias escondida. Que a tua mente as illusões esqueça: Se o coração morreu, vive a cabeça! LXXVI Ora, por não brigar co’os meus leitores, Dos quaes, conforme a curta ou longa vista, Uns pertencem aos grupos novadores, Da fria communhão materialista; Outros, seguindo exemplos dos melhores, Defendem a theoria idealista; Outros, emfim, fugindo armas extremas, Vão curando por ambos os systemas. LXXVII Direi que o nosso Heitor, após o estudo Da natureza e suas harmonias, (Oppondo a consciencia um forte escudo Contra divagações e fantasias); Depois de ter aprofundado tudo, Planta, homem, estrellas, noites, dias, Achou esta lição inesperada: Veio a saber que não sabia nada. LXXVIII « Nada! exclama um philosopho amarello Pelas longas vigilias, afastando Um livro que ha de dar um dia ao prelo E em cujas folhas ia trabalhando. Pois eu, doutor de borla e de capello, Eu que passo os meus dias estudando, Hei de ler o que escreve penna ousada, Que a sciencia da vida acaba em nada? » LXXIX Aqui convinha intercalar com geito, Sem pretenção, nem pompa nem barulho, Uma arrancada apostrophe do peio Contra as vãs pretenções do nosso orgulho; Conviria mostrar em todo o effeito Essa que és dos espiritos entulho, Sciencia vã, de magnas leis tão rica, Que ignora tudo, e tudo ao mundo explica. LXXX Mas, urgindo acabar este romance, Deixo em paz o philosopho, e procuro Dizer do vate o doloroso trance Quando se achou mais pecco e mais escuro. Valêra bem n’aquelle triste lance Um sorriso do céo placido e puro, Raio do sol eterno da verdade, Que a vida aquece e alenta a humanidade. LXXXI Que! nem ao menos na sciencia havia Fonte que a eterna sêde lhe matasse? Nem no amor, nem no seio da poesia Podia nunca repousar a face? Atrás d’esse fantasma correria Sem que jámais as fórmas lhe palpasse? Seria acaso a sua ingrata sorte A ventura encontrar nas mãos da morte? LXXXII A morte! Heitor pensára alguns momentos N’essa sombria porta aberta á vida; Pallido archanjo dos finaes alentos De alma que o céo deixou desilludida; Mão que, fechando os olhos somnolentos, Põe o termo fatal á humana lida; Templo de gloria ou região do medo, Morte, quem te arrancára o teu segredo? LXXXIII Vasio, inutil, ermo de esperanças Heitor buscava a noiva ignota e fria, Que o envolvesse então nas longas tranças E o conduzisse á camara sombria, Quando, em meio de pallidas lembranças, Surgio-lhe a idéa de um remoto dia, Em que cingindo a candida capella Estava a pertencer-lhe uma donzella. LXXXIV Elvira! o casto amor! a esposa amante! Rosa de uma estação, deixada ao vento! Riso dos céos! estrella rutilante Esquecida no azul do firmamento! Ideal, meteoro de um instante! Gloria da vida, luz do pensamento! A gentil, a formosa realidade! Unica dita e unica verdade! LXXXV Ah! porque não ficou calmo e tranquillo Da ingenua moça nos divinos braços? Porque fugira ao casto e alegre asylo? Porque rompêra os mal formados laços? Quem pudera jamais restituil-o Aos estreitos, fortissimos abraços Com que Elvira apertava enternecida Esse que lhe era o amor, a alma e a vida? LXXXVI Será tempo? Quem sabe? Heitor hesita; Tardio pejo lhe enrubece a face; Punge o remorso; o coração palpita Como se vida nova o reanimasse; Tenue fogo, entre a cinza, arde e se agita... Ah! se o passado alli resuscitasse Revivirião illusões viçosas, E a gasta vida rebentára em rosas! LXXXVII Resolve Heitor voltar ao valle amigo, Onde ficára a noiva abandonada. Transpõe o lar, affronta-lhe o perigo, E chega emfim á terra desejada. Sobe o monte, contempla o cedro antigo, Sente abrir-se-lhe n’alma a flôr murchada Das illusões que um dia concebêra; Rosa extincta da sua primavera! LXXXVIII Era a hora em que os serros do oriente Formar parecem luminosas urnas; E abre o sol a pupilla resplendente Que ás folhas sorve as lagrimas nocturnas; Frouxa briza amorosa e diligente Vai acordando as sombras taciturnas; Surge nos braços d’essa aurora estiva A alegre natureza rediviva. LXXXIX Campa era o mar; o valle estreito berço; De um lado a morte, do outro lado a vida, Canto do céo, resumo do universo, Ninho para aquecer a ave abatida. Inda nas sombras todo o valle immerso, Não acordára á costumada lida; Repousava no placido abandono Da paz tranquilla e do tranquillo somno. XC Alto já ia o sol, quando descêra Heitor a opposta face da montanha; Nada do que deixou desparecêra; O mesmo rio as mesmas hervas banha. A casa, como então, garrida e austera, Do sol nascente a viva luz apanha; Iguaes flôres, nas plantas renascidas... Tudo alli falla de perpetuas vidas! XCI Desce o poeta cauteloso e lento. Olha de longe; um vulto ao sol erguia A veneranda fronte, monumento De grave e celestial melancolia. Como sulco de um fundo pensamento Larga ruga na testa abrir se via, Era a ruina talvez de uma esperança... Nos braços tinha uma gentil criança. XCII Ria a criança; o velho contemplava Aquella flôr que ás auras matutinas O perfumoso calix desbrochava E entrava a abrir as petalas divinas. Triste sorriso o rosto lhe animava, Como um raio de lua entre ruinas. Alegria infantil, tristeza austera, O inverno torvo, a alegre primavera! XCIII Desce o poeta, desce, e preso, e fito Nos bellos olhos do gentil infante, Treme, comprime o peito... e após um grito Corre alegre, exaltado e delirante, Ah! se jámais as vozes do infinito Podem sahir de um coração amante, Teve-as aquelle... Lagrimas sentidas Lhe inundárão as faces resequidas! XCIV « Meu filho! » exclama, e subito parando Ante o grupo ajoelha o libertino; Geme, soluça, em lagrimas beijando As mãos do velho e as trancas do menino. Ergue-se Antero, e frio e venerando, Olhos no céo, exclama: « Que destino! Murchar-lhe, viva, a rosa da ventura; Morta, insultar-lhe a paz da sepultura! » XCV « Morta! — Sim! — Ah! senhor! se arrependido Posso alcançar perdão, se com meus prantos, Posso apiedar-lhe o coração ferido Por tanta mágoa e longos desencantos; Se este infante, entre lagrimas nascido, Póde influir-me os seus affectos santos... É meu filho, não é? perdão lhe imploro! Veja, senhor! eu soffro, eu creio, eu choro! » XCVI Olha-o com frio orgulho o velho honrado; Depois, fugindo aquella scena estranha, Entra em casa. O poeta, acabrunhado, Sobe outra vez a encosta da montanha; Ao cimo chega, e desce o opposto lado Que a vaga azul entre soluços banha. Como fria ironia a tantas mágoas, Batia o sol de chapa sobre as aguas. XCVII Pouco tempo depois ouvio-se um grito, Som de um corpo nas aguas resvalado; Á flôr das vagas veio um corpo afflicto... Depois... o sol tranquillo e o mar calado. Depois... Aqui termina o manuscripto, Que me legou antigo deputado, Homem de alma de ferro, e olhar sinistro, Que morreu velho e nunca foi ministro. FIM. NOTAS. LA MARCHESA DE MIRAMAR. (Pag. 21.) Conta um biographo do archiduque Maximiliano que este infeliz principe, quando estava em Miramar, costumava retratar photographicamente a archiduqueza, escrevendo por baixo do retrato: « La marchesa de Miramar. » FLOR DA MOCIDADE. (Pag. 43.) Os poetas classicos francezes usavão muito esta fórma a que chamavão triolet. Depois do longo desuso, alguns poetas d’este seculo resuscitárão o triolet, não desmerecendo dos antigos modelos. Não me consta que se haja tentado empregal-a em portuguez, nem talvez seja cousa que mereça trasladação. A fórma entretanto é graciosa e não encontra difficuldade na nossa lingua, creio eu. MENINA E MOÇA. (Pag. 49.) A estes versos respondeu o meu talentoso amigo Ernesto Cybrão com a seguinte poesia; vale a pena escrever de menimas e moças, quando ellas produzem estas flôres e fructos: FLÔR E FRUCTO. A antithese é mair do que pensaste, amigo. …………………………………………… Está n’aquella idade em que se busca o abrigo Do berço contra o sol, do mundo contra o lar; Ante-manhã da vida, hora crepuscular, Que traz dormente a moça e desperta a menina: Esta brinca no céo, incarnação divina, Aquella sonha e crê... quantos sonhos de amor! São uma e outra a mesma: o fructo sahe da flôr. Era a flor perfumosa e bella e delicada, A seducção da briza, o amor da madrugada; Mas nasce o fructo amargo, e traz veneno em si... Aqui morre a menina e nasce a moça; aqui Cede a criança-luz o passo á mulher-fogo; E vai-se o cherubim, surge o demonio; e logo Da terra faz escrava e quer pisal-a aos pés. Insurjo-me: serei vassallo máo talvez, Serei; e ao triste exilio o coração condemno. Peço a menina-flôr, dão-me a mulher-veneno; Prefiro o meu deserto, a minha solidão: Ella tem o futuro, e eu tenho o coração. Bem sabes tu que adoro as louras criancinhas, E levo a adoração no extasi. Adivinhas Que encontro na criança um perfume dos céos E n’ella admiro a um tempo a natureza e Deos. Pois, quando cinjo ao collo uma menina, e penso Que inda ha de ser mulher, sinto desgosto immenso; Porque póde ser boa, e victima será, E, para ser ditosa, ha de talvez ser má… De mim dirás com pena: « Oh! coração vasio! Cinza que foste luz! lama que foste rio! » ……………………………………………… Olha, amigo, a mulher é um idolo. Tens fé? Ajoelha e sê feliz; eu contemplo-a de pé. Cede a MENINA E MOÇA á lei commum: divina E bella e encantadora emquanto a vês menina; Moça, transmuda a face e toma um ar cruel: Desapparece o archanjo e mostra-se Lusbel. Amo-a quando é criança, adoro-a quando brinca; Mas, quando pensativa o rubro labio trinca, E os olhos enlanguece, e perde a rosea côr, Temo que o fructo-fel surja d'aquella flôr. OS DEOSES DA GRECIA. (Pag. 65.) Não sei allemão; traduzi estes versos pela traducção em prosa franceza de um dos mais conceituados interpretes da lingua de Schiller. UN VIEUX PAYS. (Pag. 101.) Perdoem-me estes versos em francez; e para que de todo em todo não fique a pagina perdida aqui lhes dou a traducção que fez dos meus versos o talentoso poeta maranhense Joaquim Serra: É um velho paiz, de luz e sombras, Onde o dia traz pranto, e a noite a scisma; Um paiz de orações e de blasphemia, N’elle a crença na duvida se abysma. Ahi mal nasce a flôr o verme a corta, O mar é um escarcéo, e o sol sombrio; Se a ventura n’um sonho transparece A suffoca em seus braços o fastio. Quando o amor, qual sphynge indecifravel, Ahi vai a bramir, perdido o sizo... Ás vezes ri alegre, e outras vezes É um triste soluço esse sorriso… Vive-se n’esse e paiz com a mágoa e o riso; Quem d’elle se ausentou treme e maldiz; Mas ai, eu n’elle passo a mocidade, Pois é meu coração esse paiz! LYRA CHINEZA. (Pag. 111.) Os poetas imitados n’esta collecção são todos contemporaneos. Encontrei-os no livro publicado em 1868 pela Sra. Judith Walter, distincta viajante que dizem conhecer profundamente a lingua chineza, e que traduzio em simples e corrente prosa. FEZ-SE NIOBE EM PEDRA, ETC. (Pag. 155.) É do Sr. Antonio Feliciano de Castilho a traducção d’esta odezinha, que deu lugar á composição do meu quadro. Foi immediatamente á leitura da Lyrica de Anacreonte, do immortal autor dos Ciumes do Bardo, que eu tive a idéa de pôr em acção a ode do poeta de Teos, tão portuguezmente sahida das mãos do Sr. Castilho que mais parece original que traducção. A concha não vale a perola; mas o delicado da perola disfarçará o grosseiro da concha. FIM DAS NOTAS. ERRATAS [2] ERROS EMENDAS Na pagina 143, depois do verso: « Que ardem sem consumir na pyra dos desejos. » accrescente-se este: « Assim é que eu estimo as amphoras eos beijos » Elvira? não estou conseguindo entender as palavras das erratas.