POESIAS COMPLETAS MACHADO DE ASSIS DA ACADEMIA BRAZILEIRA POESIAS C O M P L E T A S Chrysalidas, Phalenas Americanas, Occidentaes H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR 71-73, RUA DO OUVIDOR, 71-73 RIO DE JANEIRO 6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6 PARIS 1902 ADVERTENCIA Podia dizer, sem mentir, que me pediram a reunião de versos que andavam esparsos; mas, a verdade anterior é que era minha intenção dal-os um dia. Ao cuidar disto agora achei que seria melhor ligar o novo livro aos tres publicados, Chrysalidas, Phalenas, Americanas. Chamo ao ultimo Occidentaes. Não direi de uns e de outros versos senão que os fiz com amor, e dos primeiros que os reli com saudades. Supprimo da primeira série algumas paginas; as restantes bastam para notar a differença de edade e de composição. Supprimo tambem o prefacio de Caetano Figueiras, que referiu as nossas reuniões diarias, quando já elle era advogado e casado, e nós outros apenas moços e adolescentes; menino chama-me elle. Todos se foram para a morte, ainda na flor da edade, e, excepto o nome de Casimiro de Abreu, nenhum se salvou. Não deixo esse prefacio, porque a affeição do meu defunto amigo a tal extremo lhe cegára o juizo que não viria a ponto reproduzir aqui aquella saudação inicial. A recordação só teria valor para mim. Baste aos curiosos o encontro casual das datas, a daquelle, 22 de Julho de 1864, e a deste. Rio, 22 de Julho de 1900. MACHADO DE ASSIS. CHRYSALIDAS 1864 MUSA CONSOLATRIX Que a mão do tempo e o halito dos homens Murchem a flor das illusões da vida, Musa consoladora, E ao teu seio amigo e socegado Que o poeta respira o suave somno. Não ha, não ha comtigo, Nem dor aguda, nem sombrios ermos; Da tua voz os namorados cantos Enchem, povoam tudo De intima paz, de vida e de conforto. Ante esta voz que as dores adormece, E muda o agudo espinho em flor cheirosa, Que vales tu, desillusão dos homens? Tu que pódes, ó tempo? A alma triste do poeta sobrenada Á enchente das angustias, E, affrontando o rugido da tormenta, Passa cantando, alcyone divina. Musa consoladora, Quando da minha fronte de mancebo A ultima illusão cair, bem como Folha amarella e secca Que ao chão atira a viração do outono, Ah! no teu seio amigo Acolhe-me, — e haverá minha alma afflicta, Em vez de algumas illusões que teve, A paz, o ultimo bem, ultimo e puro! VISIO Eras pallida. E os cabellos, Aereos, soltos novellos, Sobre as espaduas cahiam... Os olhos meio-cerrados De volupia e de ternura Entre lagrimas luziam... E os braços entrelaçados, Como cingindo a ventura, Ao teu seio me cingiam... Depois, naquelle delirio, Suave, doce martyrio De pouquissimos instantes, Os teus labios sequiosos, Frios, tremulos, trocavam Os beijos mais delirantes, E no supremo dos gozos Ante os anjos se casavam Nossas almas palpitantes… Depois... depois a verdade, A fria realidade, A solidão, a tristeza; Daquelle sonho desperto, Olhei... silencio de morte Respirava a natureza — Era a terra, era o deserto, Fôra-se o doce transporte, Restava a fria certeza. Desfizera-se a mentira: Tudo aos meus olhos fugira; Tu e o teu olhar ardente, Labios tremulos e frios, O abraço longo e apertado, O beijo doce e vehemente; Restavam meus desvarios, E o incessante cuidado, E a phantasia doente. E agora te vejo. E fria Tão outra estás da que eu via Naquelle sonho encantado! És outra, calma, discreta, Com o olhar indifferente, Tão outro do olhar sonhado, Que a minha alma de poeta Não vê se a imagem presente Foi a visão do passado. Foi, sim, mas visão apenas; Daquellas visões amenas Que á mente dos infelizes Descem vivas o animadas, Cheias de luz e esperança E de celestes matizes: Mas, apenas dissipadas, Fica uma leve lembrança, Não ficam outras raizes. Inda assim, embora sonho, Mas, sonho doce e risonho, Désse-me Deus que fingida Tivesse aquella ventura Noite por noite, hora a hora, No que me resta de vida, Que, já livre da amargura, Alma, que em dores me chora, Chorára de agradecida! QUINZE ANNOS Oh! la fleur de l’Eden, pourquoi l’as-tu fannée, Insouciant enfant, belle Eve aux blonds cheveux ALFRED DE MUSSET. Era uma pobre criança... — Pobre criança, se o eras! — Entre as quinze primaveras De sua vida cançada Nem uma flor de esperança Abria a medo. Eram rosas Que a douda da esperdiçada Tão festivas, tão formosas, Desfolhava pelo chão. — Pobre criança, se o eras! — Os carinhos mal gozados Eram por todos comprados, Que os affectos de sua alma Havia-os levado á feira, Onde vendêra sem pena Até a illusão primeira Do seu doudo coração! Pouco antes, a candura, Co’as brancas azas abertas, Em um berço de ventura A criança acalentava Na santa paz do Senhor; Para accordal-a era cedo, E a pobre ainda dormia Naquelle mudo segredo Que só abre o seio um dia Para dar entrada a amor. Mas, por teu mal, acordaste! Junto do berço passou-te A festiva melodia Da seducção... e accordou-te! Colhendo as limpadas azas, O anjo que te velava Nas mãos tremulas e frias Fechou o rosto... chorava! Tu, na sede dos amores, Colheste todas as flores Que nas orlas do caminho Foste encontrando ao passar; Por ellas, um só espinho Não te feriu... vás andando… Corre, criança, até quando Fores forçada a parar! Então, desflorada a alma De tanta illusão, perdida Aquella primeira calma Do teu somno de pureza; Esfolhadas, uma a uma, Essas rosas de belleza Que se esvaem como a escuma Que a vaga cospe na praia E que por si se desfaz; Então, quando nos teus olhos Uma lagrima buscares, E seccos, seccos de febre, Uma só não encontrares Das que em meio das angustias São um consolo e uma paz; Então, quando o frio spectro Do abandono e da penuria Vier aos teus soffrimentos Juntar a ultima injuria: E que não vires ao lado Um rosto, um olhar amigo Daquelles que são agora Os desvellados comtigo; Criança, verás o engano E o erro dos sonhos teus, E dirás, — então já tarde, — Que por taes gozos não vale Deixar os braços de Deus. STELLA Já raro e mais escasso A noite arrasta o manto, E verte o ultimo pranto Por todo o vasto espaço. Tibio clarão já córa A téla do horisonte, E já de sobre o monte Vem debruçar-se a aurora. Á muda e torva irmã, Dormida de cansaço, Lá vem tomar o espaço A virgem da manhã. Uma por uma, vão As pallidas estrellas. E vão, e vão com ellas Teus sonhos, coração. Mas tu, que o devaneio Inspiras do poeta, Não vês que a vaga inquieta Abre-te o humido seio? Vai. Radioso e ardente, Em breve o astro do dia, Rompendo a nevoa fria, Virá do roxo oriente. Dos intimos sonhares Que a noite protegera, De tanto que eu vertera, Em lagrimas a pares, Do amor silencioso, Mystico, doce, puro, Dos sonhos de futuro, Da paz, do ethereo gozo, De tudo nos despeita Luz de importuno dia; Do amor que tanto a enchia Minha alma está deserta. A virgem da manhã Já todo o ceu domina.... Espero-te, divina, Espero-te, amanhã. EPITAPHIO DO MEXICO Dobra o joelho: — é um tumulo. Em baixo amortalhado Jaz o cadaver tepido De um povo aniquilado; A prece melancolica Reza-lhe em torno á cruz. Ante o universo attonito Abriu-se a extranha liça, Travou-se a luta fervida Da força e da justiça; Contra a justiça, ó século, Venceu a espada e o obuz. Venceu a força indomita; Mas a infeliz vencida A magoa, a dôr, o odio, Na face envilecida Cuspiu-lhe. E a eterna macula Seus louros murchará. E quando a voz fatidica Da santa liberdade Vier em dias prosperos Clamar á humanidade, Então revivo o Mexico Da campa surgirá. POLONIA E ao terceiro dia a alma deve voltar ao corpo, e a nação resuscitará. MICKIEWIEZ. Como aurora de um dia desejado, Clarão suave o horisonte innunda. E talvez amanhã. A noite amarga Como que chega ao termo; e o sol dos livres, Cançado de te ouvir o inutil pranto, Alfim resurge no dourado Oriente. Eras livre, — tão livre como as aguas Do teu formoso, celebrado rio; A corôa dos tempos Cingia-te a cabeça veneranda; E a desvellada mãi, a irmã cuidosa, A santa liberdade, Como junto de um berço precioso, Á porta dos teus lares vigiava. Eras feliz demais, demais formosa; A sanhuda cobiça dos tyranos Veiu enlutar teus venturosos dias... Infeliz! a medrosa liberdade Em face dos canhões espavorida Aos reis abandonou teu chão sagrado; Sobre ti, moribunda, Viste cair os duros oppressores: Tal a gazella que percorre os campos, Se o caçador a fere, Cae convulsa de dôr em mortaes ancias, E vê no extremo arranco Abater-se sobre ella Escura nuvem de famintos corvos. Presa uma vez da ira dos tyranos, Os membros retalhou-te Dos senhores a explendida cobiça; Em proveito dos reis a terra livre Foi repartida, e os filhos teus — escravos — Viram descer um veu de luto á patria E apagar-se na historia a gloria tua. A gloria, não! — E gloria o captiveiro, Quando a captiva, como tu, não perde A alliança de Deus, a fé que alenta, E essa união universal e muda Que faz communs a dôr, o odio, a esperança. Um dia, quando o calix da amargura, Martyr, até ás fezes esgotaste, Longo tremor correu as fibras tuas; Em teu ventre de mãi, a liberdade Parecia soltar esse vagido Que faz rever o ceu no olhar materno; Teu coração estremeceu; teus labios Tremulos de anciedade e de esperança, Buscaram aspirar a longos tragos A vida nova nas celestes auras. Então surgiu Kosciusko; Pela mão do Senhor vinha tocado; A fé no coração, a espada em punho, E na ponta da espada a torva morte, Chamou aos campos a nação caída. De novo entre o direito e a força bruta Empenhou-se o duello atroz e infausto Que a triste humanidade Inda verá por seculos futuros. Foi longa a luta; os filhos dessa terra Ah! não pouparam nem valor nem sangue! A mãi via partir sem pranto os filhos, A irmã o irmão, a esposa o esposo, E todas abençoavam A heroica legião que ia á conquista Do grande livramento. Coube ás hostes da força Da pugna o alto premio; A oppressão jubilosa Cantou essa victoria de ignominia; E de novo, ó captiva, o véu de luto Correu sobre teu rosto! Deus continha Em suas mãos o sol da liberdade, E inda não quiz que nesse dia infausto Teu macerado corpo allumiasse. Resignada á dôr e ao infortunio, A mesma fé, o mesmo amor ardente Davam-te a antiga força. Triste viuva, o templo abriu-te as portas; Foi a hora dos hymnos e das preces; Cantaste a Deus; tua alma consolada Nas azas da oração aos ceus subia, Como a refugiar-se e a refazer-se No seio do infinito. E quando a força do feroz cossaco A casa do Senhor ia buscar-te, Era ainda rezando Que te arrastavas pelo chão da egreja. Pobre nação! — é longo o teu martyrio; A tua dôr pede vingança e termo; Muito has vertido em lagrimas e sangue; É propicia esta hora. O sol dos livres Como que surge no dourado Oriente. Não ama a liberdade Quem não chora comtigo as dôres tuas; E não pede, e não ama, e não deseja Tua resurreição, finada heroica! ERRO Erro é teu. Amei-te um dia Com esse amor passageiro Que nasce na phantasia E não chega ao coração; Nem foi amor, foi apenas Uma ligeira impressão; Um querer indifferente, Em tua presença, vivo, Morto, se estavas ausente, E se ora me vês esquivo, Se, como outr’ora, não vês Meus incensos de poeta Ir eu queimar a teus pés, E que, — como obra de um dia, Passou-me essa phantasia. Para eu amar-te devias Outra ser e não como eras. Tuas frivolas chimeras, Teu vão amor de ti mesma, Essa pendula gelada Que chamavas coração, Eram bem fracos liames Para que a alma enamorada Me conseguissem prender; Foram baldados tentames, Saiu contra ti o azar, E embora pouca, perdeste A gloria de me arrastar Ao teu carro... Vãs chimeras! Para eu amar-te devias Outra ser e não como eras… ELEGIA A bondade choremos innocente Cortada em flor que, pela mão da morte, Nos foi arrebatada d’entre a gente. CAMÕES. Se, como outr’ora, nas florestas virgens, Nos fosse dado — o esquife que te encerra Erguer a um galho de arvore frondosa, Certo, não tinhas um melhor jazigo Do que alli, ao ar livre, entre os perfumes Da florente estação, imagem viva De teus cortados dias, e mais perto Do clarão das estrellas. Sobre teus pobres e adorados restos, Piedosa a noite, alli derramaria De seus negros cabellos puro orvalho; A beira do teu ultimo jazigo Os alados cantores da floresta Iriam sempre modular seus cantos; Nem letra, nem lavor de emblema humano, Relembraria a mocidade morta; Bastava só que ao coração materno, Ao do esposo, ao dos teus, ao dos amigos, Um aperto, uma dôr, um pranto occulto, Dissesse: — Dorme aqui, perto dos anjos, A cinza de quem foi gentil transumpto De virtudes e graças. Mal havia transposto da existencia. Os dourados umbraes; a vida agora Sorria-lhe toucada dessas flores Que o amor, que o talento e a mocidade Á uma repartiam. Tudo lhe era presagio alegre e doce; Uma nuvem sequer não sombreava, Em sua fronte, o iris da esperança; Era, emfim, entre os seus a copia viva Dessa ventura que os mortaes almejam, E que raro a fortuna, avessa ao homem, Deixa gozar na terra. Mas eis que o anjo pallido da morte A presentiu feliz e bella e pura, E, abandonando a região do olvido, Desceu á terra, e sob a aza negra A fronte lhe escondeu; o fragil corpo Não pôde resistir; a noite eterna Veiu fechar seus olhos; Emquanto a alma abrindo As azas rutilantes pelo espaço, Foi engolfar-se em luz, perpetuamente, No seio do infinito; Tal a assustada pomba, que na arvore O ninho fabricou, — se a mão do homem Ou a impulsão do vento um dia abate O recatado asylo, — abrindo o vôo, Deixa os inuteis restos E, atravessando airosa os leves ares, Vai buscar n'outra parte outra guarida. Hoje, do que era inda lembrança resta, E que lembrança! Os olhos fatigados Parecem ver passar a sombra della; O attento ouvido inda lhe escuta os passos; E as teclas do piano, em que seus dedos Tanta harmonia despertavam antes, Como que soltam essas doces notas Que outr’ora ao seu contacto respondiam. Ah! pezava-lhe este ar da terra impura, Faltava-lhe esse alento de outra esphera, Onde, noiva dos anjos, a esperavam As palmas da virtude. Mas, quando assim a flor da mocidade Toda se esfolha sobre o chão da morte, Senhor, em que firmar a segurança Das venturas da terra? Tudo morre; Á sentença fatal nada se esquiva, O que ó fructo e o que é flor. O homem cego Cuida haver levantado em chão de bronze Um edificio resistente aos tempos, Mas lá vem dia, em que, a um leve sopro, O castello se abate, Onde, doce illusão, fechado havias Tudo o que de melhor a alma do homem Encerra de esperanças. Dorme, dorme tranquilla Em teu ultimo asylo; e se eu não pude Ir espargir tambem algumas flores Sobre a lagea da tua sepultura; Se não pude, — eu que ha pouco te saudava Em teu erguer, estrella, — os tristes olhos Banhar nos melancolicos fulgores, Na triste luz do teu recente occaso, Deixo-te ao menos nestes pobres versos Um penhor de saudade, e lá na esphera Aonde approuve ao Senhor chamar-te cedo, Possas tu ler nas pallidas estrophes A tristeza do amigo. SINHA’ O teu nome é como o oleo derramado Cantico dos Canticos. Nem o perfume que expira A flor, pela tarde amena, Nem a nota que suspira Canto de saudade e pena Nas brandas cordas da lyra; Nem o murmurio da veia Que abriu sulco pelo chão Entre margens de alva arêa, Onde se mira e recreia Rosa fechada em botão; Nem o arrulho enternecido Das pombas, nem do arvoredo Esse amoroso arruido Quando escuta algum segredo Pela brisa repetido; Nem esta saudade pura Do canto do sabiá Escondido na espessura, Nada respira doçura Como o teu nome, Sinhá! HORAS VIVAS Noite: abrem-se as flôres. Que esplendores! Cynthia sonha amores Pelo céu. Tenues os neblinas Ás campinas Descem das collinas, Como um véu. Mãos em mãos travadas, Animadas, Vão aquellas fadas Pelo ar; Soltos os cabellos, Em novellos, Puros, louros, bellos, A voar. — « Homem, nos teus dias Que agonias. Sonhos, utopias, Ambições; Vivas e fagueiras, As primeiras, Como as derradeiras Illusões! — « Quantas, quantas vidas Vão perdidas Pombas mal feridas Pelo mal! Annos apoz annos, Tão insanos, Vem os desenganos Afinal. — « Dorme: se os pesares Repousares, Vês? — por estes ares Vamos rir; Mortas, não; festivas, E lascivas, Somos — horas vivas De dormir — » VERSOS A CORINNA Tacendo il nome di questa gentilissima. DANTE. I Tu nasceste de um beijo e de um olhar. O beijo N’uma hora de amor, de ternura e desejo, Uniu a terra e o céu. O olhar foi do Senhor, Olhar de vida, olhar de graça, olhar de amor; Depois, depois vestindo a fórma peregrina, Aos meus olhos mortaes, surgiste-me, Corinna! De um jubilo divino os cantos entoava A natureza mãi, e tudo palpitava, A flor aberta e fresca, a pedra bronca e rude, De uma vida melhor e nova juventude. Minh’alma adivinhou a origem do teu ser; Quiz cantar e sentir; quiz amar e viver; A luz que de ti vinha, ardente, viva, pura, Palpitou, reviveu a pobre creatura; Do amor grande, elevado, abriram-se lhe as fontes; Fulgiram novos sóes, rasgaram-se horisontes; Surgiu, abrindo em flor, uma nova região; Era o dia marcado á minha redempção. Era assim que eu sonhava a mulher. Era assim; Corpo de fascinar, alma de cherubim; Era assim: fronte altiva e gesto soberano, Um porte de rainha a um tempo meigo e ufano, Em olhos senhoris uma luz tão serena, E grave como Juno, e bella como Helena! Era assim, a mulher que extasia e domina, A mulher que reune a terra e o céu: Corinna! N’este fundo sentir, nesta fascinação, Que pede do poeta o amante coração? Viver como nasceste, ó belleza, ó primor, De uma fusão do ser, de uma effusão do amor. Viver, — fundir a existencia Em um osculo de amor, Fazer de ambas — uma essencia, Apagar outras lembranças, Perder outras illusões, E ter por sonho melhor O sonho das esperanças De que a unica ventura Não reside em outra vida, Não vem de outra creatura; Confundir olhos nos olhos, Unir um seio a outro seio, Derramar as mesmas lagrimas E tremer do mesmo enleio, Ter o mesmo coração, Viver um do outro viver... Tal era a minha ambição. Donde viria a ventura Desta vida? Em que jardim Colheria esta flor pura? Em que solitaria fonte Esta agua iria beber? Em que encendido horisonte Podiam meus olhos ver Tão meiga, tão viva estrella, Abrir-se e resplandecer? Só em ti: — em ti que és bella, Em ti que a paixão respiras, Em ti cujo olhar se embebe Na illusão de que deliras, Em ti, que um osculo de Hebe Teve a singular virtude De encher, de animar teus dias, De vida e de juventude… Amemos! diz a flor á brisa peregrina, Amemos! diz a brisa, arfando em torno á flor; Cantemos esta lei e vivamos, Corinna, De uma fusão do ser, de uma effusão do amor. II A minha alma, talvez, não é tão pura, Como era pura nos primeiros dias; Eu sei: tive choradas agonias De que conservo alguma nodoa escura, Talvez. Apenas á manhã da vida Abri meus olhos virgens e minha alma, Nunca mais respirei a paz e a calma, E me perdi na porfiosa lida. Não sei que fogo interno me impellia Á conquista da luz, do amor, do goso, Não sei que movimento imperioso De um desusado ardor minha alma enchia. Corri do campo em campo e plaga em plaga. (Tanta anciedade o coração encerra!) A ver o lyrio que brotasse a terra, A ver a escuma que cuspisse — a vaga. Mas, no areal da praia, no horto agreste, Tudo aos meus olhos avidos fugia… Desci ao chão do valle que se abria, Subi ao cume da montanha alpestre. Nada! Volvi o olhar ao céu. Perdi-me Em meus sonhos de moço e de poeta; E contemplei nesta ambição inquieta, Da muda noite a pagina sublime. Tomei nas mãos a cythara saudosa E soltei entre lagrimas um canto. A terra brava recebeu meu pranto E o éco repetiu-me a voz chorosa. Foi em vão. Como um languido suspiro, A voz se me calou, e do invio monte Olhei ainda as linhas do horisonte, Como se olhasse o ultimo retiro. Nuvem negra e veloz corria solta O anjo da tempestade annunciando; Vi ao longe as alcyones cantando Doidas correndo á flor da água revolta. Desilludido, exhausto, ermo, perdido, Busquei a triste estancia do abandono, E esperei, aguardando o ultimo somno, Volver á terra, de que foi nascido. — « Ó Cybele fecunda, é no remanso Do teu seio — que vive a creatura, Chamem-te outros morada triste e escura, Chamo-te gloria, chamo-te descanso! » Assim fallei. E murmurando aos ventos Uma blasphemia atroz — estreito abraço Homem e terra uniu, e em longo espaço Aos écos repeti meus vãos lamentos. Mas, tu passaste... Houve um grito Dentro de mim. Aos meus olhos Visão de amor infinito, Visão de perpetuo goso Perpassava e me attrahia, Com um sonho voluptuoso De sequiosa fantasia. Ergui-me logo do chão, E pousei meus olhos fundos Em teus olhos soberanos, Ardentes, vivos, profundos, Como os olhos da belleza Que das escumas nasceu... Eras tu, maga visão Eras tu o ideal sonhado Que em toda a parte busquei, E por quem houvera dado A vida que fatiguei; Por quem verti tanto pranto, Por quem nos longos espinhos Minhas mãos, meus pés sangrei! Mas se minh’alma, acaso, é menos pura Do que era pura nos primeiros dias, Porque não soube em tantas agonias Abençoar a minha desventura; Se a blasphemia os meus labios polluira, Quando, depois de tempo e do cansaço, Beijei a terra no mortal abraço E espedacei desanimado a lyra; Podes, visão formosa e peregrina, No amor profundo, na existencia calma, Desse passado resgatar minh’alma E levantar-me aos olhos teus, — Corinna! III Quando voarem minhas esperanças Como um bando de pombas fugitivas; E destas illusões doces e vivas Só me restarem pallidas lembranças; E abandonar-me a minha mãe Chimera, Que me aleitou aos seios abundantes; E vierem as nuvens flammejantes Encher o céu da minha primavera; E raiar para mim um triste dia, Em que, por completar minha tristeza, Nem possa ver-te, musa da belleza. Nem possa ouvir-te, musa da harmonia; Quando assim seja, por teus olhos juro, Voto minh’alma á escura soledade, Sem procurar melhor felicidade, E sem ambicionar prazer mais puro, Como o viajor que, da fallaz miragem Volta desenganado ao lar tranquillo, E procura, naquelle ultimo asylo, Nem evocar memórias da viagem. Envolvido em mim mesmo, olhos cerrados A tudo mais, — a minha phantasia As azas colherá com que algum dia Quiz alcançar os cimos elevados. Es tu a maior gloria de minha alma, Se o meu amor profundo não te alcança, De que me servirá outra esperança? Que gloria tirarei de alheia palma? IV Tu que és bella e feliz, tu que teus por diadema A dupla irradiação da belleza e do amor; E sabes reunir, como o melhor poema, Um desejo da terra e um toque do Senhor; Tu que, como a illusão, entre nevoas deslisas Aos versos do poeta um desvellado olhar, Corinna, ouve a canção das amorosas brisas, Do poeta e da luz, das selvas e do mar. AS BRISAS Deu-nos a harpa colia a excelsa melodia Que a folhagem desperta e torna alegre a flor, Mas que vale esta voz, ó musa da harmonia, Ao pé da tua voz, filha da harpa do amor? Diz-nos tu como houveste as notas do teu canto? Que alma de serafim volteia aos labios teus? Donde houveste o segredo e o poderoso encanto Que abre ouvidos mortaes a harmonia dos céus? A LUZ Eu sou a luz fecunda, alma da natureza; Sou o vivo alimento á viva creação. Deus lançou-me no espaço. A minha realeza Vae até onde vae meu vivido clarão. Mas, se derramo vida a Cybelle fecunda, Que sou eu ante a luz dos teus olhos? Melhor, A tua é mais do céu, mais doce, mais profunda, Se a vida vem de mim, tu dás a vida e o amor. AS AGUAS Do nume da belleza o berço celebrado Foi o mar; Venus bella entre espumas nasceu. Veiu a idade de ferro, e o nume venerado Do venerado altar baqueou: — pereceu. Mas a belleza és tu. Como Venus marinha, Tens a ineffavel graça e o ineffavel ardor. Se páras, és um nume; andas, uma rainha, E se quebras um olhar, és tudo isso e és amor Chamam-te as aguas, vem! tu irás sobre a vaga A vaga, a tua mãe, que te abre os seios nús, Buscar adorações de uma plaga a outra plaga, E das regiões da nevoa ás regiões da luz! AS SELVAS Um silencio de morte entrou no seio ás selvas. Já não pisa Diana este sagrado chão; Nem já vem repousar no leito destas relvas Aguardando saudosa o amor e Endymião. Da grande caçadora a um solicito aceno Já não vem, não acode o grupo jovial; Nem o éco repete a flauta de Sileno, Apoz o grande ruido a mudez sepulchral. Mas Diana apparece. A floresta palpita, Uma seiva melhor circula mais veloz; vida que renasce, é vida que se agita; A luz do teu olhar, ao som da tua voz! O POETA Tambem eu, sonhador, que vi correr meus dias Na solemne mudez da grande solidão, E soltei, enterrando as minhas utopias, O ultimo suspiro e a ultima oração; Tambem eu junto a voz á voz da natureza, E soltando o meu hymno ardente e triumphal, Beijarei ajoelhado as plantas da belleza E banharei minh’alma em tua luz, — Ideal! Ouviste a natureza? Ás supplicas e ás maguas Tua alma de mulher deve de palpitar; Mas que te não seduza o cantico das aguas, Não procures, Corinna, o caminho do mar! V Guarda estes versos que escrevi chorando Como um alivio á minha soledade, Como um dever do meu amor; e quando Houver em ti um éco de saudade, Beija estes versos que escrevi chorando. Unico em meio das paixões vulgares, Fui a teus pés queimar minh’alma anciosa, Como se queima o oleo ante os altares; Tive a paixão indomita e fogosa, Unica em meio das paixões vulgares. Cheio de amor, vazio de esperança, Dei para ti os meus primeiros passos; Minha illusão fez-me, talvez, criança; E eu pretendi dormir aos teus abraços, Cheio de amor, vazio de esperança. Refugiado á sombra do mysterio Pude cantar meu hymno doloroso; E o mundo ouviu o som doce ou funereo Sem conhecer o coração ancioso Refugiado á sombra do mysterio. Mas eu que posso contra a sorte esquiva? Vejo que em teus olhares de princeza Transluz uma alma ardente e compassiva Capaz de reanimar minha incerteza; Mas eu que posso contra a sorte esquiva? Como um réo indefeso e abandonado, Fatalidade, curvo-me ao teu gesto; E se a perseguição me tem cansado. Embora, escutarei o teu aresto, Como um réo indefeso e abandonado. Embora fujas aos meus olhos tristes, Minh’alma irá saudosa, enamorada, Acercar-se de ti lá onde existes; Ouvirás minha lyra apaixonada, Embora fujas aos meus olhos tristes. Talvez um dia meu amor se extinga, Como fogo de Vesta mal cuidado Que sem o zelo da Vestal não vinga; Na ausencia e no silencio condemnado Talvez um dia meu amor se extinga. Então não busques reavivar a chamma; Evoca apenas a lembrança casta Do fundo amor daquelle que não ama Esta consolação apenas basta; Então não busques reavivar a chamma. Guarda estes versos que escrevi chorando, Como um alivio á minha soledade, Como um dever do meu amor; e quando Houver em ti um éco de saudade, Beija estes versos que escrevi chorando. VI Em vão! Contrario a amor é nada o esforço humano; É nada o vasto espaço, é nada o vasto oceano. Solta do chão, abrindo as azas luminosas. Minh’alma se ergue e vôa ás regiões venturosas, Onde ao teu brando olhar, ó formosa Corinna, Reveste a natureza a purpura divina! Lá, como quando volta a primavera em flor, Tudo sorri de luz, tudo sorri de amor; Ao influxo celeste e doce da belleza, Pulsa, canta, irradia e vive a natureza; Mais languida e mais bella, a tarde pensativa Desce do monte ao valle; e a viração lasciva Vai despertar á noite a melodia extranha Que fallam entre si os olmos da montanha; A flor tem mais perfume e a noite mais poesia; O mar tem novos sons e mais viva ardentia; A onda enamorada arfa e beija as arêas, Novo sangue circula, ó terra, em tuas veias! O esplendor da belleza é raio creador: Derrama a tudo a luz, derrama a tudo o amor. Mas vê. Se o que te cerca é uma festa de vida, Eu, tão longe de ti, sinto a dor mal soffrida Da saudade que punge e do amor que lacera E palpita e soluça e sangra e desespera. Sinto em torno de mim a muda natureza Respirando, como eu, a saudade e a tristeza; É deste ermo que eu vou, alma desventurada, Murmurar junto a ti a estrophe immaculada Do amor que não perdeu, co’a ultima esperança Nem o intenso fervor, nem a intensa lembrança. Sabes se te eu amei, sabes se te amo ainda, Do meu sombrio céu alva estrella bemvinda! Como divaga a abelha inquieta e sequiosa Do calice do lyrio ao calice da rosa, Divaguei de alma em alma em busca deste amor; Gota de mel divino, era divina a flor Que o devia conter. Eras tu. No delirio De te amar — olvidei as lutas e o martyrio; Eras tu. Eu só quiz, n’uma ventura calma, Sentir e ver o amor atravez de uma alma; De outras bellezas vans não valeu o explendor, A belleza eras tu: — tinhas a alma e o amor. Pelicano do amor, dilacerei meu peito, E com meu proprio sangue os filhos meus aleito; Meus filhos: o desejo, a chimera, a esperança; Por elles reparti minh’alma. Na provança Elle não fraqueou, antes surgiu mais forte; É que eu puz neste amor, neste ultimo transporte. Tudo o que vivifica a minha juventude: O culto da verdade e o culto da virtude, A venia do passado e a ambição do futuro, O que ha de grande e bello, o que ha de nobre e puro. Deste profundo amor, doce e amada Corinna, Accorda-te a lembrança um éco de afflicção? Minh’alma pena e chora á dôr que a desatina: Sente tua alma acaso a mesma commoção? Em vão! Contrario a amor é nada o esforço humano, É nada o vasto espaço, é nada o vasto oceano! Vou, sequioso espirito, Cobrando novo alento, N’aza veloz do vento Correr de mar en mar; Posso, fugindo ao carcere, Que á terra me tem prezo, Em novo ardor aceso, Voar, voar, voar! Então, e á hora languida Da tarde que declina, Do arbusto da collina Beijando a folha e a flor, A brisa melancolica Levar-te entre perfumes Uns timidos queixumes Echos de magua e dôr; Então, se o arroio timido Que passa e que murmura Á sombra da espessura Dos verdes salgueiraes. Mandar-te entre os murmurios Que solta nos seus giros, Uns como que suspiros De amor, uns ternos ais; Então, se no silencio Da noite adormecida, Sentires — mal dormida — Em sonho ou em visão, Um beijo em tuas palpebras, Um nome aos teus ouvidos, E ao som de uns ais partidos Pulsar teu coração; Da magoa que consome O meu amor venceu; Não tremas: — é teu nome, Não fujas — que sou eu! — ULTIMA FOLHA Musa, desce do alto da montanha Onde aspiraste o aroma da poesia, E deixa ao éco dos sagrados ermos A ultima harmonia. Dos teus cabellos de ouro, que beijavam Na amena tarde as virações perdidas, Deixa cair ao chão as alvas rosas E as alvas margaridas. Vês? Não é noite, não, este ar sombrio Que nos esconde o céu. Inda na poente Não quebra os raios pallidos e frios O sol resplandecente. Vês? Lá ao fundo o valle arido e secco Abre-se, como um leito mortuario; Espera-te o silencio da planicie, Como um frio sudario. Desce. Virá um dia em que mais bella, Mais alegre, mais cheia de harmonias, Voltes a procurar a voz cadente Dos teus primeiros dias. Então coroarás a ingenua fronte Das flores da manhã, — e ao monte agreste, Como a noiva phantastica dos ermos, Irás, musa celeste! Então, nas horas solemnes Em que o mystico hymeneu Une em abraço divino Verde a terra, azul o céu; Quando, já finda a tormenta Que a natureza enlutou. Bafeja a brisa suave Cedros que o vento abalou; E o rio, a arvore e o campo, A arêa, a face do mar, Parecem, como um concerto, Palpitar, sorrir, orar; Então sim, alma de poeta, Nos teus sonhos cantarás A gloria da natureza, A ventura, o amor e o paz! Ah! mas então será mais alto ainda; Lá onde a alma do vate Possa escutar os anjos, É onde não chegue o vão rumor dos homens; Lá onde, abrindo as azas ambiciosas. Possa adejar no espaço luminoso, Viver de luz mais viva e de ar mais puro, Fartar-se do infinito! Musa, desce do alto da montanha Onde aspiraste o aroma da poesia, E deixa ao eco dos sagrados ermos A ultima harmonia! PHALENAS (1870) FLOR DA MOCIDADE Eu conheço a mais bella flôr; Es tu, rosa da mocidade, Nascida, aberta para o amor. Eu conheço a mais bella flôr. Tem do ceu a serena côr, E o perfume da virgindade. Eu conheço a mais bella flor. Es tu, rosa da mocidade. Vive ás vezes na solidão, Como filha da briza agreste. Teme acaso indiscreta mão; Vive ás vezes na solidão. Poupa a raiva do furacão Suas folhas de azul celeste. Vive ás vezes na solidão, Como filha da briza agreste. Colhe-se antes que venha o mal, Colhe-se antes que chegue o inverno; Que a flôr morta já nada val. Colhe-se antes que venha o mal. Quando a terra é mais jovial Todo o bem nos parece eterno. Colhe-se antes que venha o mal, Colhe-se antes que chegue o inverno. QUANDO ELLA FALLA She speak! O speak again, bright angel! SHAKESP. Quando ella falla, parece Que a voz da briza se cala; Talvez um anjo emmudece Quando ella falla. Meu coração dolorido As suas mágoas exhala. E volta ao gozo perdido Quando ella falla. Pudesse eu eternamente, Ao lado d’ella, escutal-a, Ouvir sua alma innocente Quando ella falla. Minh’alma, já semi-morta, Conseguíra ao céo alçal-a, Porque o céu abre uma porta Quando ella falla. MANHA DE INVERNO Coroada de nevoas, surge a aurora Por detrás das montanhas do oriente; Vê-se um resto de somno e de preguiça, Nos olhos da fantastica indolente. Nevoas enchem de um lado e de outro os morros Tristes como sinceras sepulturas, Essas que têm por simples ornamento Puras capellas, lagrimas mais puras. A custo rompe o sol; a custo invade O espaço todo branco; e a luz brilhante Fulge através do espesso nevoeiro, Como através de um veu fulge o diamante. Vento frio, mas brando, agita as folhas Das laranjeiras humidas da chuva; Erma de flôres, curva a planta o collo, E o chão recebe o pranto da viuva. Gelo não cobre o dorso das montanhas, Nem enche as folhas tremulas a neve; Galhardo moço, o inverno deste clima Na verde palma a sua historia escreve. Pouco a pouco, dissipam-se no espaço Ás nevoas da manhã; já pelos montes Vão subindo as que encheram todo o valle; Já se vão descobrindo os horizontes. Sobe de todo o panno; eis apparece Da natureza o esplendido scenario; Tudo alli preparou co’ os sabios olhos A suprema sciencia do emprezario. Canta a orchestra dos passaros no matto A symphonia alpestre, — a voz serena Acorda os écos timidos do valle; E a divina comedia invade a scena. LA MARCHESA DE MIRAMAR A miserrima Dido Pelos paços reaes vaga ululando GARÇÃO. De quanto sonho um dia povoaste A mente ambiciosa, Que te resta? Uma pagina sombria, A escura noite e um tumulo recente. Ó abysmo! Ó fortuna! Um dia apenas Viu erguer, viu cair teu fragil throno. Meteoro do seculo, passaste, Ó triste imperio, allumiando as sombras. A noite foi teu berço e teu sepulcro. Da tua morte os goivos inda acháram. Frescas as rosas dos teus breves dias; E no livro da historia uma só folha A tua vida conta: sangue e lagrimas. No tranquillo castello, Ninho d’amor, asylo de esperanças, A mão de aurea fortuna preparára, Menina e moça, um tumulo aos teus dias. Junto do amado esposo, Outra c’rôa cingias mais segura, A corôa do amor, dadiva santa Das mãos de Deus. No ceu de tua vida Uma nuvem sequer não sombreava A esplendida manhã; extranhos eram Ao recatado asylo Os rumores do seculo. Estendia-se Em frente o largo mar, tranquilla face Como a da consciencia alheia ao crime, E o céu, cupula azul do equoreo leito. Alli, quando ao cair da amena tarde, No thalamo encantado do occidente, O vento melancolico gemia, E a onda murmurando, Nas convulsões do amor beijava a areia, Ias tu junto d’elle, as mãos travadas, Os olhos confundidos, Correr as brandas, somnolentas aguas, Na gondola discreta. Amenas flôres Com suas mãos teciam As namoradas Horas; vinha a noite, Mãi de amores, solicita descendo, Que em seu regaço a todos envolvia, O mar, o céo, a terra, o lenho e os noivos. Mas além, muito além do ceo fechado, O sombrio destino, contemplando A paz do teu amor, a etherea vida, As santas effusões das noites bellas, O terrivel scenario preparava A mais terriveis lances. Então surge dos thronos A prophetica voz que annunciava Ao teu credulo esposo: « Tu serás rei, Macbeth! » Ao longe, ao longe, No fundo do oceano, envolto em nevoas, Salpicado de sangue, ergue-se um throno. Chamão-no a elle as vozes do destino. Da tranquilla mansão ao novo imperio Cobrem flôres a estrada, — estereis flôres Que mal podem cobrir o horror da morte. Tu vais, tu vais tambem, victima infausta; O sopro da ambição fechou teus olhos… Ah! quão melhor te fôra No meio d’essas aguas Que a regia nau cortava, conduzindo Os destinos de um rei, achar a morte: A mesma onda os dous envolveria. Uma só convulsão ás duas almas O vinculo quebrára, e ambas iriam, Como raios partidos de uma estrella, Á eterna luz juntar-se. Mas o destino, alçando a mão sombria, Já traçára nas paginas da historia O terrivel mysterio. A liberdade Vela n’aquelle dia a ingenua fronte. Pejam nuvens de fogo o céo profundo. Orvalha sangue a noite mexicana... Viuva e moça, agora em vão procuras No teu placido asylo o extincto esposo. Interrogas em vão o céu e as aguas. Apenas surge ensanguentada sombra Nos teus sonhos de louca, e um grito apenas, Um soluço profundo reboando Pela noite do espirito, parece Os échos acordar da mocidade. No emtanto, a natureza alegre e viva, Ostenta o mesmo rosto. Dissipam-se ambições, imperios morrem, Passam os homens como pó que o vento Do chão levanta ou sombras fugitivas, Transformam-se em ruina o templo e a choça. Só tu, só tu, eterna natureza, Immutavel, tranquilla, Como rochedo em meio do oceano, Vês baquear os seculos. Sussurra Pelas ribas do mar a mesma briza; O céu é sempre azul, as aguas mansas; Deita-se ainda a tarde vaporosa No leito do occidente; Ornam o campo as mesmas flôres bellas... Mas em teu coração magoado e triste, Pobre Carlota! o intenso desespero Enche de intenso horror o horror da morte. Viuva da razão, nem já te cabe A illusão da esperança. Feliz, feliz, ao menos, se te resta, Nos macerados olhos, O derradeiro bem: — algumas lagrimas! SOMRRAS Quando, assentada á noite, a tua fronte inclinas, E cerras descuidada as palpebras divinas, E deixas no regaço as tuas mãos cair, E escutas sem fallar, e sonhas sem dormir, Acaso uma lembrança, um éco do passado, Em teu seio revive? O tumulo fechado Da ventura que foi, do tempo que fugiu, Por que razão, mimosa, a tua mão o abriu? Com que flôr, com que espinho, a importuna memoria Do teu passado escreve a mysteriosa historia? Que espectro ou que visão resurge aos olhos teus? Vem das trevas do mal ou cae das mãos de Deus? É saudade ou remorso? é desejo ou martyrio? Quando em obscuro templo a fraca luz de um cirio Apenas alumia a nave e o grande altar E deixa todo o resto em treva, — e o nosso olhar Cuida ver resurgindo, ao longe, d’entre as portas, As sombras immortaes das creaturas mortas, Palpita o coração de assombro e de terror; O medo augmenta o mal. Mas a cruz do Senhor, Que a luz do cirio innunda, os nossos olhos chama; O animo esclarece aquella eterna chamma; Ajoelha-se contricto, e murmura-se então A palavra de Deus, a divina oração. Pejam sombras, bem vês, a escuridão do templo; Volve os olhos á luz, imita aquelle exemplo; Corre sobre o passado impenetravel véu; Olha para o futuro e vem lançar-te ao ceu. ITE, MISSA EST Fecha o missal do amor e a benção lança Á pia multidão Dos teus sonhos de moço e de criança, A benção do perdão. Sôa a hora fatal, — reza contricto As palavras do rito: Ite, missa est. Foi longo o sacrificio; o teu joelho De curvar-se cançou; E acaso sobre as folhas do Evangelho A tua alma chorou. Ninguem viu essas lagrimas (ai tantas)! Cair nas folhas santas. Ite, missa est. De olhos fitos no ceu rezaste o credo, O credo do teu deus; Oração que devia, ou tarde ou cedo, Travar nos labios teus; Palavra que se esvai qual fumo escasso E some-se no espaço. Ite, missa est. Votaste ao ceu, nas tuas mãos alçada, A hostia do perdão, A victima divina e profanada Que chamas coração. Quasi inteiras perdeste a alma e a vida Na hostia consumida. Ite, missa est. Pobre servo do altar de um deus esquivo, É tarde; beija a cruz; Na lampada em que ardia o fogo activo, Vê, já se extingue a luz. Cubra-te agora o rosto macilento O veu do esquecimento. Ite, missa est. RUINAS No hay pájaros en los nidos de antaño. PROVERBIO HESPANHOL. Cobrem plantas sem flôr crestados muros; Range a porta ancian; o chão de pedra Gemer parece aos pés do inquieto vate. Ruina é tudo: a casa, a escada, o horto, Sitios caros da infancia. Austera moça Junto ao velho portão o vate aguarda; Pendem-lhe as trancas soltas Por sobre as rôxas vestes; Risos não tem, e em seu magoado gesto Transluz não sei que dôr occulta aos olhos, — Dôr que á face não vem, — medrosa e casta, Intima e funda; — e dos cerrados cilios Se uma discreta e muda Lagrima cae, não murcha a flôr do rosto; Melancolia tacita e serena, Que os échos não acorda em seus queixumes, Respira aquelle rosto. A mão lhe estende O abatido poeta. Eil-os percorrem Com tardo passo os relembrados sitios, Ermos depois que a mão da fria morte Tantos almas colhêra. Desmaiavam, Nos serros do poente, A rosas dos crepusculo. « Quem és? pergunta o vate; o sol que foge « No teu languido olhar um raio deixa; « — Raio quebrado e frio; — o vento agita « Timido e frouxo as tuas longas tranças. « Conhecem-te estas pedras; das ruinas « Alma errante pareces condemnada « A contemplar teus insepultos ossos. « Conhecem-te estas arvores. E eu mesmo « Sinto não sei que vaga e amortecida « Lembrança de teu rosto. » Desceu de todo a noite, Pelo espaço arrastando o manto escuro Que a loura Vesper nos seus hombros castos, Como um diamante, prende. Longas horas Silenciosas corrêram. No outra dia, Quando as vermelhas rosas do oriente Ao já proximo sol a estrada ornavam, Das ruinas sahião lentamente Duas pallidas sombras… MUSA DOS OLHOS VERDES Musa dos olhos verdes, musa alada, Ó divina esperança, Consolo do ancião no extremo alento, E sonho da criança; Tu que junto do berço o infante cinges C’os fulgidos cabellos; Tu que transformas em dourados sonhos Sombrios pesadelos; Tu que fazes pulsar o seio ás virgens; Tu que ás mãis carinhosas Enches o brando, tepido regaço Com delicadas rosas; Casta filha do ceu, virgem formosa Do eterno devaneio, Sê minha amante, os beijos meus recebe, Acolhe-me em teu seio! Já cançada de encher languidas flôres Com as lagrimas frias, A noite vê surgir do oriente a aurora Dourando as serranias. Azas batendo á luz que as trevas rompe, Piam nocturnas aves, a floresta interrompe alegremente Os seus silencios graves. Dentro de mim, a noite escura e fria Melancolica chora; Rompe estas sombras que o meu ser povoam; Musa, sê tu a aurora! NOIVADO Vês, querida, o horizonte ardendo em chammas? Além d’esses outeiros Vai descambando o sol, e á terra envia Os raios derradeiros; A tarde, como noiva que enrubece, Traz no rosto um veu molle e transparente; No fundo azul a estrella do poente Já timida apparece. Como um bafo suavissimo da noite, Vem sussurando o vento, As arvores agita e imprime ás folhas O beijo somnolento. A flôr ageita o calix: cedo espera O orvalho, e emtanto exhala o doce aroma; Do leito do oriente a noite assoma; Como uma sombra austera. Vem tu, agora, ó filha de meus sonhos, Vem, minha flor querida; Vem contemplar o céu, pagina santa Que amor a ler convida; Da tua solidão rompe as cadeias; Desce do teu sombrio e mudo asylo; Encontrarás aqui o amor tranquillo…. Que esperas? que receias? Olha o templo de Deus, pomposo e grande; Lá do horizonte opposto A lua, como lampada, já surge A alumiar teu rosto; Os cirios vão arder no altar sagrado, Estrellinhas do céo que um anjo accende; Olha como de balsamos rescende A c’rôa do noivado. Irão buscar-te em meio do caminho As minhas esperanças; E voltarão comtigo, entrelaçadas Nas tuas longas tranças; No emtanto eu preparei teu leito á sombra Do limoeiro em flor; colhi contente Folhas com que alastrei o solo ardente De verde e molle alfombra. Pelas ondas do tempo arrebatados, Até á morte iremos, Soltos ao longo do baixei da vida Os esquecidos remos. Firmes, entre o fragor da tempestade Gosaremos o bem que amor encerra Passaremos assim do sol da terra Ao sol da eternidade. A ELVIRA (LAMARTINE) Quando, comtigo a sós, as mãos unidas, Tu, pensativa e muda; e eu, namorado. Ás volupias do amor a alma entregando, Deixo correr as horas fugidias; Ou quando ás solidões de umbrosa selva Commigo te arrebato; ou quando escuto — Tão só eu, — teus ternissimos suspiros; E de meus labios solto Eternas juras de constancia eterna; Ou quando, emfim, tua adorada fronte Nos meus joelhos tremulos descansa, E eu suspendo meus olhos em teus olhos, Como ás folhas da rosa avida abelha: Ai, quanta vez então dentro em meu peito Vago terror penetra, como um raio! Empallideço, tremo; E no seio da gloria em que me exalto, Lagrimas verto que a minha alma assombram! Tu, carinhosa e tremula, Nos teus braços me cinges, — e assustada, Interrogando em vão, commigo choras! « Que dôr secreta o coração te opprime? » Dizes tu, « Vem, confia as teus pesares... « Falla! eu abrandarei as penas tuas! « Falla! eu consolarei tua alma afflicta! » Vida do meu viver, não me interrogues! Quando enlaçado nos teus niveos braços A confissão de amor te ouço, e levanto Languidos olhos para ver teu resto, Mais ditoso mortal o céu não cobre! Se eu tremo, é porque n’essas esquecidas Afortunadas horas, Não sei que voz do enleio me desperta, E me persegue e lembra Que a ventura co’ o tempo se esvaece, E o nosso amor é facho que se extingue! De um lance, espavorida, Minha alma vôa ás sombras do futuro, E eu penso então: « Ventura que se acaba Um sonho vale apenas. » LAGRIMAS DE CERA Passou; viu a porta aberta. Entrou; queria rezar. A vela ardia no altar. A egreja estava deserta. Ajoelhou-se defronte Para fazer a oração; Curvou a pallida fronte E pôz os olhos no chão. Vinha tremula e sentida. Commettêra um erro. A cruz É a ancora da vida, A esperança, a força, a luz. Que rezou? Não sei. Benzeu-se Rapidamente. Ajustou O veu de rendas. Ergueus-se E á pia se encaminhou. Da vela benta que ardêra, Como tranquillo fanal, Umas lagrimas de cêra Caíam no castiçal. Ella porém não vertia Uma lagrima sequer. Tinha a fe, — a chamma a arder, — Chorar é que não podia. LIVROS E FLORES Teus olhos são meus livros. Que livro ha ahi melhor, Em que melhor se leia A pagina do amor? Flores me são teus labios. Onde ha mais bella flôr, Em que melhor se beba O balsamo do amor? PASSAROS Je veux changer mes pensées en oiseaux. C. MAROT. Olha como, cortando os leves ares, Passam do valle ao monte as andorinhas; Vão pousar na verdura dos palmares, Que, á tarde, cobre transparente veu; Voam tambem como essas avezinhas Meus sombrios, meus tristes pensamentos; Zombam da furia dos contrarios ventos, Fogem da terra, acercam-se do ceu. Porque o ceu é tambem aquella estancia Onde respira a doce creatura, Filha de nosso amor, sonho da infancia, Pensamento dos dias juvenis. Lá, como esquiva flôr, formosa e pura, Vives tu escondida entre a folhagem, O rainha do ermo, ó fresca imagem Dos meus sonhos de amor calmo e feliz! Vão para aquella estancia enamorados. Os pensamentos de minh’ alma anciosa; Vão contar-lhe os meus dias mal gosados E estas noites de lagrimas e dôr; Na tua fronte pousarão, mimosa, Como as aves no cimo da palmeira; Dizendo aos écos a canção primeira De um livro escripto pela mão do amor. Dirão tambem como conservo ainda No fundo de minh’ alma essa lembrança De tua imagem vaporosa e linda, Unico alento que me prende aqui. E dirão mais que estrellas de esperança Enchem a escuridão das noites minhas. Como sobem ao monte as andorinhas, Meus pensamentos voam para ti. O VERME Existe uma flôr que encerra Celeste orvalho e perfume. Plantou-a em fecunda terra Mão benefica de um nume. Um verme asqueroso e feio, Gerado em lodo mortal, Busca esta flor virginal E vai dormir-lhe no seio. Morde, sangra, rasga e mina, Suga-lhe a vida e o alento; A flôr o calix inclina; As folhas, leva-as o vento, Depois, nem resta o perfume Nos ares da solidão... Esta flôr é o coração, Aquelle verme o ciume. UN VIEUX PAYS … juntamente choro e rio. CAMÕES. II est un vieux pays, plein d'ombre et de lumière, Où l'on rêve le jour, où l'on pleure le soir; Un pays de blasphème, autant que de prière, Né pour le doute et pour 1’espoir. On n’y voit point de fleurs sans un ver qui les ronge, Point de mer sans tempête, ou de soleil sans nuit; Le bonheur y paraît quelquefois dans un songe Entre les bras du sombre ennui. L'amour y va souvent, mais c'est tout un délire, Un désespoir sans fin, une énigme sans mot; Parfois il rit gaîment, mais de cet affreux rire Qui n’est peut-être qu’un sanglot. On va dans ce pays de misère et d’ivresse, Mais on le voit á peine, on en sort, on a peur; Je 1'habite pourtant, j'y passe ma jeunesse.... Hélas! ce pays, c’est mon coeur. LUZ ENTRE SOMBRAS É noite medonha e escura, Muda como o passamento Uma só no firmamento Tremula estrella fulgura. Falla aos écos da espessura A chorosa harpa do vento, E n’um canto somnolento Entre as arvores murmura. Noite que assombra a memoria, Noite que os medos convida, Erma, triste, merencoria. No entanto... minh’alma olvida Dôr que se transforma em gloria, Morte que se rompe em vida. LYRA CHINEZA I O POETA A RIR (Han-Tiê.) Taça d’agua parece o lago ameno; Tem os bambús a fórma de cabanas, Que as arvores em flôr, mais altas, cobrem Com verdejantes tectos. As ponteagudas rochas entre flôres, Dos pagodes o grave aspecto ostentam... Faz-me rir ver-te assim, ó natureza, Cópia servil dos homens. II A UMA MULHER (Tchê-Tsi.) Cantigas modulei ao som da flauta, Da minha flauta d’ebano; N’ellas minh’alma segredava á tua Fundas, sentidas mágoas. Cerraste-me os ouvidos. Namorados Versos compuz de jubilo, Por celebrar teu nome, as graças tuas, Levar teu nome aos seculos. Olhaste, e, meneando a airosa frente, Com tuas mãos purissimas, Folhas em que escrevi meus pobres versos Lançaste ás ondas tremulas. Busquei então por encantar tu’alma Uma saphira esplendida, Fui depôl-a a teus pés... tu descerraste Da tua boca as perolas. III O IMPERADOR (Thu-Fu.) Olha. O Filho do Céu, em throno de ouro, E adornado com ricos pedrarias, Os mandarins escuta: — um sol parece De estrellas rodeado. Os mandarins discutem gravemente Cousas muito mais graves. E elle? Foge-lhe O pensamento inquieto e distrahido Pela janella aberta. Além, no pavilhão de porcellana, Entre donas gentis está sentada A imperatriz, qual flôr radiante e pura Entre viçosas folhas. Pensa no amado esposo, arde por vêl-o, Prolonga-se-lhe a ausencia, agita o leque... Do imperador ao rosto um sopro chega De rescendente briza. « Vem della este perfume, » diz, e abrindo Caminho ao pavilhão da amada esposa, Deixa na sala olhando-se em silencio Os mandarins pasmados. IV O LEQUE (Tan-Jo-Lu.) Na perfumada alcova a esposa estava, Noiva ainda na vespera. Fazia Calor intenso; a pobre moça ardia, Com fino leque as faces refrescava. Ora, no leque em boa lettra feito Havia este conceito: « Quando, immovel o vento e o ar pesado, « Arder o intenso estio, « Serei por mão amiga ambicionado; « Mas, volte o tempo frio, « Ver-me-heis a um canto logo abandonado. » Lê a esposa este aviso, e o pensamento Volve ao joven marido. « Arde-lhe o coração n’este momento « (Diz ella) e vem buscar enternecido « Brandas auras de amor. Quando mais tarde « Tornar-se em cinza fria « O fogo que hoje lhe arde, « Talvez me esqueça e me desdenhe um dia. » V A FOLHA DO SALGUEIRO (Tchan-Tiú-Lin.) Amo aquella formosa e terna moça Que, á janella encostada, arfa e suspira; Não porque tem do largo rio á margem Casa faustosa e bella. Amo-a, porque deixou das mãos mimosas Verde folha cair nas mansas aguas. Amo a briza de leste que sussurra, Não porque traz nas azas delicadas O perfume dos verdes pecegueiros Da oriental montanha. Amo-a porque impelliu co’as tenues azas Ao meu batel a abandonada folha. Se amo a mimosa folha aqui trazida, Não é porque me lembre á alma e aos olhos A renascente, a amavel primavera, Pompa e vigor dos valles. Amo a folha por ver-lhe um nome escripto, Escripto, sim, por ella, e esse... é meu nome. VI AS FLORES E OS PINHEIROS (Tin-Tun-Sing.) Vi os pinheiros no alto da montanha Ouriçados e velhos; E ao sopé da montanha, abrindo as flôres Os calices vermelhos. Contemplando os pinheiros da montanha, As flôres tresloucadas Zombam d’elles enchendo o espaço em torno De alegres gargalhadas. Quando o outono voltou, vi na montanha Os meus pinheiros vivos, Brancos de neve, e meneiando ao vento Os galhos pensativos. Volvi o olhar ao sitio onde escutára Os risos mofadores; Procurei-as em vão; tinham morrido As zombeteiras flôres. VII REFLEXOS (Thu-Fu.) Vou rio abaixo vogando No meu batel e ao luar; Nas claras aguas fitando, Fitando o olhar. Das aguas vejo no fundo, Como por um branco veu Intenso, calmo, profundo, O azul do ceu. Nuvem que no ceu fluctua, Fluctua n’agua tambem; Se a lua cobre, á outra lua Cobril-a vem. Da amante que me extasia, Assim, na ardente paixão, As raras graças copia Meu coração. VIII CORAÇÃO TRISTE FALLANDO AO SOL (Su-Tchon.) No arvoredo sussurra o vendaval do outono, Deita as folhas á terra, onde não ha florir E eu contemplo sem pena esse triste abandono; Só eu as vi nascer, vejo-as só eu cair. Como a escura montanha, esguia e pavorosa Faz, quando o sol descamba, o valle ennoitecer, Esta montanha da alma, a tristeza amorosa, Tambem de ignota sombra enche todo o meu ser. Transforma o frio inverno a agua em pedra dura, Mas torna a pedra em agua um raio de verão; Vem, ó sol, vem; assume o throno teu na altura, Vê se pódes fundir meu triste coração. UMA ODE DE ANACREONTE (A MANUEL DE MELLO) PERSONAGENS LYSIAS. CLEON. MYRTO. TRES ESCRAVOS. A scena é em Somos. UMA ODE DE ANACREONTE Sala de festim em casa de Lysias. A esquerda a mesa do festim; á direita uma mesa tendo em cima uma lampada apagada, e junto da alampada um rolo de papyro. SCENA I. LYSIAS, CLEON, MYRTO. (Estão no fim de um banquete; os dous homens deitados à maneira antiga, Myrto sentada entre os dous leitos. Tres escravos.) LYSIAS. Melancolica estás, bella Myrto. Bebamos! Aos prazeres! CLEON. Eu bebo á memória de Samos. Samos vai terminar os seus dourados dias; Adeos, terra em que achei consolo ás agonias Da minha mocidade; adeos, Samos, adeos! MYRTO. Querem-lhe os deoses mal? CLEON. Não; dous olhos, os teus. LYSIAS. Bravo, Cleon! MYRTO. Poeta! os meus olhos? CLEON. São lumes Capazes de abrasar até os proprios numes, Samos é nova Troya, e tu és outra Helena, Quando Lesbos, a mãe de Sappho, a ilha amena, Não vir a bella Myrto, a alegre cortezã, Armar-se-ha contra nós. LYSIAS. Lesbos é boa irmã. MYRTO. Outras bellezas tem, dignas da loura Venus. CLEON. Menos dignas que tu. MYRTO. Mais do que eu. LYSIAS. Muito menos. CLEON. Tens vergonha de ser formosa e festejada, Myrto? Venus não quer belleza envergonhada. Pois que dos immortaes houveste esse condão De inspirar quantos vês, inspira-os, Myrto. MYRTO. Não; São teus olhos, poeta; eu não tenho a belleza Que arrasta corações. CLEON. Divina singeleza! LYSIAS (á parte). Vejo atraves do manto as galas da vaidade. (Alto.) Vinho, escravo! (O escravo deita vinho na taça de Lysias.) Poeta, um brinde á mocidade. Trava da lyra e invoca o deus inspirador. CLEON. « Feliz quem junto a ti, ouve a tua falla, amor! » MYRTO. Versos de Sapho! CLEON. Sim. LYSIAS. Vês? é modestia pura. Elle é na poesia o que és na formosura. Faz versos de primor e esconde-os ao profano; Tem vergonha. Eu não sei se o vicio é lesbiano... MYRTO. Ah! tu és… CLEON. Lesbos foi minha patria tambem, Lesbos, a flôr do Egeo. MYRTO. Já não é? CLEON. Lesbos tem Tudo o que me fascina e tudo o que me mata: As festas do prazer e os olhos de uma ingrata. Fugi da patria e achei, já curado e tranquillo, Em Lysias um irmão, em Samos um asylo. Bem hajas tu que veus encher-me o coração! LYSIAS. Insaciavel! Não tens em Lysias um irmão? MYRTO. Volto á patria. CLEON. Pois que! tu vais? MYRTO. Em poucos dias.... LYSIAS. Fazes mal; tens aqui os moços e as folias, O gozo, a adoração; que te falta? MYRTO. Os meus ares. CLEON. A que vieste então? MYRTO. Successos singulares. Vim por acompanhar Lysicles, mercador De Naxos; tanto póde a constancia no amor! Corrêmos todo o Egeo e a costa ionia; fomos Comprar o vinho a Creta e a Tenedos os pomos. Ah! como é doce o amor na solidão das aguas! Tem-se vida melhor; esquecem-se-lhe as mágoas. Zephyro ouviu por certo os osculos febris, Os jubilos do affecto; as fallas juvenis; Ouvio-os, delatou ao deus que o mar governa A indiscreta ventura, a effusão doce e terna. Para a furia acalmar da sombria deidade, Nave e bens varreu tudo a horrivel tempestade. Foi assim que eu perdi a Lysicles, assim Que eu semi-morta e fria á tua plaga vim. CLEON. Ó coitada! LYSIAS. O infortunio os animos apura; As feridas que faz o mesmo Amor as cura; Brandem armas iguaes Achilles e Cupido. Queres ver n'outro amor o teu amor perdido? Samos o tem de sobra. CLEON. Eu, Myrto, eu sei amar; Não fio o coração da inconstancia do mar. Não tenho galeões rompendo o seio a Thetys, Estrada tanta vez ao torvo e obscuro Lethes. Aqui me tens; sou teu; escreve a minha sorte; Pódes doar-me a vida ou decretar-me a morte. MYRTO. Mas se eu volto.... CLEON. Pois bem! aonde quer que te vás Irei comtigo; a deosa indomita e fallaz Ser-me-ha hospede amiga; ao pé de ti a escura Noite parece aurora, e é berço a sepultura. MYRTO. Quando falla o dever, a vontade obedece; Eu devo ir só; tu fica, ama-me um pouco e esquece. LYSIAS. Tens razão, bella Myrto; escuta o teu dever. CLEON. Ai! é fácil amar, difficil esquecer. LYSIAS (a Myrto). Queres pôr termo á festa? Um brinde a Venus, filha Da mar azul, belleza, encanto, maravilha; Nascida para ser perpetuamente amada. A Venus! (Depois do brinde os escravos trazem os vasos com agua perfumada em que os convivas lavam as mãos; os escravos sahem levando os restos do banquete. Levantam-se todos.) Queres tu, mimosa naufragada, Ouvir de hemonia serva, em lyra de marfim, Uma alegre canção? Preferes o jardim? O portico talvez? MYRTO. Lysias, sou indiscreta; Quizera antes ouvir a voz do teu poeta. LYSIAS. Nume não pede, impõe. CLEON. O mando é lisongeiro. LYSIAS. Pois começa. SCENA II. OS MESMOS, UM ESCRAVO. ESCRAVO. Procura a Myrto um mensageiro. MYRTO. Um mensageiro! a mim! LYSIAS. Manda-o entrar. ESCRAVO. Não quer. LYSIAS. Vai, Myrto. MYRTO (sahindo). Volto já. (Sae o escravo). SCENA III. LYSIAS, CLEON. CLEON. (Olhando para o lugar por onde Myrto saiu.) Oh! deoses! que mulher! LYSIAS. Ah! que perola rara! CLEON. Onde a encontraste? LYSIAS. Achei-a Com Parthenis que dava uma esplendida ceia; Parthenis, ex-bonita, ex-joven, ex-da moda, Sabes que vê fugir-lhe a enfastiada roda; E, para não perder o grupo adorador, Fez do templo deserto uma escola de amor. Foi ella quem achou a naufraga perdida, Exposta ao vento e ao mar, quasi a expirar-lhe a vida. A belleza pagava o emprego de uma esmola; Dentro em pouco era Myrto a flôr de toda a escola. CLEON. Lembrou-te convidal-a então para um festim? LYSIAS. Foi um pouco por ella e um pouco mais por mim. CLEON. Tambem amas? LYSIAS. Eu? não. Quiz ter á minha mesa Venus e o louro Apollo, a poesia e a belleza. CLEON. Oh! a belleza, sim! Viste já tanta graça, Tão celestes feições? LYSIAS. Cuidado! Aquella caça Zomba dos tiros vãos de ingenuo caçador! CLEON. Incredulo! LYSIAS. Eu sou mestre em materia de amor Se tu, attento e calmo, a narração lhe ouvisses Conhecêras melhor o engenho d’esta Ulysses. Aquelle ardente amor a Lysicles, aquelle Fundo e intenso pesar que á sua patria a impelle, Armas são com que a astuta os animos seduz. CLEON. Oh! não creio. LYSIAS. Porque? CLEON. Não vês como lhe luz Tanta expressão sincera em seus olhos divinos? LYSIAS. Sim, tem muita expressão.... para illudir meninos. CLEON. Pois tu não crês? LYSIAS. Em que? No naufragio? De certo. Em Lysicles? Talvez. No amor? é mais incerto. Na intenção de voltar a Lesbos ? isso não! Sabes o que ella quer? Prender um coração. CLEON. Impossivel! LYSIAS. Poeta! estás na alegre idade Em que a sciencia da vida é a credulidade. Vês tudo azul e em flôr; eu já me não illudo. Pois amar cortezãs! isso demanda estudo, Não vai assim, que as taes abelhitas do amor Correm de bolsa em bolsa e não de flôr em flôr. CLEON. Mas não as amas tu? LYSIAS. De certo.... á minha moda; Meu grande coração co’ os vicios se accommoda; Sacrificios de amor não sonha nem procura; Não lhes pede illusões, pede-lhes só ternura. Não me empenho em achar alma ungida no céo: Se é crime este sentir; confesso-me, sou réo. Não peço amor ao vinho; irei pedil-o ás damas? D’ellas e d’elle exijo apenas estas chammas Que ardem sem consumir, na pyra dos desejos. Lá protestos de boca, eternos e leaes, Tudo isso é fumo vão. Que queres? Os mortaes Somos todos assim. CLEON. Ai, os mortaes! dize antes Os philosophos máos, ridiculos pedantes, Os que não sabem crer, os fartos já de amores, Esses sim. Os mortaes! LYSIAS. Refreia os teus furores, Poeta; eu não quizera amargurar-te, e emfim Não podia suppôr que a amasses tanto assim. Caspité! Vais depressa! CLEON. Ai, Lysias, é verdade Amo-a, como não amo a vida e a mocidade; De que modo nasceu esta affeição que encerra Todo o meu ser, ignoro. Acaso sabe a terra Porque é mais bella ao sol e ás auras matinaes Amores estes são terríveis e fataes. LYSIAS. Vês com olhos do céu cousas que são do mundo; Acreditas achar esse affecto profundo, N’estas filhas do mal! Se a todo o transe queres Obter a casta flôr dos celicos prazeres, Deixa a alegre Corintho e todo o luxo seu; Outro porto acharás: procura o gyneceo. Escolhe aquelle amor doce, innocente e puro, Que inda não tem passado e vive do futuro. Para mim, já t’o disse, o caso é differente; Não me importa um nem outro; eu vivo no presente. CLEON. Deu-te amiga Fortuna um grande cabedal: Viver, sem illusões, no bem como no mal; Não conhecer o amor que morde, que se nutre Do nosso sangue, o amor funesto, o amor abutre; Não beber gotta a gotta este brando veneno Que requeima e destróe; não ver em mar sereno Subitamente erguer-se a voz dos aquilões. Afortunado és tu. LYSIAS. Lei de compensações! Sou philosopho máo, ridiculo pedante, Mas invejas-me a sorte; oh! logica de amante. CLEON. É a do coração. LYSIAS. Terrivel mestre! CLEON. Ensina Dos seres immortaes a transfusão divina! LYSIAS. A lição é profunda e escapa ao meu saber; Outra escola professo, a escola do prazer! CLEON. Tu não tens coração. LYSIAS. Tenho, mas não me illudo É Circe que perdeu o encanto e a juventude. CLEON. Velho Satyro! LYSIAS. Justo: um semi-deus sylvestre. N’estas cousas do amor nunca tive outro mestre. Tu gostas de chorar; eu cá prefiro rir. Tres artigos da lei: gozar, beber, dormir. CLEON. Compras com isso a paz; a mim coube-me o tedio A solidão e a dôr. LYSIAS. Queres um bom remedio, Um philtro da Thessalia, um balsamo infallivel? Esqueces emprezas vãs, não tentes o impossivel Prende o teu coração nos laços de Hymenêo; Casa-te; encontrarás o amor no gynecêo. Mas cortezãs! jámais! São Gorgones! Medusas! CLEON. Essas que conheceste e tão severo accusas — Pobres moças! — não são o universal modelo; De outras sei a quem coube um coração singelo, Que preferem a tudo a gloria singular De conhecer sómente a sciencia de amar; Capazes de sentir o ardor da intensa chamma Que eleva, que resgata a vida que as infama. LYSIAS. Se achares tal milagre, eu mesmo irei pedir-t’o. CLEON. Basta um passo, achal-o-hei. LYSIAS. Bravo! chama-se? CLEON. Myrto, Que póde conquistar até o amor de um deus! LYSIAS. Crês n’isso? CLEON. Porque não? LYSIAS. Tu és um nescio; adeos! SCENA IV. CLEON. Vai, sceptico! tu tens o vicio da riqueza: Farto, não crês na fome.... A minha singeleza Faz-te rir; tu não vês o amor que absorve e mata; Myrto, vinga-me tu da calumnia insensata; Amemo-nos. É ella! SCENA V. CLEON, MYRTO. MYRTO. Estás triste! CLEON. Oh! que não! Mas deslumbrado, sim, como se uma visão…. MYRTO. A visão vai partir. CLEON. Mas muito tarde.... MYRTO. Breve. CLEON. Quem te chama? MYRTO. O destino. Adivinha quem me escreve? CLEON. Tua mãe. MYRTO. Já morreu. CLEON. Algum antigo amante? MYRTO. Lysicles. CLEON. Vive. MYRTO. Sim. Depois de andar errante N’uma taboa, á mercê das ondas , quiz o ceu Que viesse encontral-o um barco do Pyreu. Pobre Lysicles! teve em tão cruenta lida A dôr da minha morte e a dôr da propria vida. Em vão interrogava o mar cioso e mudo. Perdera, de uma vez , n’uma só noite, tudo. A ventura, a esperança , o amor, e perdeu mais: Naufragárão com elle os poucos cabedaes. Entrou em Samos pobre, inquieto, semi-morto. Um barqueiro , que a tempo atravessava o porto, Disse-lhe que eu vivia, e contou-lhe a aventura Da malfadada Myrto. CLEON. É isso , a sorte escura Votou-se contra mim; não consente, não quer Que eu me farte de amor no amor de uma mulher. Vejo em cada paixão o fado que me opprime; O amar é já soffrer a pena do meu crime, Ixion foi mais audaz amando a deosa augusta; Transpôz o obscuro lago e soffre a pena justa; Mas eu não. Antes de ir ás regiões infernaes São as graças comigo Eumenides fataes! MYRTO. Caprichos de poeta! Amor não falta ás damas; Damas, tem-las aqui; inspira-lhe essas chammas. CLEON. Impõe-se leis ao mar? O coração é isto; Ama o que lhe convém; convém amar a Egistho Clytemnestra; convém a Cynthia Endymião; É caprichoso e livre o mar do coração; De outras sei que eu houvera em meus versos cantado; Não lhes quero... não posso. MYRTO. Ai, triste enamorado! CLEON. E tu zombas de mim! MYRTO. Eu zombar? Não; lamento A tua acerba dôr, o teu fatal tormento. Não conheço eu também esse cruel penar? Só dous remedios tens: esquecer, esperar. De quanto almeja e quer o amor nem tudo alcança; Contenta-se ao nascer co’ as auras da esperança; Vive da propria mágoa; a propria dôr o alenta. CLEON. Mas, se a vida é tão curta, a agonia é tão lenta! MYRTO. Não sabes esperar? Então cumpre esquecer. Escolhe entre um e outro; é preciso escolher. CLEON. Esquecer? sabes tu, Myrto, se a alma esquece O prazer que a fulmina, e a dôr que a fortalece? MYRTO. Tens na ausencia e no tempo os velhos pais do olvido, O bem não alcançado é como o bem perdido, Pouco a pouco se esvai na mente e coração; Põe o mar entre nós... dissipa-se a illusão. CLEON. Impossivel! MYRTO. Então espera; algumas vezes A fortuna transforma em glorias os revezes. CLEON. Myrto, valem bem pouco as glorias já tardias. MYRTO. Um só dia de amor compensa estereis dias. CLEON. Compensará, mas quando? A mocidade em flôr Bem cedo morre, e é essa a que convem a amor. Vejo cair no occaso o sol da minha vida. MYRTO. Cabeça de poeta, exaltada e perdida! Pensas estar no occaso o sol que mal desponta? CLEON. A clepsydra do amor não conta as horas, conta As illusões; velhice é perdêl-as assim; Breve a noite abrirá seus véos por sobre mim. MYRTO. Não has de envelhecer; as illusões comtigo Flôres são que respeita Eolo brando e amigo. Guarda-as, talvez um dia, e não tarde, as colhamos. CLEON. Se eu a Lesbos não vou. MYRTO. Podem colher-se em Samos. CLEON. Voltas breve? MYRTO. Não sei. CLEON. Oh! sim, deves voltar! MYRTO. Tenho medo. CLEON. De que? MYRTO. Tenho medo... do mar. CLEON. Teu sepulcro já foi; o medo é justo; fica. Lesbos é para ti mais formosa, é mais rica. Mas a patria é o amor; o amor transmuda os ares. Muda-se o coração? Mudão-se os nossos lares. Da importuna memoria o teu passado exclue; Vida nova nos chama, outro céo nos influe. Fica; eu disfarçarei com rosas este exilio; A vida é um sonho máu: façamo-la um idylio. Cantarei a teus pés a nossa mocidade, A belleza que impõe, o amor que persuade. Venus que faz arder o fogo da paixão, Teu olhar, doce luz que vem do coração. Pericles não amou com tanto ardor a Aspasia, Nem esse que morreu entre as pompas da Asia, A Lais siciliana. Aqui as Horas bellas Teceráõ para ti vivissimas capellas. Nem morrerás; leu nome em meus versos ha de ir, Vencendo o tempo e a morte, aos seculos porvir. MYRTO. Tanto me queres tu! CLEON. Immensamente. Anceio Por sentir, bella Myrto, arfar teu brando seio, Bater teu coração, tremer teu lábio puro, Todo viver de ti. MYRTO. Confia no futuro. CLEON. Tão longe! MYRTO. Não, bem perto. CLEON. Ah! que dizes? MYRTO. Adeos! (Passa junto da mesa da direita e vê no rolo de papyro.) Curiosa que sou! CLEON. São versos. MYRTO. Versos teus? (Lysias apparece ao fundo.) CLEON. De Anacreonte, o velho, o amavel, o divino. MYRTO. A musa é toda ironia, e o estro é peregrino. (Abre o papyro e lê.) « Fez-se Niobe em pedra e Philomela em passaro. « Assim « Folgaria eu tambem me transformasse Jupiter « A mim. « Quizera ser o espelho em que o teu rosto magico « Sorri; « A tunica feliz que sempre se está proxima « De ti; « O banho de crystal que esse teu corpo candido « Contém; « O aroma de teu uso e d’onde effluvios magicos « Provêm; « Depois esse listão que de teu seio turgido « Faz dous; « Depois do teu pescoço o rosicler de perolas; « Depois.... « Depois ao ver-te assim, unica e tão emulas « Qual és, « Até quizera ser teu calçado, e pisassem-me « Teus pés. » (*) Que magníficos são! (*) Veja nota no fim. CLEON. Minha alma assim te falla. MYRTO. Attendendo ao poeta eu pensava escutal-a. CLEON. Eco do meu sentir foi o velho amador; Taes os desejos são do meu profundo amor. Sim, eu quizera ser tudo isto, — o espelho, o banho, O calçado, o collar... Desejo acaso extranho, Louca ambição talvez de poeta exaltado… MYRTO. Tanto sentes por mim? SCENA VI. CLEON, MYRTO, LYSIAS. LYSIAS (entrando.) Amor, nunca sonhado. Se a musa d’elle és tu! CLEON. Lysias! MYRTO. Ouviste? LYSIAS. Ouvi. Versos que Anacreonte houvera feito a ti, Se vivesses no tempo em que, pulsando a lyra, Estas odes compôz que a velha Grecia admira. (A Cleon.) Quer fallar-te um sujeito, um Clinias, um collega, Ex-mercador, como eu. MYRTO. Ai, que importuno! LYSIAS. Allega Que não póde esperar, que isto não póde ser, Que um processo... A final não n’o pude entender. Póde ser que comtigo o homem se accommode. Prometteste talvez compôr-lhe alguma ode? CLEON. Não. Adeus, bella Myrto; espera-me um instante. MYRTO. Não tardes! LYSIAS (á parte.) Indiscreta! CLEON. Espera. LYSIAS (á parte.) Petulante! SCENA VII. MYRTO, LYSIAS. MYRTO. Sou curiosa. Quem é Clinias, ex-mercador? Amigo d'elle? LYSIAS. Mais do que isso; é um credor MYRTO. Ah! LYSIAS. Que bello rapaz! que alma fogosa e pura, Bem digna de aspirar-te um hausto de ventura! Queira o ceu pôr-lhe termo á profunda agonia, Surja emfim para elle o sol de um novo dia. Merece-o. Mas vê lá se ha destino peior: Quer o alado Mercurio obstar o alado Amor. Com beijos não se paga a pompa do vestido, O expectaculo e a mesa; e se o gentil Cupido Gosta de ouvir canções, o outro não vai com ellas; Vale uma drachma só vinte odezinhas bellas. Um poema não compra um simples borzeguim. Versos! são bons de ler; mais nada; eu penso assim. MYRTO. Pensas mal! A poesia é sempre um dom celeste; Quando o genio o possue quem ha que o não requeste? Hermes, com ser o deos dos graves mercadores, Tocou lyra tambem. LYSIAS. Já sei que estás de amores. MYRTO. Que esperança! Bem vês que eu já não posso amar. LYSIAS. Perdeste o coração? MYRTO. Sim; perdi-o no mar. LYSIAS. Pesquemo-lo; talvez essa perola fina Venha ornar-me a existencia agourada e mofina. MYRTO. Mofina? LYSIAS. Pois então? Enfarão-me estas bellas Da terra samiana; assaz vivi por ellas. Outras desejo amar, filhas do azul Egeo. Varia de feições o Amor, como Protheo. MYRTO. Seu caracter melhor foi sempre o ser constante. LYSIAS. Serei menos fiel, não sou menos amante. Cada belleza em si toda a paixão resume. Pouco me importa a flôr; importa-me o perfume. MYRTO. Mas quem quer o perfume afaga um pouco a flôr; Nem fere o objecto amado a mão que implora o amor. LYSIAS. Offendo-te com isto? Esquece a minha offensa. MYRTO. Já esqueci; passou LYSIAS. Quem falla como pensa Arrisca-se a perder ou por sobra ou por mingoa. Eu confesso o meu mal; não sei tentear a lingua. Pois que me perdoaste, escuta-me. Tu tens A graça das feições, o summo bem dos bens Moça, trazes na fronte o doce beijo de Hebe; Como um philtro de amor que, sem sentir, se bebe, De teus olhos distilla a eterna juventude; De teus olhos que um deus, por lhes dar mais virtude, Fez azues como o céu, profundos como o mar. Quem taes dotes reúne, ó Myrto, deve amar. MYRTO. Fallas como um poeta, e zombas da poesia! LYSIAS. Eu, poeta? jámais. MYRTO. A tua fantasia Respirou certamente o ar do monte Hymetto. Tem a expressão tão doce! LYSIAS. É a expressão do affecto. Sou em cousas de Apollo um simples amador. A minha grande musa é Venus, mãi de amor. No mais não aprendi (os fados meus adversos Vedárão-m’o!) a cantar bons e sentidos versos. Cleon esse é que sabe acender tantas almas, Conquistar de um só lance os corações e as palmas. MYRTO. Conquistar, oh! que não! LYSIAS. Mas agradar? MYRTO. Talvez. LYSIAS. Isso mesmo; é já muito. O que o poeta fez Fal-o-hei jámais? Comtudo, inda tental-o quero; Se não me inspira a musa, alma filha de Homero, Inspira-me o desejo, a musa que delira, E o seu canto concerta aos sons da eterna lyra. MYRTO. Tambem desejas ser alguma cousa? LYSIAS. Não; Eu caso o meu amor ás regras da razão. Cleon quizera ser o espelho em que teu rosto Sorri; eu bella Myrto, eu tenho melhor gosto. Ser espelho! ser banho! e tunica! tolice! Esteril ambição! loucura! criancice! Por Venus! sei melhor o que a mim me convem. Homem sisudo e grave outros desejos tem. Fiz, a este respeito, aprofundado estudo; Eu não quero ser nada; eu quero dar-te tudo. Escolhe o mais perfeito espelho de aço fino. A tunica melhor de panno tarentino, Vasos de óleo, um collar de perolas, — emfim Quanto enfeita uma dama aceital-o-has de mim. Brincos que vão ornar-te a orelha graciosa; Para os dedos o annel de pedra preciosa; A tua fronte pede áureo, rico anadema; Têl-o-has, divina Myrto. É este o meu poema. MYRTO. É lindo! LYSIAS. Queres tu, outras estrophes mais? Dar-t’as-hei quaes as teve a celebrada Lais. Casa, rico jardim, servas de toda a parte; E estatuas e paineis, e quantas obras d’arte Podem servir de ornato ao templo da belleza, Tudo haverás de mim. Nem gosto nem riqueza Te ha de faltar, mimosa, e só quero um penhor. Quero.... quero-te-a ti. MYRTO. Pois que! já quer a flôr, Quem desdenhando a flôr, só lhe pede o perfume? LYSIAS. Esqueceste o perdão? MYRTO. Ficou-me este azedume. LYSIAS. Venus póde apagal-o. MYRTO. Eu sei! creio e não creio. LYSIAS. Hesitar é ceder: agrada-me o receio. Em asumpto de amor vontade que fluctua Está prestes a entregar-se. Entregas-te? MYRTO. Sou tua! SCENA VIII. LYSIAS, MYRTO, CLEON. CLEON. Demorei-me de mais? LYSIAS. Apenas o bastante Para que fosse ouvido um coração amante. A Lesbiana é minha. CLEON. És d’elle, Myrto! MYRTO. Sim; Eu ainda hesitava; elle fallou por mim. CLEON. Quantos amores tens, filha do mal? LYSIAS. Presinto Uma lamentação inutil, « A Corintho Não vai quem quer, » lá diz aquelle velho adagio. Navegavas sem leme; era certo o naufragio. Não me viste sulcar as mesmas aguas? CLEON. Vi, Mas contava com ella, e confiava em ti. Mais duas illusões! Que importa? Inda são poucas; Desfação-se uma a uma estas chimeras loucas. Ó arvore bemdita, ó minha juventude, Vão-te as flôres caindo ao vento aspero e rude! Não vos maldigo, não; eu não maldigo o mar Quando a nave sossobra; o erro é confiar. Adeos, formosa Myrto; adeos, Lysias; não quero Perturbar vosso amor, eu que já nada espero; Eu que vou arrancar as profundas raizes D’esta paixão funesta; adeos, sede felizes! LYSIAS. Adeos! Saudemos nós a Venus e a Lyeo. AMBOS. Io Poean! ó Baccho! Hymenêo! Hymenêo! PALLIDA ELVIRA (A FRANCISCO PAZ) Ulysse, jeté sur les rives d'Ithaque, ne les reconnait pas et pleure sa patrie. Ainsi l’homme dans le bonheur possédé ne reconnait pas son rêve et soupire. DANIEL STERN. I Quando, leitora amiga, no occidente Surge a tarde esmaiada e pensativa; E entre a verde folhagem rescendente Languida geme viração lasciva; E já das tenues sombras do oriente Vem apontando a noite, e a casta diva Subindo lentamente pelo espaço, Do ceu, da terra observa o estreito abraço; II N’essa hora de amor e de tristeza, Se acaso não amaste e acaso esperas Ver coroar-te a juvenil belleza Casto sonho das tuas primaveras; Não sentes escapar tua alma accesa Para voar ás lúcidas espheras? Não sentes n'essa mágoa e n'esse enleio Vir morrer-te uma lagrima no seio? III Sêntel-o? Então entenderás Elvira, Que assentada á janella, erguendo o rosto, O vôo solta á alma que delira E mergulha no azul de um céo de agosto; Entenderás então porque suspira, Victima já de um intimo desgosto, A meiga virgem, pallida e calada, Sonhadora, anciosa e namorada. IV Mansão de riso e paz, mansão de amores Era o valle. Espalhava a natureza, Com dadivosa mão, palmas e flôres De agreste aroma e virginal belleza; Bosques sombrios de immortaes verdores, Asylo proprio á inspiração accesa. Valle de amor, aberto ás almas ternas N’este valle de lagrimas eternas. V A casa, junto á encosta de um outeiro, Alva pomba entre folhas parecia: Quando vinha a manhã, o olhar primeiro Ia beijar-lhe a verde gelosia: Mais tarde a fresca sombra de um coqueiro Do sol quente a janella protegia; Pouco distante, abrindo o solo adusto, Um fio d’agua murmurava a custo. VI Era uma joia a alcova em que sonhava Elvira, alma de amor. Tapete fino De apurado lavor o chão forrava. De um lado oval espelho crystallino Pendia. Ao fundo, á sombra, se occultava Elegante, engraçado, pequenino Leito em que, repousando a face bella, De amor sonhava a pallida donzella. VII Não me censure o critico exigente O ser pallida a moça; é meu costume Obedecer á lei de toda a gente Que uma obra compõe de algum volume. Ora, no nosso caso, é lei vigente Que um descorado rosto o amor resume. Não tinha Miss Smolen outras côres; Não as possue quem sonha com amores. VIII Sobre uma mesa havia um livro aberto; Lamartine, o cantor aereo e vago, Que enche de amor um coração deserto; Tinha-o lido; era a pagina do Lago. Amava-o; tinha-o sempre alli bem perto, Era-lhe o anjo bom, o deos, o orago; Chorava aos cantos da divina lyra.... É que o grande poeta amava Elvira! IX Elvira! o mesmo nome! A moça os lia, Com lagrimas de amor, os versos santos, Aquella eterna e languida harmonia Formada com suspiros e com prantos; Quando escutava a musa da elegia Cantar de Elvira os magicos encantos, Entrava-lhe a voar a alma inquieta, E com o amor sonhava de um poeta. X Ai, o amor de um poeta! amor subido! Indelevel, purissimo, exaltado, Amor eternamente convencido, Que vai além de um tumulo fechado, E que, através dos seculos ouvido, O nome leva do objecto amado, Que faz de Laura um culto, e tem por sorte Negra fouce quebrar nas mãos da morte. XI Fosse eu moça e bonita... N’este lance Se o meu leitor é já homem sisudo, Fecha tranquillamente o meu romance, Que não serve a recreio nem a estudo; Não entendendo a força nem o alcance De semelhante amor, condemna tudo; Abre um volume serio, farto e enorme, Algumas folhas lê, boceja... e dorme. XII Nada perdes, leitor, nem perdem nada As esquecidas musas; pouco importa Que tu, vulgar matéria condemnada, Aches que um tal amor é lettra morta. Pódes, cedendo á opinião honrada, Fechar á minha Elvira a esquiva porta. Almas de prosa chã, quem vos daria Conhecer todo o amor que ha na poesia? XIII Ora, o tio de Elvira, o velho Antero, Erudito e philosopho profundo, Que sabia de cór o velho Homero, E compunha os annaes do Novo Mundo; Que escrevêra uma vida de Severo, Obra de grande tomo e de alto fundo; Que resumia em si a Grecia e Lacio, E n’um salão fallava como Horacio; XIV Disse uma noite á pallida sobrinha: « Elvira, sonhas tanto! devaneias! « Que andas a procurar, querida minha? Que ambições, que desejos ou que idéas Fazem gemer tua alma innocentinha? « De que esperança vã, meu anjo, anceias? « Teu coração de ardente amor suspira; « Que tens? — Eu nada, » respondia Elvira. XV « Alguma cousa tens! » tornava o tio; « Porque olhas tu as nuvens do poente, « Vertendo ás vezes lagrimas a fio, « Magoada expressão d’alma doente? « Outras vezes, olhando a agua do rio, « Deixas correr o espirito indolente, « Como uma flôr que ao vento alli tombára, « E a onda murmurando arrebatára. » XVI « — Latet anguis in herba... » Neste instante Entrou a tempo o chá... perdão, leitores, Eu bem sei que é preceito dominante Não misturar comidas com amores; Mas eu não vi, nem sei se algum amante Vive de orvalho ou petalas de flôres; Namorados estomagos consomem; Comem Romeos, e Julietas comem. XVII Entrou a tempo o chá, e foi servil-o, Sem responder, a moça interrogada, C’um ar tão soberano e tão tranquillo Que o velho emmudeceu. Ceia acabada, Fez o escriptor o costumado chylo, Mas um chylo de especie pouco usada, Que consistia em ler um livro velho; N’essa noite acertou ser o Evangelho. XVIII Abríra em S. Matheus, n’aquelle passo Em que o filho de Deus diz que a açucena Não labora nem fia, e o tempo escasso Vive, co’ o ar e o sol, sem dôr nem pena; Leu e estendendo o já tremulo braço A triste, á melancolica pequena, Apontou-lhe a passagem da Escriptura Onde lera lição tão recta e pura. XIX « Vês? diz o velho, escusas de cansar-te; « Deixa em paz teu espirito, criança: « Se existe um coração que deva amar-te, « Ha de vir; vive só d’essa esperança. « As venturas do amor um deus reparte; « Queres têl-as? põe n’elle a confiança. « Não persigas com supplicas a sorte; « Tudo se espera; até se espera a morte! XX « A doutrina da vida é esta: espera, « Confia, e colherás a anciada palma; « Oxalá que eu te apague essa chimera « Lá diz o bom Demophilo que á alma; « Como traz a andorinha a primavera, « A palavra do sábio traz a calma, « O sabio aqui sou eu. Ris-te, pequena? « Pois melhor; quero ver-te uma açucena! » XXI Fallava aquelle velho como falla Sobre côres- um cego de nascença. Pear a juventude! Condemnal-a Ao somno da ambição vivaz e intensa! Co’ as leves azas da esperança ornal-a E não querer que rompa a esphera immensa! Não consentir que esta manhã de amores Encha com frescas lagrimas as flôres. XXII Mal o velho acabava e justamente Na rija porta ouvio-se uma pancada. Quem seria? Uma serva diligente, Travando de uma luz, desceu a escada. Pouco depois rangia brandamente A chave, e a porta aberta dava entrada A um rapaz embuçado que trazia Uma carta, e ao doutor fallar pedia. XXIII Entrou na sala, e lento, e gracioso, Descobrio-se e atirou a capa a um lado; Era um rosto poetico e viçoso Por soberbos cabellos coroado; Grave sem gesto algum pretencioso, Elegante sem ares de enfeitado; Nos labios frescos um sorriso amigo, Os olhos negros e o perfil antigo. XXIV Demais, era poeta. Era-o. Trazia N’aquelle olhar não sei que luz extranha Que indicava um alumno da poesia, Um morador da classica montanha, Um cidadão da terra da harmonia, Da terra que eu chamei nossa Allemanha, N’uns versos que hei de dar um dia a lume, Ou n’alguma gazeta, ou n’um volume. XXV Um poeta! e de noite! e de capote! Que é isso, amigo autor? Leitor amigo. Imagina que estás n’um camarote Vendo passar em scena um drama antigo, Sem lança não conheço D. Quixote, Sem espada é apocrypho um Rodrigo; Heróe que ás regras classicas escapa, Póde não ser heróe, mas traz a capa. XXVI Heitor (era o seu nome) ao velho entrega Uma carta lacrada; vem do norte. Escreve-lhe um philosopho collega Já quasi a entrar no thalamo da morte. Recommenda-lhe o filho, e lembra, e allega, A provada amizade, o esteio forte, Com que outr’ora, acudindo-lhe nos transes, Salvou-lhe o nome de terriveis lances. XXVII Dizia a carta: « Crime ou virtude, « É meu filho poeta; e corre fama « Que já faz honra á nossa juventude « Co’ a viva inspiração de etherea chamma; « Diz elle que, se o genio não o illude, « Camões seria se encontrasse um Gama. « Deus o fade; eu perdôo-lhe tal sestro; « Guia-lhe os passos, cuida-lhe do estro. » XXVIII Lida a carta, o philosopho erudito Abraça o moço e diz em tom pausado: « Um sonhador do azul e do infinito! « É hospede do ceu, hospede amado. « Um bom poeta é hoje quasi um mytho, « Se o talento que tem é já provado, « Conte co’ o meu exemplo e o meu conselho; « Boa lição é sempre a voz de um velho. » XXIX E trava-lhe da mão, e brandamente Leva-o junto d’Elvira. A moça estava Encostada á janella, e a esquiva mente Pela extensão dos ares lhe vagava. Voltou-se distrahida, e de repente Mal nos olhos de Heitor o olhar fitava, Sentio... Inutil fôra relatal-o; Julgue-o quem não puder experimental-o. XXX O’ santa e pura luz do olhar primeiro! Élo de amor que duas almas liga! Raio de sol que rompe o nevoeiro E casa a flôr á flôr! Palavra amiga Que, trocada um momento passageiro, Lembrar parece uma existencia antiga! Lingua, filha do ceu, doce eloquencia Dos melhores momentos da existencia! XXXI Entra a leitora n’uma sala cheia; Vai isenta, vai livre de cuidado: Na cabeça gentil nenhuma idéa, Nenhum amor no coração fechado. Livre como a andorinha que volteia E corre loucamente o ar azulado. Venhão dous olhos, dous, que a alma buscava… Era senhora? ficará escrava! XXXII C’um só olhar escravos elle e ella Já lhes pulsa mais forte o sangue e a vida; Rapida corre aquella noite, aquella Para as castas venturas escolhida; Assoma já nos labios da donzella Lampejo de alegria esvaecida. Foi milagre de amor, prodigio santo. Quem mais fizera?Quem fizera tanto? XXXIII Preparára-se ao moço um aposento. Oh! reverso da antiga desventura! Têl-o perto de si! viver do alento De um poeta, alma languida, alma pura! Dá-lhe, ó fonte do casto sentimento, Aguas santas, baptismo de ventura! Emquanto o velho, amigo de outra fonte, Vai mergulhar-se em pleno Xenophonte. XXXIV Devo agora contar, dia por dia, O romance dos dous? Inutil fôra; A historia é sempre a mesma; não varia A paixão de um rapaz e uma senhora. Vivem ambos do olhar que se extasia E conversa co’a alma sonhadora; Na mesma luz de amor os dous se inflammam; Ou, como diz Philinto: « Amados, amão. » XXXV Todavia a leitora curiosa Talvez queira saber de um incidente; A confissão dos dous; — scena espinhosa Quando a paixão domina a alma que sente. Em regra, confissão franca e verbosa Revela um coração independente; A paz interior tudo confia, Mas o amor, esse hesita e balbucia. XXXVI O amor faz monosyllabos; não gasta O tempo com analyses compridas; Nem é proprio de boca amante e casta Um chuveiro de phrases estendidas; Um volver d’olhos languido nos basta Por conhecer as chammas comprimidas; Coração que discorre e faz estylo, Tem as chaves por dentro e está tranquillo. XXXVII Deu-se o caso uma tarde em que chovia, Os dous estavão na varanda aberta. A chuva peneirava, e além cobria Cinzento veu o occaso; a tarde incerta Já nos braços a noite a recebia, Como amorosa mãe que a filha aperta Por enxugar-lhe os prantos magoados. Eram ambos immoveis e calados. XXXVIII Juntos, ao parapeito da varanda, Viam cair da chuva as gottas finas, Sentindo a viração fria , mais branda, Que balançava as frouxas casuarinas. Raras, ao longe, de uma e de outra banda, Pelas do ceu tristissimas campinas, Viam correr da tempestade as aves Negras, serenas, lugubres e graves. XXXIX De quando em quando vinha uma rajada Borrifar e agitar a Elvira as tranças, Como se fôra a briza perfumada Que á palmeira sacode as tenues franças. A fronte gentilissima e engraçada Sacudia co’a chuva as más lembranças; E ao passo que chorava a tarde escura Ria-se n’ella a aurora da ventura. XL « Que triste a tarde vai! que veu de morte « Cobrir parece a terra! (o moço exclama). « Reproducção fiel da minha sorte, « Sombra e choro. — Porque? pergunta a dama; « Diz que teve dos ceus uma alma forte... « — É forte o bronze e não resiste á chamma; « Leu versos meus em que zombei do fado? « Illusões de poeta mallogrado! » XLI « Somos todos assim. É nossa gloria « Contra o destino oppôr alma de ferro; « Desafiar o mal, eis nossa historia, « E o tremendo duello é sempre um erro. « Custa-nos caro uma fallaz victoria « Que nem consola as mágoas do desterro, « O desterro, — esta vida obscura e rude « Que a dôr enfeita e as victimas illude. XLII « Contra esse mal tremendo que devora « A seiva toda á nossa mocidade, « Que remedio haveriamos, senhora, « Senão versos de affronta e liberdade? « No emtanto, bastaria acaso um’hora, « Uma só, mas de amor, mas de piedade, « Para trocar por seculos de vida « Estes de dôr acerba e envilecida. » XLIII Al não disse, e, fitando olhos ardentes Na moça, que de enleio enrubecia, Com discursos mais fortes e eloquentes Na exposição do caso proseguia; A pouco e pouco as mãos intelligentes Traváram-se; e não sei se conviria Accrescentar que um osculo... Risquemos, Não é bom mencionar estes extremos. XLIV Duas sombrias nuvens afastando, Tenue raio de sol rompêra os ares, E, no amoroso grupo desmaiando, Testemunhou-lhe as nupcias singulares. A nesga azul do occaso contemplando, Sentíram ambos irem-lhe os pezares, Como nocturnas aves agoureiras Que á luz fogem medrosas e ligeiras. XLV Tinha mágoas o moço? A causa d’ellas? Nenhuma causa; fantasia apenas; O eterno devanear das almas bellas, Quando as dominam fervidas amenas; Uma ambição de conquistar estrellas, Como se colhem lucidas phalenas; Um desejo de entrar na eterna lida, Um querer mais do que nos cede a vida. XLVI Com amores sonhava, ideal formado De celestes e eternos esplendores, A ternura de um anjo destinado A encher-lhe a vida de perpetuas flôres. Tinha-o emfim, qual fôra antes creado Nos seus dias de mágoas e amargores; Madrugavam-lhe n’alma a luz e o riso; Estava á porta emfim do paraiso. XLVII N’essa noite, o poeta namorado Não conseguiu dormir. A alma fugíra Para ir velar o doce objecto amado, Por quem, nas ancias da paixão, suspira; E é provável que, achando o exemplo dado, Ao pé de Heitor viesse a alma de Elviva; De maneira que os dous, de si ausentes, Lá se achavão mais vivos e presentes. XLVIII Ao romper da manhã, co’o sol ardente, Briza fresca, entre as folhas sussurrando, O não-dormido vate acorda, e a mente Lhe foi dos vagos sonhos arrancando. Heitor contempla o valle resplendente, A flôr abrindo, o passaro cantando; E a terra que entre risos acordava, Ao sol do estio as roupas enxugava. XLIX Tudo então lhe sorria. A natureza, As musas, o futuro, o amor e a vida; Quanto sonhára aquella mente acesa Dera-lhe a sorte, emfim, compadecida. Um paraiso, uma gentil belleza, E a ternura castissima e vencida De um coração creado para amores, Que exhala affectos como aroma as flôres. L E ella? Se conheceste em tua vida, Leitora, o mal do amor, delirio santo, Dôr que eleva e conforta a alma abatida, Embriaguez do ceo, divino encanto, Se a tua face ardente e enrubecida Pallejou com suspiros e com prantos, Se ardeste emfim, naquella intensa chamma, Entenderás o amor de ingenua dama. LI Repara que eu não fallo desse enleio De uma noite de baile ou de palestra; Amor que mal agita a flôr do seio, E ao chá termina e acaba com a orchestra; Não me refiro ao simples galanteio Em que cada menina é velha mestra, Avesso ao sacrifício, á dor e ao choro; Fallo do amor, não fallo do namoro. LII Eden de amor, ó solidão fechada, Casto asylo a que o sol dos novos dias Vai mandar, como a furto, a luz coada Pelas frestas das verdes gelosias, Guarda-os ambos; conserva-os recatada. Almas feitas de amor e de harmonias, Tecei, tecei as vividas capellas, Deixai correr sem susto as horas bellas. LIII Cá fóra o mundo insipido e profano Não dá, nem póde dar o enleio puro Das almas novas, nem o doce engano Com que se esquecem males do futuro. Não busqueis penetrar n’este oceano Em que se agita o temporal escuro. Por fugir ao naufragio e ao soffrimento, Tendes uma enseada, — o casamento. LIV Resumamos, leitora, a narrativa. Tanta strophe a cantar ethereas chammas Pede compensação, musa insensiva, Que fatigais sem pena o ouvido ás damas. Demais, é regra certa e positiva Que muitas vezes as maiores famas Perde-as uma ambição de tagarella; Musa, aprende a lição; musa, cautela! LV Mezes depois da scena relatada Nas estrophes, a folhas, — o poeta Ouvio do velho Antero uma estudada Oração ciceronica e selecta; A conclusão da arenga preparada Era mais agradavel que discreta. Dizia o velho erguendo olhos serenos: « Pois que se adorão, casem-se, pequenos! » LVI Lagrima santa, lagrima de gosto Vertem olhos de Elvira; e um riso aberto Veio inundar-lhe de prazer o rosto Como uma flôr que abrisse no deserto. Se iam já longe as sombras do desgosto; Inda até li era o futuro incerto; Fez-lh’o certo o ancião; e a moça grata Beija a mão que o futuro lhe resgata. LVII Correm-se banhos, tirão-se dispensas, Vai-se buscar um padre ao povoado; Prepara-se o enxoval e outras pertenças Necessarias agora ao novo estado. Notam-se até algumas differenças No modo de viver do velho honrado, Que sacrifica á noiva e aos deuses lares Um estudo dos classicos jantares. LVIII « Onde vás tu? — Á serra! — Vou comtigo. « — Não, não venhas, meu anjo, é longa a estrada. « Se cansares? — Sou leve, meu amigo; « Descerei nos teus hombros carregada. « — Vou compôr encostado ao cedro antigo « Canto de nupcias. — Seguirei calada; « Junto de ti, ter-me-has mais em lembrança; « Musa serei sem perturbar. — Criança! » LIX Brandamente repelle Heitor a Elvira; A moça fica; o poeta lentamente Sobe a montanha. A noiva repetíra O primeiro pedido inutilmente. Olha-o de longe, e timida suspira. Vinha a tarde cahindo frouxamente, Não triste, mas risonha e fresca e bella, Como a vida da pallida donzella. LX Chegando, emfim, á c’rôa da collina, Víram olhos de Heitor o mar ao largo, E o sol, que despe a veste purpurina, Para dormir no eterno leito amargo. Surge das aguas pallida e divina, Essa que tem por deleitoso encargo Velar amantes, proteger amores, Lua, musa dos candidos palores. LXI Respira Heitor; é livre. O casamento? Foi sonho que passou, fugaz idéa Que não pôde durar mais que um momento. Outra ambição a alma lhe incendeia. Dissipada a illusão, o pensamento Novo quadro a seus olhos patenteia, Não lhe basta aos desejos de sua alma A enseada da vida estreita e calma. LXII Aspira ao largo; pulsam-lhe no peito Uns impetos de vida; outro horizonte, Tumidas vagas, temporal desfeito, Quer com elles lutar fronte por fronte. Deixa o tranquillo amor, casto e perfeito, Pelos brodios de Venus de Amathonte; A existencia entre flôres esquecida Pelos rumores de mais ampla vida. LXIII Nas mãos da noite desmaiára a tarde; Descem ao valle as sombras vergonhosas; Noite que o ceu, por mofa ou por alarde, Torna propicia ás almas venturosas. O derradeiro olhar frio e covarde E umas não sei que estrophes lamentosas Solta o poeta, emquanto a triste Elvira, Viuva antes de noiva, em vão suspira! LXIV Transpõe o mar Heitor, transpõe montanhas; Tu, curiosidade, o ingrato levas A ir ver o sol das regiões extranhas. A ir ver o amor das peregrinas Evas. Vai, em troco de palmas e façanhas, Viver na morte, bracejar nas trevas; Faz erdo amor, que é livro aos homens dado, Copioso almanach namorado. LXV Inscreve n’elle a moça de Sevilha, Longas festas e noites hespanholas, A indiscreta e diabolica mantilha Que a fronte cinge a amantes e a carolas. Quantos encontra corações perfilha, Faz da bolsa e do amor largas esmolas; Esquece o antigo amor e a antiga musa Entre os beijos da lepida Andaluza. LXVI Canta no seio turgido e macio Da fogosa, indolente Italiana, E dorme junto ao laranjal sombrio Ao som de uma canção napolitana. Dão-lhe para os serões do ardente estio, Asti, os vinhos; mulheres, a Toscana. Roma adora, embriaga-se em Veneza, E ama a arte nos braços da belleza. LXVII Vê Londres, vê Paris, terra das ceias, Feira do amor a toda a bolsa aberta; No mesmo laço, as bellas como as feias, Por capricho ou razão, iguaes aperta; A idade não pergunta ás taças cheias, Só pede o vinho que o prazer desperta; Adora as outoniças, como as novas, Torna-se heróe de rua e heróe de alcovas. LXVIII Versos quando os compõe, celebram antes O alegre vicio que a virtude austera; Canta os beijos e as noites delirantes, O esteril gozo que a volupia gera; Troca a illusão que o seduzia d’antes Por maior e tristissima chimera; Ave do ceu, entre os osculos creada, Espalha as plumas brancas pela estrada. LXIX Um dia, emfim, cansado e aborrecido, Accorda Heitor; e olhando em roda e ao largo, Vê um deserto, e do prazer perdido Resta-lhe unicamente o gosto amargo; Não achou o ideal appetecido No longo e profundissimo lethargo; A vida exhausta em festas e esplendores, Se alguma tinha, eram já murchas flôres. LXX Ora, uma noite, costeando o Rheno, Ao luar melancolico, — buscava Aquelle gozo simples, doce, ameno, Que á vida toda outr’ora lhe bastava; Voz remota, cortando o ar sereno, Em derredor os échos acordava; Voz aldeã que o largo espaço enchia, E uma canção de Schiller repetia. LXXI « A gloria! diz Heitor, a gloria é vida! Porque busquei nos gozos de outra sorte Esta felicidade appetecida, Esta resurreição que annulla a morte? Ó illusão fantastica e perdida! Ó mal gasto, ardentissimo transporte! Musa, restaura as apagadas tintas! Revivei, revivei, chammas extinctas! » LXXII A gloria? Tarde vens, pobre exilado! A gloria pede as illusões viçosas, Estro em flôr, coração electrisado, Mãos que possam colher ethereas rosas; Mas tu, filho do ocio e do peccado, Tu que perdeste as forças portentosas Na agitação que os animos abate, Queres colher a palma do combate? LXXIII Chamas em vão as musas; deslembradas, Á tua voz os seus ouvidos cerram; E nas paginas virgens, preparadas, Pobre poeta, em vão teus olhos erram; Nega-se a inspiração; nas despregadas Cordas da velha lyra, os sons que encerram Inertes dormem; teus cansados dedos Correm debalde; esquecem-lhe os segredos. LXXIV Ah! se a taça do amor e dos prazeres Já não guarda licor que te embriague; Se nem musas nem languidas mulheres Têm coração que o teu desejo apague; Busca a sciencia, estuda a lei dos sêres, Que a mão divina a tua dor esmague; Entra em ti, vê o que és, observa em roda, Escuta e palpa a natureza toda. LXXV Livros compra, um philosopho procura; Revolve a creação, prescruta a vida; Vê se espancas a longa noite escura Em que a esteril razão andou mettida; Talvez aches a palma da ventura No campo das sciencias escondida. Que a tua mente as illusões esqueça: Se o coração morreu, vive a cabeça! LXXVI Ora, por não brigar co’os meus leitores, Dos quaes, conforme a curta ou longa vista, Uns pertencem aos grupos novadores, Da fria communhão materialista; Outros, seguindo exemplos dos melhores, Defendem a theoria idealista; Outros, emfim, fugindo armas extremas, Vão curando por ambos os systemas. LXXVII Direi que o nosso Heitor, após o estudo Da natureza e suas harmonias, (Oppondo a consciencia um forte escudo Contra divagações e fantasias); Depois de ter aprofundado tudo, Planta, homem, estrellas, noites, dias, Achou esta lição inesperada: Veio a saber que não sabia nada. LXXVIII « Nada! exclama um philosopho amarello Pelas longas vigílias, afastando Um livro que ha de dar um dia ao prelo E em cujas folhas ia trabalhando. Pois eu, doutor de borla e de capello, Eu que passo os meus dias estudando, Hei de ler o que escreve penna ousada, Que a sciencia da vida acaba em nada? » LXXIX Aqui convinha intercalar com geito, Sem pretenção, nem pompa nem barulho, Uma arrancada apostrophe do peito Contra as vãs pretenções do nosso orgulho; Conviria mostrar em todo o effeito Essa que és dos espiritos entulho, Sciencia vã, de magnas leis tão rica, Que ignora tudo, e tudo ao mundo explica. LXXX Mas, urgindo acabar este romance, Deixo em paz o philosopho, e procuro Dizer do vate o doloroso trance Quando se achou mais pecco e mais escuro. Valêra bem n’aquelle triste lance Um sorriso do céo placido e puro, Raio do sol eterno da verdade, Que a vida aquece e alenta a humanidade. LXXXI Que! nem ao menos na sciencia havia Fonte que a eterna sêde lhe matasse? Nem no amor, nem no seio da poesia Podia nunca repousar a face? Atrás d’esse fantasma correria Sem que jámais as fórmas lhe palpasse? Seria acaso a sua ingrata sorte A ventura encontrar nas mãos da morte? LXXXII A morte! Heitor pensara alguns momentos N’essa sombria porta aberta á vida; Pallido archanjo dos finaes alentos De alma que o ceu deixou desilludida; Mão que, fechando os olhos somnolentos, Põe o termo fatal á humana lida; Templo de gloria ou região do medo, Morte, quem te arrancára o teu segredo? LXXXIII Vasio, inutil, ermo de esperanças Heitor buscava a noiva ignota e fria, Que o envolvesse então nas longas tranças E o conduzisse á camara sombria, Quando, em meio de pallidas lembranças, Surgiu-lhe a idéa de um remoto dia, Em que cingindo a candida capella Estava a pertencer-lhe uma donzella. LXXXIV Elvira! o casto amor! a esposa amante! Rosa de uma estação, deixada ao vento! Riso dos ceus! estrella rutilante Esquecida no azul do firmamento! Ideal, meteoro de um instante! Gloria da vida, luz do pensamento! A gentil, a formosa realidade! Unica dita e unica verdade! LXXXV Ah! porque não ficou calmo e tranquillo Da ingenua moça nos divinos braços? Porque fugira ao casto e alegre asylo? Porque rompêra os mal formados laços? Quem pudera jamais restituil-o Aos estreitos, fortissimos abraços Com que Elvira apertava enternecida Esse que lhe era o amor, a alma e a vida? LXXXVI Será tempo? Quem sabe? Heitor hesita; Tardio pejo lhe enrubece a face; Punge o remorso; o coração palpita, Como se vida nova o reanimasse; Tenue fogo, entre a cinza, arde e se agita... Ah! se o passado alli resuscitasse Reviviriam illusões viçosas, E a gasta vida rebentára em rosas! LXXXVII Resolve Heitor voltar ao valle amigo, Onde ficára a noiva abandonada. Transpõe o mar, affronta-lhe o perigo, E chega emfim á terra desejada. Sobe o monte, contempla o cedro antigo, Sente abrir-se-lhe n’alma a flor murchada Das illusões que um dia concebêra; Rosa extincta da sua primavera! LXXXVIII Era a hora em que os serros do oriente Formar parecem luminosas urnas; E abre o sol a pupilla resplendente Que ás folhas sorve as lagrimas nocturnas; Frouxa briza amorosa e diligente Vai acordando as sombras taciturnas; Surge nos braços d’essa aurora estiva A alegre natureza rediviva. LXXXIX Campa era o mar; o valle estreito berço; De um lado a morte, do outro lado a vida, Canto do ceu, resumo do universo Ninho para aquecer a ave abatida. Inda nas sombras todo o valle immerso, Não acordára á costumada lida; Repousava no placido abandono Da paz tranquilla e do tranquillo somno. XC Alto já ia o sol, quando descêra Heitor a opposta face da montanha; Nada do que deixou desparecêra; O mesmo rio as mesmas hervas banha. A casa, como então, garrida e austera, Do sol nascente a viva luz apanha; Iguaes flôres, nas plantas renascidas... Tudo alli falla de perpetuas vidas! XCI Desce o poeta cauteloso e lento. Olha de longe; um vulto ao sol erguia A veneranda fronte, monumento De grave e celestial melancolia. Como sulco de um fundo pensamento Larga ruga na testa abrir se via, Era a ruina talvez de uma esperança... Nos braços tinha uma gentil criança. XCII Ria a criança; o velho contemplava Aquella flôr que ás auras matutinas O perfumoso calix desbrochava E entrava a abrir as petalas divinas. Triste sorriso o rosto lhe animava, Como um raio de lua entre ruinas. Alegria infantil, tristeza austera, O inverno torvo, a alegre primavera! XCIII Desce o poeta, desce, e preso, e fito Nos bellos olhos do gentil infante, Treme, comprime o peito... e após um grito Corre alegre, exaltado e delirante, Ah! se jámais as vozes do infinito Podem sahir de um coração amante, Teve-as aquelle... Lagrimas sentidas Lhe inundárão as faces resequidas! XCIV « Meu filho! » exclama, e subito parando Ante o grupo ajoelha o libertino; Geme, soluça, em lagrimas beijando As mãos do velho e as tranças do menino. Ergue-se Antero, e frio e venerando, Olhos no ceu, exclama: « Que destino! Murchar-lhe, viva, a rosa da ventura; Morta, insultar-lhe a paz da sepultura! » XCV « Morta! — Sim! — Ah! senhor! se arrependido Posso alcançar perdão, se com meus prantos, Posso apiedar-lhe o coração ferido Por tanta mágoa e longos desencantos; Se este infante, entre lagrimas nascido, Póde influir-me os seus affectos santos... É meu filho, não é? perdão lhe imploro! Veja, senhor! eu soffro, eu creio, eu choro! » XCVI Olha-o com frio orgulho o velho honrado; Depois, fugindo aquella scena extranha, Entra em casa. O poeta, acabrunhado, Sobe outra vez a encosta da montanha; Ao cimo chega, e desce o opposto lado Que a vaga azul entre soluços banha. Como fria ironia a tantas mágoas, Batia o sol de chapa sobre as aguas. XCVII Pouco tempo depois ouviu-se um grito, Som de um corpo nas aguas resvalado; Á flôr das vagas veio um corpo afflicto... Depois... o sol tranquillo e o mar calado. Depois... Aqui termina o manuscripto, Que ora em lettra de fôrma é publicado. Nestas estrophes pallidas e mausas, Para te divertir de outras lembranças. AMERICANAS (1875) POTYRA Os Tamoyos, entre outras presas que fizeram, levaram esta india, a qual pretendeu o capitão da empreza violar: resistiu valorosamente dizendo em lingua brasilica: « Eu sou christã e casada; não heide fazer traição a Deus e a meu marido; bem pódes matar-me e fazer de mim o que quizeres. » Deu-se por affrontado o barbaro, e em vingança lhe acabou a vida com grande crueldade. VASC. Chr. da Companhia de Jesus, liv. 3º. I Moça christã das solidões antigas, Em que aurea folha reviveu teu nome? Nem o eco das mattas seculares, Nem a voz das sonoras cachoeiras, O transmittiu aos seculos futuros. Assim da tarde estiva ás auras frouxas Tenue fumo do colmo no ar se perde; Nem de outra sorte em moribundos labios A humana voz expira. O horror e o sangue Da miseranda scena em que, de envolta Co’os longos, magoadissimos suspiros, Christã Lucrecia, abriu tua alma o voo Para subir ás regiões celestes, Mal deixada memoria aos homens lembra. Isso apenas; não mais; teu nome obscuro, Nem tua campa o brazileiro os sabe. II Ja da férvida luta os ais e os gritos Extinctos eram. Nos baixeis ligeiros Os tamoyos incolumes embarcam; Ferem co’os remos as serenas ondas Até surgirem na remota aldêa. Atrás ficava, luctuosa e triste, A nascente cidade brazileira, Do inopinado assalto espavorida, Ao ceu mandando em côro inuteis vozes. Vinha já perto rareando a noite, Alva aurora, que á vida accorda as selvas, Quando a aldêa surgiu aos olhos torvos Da expedição nocturna. Á praia saltam Os vencedores em tropel; transportam Ás cabanas despojos e vencidos, E, da vigília fatigados, buscam Na curva, leve rede amigo somno, Excepto o chefe. Oh! esse não dormira Longas noites, se a troco da victoria Precisas fossem. Traz comsigo o premio, O desejado premio. Desmaiada Conduz nos braços tremulos a moça Que renegou Tupan, e as velhas[1] crenças Lavou nas aguas do baptismo santo. Na rede ornada de amarellas pennas Brandamente a depõe. Leve tecido Da captiva gentil as fórmas cobre; Veste-as de mais a sombra do crepusculo, Sombra que a tibia luz da alva nascente De todo não rompeu. Inquieto sangue Nas veias ferve do indio. Os olhos luzem De concentrada raiva triumphante. Amor talvez lhes lança um leve toque De ternura, ou já soffrego desejo; Amor, como elle, asperrimo e selvagem, Que outro não sente o heroe. III Heroe lhe chamam Quantos o hão visto no fervor da guerra Medo e morte espalhar entre os contrarios E avantajar-se nos certeiros golpes Aos mais fortes da tribu. O arco e a flecha Desde a infancia os meneia ousado e affouto; Cedo aprendeu nas solitarias brenhas A pleitear ás feras o caminho. A fôrça oppõe á fôrça, a astucia á astucia, Qual se da onça e da serpente houvera Colhido as armas. Traz ao collo os dentes Dos contrarios vencidos. Nem dos annos O numero supera o das victorias; Tem no espaçoso rosto a flor da vida, A juventude, e goza entre os mais bellos De real primazia. A cinta e a fronte Azues, vermelhas plumas alardeam, Ingenuas galas do gentio inculto. IV Da captiva gentil cerrados olhos Não se entreabrem á luz. Morta parece. Uma só contracção lhe não perturba A paz serena do mimoso rosto. Junto della, cruzados sobre o peito Os braços, Anagê contempla e espera; Soffrego espera, em quanto ideias negras Estão a revoar-lhe em torno e a encher-lhe A mente de projectos tenebrosos. Tal no cimo do velho Corcovado Proxima tempestade engloba as nuvens. Subito ao seio turgido e macio Anciosas mãos estende; inda palpita O coração, com desusada força, Como se a vida toda alli buscasse Refugio certo e ultimo. Impetuoso O vestido christão lhe despedaça, E á luz já viva da manhã recente Contempla as nuas fórmas. Era acaso A syncope chegada ao termo proprio, Ou, no pejo offendida, ás mãos extranhas A desmaiada moça despertára. Potyra accorda, os olhos lança em torno, Fita, vê, comprehende, e inquieta busca Fugir do vencedor ás mãos e ao crime... Misera! oppõe-se-lhe o irritado gesto Do asperrimo guerreiro; um ai lhe sobe Angustioso e triste aos labios tremulos, Sobe, murmura e suffocado expira. Na rede envolve o corpo, e, desviando Do terrivel tamoyo os lindos olhos, Entrecortada prece aos ceus envia, E as faces banha de serenas lagrymas. V Longo tempo correra. Amplo silencio Reinou entre ambos. Do tamoyo a fronte Pouco a pouco despira o torvo aspecto. Ao trabalhado espirito, revolto De mil sinistros pensamentos, volve Benigna calma. Tal de um rio engrossa O volume extensissimo das aguas Que vão enchendo de pavor os ecos, Vencendo no arruido o vento e o raio, E pouco a pouco attenuando as vozes, Adelgaçando as ondas, tornam mansas Ao primitivo leito. Ei-lo se inclina, Para tomar nos braços a formosa Por cujo amor incendiara a aldêa Daquellas gentes pallidas de Europa. Sente-lhe a moça as mãos, e erguendo o rosto, O rosto inda de lagrimas molhado, Do coração estas palavras solta: « — Lá entre os meus, suave e amiga morte, Ah ! porque me não deste? Houvera ao menos Quem escutasse de meus labios frios A prece derradeira; e a santa benção Levaria minha alma aos pés do Eterno... Não, não te peço a vida; é tua, extingue-a; Um só allivio imploro. Não receies Embeber no meu sangue a ervada setta; Mata-me, sim; mas leva-me onde eu possa Ter em sagrado leito o ultimo somno! » Disse, e fitando no indio avidos olhos, Esperou. Anagê sacode a fronte, Como se lhe pesara ideia triste; Crava os olhos no chão; lentas lhe saem Estas vozes do peito. « Oh! nunca os padres Pisado houvessem estas plagas virgens! Nunca de um deus extranho as leis ignotas Viessem perturbar as tribus, como Perturba o vento as aguas! Rosto a rosto Os guerreiros pelejam: matam, morrem. Ante o fulgor das armas inimigas Não descora o tamoyo. Assaz lhe pulsa Valor nativo e raro em peito livre. Armas, deu-lh’as Tupan novas e eternas Nestas mattas vastissimas. De sangue Extranhos rios hão de, ao mar correndo, Tristes novas levar á pátria delles, Primeiro que o tamoyo a frente incline Aos inimigos peitos. Outra força, Outra e maior nos move a guerra crua; São elles, são os padres. Esses mostram Cheia de riso a boca e o mel nas vozes. Sereno o rosto e as brancas mãos inermes; Ordens não trazem de cacique alheio, Tudo nos levam, tudo. Uma por uma As filhas de Tupan correm trás elles, Com ellas os guerreiros, e com todos A nossa antiga fé. Vem perto o dia Em que, na immensidão destes desertos, Ha de ao frio luar das longas noites O pagé suspirar sozinho e triste Sem povo nem Tupan! » VI Silenciosas Lagrimas lhe espremeu dos olhos negros Esta lembrança de futuros males. « — Escuta! » diz Potyra. O indio estende Imperioso as mãos e assim prosegue: « — Tambem com elles foste, e foi comtigo Da minha vida a flor! Teu pai mandara, E com elle mandou Tupan que eu fosse Teu esposo; vedou-m’o a voz dos padres, Que me perdeu, levando-te comsigo. Não morri; vivi só para esta affronta; Vivi para esta insolita tristeza De maldizer teu nome e as graças tuas, Chorar-te a vida e desejar-te a morte. Ai! nos rudes combates em que a tribu Rega de sangue o chão da virgem terra Ou tinge a flor do mar, nunca a meu lado Teu nobre vulto esteve. A aldêa toda, Mais que o teu coração, ficou deserta. Duas vezes, mimosas rebentaram Do lacrymoso cajueiro as flores, Desde o dia funesto em que deixaste A cabana paterna. O extremo lume Expirou de teu pai nos olhos tristes; Piedosa chamma consumiu seus restos E a aldêa toda o lastimou com prantos. Não de todo se foi da nossa vida; Parte ficou para sentir teus males. Antes que o ultimo sol á melindrosa Flor do maracujá cerrasse as folhas Um sonho tive. Merencorio vulto, Triste como uma fronte de vencido, Cor da lua os cabellos venerandos, O vulto de teu pae: « Guerreiro (disse), « Corre á vizinha habitação dos brancos, « Vai, arranca Potyra á lei funesta « Dos pallidos pagés; Tupan t’o ordena; « Nos braços traze a fugitiva corça; « Vincula o teu destino ao delia; é tua. — « Impossivel! Que vale um vago sonho? Sou esposa e christã. Impio, respeita O amor que Deus protege e sanctifica: Mata-me; a minha vida te pertence: Ou, se te peza derramar o sangue Daquella a quem amaste, e por quem foste Lançar entre os christãos a dor e o susto, Faze-me escrava; servirei contente Emquanto a vida allumiar meus olhos. Toma, entrego-te o sangue e a liberdade; Ordena ou fere. Tua esposa, nunca! » Calou-se, e reclinada sobre a rede, Potyra murmurava ignota prece, Olhos fitos no proximo arvoredo, Olhos não ermos de profunda magua VII Ó Christo, em que alma penetrou teu nome Que lhe não désse o balsamo da vida? Pelo vento dos seculos levado, Vidente e cego, o maximo dos seres, Que fora do homem nesta escassa terra, Se ao mysterio da vida lhe não désses, Ó Christo, a eterna chave da esperança? Philosophia stoica, ardua virtude, Creação de homem, tudo passa e expira. Tu só, filha de Deus, palavra amiga, Tu, suavissima voz da eternidade, Tu perduras, tu vales, tu confortas. Neste sonho iriado de outros sonhos, Varios como as feições da natureza, Nesta confusa agitação da vida, Que alma transpõe a derradeira edade Farta de algumas passageiras glorias? Torvo é o ar do sepulchro; alli não viçam Essas cansadas rosas da existencia Que ás vezes tantas lagrymas nos custam, E tantas mais antes do occaso expiram. Flor do Evangelho, nuncia de alvos dias, Esperança christã, não te ha murchado O vento arido e secco; és tu viçosa Quando as da terra languidas inclinam O seio, e a vida lentamente exhalam. Esta a consolação ultima e doce Da esposa indiana foi. Captiva ou morta, Antevia a celeste recompensa Que aos humildes reserva a mão do Eterno. Naquelle rude coração das brenhas A semente evangelica brotara. VIII Das duas condições deu-lhe o guerreiro A peor, — fel-a escrava; eil-a apparece Da sua aldea aos olhos espantados Qual fôra em dias de melhor ventura. Despida vem das roupas que lhe ha posto Sobre as polidas fórmas uso extranho, Não sabido jamais daquelles povos Que a natureza ingenua doutrinara. Vence na gentileza ás mais da tribu, E tem de sobra um sentimento novo, Pudor de esposa e de christã, — realce Que ao indio accende a natural volupia. Simulada alegria lhe descerra Os labios; riso á flor, escasso e dubio, Que mal lhe encobre as vergonhosas maguas. Á voz do seu senhor accorre humilde; Não a assusta o labor; nem dos perigos Conhece os medos. Nas ruidosas festas, Quando ferve o cauim, e o ar atrôa Pocema de alegria ou de combate, Como que se lhe fecha a flor do rosto. Ja lhe descae então no seio oppresso A graciosa fronte; os olhos fecha, E ao ceu voltando o pensamento puro, Menos por si, que pelos outros pede. Nem só o ardor da fé lhe abraza o peito; Lacera-lh’o tambem agra saudade; Chora a separação do amado esposo, Que, ou cedo a esquece, ou solitario geme. Se, alguma vez, fugindo a extranhos olhos, Não já crueis, mas cubiçosos della, Entra desatinada o bosque antigo, E a dor expande em lobregos soluços, Co’o doce nome accorda ao longe os écos, Farta de amor e prodiga de vida, Ouve-as a selva, e não lhe entende as maguas. Outras vezes pisando a ruiva areia Das praias, ou galgando a penedia Cujos pés orla o mar de nivea espuma, As ondas murmurantes interroga: Conta ao vento da noite as dores suas; Mas… fieis ao destino e á lei que as rege, As preguiçosas ondas vão caminho, Crespas do vento que sussurra e passa. IX Quando, ao sol da manhã, partem ás vezes, Com seus arcos, os destros caçadores, E alguns da rija estaca desatando Os nós de embira ás rapidas igaras, A pesca vão pelas ribeiras proximas, Das esposas, das mães que os lares velam, Grata alegria os corações innunda, Menos o della, que suspira e geme, E não aguarda doce esposo ou filho. Triste os vê na partida e no regresso, E nessa melancholica postura, Simelha a acacia langue e esmorecida, Que já de orvalho ou sol não pede os beijos. As outras... — Raro em labios de felizes Alheias maguas travam. Não se pejam De seus olhos azues e alegres pennas Os sahis sobre as arvores pousados, Se ao perto voa na campina verde De anuns luctuoso bando; nem os trillos Das andorinhas interrompe a nota Que a jurity suspira. — As outras folgam Pelo arraial dispersas; vão-se á terra Arrancar as raizes nutritivas, E fazem os preparos do banquete A que hão de vir mais tarde os destemidos Senhores do arco, alegres vencedores De quanto vive na agua e na floresta. Da captiva nenhuma inquire as maguas. Que a jurity suspira. — As outras folgam Pelo arraial dispersas ; vão-se á terra Arrancar as raizes nutritivas, E fazem os preparos do banquete A que hão de vir mais tarde os destemidos Senhores do arco, alegres vencedores De quanto vive na agua e na floresta. Da captiva nenhuma inquire as maguas. Comtudo, algumas vezes, curiosas Virgens lhe dizem, apiedando o gesto: — « Pois que á taba voltaste, em que teus olhos Primeiro viram luz, que magua funda Lhes distilla tão longo e amargo pranto, Amargo mais do que esse que não busca Recatado silencio? » — E ás doces vozes A christã desterrada assim responde: — « Potyra é como aquella flor que chora Lagrymas de alvo leite, se do galho Mão cruel a cortou. Oh! não permitta O ceu que ímpia fortuna vos separe Daquelle que escolherdes. Dor é essa Maior que um pobre coração de esposa. Esperanças... Deixei-as nessas aguas Que me trouxeram, complices do crime, Á taba de Tupan, não allumiada Da palavra celeste. Algumas vezes, Raras, alveja em minha noite escura Não sei que tibia aurora, e penso: Acaso O sol que vem me guarda um raio amigo, Que hade accender nestes cansados olhos Ventura que já foi. As azas colhe Guanumby, e o aguçado bico embebe No tronco, onde repousa adormecido Até que volte uma estação de flores. Ventura imita o guanumby dos campos: Accordará co’as flores de outros dias. Doce illusão que rápido se escoa, Como o pingo de orvalho mal fechado N’uma folha que o vento agita e entorna. » E as virgens dizem, apiedando o gesto: — « Potyra é como aquella flor que chora « Lagrimas de alvo leite, se do galho « Mão cruel a cortou! » X Era chegado O fatal prazo, o desenlace triste. Tudo morre, — a tristeza como o gozo; Rosas de amor ou lyrios de saudade, Tarde ou cedo os esfolha a mão do tempo. Costeando as longas praias, ou transpondo Extensos valles e montanhas, correm Mensageiros que ás tabas mais vizinhas Vão convidar á festa as gentes todas. Era a festa da morte. Indio guerreiro. Trez luas ha captivo, o instante aguarda Em que ás mãos de inimigos vencedores, Cáia expirante, e os vinculos rompendo Da vida, a alma remonte além dos Andes. Corre de boca em boca e de eco em eco A alegre nova. Vem descendo os montes, Ou abicando ás povoadas prias Gente da raça illustre. A onda immensa Pelo arraial se estende pressurosa. De quantas côres natureza fertil Tinge as proprias feições, copiam elles Engraçadas, vistosas louçanias. Varios na edade são, varios no aspeito, Todos eguaes e irmãos no herdado brio. Dado o amplexo de amigo, acompanhado De suspiros e pesames sinceros Pela fadigas da viagem longa, Rompem ruidosas dansas. Ao tamoyo Deu o Ibake os segredos da poesia; Cantos festivos, moduladas vozes, Enchem os ares, celebrando a festa Do sacrificio proximo. Ah! não cubra Veu de nojo ou tristeza o rosto aos filhos Destes polidos tempos! Rudes eram Aquelles homens de asperos costumes, Que ante o sangue de irmãos folgavam livres, E nós, soberbos filhos de outra edade, Que a voz fallamos da razão severa E na luz nos banhamos do Calvario, Que somos nós mais que elles? Raça, triste De Cains, raça eterna… XI Os cantos cessam. Calou-se o maracá. As roucas vozes Dos férvidos guerreiros já reclamam O brutal sacrificio. Ás mãos das servas A taça do cauim passara exhausta. Inquieto aguarda o prisioneiro a morte. Da nação guayanaz nos rudes campos Nasceu. Nos campos da saudosa patria Industriosa mão não sabe ainda Alevantar as tabas. Cova funda Da terra, mãe commum, no seio aberta, Os acolhe e protege. O chão lhes forra A pelle do tapir; continua chamma Lhes suppre a luz do sol. É uso antigo Do guayanaz que chega a extrema edade, Ou de mortal doença accomettido, Não expirar aos olhos de outros homens; Vivo o guardam no bojo da igaçaba, E á fria terra o dão, como se fôra Pasto melhor (melhor!) aos frios vermes. Do almo, doce licor que extrahe das flores Mãe do mel, iramaya, larga cópia Pelos robustos membros lhe coaram Seis anciãs da tribu. Rubras pennas Na vasta fronte e nos nervosos braços Garridamente o enfeitam. Longa e forte A mussuranna os rins lhe cinge o aperta. Entra na praça o funebre cortejo. Olhar tranquillo, inda que fero, espalha O indomado captivo. Em pé, defronte, Grave, silencioso, ao sol mostrando De feias cores e vistosas plumas Singular harmonia, aguarda a victima O executor. Nas mãos lhe pende a enorme Tagapema enfeitada, arma certeira, Arma triumphal de morte e de exterminio. Medem-se rosto a rosto os dous contrarios C’um sorriso feroz. Confusas vozes Enchem subito o espaço. Não lhe é dado Ao vencido guerreiro haver a morte Silenciosa e triste em que se passa Da curva rede á fria sepultura. Meigas aves que vão de um clima a outro Abrem placidamente as azas leves, Não tu, guerreiro, que encaraste a morte, Tu combate! Vencido e vencedores Derradeiros escarneos se arremessam; Gritos, injurias, convulsões de raiva, Vivo clamor accorda os longos ecos Das penedias proximas. A clava Do executor girou no ar tres vezes E de leve caiu na grossa espadua Do arquejante captivo. Já na boca, Que o desprezo e o furor num riso entreabrem. Orla de espuma alveja. Avança, corre, Estaca... Não lhe dá mais amplo espaço A mussurana, cujas pontas tiram Dous mancebos robustos. Nas cavernas Do longo peito lhe murmura o odio, Surdo, como o rumor da terra inquieta, Pejada de vulcões. Os labios morde, E, como derradeira injuria, á face Do executor lhe cospe espuma e sangue. Não vibra o arco mais veloz o tiro, Nem mais segura no aterrado cervo Feroz succuriuba os nós enrosca, Do que a pesada, enorme tagapema A cabeça de um golpe lhe esmigalha. Cae fulminada a victima na terra, E alegre o povo longamente applaude. XII Na voz universal perdeu-se um grito De piedade o terror: tão fundo entrára Naquella alma roubada á noite escura Raio de sol christão! Potyra foge, Pelos bosques atonita se entranha E pára á margem do um pequeno rio; Pousa na relva os tremulos joelhos E nas mimosas mãos esconde o rosto. Não de lagrimas era aquelle sítio Ou só de doces lagrimas choradas De olhos que amor venceu: — macia relva, Leito de sesta a amores fugitivos. Da verde, rara abobada de folhas Tepida e doce a luz coava a frouxo De sol, que além das arvores tranquillo, Metade da jornada ia transpondo. Longe era ainda a hora melancholica Em que a geremma cerra a miuda folha, E o lume azul o pyrilampo accende. De pé, a um velho tronco descoroado Da copada ramagem, resto apenas, Vestigio do tufão, a indiana moça Languidamente encosta o esbelto corpo. Neste ameno recesso tudo é triste, Porque é alegre tudo. Não mui longe Um desfolhado ipê conserva e guarda Flores que lhe ficaram de outro estio, Como esperança de folhagem nova, Flores que a desventura lhe ha negado, A ella, alma esquecida nesta terra, Que nada espera da estação vindoura. Olha, e de inveja o coração lhe estalla; Pelo tronco das arvores se enroscam Parasitas, esposas do arvoredo, Mais fieis não, mais venturosas que ella. Morrer? Descanço fôra ás maguas suas, Mais que descanço, perduravel gozo, Que a nossa eterna patria aos infelizes Deste desterro, guarda alvas capellas De não-murchandas e cheirosas flores. Tal lhe fallava no intimo do peito Desespero cruel. Alguns instantes Pela cansada mente lhe vagaram De voluntaria, abreviada morte Luctuosas ideias. Mal comprehende Esses desmaios da creatura humana Quem não sentiu no coração rasgado Abatimento o enôjo; ou, mais do que isto, Esse contraste immenso e irreparavel Do amor interno e a solidão da vida. Rapido espaço foi. Prompto lhe volve Doce resignação, christã virtude, Que desafia o que assoberba os males. As debeis mãos levanta. Já dos labios Solta nas azas de oração singella Lastimas suas... Na folhagem secca Ouve de cautos pés rumor sumido Volve o cabeça… XIII Tremulo, calado, Anagê crava n’ella os olhos turvos Dos vapores da festa. As mãos inermes Lhe pendem; mas o peito — ó mísera! — esse, Esse de mal contido amor transborda. Longo instante passou. Alfim: « Deixaste A festa nossa (o barbaro murmura); Mysteriosa vieste. Dos guerreiros Nenhum te viu; mas eu senti teus passos, E vim comtigo ao ermo. Ave mesquinha, Inutil foges; gavião te espreita, Minha te fez Tupan. » Em pé, sorrindo Escutava Potyra a voz severa De Anagê. Breve espaço abria entre ambos Alcatifado chão. A fatal hora Chegara alfim? Não o preseruta a moça; Tudo acceita das mãos do seu destino, Tudo, excepto... No proximo arvoredo Ouve de uma ave o pia melancholico; Era a voz de seu pae? a voz do esposo? De ambos talvez. No animo da escrava Restos havia d’essa crença antiga, Antiga e sempre nova: o peito humano Raro de obscuros elos se liberta. XIV — « Nasceste para ser senhora e dona: Anagê não te veda a liberdade; Quebra tu mesma os nós do captiveiro. Faze-te esposa. Vem coroar meus dias; Vem, tudo esqueço. A fronte do guerreiro, Adornada por ti, será mais nobre; Mais forte o braço em que pousar teu rosto. Sou menos bello que esse esposo ausente? Rudes feições compensa amor sobejo. Vem; ser-me-has companheira nos combates, E, se inimiga frecha entrar meu seio, Morrerei a teus pés. Tens medo aos padres? Outro destino escolhe. Cauteloso, Tece o japú nos elevados ramos Das elevadas arvores o ninho, Onde o inimigo lhe não roube a prole. Ninho ha na serra ao nosso amor propicio; Viveremos alli. Troveje em baixo A inubia convidando a guerra os povos: Leva de arcos transforme estas aldêas Em campos de combate, — ou já dispersas As fugitivas tribus vão buscando Longes sertões para chorar seus males Viveremos alli. Talvez um dia Quando eu passar á mysteriosa estancia Das delicias eternas, me pergunte Meu velho pai: — « Teu arco de guerreiro Em que deserta praia o abandonaste? Salvar-me-ha teu amor do eterno pejo. » XV Doce era a voz o triste. Rasos d’agua Os olhos. Foi desmaio de tristeza Que o gesto dissipou da esquiva moça. Volve ao Tamoyo vingativa ideia. — « Minha (diz elle) ou morres! » Estremece Potyra, como quando a brisa passa Ao de leve na folha da palmeira, E logo fria ao barbaro responde: — « Jaz esquecida em nossas velhas tabas O respeito da esposa? Acaso é digna Do sangue do Tamoyo esta ameaça? Que desvalia aos olhos teus me coube, Se a outro me ligaram natureza, Religião, destino? A liberdade Nas tuas mãos depuz; com ella a vida. É tudo, quasi tudo. Honra de esposa, Oh! essa deves respeital-a! Vai-te! Ceva teu odio nas sangrentas carnes Do prostrado captivo. Aqui chorando, Na soidão[2] d’estes bosques mal fechados, As maviosas brisas meus suspiros Entregarei; leval-os-hão nas azas La onde geme solitario esposo. Vai-te! » E as mimosas mãos colhendo ao rosto Alçou a Deus o pensamento amante, Como a scentelha viva que a fogueira Extincta aos ares sobe. Immovel, muda, Longo tempo ficou. Diante d’ella, Como ella immovel, o tamoyo estava. Amor, odio, ciume, orgulho, pena, Oppostos sentimentos se combatem No attribulado peito. Generoso Era, mas não domado amor lhe dava Inspiração de crimes. Não mais prompto Cae sobre a triste corça fugitiva Jaguar de longa fome esporeado, Do que elle as mãos lançou ao collo e á fronte Da misera Potyra. Ai! não, não diga A minha voz o lamentoso instante Em que ella, ao seu algoz volvendo anciosa Turvos olhos: « Perdoo-te! » murmura, Os labios cerra e immaculada expira! XVI Estro maior teu nome obscuro cante, Moça christã das solidões antigas, E eterno o cinja de virentes flores, Que as mereces. De não sabido bardo Estes gemidos são. Languidas brisas No taquaral á noite sussurrando, Ou enrugando o molle dorso ás vagas, Não tem a voz com que domina os echos Despenhada cachoeira. São, comtudo, Mas que debeis e tristes, no concerto Da orchestra universal cabidas notas. Alveja a nebulosa entre as estrellas, E abre ao pé do rosal a flor da murta. NIANI (HISTORIA GUAYCURU) Desde então cobriu-se Nanine de uma mortal melancolia, sendo seus olhos sempre chorosos. Assim se passaram trez mezes, quando um dia, estando deitada na sua rustica cama, lhe deram a noticia que seu desleal marido se tinha casado com uma rapariga de menor esphera. Senta-se então Nanine na cama, como arrebatada, chama para junto de si um pequeno indio que era seu captivo, e diz-lhe na presença de varios antecris: « És meu captivo; dou-te a liberdade, com a condição de que te chamarás todo a vida Panenioxe. » F. RODRIGUES PRADO, Hist. dos índios Cavalleiros. ... que piagne Vedova, sola. DANTE. I Contam-se historias antigas Pelas terras de além-mar, De moças e de princezas, Que amor fazia matar. Mas amor que entranha n’alma E a vida soe acabar, Amor é de todo o clima, Bem como a luz, como o ar. Morrem delle nas florestas Aonde habita o jaguar, Nas margens dos grandes rios Que levam troncos ao mar. Agora direi um caso De muito penalisar, Tão triste como os que contam Pelas terras de além-mar. II Cabana que esteira cobre De junco trançado a mão, Que agitação vae por ella! Que ledas horas lhe vão! Panenioxe é guerreiro Da velha, dura nação, Cayavaba ha já sentido A sua lanca e facão. Vem de longe, chega á porta Do afamado capitão; Deixa a lança e o cavallo, Entra com seu coração. A noiva que elle lhe guarda Moça é de nobre feição, Airosa como agil corça Que corre pelo sertão. Amores eram nascidos Naquella tenra estação, Em que a flor que hade ser flor Inda se fecha em botão. Muitos agora lhe querem, E muitos que fortes são; Niani ao melhor delles Não dera o seu coração. Casal-os agora, é tempo; Casal-os, nobre ancião! Limpo sangue tem o noivo, Que é filho de capitão. III « — Traze a minha lança, escravo, Que tanto peito abateu; Traze aqui o meu cavallo Que largos campos correu. » « — Lança tens e tens cavallo Que meu velho pae te deu; Mas aonde te vás agora, Onde vás, esposo meu? « — Vou-me á caça, junto á cova Onde a onça se metteu... » « — Montada no meu cavallo, Vou comtigo, esposo meu. » « — Vou-me ás ribas do Escopil, Que a minha lança varreu... » « — Irei pelejar na guerra, A teu lado, esposo meu. » « — Fica-te ahi na cabana Onde o meu amor nasceu. » « — Melhor não haver nascido Se ja de todo morreu. » E uma lagrima, — a primeira De muitas que ella verteu, — Pela face cobreada Lenta, lenta lhe correu. Enxugal-a, não a enxuga O esposo que ja perdeu, Que elle no chão fita os olhos, Como que a voz lhe morreu. Traz o escravo o seu cavallo Que o velho sogro lhe deu; Traz-lhe mais a sua lança Que tanto peito abateu. Então, recobrando a alma, Que o remorso esmoreceu, Com esta dura palavra Á esposa lhe respondeu: « — A bocayuva trez vezes No tronco amadureceu, Desde o dia em que o guerreiro Sua esposa recebeu. « Trez vezes! Amor sobejo Nossa vida toda encheu. Fastio me entrou no seio, Fastio que me perdeu. » E pulando no cavallo, Sumiu-se… despareceu… Pobre moça sem marido, Chora o amor que lhe morreu! IV Leva o Paraguay as aguas, Leva-as no mesmo correr, E as aves descem ao campo Como usavam de descer. Tenras flores, que outro tempo Costumavam de nascer, Nascem; vivem de egual vida; Morrem do mesmo morrer. Niani, pobre viuva, Viuva sem bem o ser, Tanta lagrima chorada Ja te não póde valer. Olhos que amor desmaiára De um desmaiar que é viver, O chôro empana-os agora, Como que vão fenecer. Corpo que fôra robusto No seu cavallo a correr, De continua dor quebrado Mal se póde ja suster. Collar de prata não usa, Como usava de trazer; Pulseiras de finas contas Todas as veiu a romper. Que ella, se nada ha mudado Daquelle eterno viver, Com que a natureza sabe Renascer, permanecer, Toda é outra; a alma lhe morre, Mas de um continuo morrer, E não ha magua mais triste De quantas podem doer. Os que out’rora a desejavam, Antes della mal haver, Vendo que chora e padece, Rindo se põem a dizer: « — Remador vae na canoa, Canoa vae a descer... Piranha espiou do fundo Piranha, que o vae comer. « Ninguem se fie da braza Que os olhos veem arder Sereno que cae de noite Ha de fazel-a morrer. Panenioxe, Panenioxe, Não lhe sabias querer. Quem te pagára esse golpe Que lhe vieste fazer! » V Um dia, — era sobre tarde, Ia-se o sol a afundar; Calumby cerrava as folhas Para melhor as guardar. Vem cavalleiro de longe E á porta vae apear. Traz o rosto carregado. Como noite sem luar. Chega-se á pobre da moça E assim começa a fallar: « — Guaycurú doe-lhe no peito Tristeza de envergonhar. « Esposo que te ha fugido Hoje se vae a casar; Noiva não é de alto sangue, « Porém de sangue vulgar. » Ergue-se a moça de um pulo, Arrebatada, e no olhar Rebenta-lhe uma faisca Como de luz a expirar. Menino escravo que tinha Acerta de ali passar; Niani attentando nelle Chama-o para o seu logar. « — Captivo és tu: serás livre, Mas vaes o nome trocar; Nome avesso te pozeram... Panenioxe has de ficar. » Pela face cobreada Desce, desce com vagar Uma lagrima: era a ultima Que lhe restava chorar. Longo tempo alli ficára, Sem se mover nem fallar; Os que a veem naquella magua Nem ousam de a consolar. Depois um longo suspiro, E ia a moça a expirar... O sol do todo morria E ennegrecia-se o ar. Pintam-n’a de vivas cores, E lhe lançam um collar; Em fina esteira de junco Logo a vão amortalhar. O triste pae suspirando Nos braços a vae tomar, Deita-a sobro o sou cavallo E a leva para enterrar. Na terra em que dorme agora Justo lhe era descançar, Que pagou foro da vida Com muito e muito penar. Que assim se morre de amores Aonde habita o jaguar, Como as princezas morriam Pelas terras de além-mar. A CHRISTÃ NOVA ……essa mesma foi levada captiva para uma terra extranha. NAHUM, cap. III, V. 10 PARTE I I Olhos fitos no ceu, sentado á porta, O velho pae estava. Um luar frouxo Vinha beijar-lhe a veneranda barba Alva e longa, que o peito lhe cobria, Como a nevoa na encosta da montanha Ao destoucar da aurora. Alta ia a noite, E silenciosa: a praia era deserta, Ouvia-se o bater pausado e longo Da somnolenta vaga, — unico e triste Som que a mudez quebrava á natureza. II Assim talvez nas solidões sombrias Da velha Palestina Um propheta no espirito volvera As desgraças da patria. Quão remota Aquella de seus paes sagrada torra, Quão diflereute desta em que ha vivido Os seus dias melhores! Vago e doce, Este luar não allumia os serros Estereis, nem as ultimas ruinas, Nem as ermas planicies, nem aquelle Morno silencio da região que fora E que a historia de todo amortalhára. Ó torrentes antigas! aguas santas De Cedron! Já talvez o sol que passa, E vê nascer e vê morrer as flores, Todas no leito vos seccou, em quanto Estas murmuram placidas e cheias, E vão contando ás deleitosas praias Esperanças futuras. Longo e longo O devolver dos seculos Será, primeiro que a memoria do homem Teça a mortalha fria Da região que inda tinge o albor da aurora. III Talvez, talvez no espirito fechado Do ancião vagueavam lentamente Estas ideias tristes. Junto á praia Era a austera mansão, donde se via Desenrolarem-se as serenas vagas Do nosso golpho azul. Não a enfeitavam As galas da opulencia, nem os olhos Entristecia co’o medonho aspecto Da miseria; não pródiga nem surda A fortuna lhe fôra, mas aquella Mediania sobria, que os desejos Contenta do philosopho, lhe havia Doirado os tectos. Guanabara ainda Não era a flor aberta Da nossa idade; era botão apenas, Que rompia do hastil, nascido á beira De suas ondas mansas. Simple e rude, Ia brotando a juvenil cidade, Nestas incultas terras, que a lembrança Recordava talvez do antigo povo, E o guáu alegre, e as rispidas pelejas, Toda essa vida que morreu. IV Sentada Aos pés do velho estava a amada filha, Bella como a açucena dos Cantares, Como a rosa dos campos. A cabeça Nos joelhos do pae reclina a moça, E deixa resvalar o pensamento Rio abaixo das longas esperanças E namorados sonhos. Negros olhos Por entre os mal fechados Cilios estende á serra que recorta Ao longe o ceu. Morena é a face linda E levemente pallida. Mais bella, Nem mais suave era a formosa Ruth Ante o rico Booz, do que essa virgem, Flor que Israel brotou do antigo tronco, Corada ao sol da juvenil America. V Mudos viam correr aquellas horas Da noite, os dous: elle voltando o rosto Ao passado, ella os olhos aos futuro. Cançam-lhe emfim ao pensamento as azas De ir voando, atrazez da espessa treva, Frouxas as colhe, e desce ao campo exiguo Da realidade. A delicada virgem Primeiro volve a si; os lindos dedos Corre-lhe ao longo da nevada barba, E: — « Pae amigo, que pensar vos leva Tão longe a alma? » Estremecendo o velho. — « Curiosa! — lhe disse, — o pensamento E como as aves passageiras: voa A buscar melhor clima. — Opposto rumo Ias tu, alma em flor, aberta apenas, Tão longe ainda do calor da sesta, Tão remota da noite... Uma esperança Te sorria talvez? Talvez, quem sabe, Uns namorados olhos que me roubem, Que te levem... Não córes, filha minha! Esquecimento, não; lembrança ao menos Ficar-te-ha do paterno affecto; e um dia, Quando eu na terra descançar meus ossos, Haverás doce balsamo no seio De affeição juvenil... Sim; não te accuso; Ama: é a lei da natureza, eterna! Ama: um homem será da nossa raça... » VI Estas palavras taes ouvindo a moça, Turbada os olhos descaiu na terra, E algum tempo ficou calada e triste, Como no azul do ceu o astro da noite, Se uma nuvem lhe empana a meio a face. Subito a voz e o rosto alevantando, Com dissimulação, — peccado embora, Mas innocente: — « Olhai, a noite é linda! O vento encrespa mollemente as ondas, E o ceu é todo azul e todo estrellas! Formosa, oh! quão formosa a terra minha! Dizei: além desses compridos serros, Além daquelle mar, á orla de outros, Outras como esta vivem? » VII Fresca e pura Era-lhe a voz, voz d’alma que sabia Entrar no coração paterno. A fronte Inclina o velho sobre o rosto amado De Angela. — Na cabeça osculo santo Imprime á filha; e suspirando, os olhos Melancholicamente ao ar levanta, Desce-os e assim murmura: « Vaso é digno de ti, lyrio dos valles, Terra solemne e bella. A natureza Aqui pomposa, compassiva e grande, No regaço recebe a alma que chora E o coração que timido suspira. Comtudo, a sombra pesarosa e errante Do povo que acabou pranteia ainda Ao longo das areias, Onde o mar bate, ou no cerrado bosque Inda povoado das reliquias suas, Que o nome de Tupan confessar podem No proprio templo augusto. Ultima e forte Consolação é esta do vencido Que viu tudo perder-se no passado, E unico salva do naufragio immenso O seu Deus. Patria não. Uma ha na terra Que eu nunca vi... Hoje é ruina tudo, E viuvez e morte. Um tempo, emtanto, Bella e forte ella foi; mas longe, longe Os dias vão de fortaleza e gloria Escoados de todo como as aguas Que não volvem jamais. Oleo que a unge, Finas telas que a vestem, atavios De ouro e prata que o collo e os braços lhe ornam, E a flor de trigo e mel de que se nutre, Sonhos, são sonhos do propheta. É morta Jerusalem! Oh! quem lhe dera os dias Da passada grandeza, quando a planta Da senhora das gentes sobre o peito Pousava dos vencidos, quando o nome Do que ha salvo Israel, Moysés... » « — Não! Christo, Filho de Deus! Só elle ha salvo os homens! » Isto dizendo, a delicada virgem As mãos postas ergueu. Uma palavra Não disse mais; no coração, emtanto, Murmurava uma prece silenciosa, Ardente e viva, como a fé que a anima Ou como a luz da alampada A que não faltou oleo. VIII Taciturno Esteve longo tempo o ancião. Aquella Alma infeliz nem toda era de Christo Nem toda de Moyses; ouvia attento A palavra da Lei, como nos dias Do eleito povo; mas a doce nota Do Evangelho não raro lhe batia No alvoroçado peito Solemnissima e pura... Descambava No entanto a lua. A noite era mais linda, E mais augusta a solidão. Na alcova Entra a pallida moça. Da parede Um Christo pende; ella os joelhos dobra Os dedos cruza e reza, — não serena, Nem alegre tambem, como costuma, Mas a tremer-lhe nos formosos olhos Uma lagrima. IX A lampada accendida Sobre a meza do velho, as largas folhas Allumia de um livro. O maximo era Dos livros todos. A escolhida lauda Era a do canto dos captivos que iam Pelas ribas do Euphrates, relembrando As desgraças da patria. A sós, com elles, Suspira o velho aquelle psalmo antigo: Junto aos rios da terra amaldiçoada De Babylonia, um dia nos sentamos, Com saudades de Sião amada. As harpas nos salgueiros penduramos, E ao relembrarmos os extinctos dias As lagrimas dos olhos desatamos. Os que nos davam cruas agonias De captiveiro, alli nos perguntavam Pelas nossas antigas harmonias. E diziamos nós aos que fallavam: « Como em terra de exilio amargo e duro Cantar os hymnos que ao Senhor louvavam? Jerusalem, se inda n’um sol futuro, Eu desviar do ti meu pensamento E teu nome entregar a olvido escuro, A minha dextra a frio esquecimento Votada seja; apegue-se á garganta Esta lingua infiel, se um só momento Me não lembrar de ti, se a grande e santa Jerusalem não for minha alegria Melhor no meio de miseria tanta. Oh! lembra-lhes, Senhor, aquelle dia Da abatida Sião, lembra-lh'o aos duros Filhos de Edom, e á voz que alli dizia: Arruinai-a, arruinai-a; os muros Arrazemol-os todos; só lhe baste Um montão de destroços mal seguros. Filha de Babylonia, que peccaste, Abençoado o que se houver contigo Com a mesma oppressão que nos mostraste! Abençoado o barbaro inimigo Que os tenros filhos teus ás mãos tomando, Os for, por teu justissimo castigo, Contra um duro penedo esmigalhando! PARTE II I Era naquella doce e amavel hora Em que vem branqueando a alva celeste, Quando parece que remoça a vida E toda se espreguiça a natureza. Alva neblina que espalhara a noite Frouxamente nos ares se dissolve, Como de uns olhos tristes Foge co’ o tempo a já ligeira sombra De consoladas maguas. Vida é tudo. E pompa e graça natural da terra, Mas que não seja no ermo, Onde seus olhos rutilos espraia Livres a aurora, sem tocar vestigios De obras caducas do homem, onde as aguas Do rio bebe a fugitiva corça, Vivo aroma nos ares se diffunde, E aves, e aves de infinitas cores Voando vão e revoando tornam, Inda senhoras da amplidão que é sua, Donde as hade fugir o homem um dia Quando a agreste soidão entrar o passo Creador que derruba. Já de todo Nado era o sol; e á viva luz que innunda Estes meus patrios morros e estas praias, Sorrindo a terra moça Noiva parece que o virgineo seio Entrega ao beijo nupcial do amado. E hade os fúnebres vens lançar a morte Na verdura do campo? A natureza A nota vibrará da extrema angustia Neste festivo cantico de graças Ao sol que nasce, ao Creador que o ouvia, Como renovação de juventude? II Coava o sol pela miúda e fina Gelosia da alcova em que se apresta A recente christã. Singelas roupas Traja da ingenua cor que a natureza Pintou nas plumas que primeiro brota O seu patrio guará. Vinculo frouxo Mal lhe segura a luzidia trança, Como ao desdem lançada Sôbre a espadua gentil. Joia nenhuma. Mais que seus olhos meigos, e essa doce Modestia natural, encanto, enlevo, Casta flor que aborrece os mimos do horto, E ama livre nascer no campo, á larga, Rustica, mas formosa. Não lhe ensombram As tristezas da vespera o semblante, Nem da secreta lagrima na face Ficou vestigio. — Descuidosa e alegre, Ri-se, murmura uma cantiga, ou pensa, E repete baixinho um nome... Oh! se elle Espreital-a pudesse ali risonha, A sós comsigo, entre o seu Christo e as flores Colhidas ao tombar da extincta noite, E vecejantes inda! III De repente, Aos ouvidos da moça enamorada Chega um surdo rumor de soltas vozes, Que ora crescendo vae, ora se apaga, Estranho, desusado. Eram... São elles, Os francezes, que vem de longes praias A cubiçar a pérola mimosa, Nictheroy, na alva-azul concha nascida De suas aguas recatadas. Rege O atrevido Duclere a flor dos nobres, Cuja tez branca requeimára o fogo Que o vivo sol dos tropicos dardeja, E a lufada dos ventos do oceano. Cobiçam-te elles, minha terra amada, Como quando nas faixas sempre-verdes Eras envolta; e rude, inda que bello, O aspecto havias que poliu mais tarde A clara mão do tempo. Inda repetem Os ecos do reconcavo os suspiros Dos que vieram a buscar a morte, E a receberam dos varões possantes Companheiros de Estacio. A todos elles, Prole de Luso ou geração da Gallia, Captivara-os a nayade escondida, E o sol os viu travados nessa longa E sangrenta porfia, cujo premio Era teu verde, candido regaço. Triumphára o trabuco lusitano Naquelle extincto seculo. Vencido, O pavilhão francez volvêra á pátria. Pela agua arrastando o longo crepe De suas tristes, mortas esperanças. Que vento novo o desfraldou nos ares? IV Angela ouvira as vozes da cidade, As vozes do furor. Já receiosa, Tremula, foge á alcova e se encaminha Á camera paterna. Ia transpondo A franqueada porta... e pára. O peito Rompe-lh’o quasi o coração, — tamanho É o palpitar, um palpitar de gosto, De sorpresa e de susto. Aquelles olhos, Aquella graça mascula do gesto, Graça e olhos são delle, o amado noivo, Que entre os mais homens elegeu sua alma Para o vínculo eterno... Sim, que a morte Póde arrancar ao seio humano o alento Ultimo e derradeiro; os que devéras Unidos foram, volverão unidos A mergulhar na eternidade. Estava Junto do velho pae o gentil moço, Elle todo agitado, o ancião sombrio, Calados ambos. A attitude de ambos, O mysterioso, gelido silencio, Mais que tudo, a presença nunca usada Daquelle homem ali, que mal a espreita De longe e a furto, nos instantes breves Em que lhe é dado vel-a, tudo á moça O animo abala e o coração enfia. V Mas o tropel de fóra avulta e cresce E os tres accorda. A virgem, lentamente, Rosto inclinado ao chão, transpõe o espaço Que dos dous a separa... O tenro collo Curva ante o pae, e na enrugada dextra O osculo imprime, herdada usança antiga De filial respeito. As mãos lhe toma Enternecido o velho; olhos com olhos Alguns instantes rapidos ficaram, Até que elle, voltando o rosto ao moço: « — Perdoai, — disse, — se o paterno affecto Me atou a lingua. Vacillar é justo Quando á pobre ruina a flor lhe pedem Que unica lhe nasceu, — unica adorna A aridez melancholica do extremo, Pallido sol... Não protesteis! Roubal-a, Arrancal-a aos meus ultimos instantes, Não o fareis de certo. Pouco importa Dês que a metade lhe levaes da vida, Dês que seu coração, comvosco parte Affeições minhas. — Ao demais, o sangue Que lhe corre nas veias, condemnado, Nuno, será dos vossos... « Longo e frio Olhar estas palavras acompanha, Como a arrancar-lhe o pensamento interno. A donzella estremece. Nuno o alento Recobra e falla: — « Puro sangue é elle, Se lhe corre nas veias. Tão mimosa, Candida creatura, alma tão casta, Inda nascida entre os inereos da Arabia, Deus a votára á conversão e á vida Dos eleitos do ceu. Aguas sagradas Que a lavaram no berço, já nas veias O sangue velho e impuro lhe trocaram Pelo sangue de Christo... » [3][4] VII Neste instante Cresce o tumulto exterior. A virgem Medrosa toda se conchega ao collo Do velho pae. « Ouvis? Fallae! é tempo! Nuno prosegue. — Este commum perigo Chama os varões á rispida batalha; Com elles vou. Se um galardão, emtanto, Merecer de meus feitos, não á pátria Irei pedil-o; só de vós o espero, Não o melhor, mas o unico na terra, Que a minha vida... » Rematar não pôde Esta palavra. Ao escutar-lhe a nova Da imminente peleja E a decisão de combater por ella, Inteiras sente as forças que se perdem A donzella, e bem como ao rijo vento Inclina o collo o arbusto Nos braços desmaiou do pae. Volvida A si, na pallielez do rosto o velho Attenta um pouco, e suspirando: « As armas Empunhae; combatei; Angela é vossa. Não de mim a havereis: ella a si mesma Toda nas vossas mãos se entrega. Morta Ou feliz é a escolha; não vacillo Seja feliz, e folgarei com ella... » VIII Sobre a fronte dos dous, as mãos impondo Ao seio os conchegou, bem como a tenda Do patriarcha santo agasalhava O moço Isaac e a delicada virgem Que entre os rios nasceu. Delicioso E solemne era o quadro; mas solemne E delicioso embora, ia esvair-se Qual celeste visão, que accende a espaços O animo do infeliz. A guerra, a dura Necessidade de immolar os homens. Por salvar homens, a terrivel guerra Corta o amoroso vinculo que os prende E á moça o riso lhe converte em lagrimas. Misera és tu, pallida flor: mas soffre Que o calor deste sol te acurve o calix, Morta, não, nem já murcha — mas apenas Como cançada ele queimor do estio. Soffre; a tarde virá serena e branda A reviver-te o alento; a fresca noite Choverá sobre ti piedoso orvalho E mais risonha surgirás á aurora. IX Foge á estancia da paz o hardido moço; Esperança, fortuna, amor e patria A guerrear o levam. Já nas veias O vivo sangue irrequieto pulsa, Como ancioso de correr por ambas, A bella terra e a suspirada noiva. Triste quadro a seus olhos se apresenta; Nos femininos rostos vê pintados Incerteza e terror; lamentos, gritos Soam de entorno. Voam pelas ruas Homens de guerra; homens ele paz se aprestam Para a crua peleja; e, ou nobre estancia, Ou choupana rasteira, armado é tudo Contra a forte invasão. Nem lá se deixa Quieto, a sós com Deus, na estreita cella, O solitario monge que ás batalhas Fugiu da vida. O patrimonio santo Cumpre salval-o. Cruz e espada empunha, Deixa a serena região da prece E voa ao torvelinho do combate. X Entre os fortes alumnos que dirige O hardido Bento, a perfilar-se corre Nuno. Estes são os que o primeiro golpe Descarregam no attonito inimigo. Do militar officio ignoram tudo. De armas não sabem; mas o brio e a honra E a lembrança da terra em que primeiro Viram a luz, e onde o perdel-a é doce, Essa a escola lhes foi. Pasma o inimigo Do nobre esforço e galhardia rara, Com que inda nos humbraes da vida que orna Tanta esperança, tanto sonho de ouro, Resolutos a morte encaram, prestes A retalhar nas dobras Da vestidura fúnebre da patria O piedoso lençol que os leve á campa, Ou com ella cingir o eterno louro. XI Ó mocidade, ó baluarte vivo Da cara patria! Já perdida é ella, Quando em teu peito enthusiasmo santo E puro amor se extingue, e áquelle nobre, Generoso despojo o ardor antigo Succede o frio calcular, e o torpe Egoismo, e quanto ha hi no humano peito, Que é fructo nosso e podre... Muitos caem Mortos alli. Que importa? Vão seguindo Avante os bravos, que a invasão caminha Implacavel e dura, como a morte, A pelejar e a destruir. Tingidas Ruas de extranho sangue E sangue nosso, lacerados membros, Corpos de que ha fugido a alma cançada, E o denso fumo e os funebres lamentos, Quem nessa confusão, miseria e gloria Conhecerá da juvenil cidade O aspecto, a vida? Aqui da infancia os dias Nuno vivêra, á vecejante sombra Do seu patrio arvoredo, ao som das vagas Que inda batendo vão na amada areia; Risos, jogos da verde meninice, Esta praia lhe lembra, aquella pedra, A mangueira do campo, a tosca cerca De espinheiro e de flores enlaçadas, A ave que voa, a brisa que suspira, Que suspira como elle ha suspirado, Quando rompendo o coração do peito Ia-lhe empós dessa visão divina, Realidade agora... E ha de perdel-as Patria e noiva? Esta ideia lhe esvoaça Torva e surda no cerebro do moço, E ao contrahido espirito redobra Impeto e forças. Rompo Por entre a multidão dos seus, e investe Contra o duro inimigo; as balas voam, E com ellas a morte, que não sabe Dos escolhidos seus a terra e o sangue, E indistinctos os toma; elle, no meio Daquelle horrivel turbilhão, parece Que a faisca do genio o leva o anima, Que a fortuna o votára á gloria. XII Soam Emfim os gritos de triumpho; e o peito Do povo que lutou respira á larga, Como ao que, após ardua subida, chega Ao cimo da montanha, e ao longe os olhos Estende pelo azul dos ceus, e a vida Bebe nesse ar mais puro. Farto sangue A victoria custára; mas, se em meio De tanta gloria ha lagrimas, soluços, Gemidos de viuvez, quem os escuta, Quem as vê essas lagrimas choradas Na multidão da praça que troveja E folga e ri? O sacro bronze que usa Os fieis convidar á prece, e a morte Do homem pranteia lugubre e solemne, Ora festivo canta O commum regosijo; e pela aberta Porta dos templos entra a frouxo o povo A agradecer com lagrimas e vozes O triumpho, — piedoso instincto da alma, Que a Deus levanta o pensamento e as graças. XIII Tu, mancebo feliz, tu bravo e amado, Voa nas azas rutilas e leves Da fortuna e do amor. Como ao indíano, Que, ao regrassar das porfiadas lutas, Por estas mesmas regiões entrava, A encontral-o saía a meiga esposa, — A recente christã, entre assustada E jubilosa coroará teus feitos Co’a melhor das capellas que hão pousado Em fronte ele varão, — um doce e longo Olhar que inteiro encerra a alma que chora De gosto e vida! Voa o moço á estancia Do ancião; e ao pôr na suspirada porta Olhos que traz famintos de encontral-a, Frio terror lhe empece os membros. Frouxo Ia o sol transmontando; lenta a vaga Melancholicamente ali gemia, E todo o ar parecia arfar de morte. Qual se pallida a víra, ja cerrados Os desmaiados olhos, Frios os doces labios Cançados de pedir aos ceus por elle, Nuno estacára; e pelo rosto em fio O suor lhe caiu da extrema augustia: Longo tempo vacilla; Vence-se emfim, e entra a mansão da esposa. XIV Quatro vultos na camera paterna Eram. O pae sentado. Calado e triste. Reclinada a fronte No espaldar da cadeira, a filha os olhos E o rosto esconde, mas tremor continuo De um abafado soluçar o esbelto Corpo lhe agita. Nuno aos dous se chega; Ia a fallar, quando a formosa virgem, Os lacrimosos olhos levantando, Um grito solta do intimo do peito E se lhe prostra aos pes: « Oh! vivo, es vivo! Inda bem... Mas o ceu. que por nós vela, Aqui te envia... Salva-o tu, se pódes, Salva meu pobre pae! » Estremecendo Nella e no velho fita Nuno os olhos, E agitado pergunta: « Qual ousado Braço lhe ameaça vida? » Cavernosa Uma voz lhe responde: « O sancto officio! » Volve o mancebo o rosto E o merencorio aspecto De dous familiares todo o sangue Nas veias lhe gelou. XV Solemne o velho Com voz, não frouxa, mas pousada, falla: « — Ves? todo o brio, todo o amor no peito Te emudeceu. Só lastimar-me podes, Salvar-me, nunca. O carcere me aguarda, E a fogueira talvez; cumpril-a, é tempo, A vontade de Deus. Tu, pae e esposo Da desvalida filha que ahi deixo, Nuno, serás. A relembrar com ella Meu pobre nome, applacareis a immensa Colera do Senhor… » Sorrindo ironico, Estas palavras ultimas lhe caem Dos labios tristes. Ergue-se: « Partamos! Adeus! Negou-me Aquelle que no campo Deixa a arvore ancian perder as folhas No mesmo ponto em que as nutriu viçosas, Negou-me ver por estas longas serras Ir-se-me o ultimo sol. Brando regaço A filial piedade me daria Em que eu dormisse o derradeiro somno, E em braços de meu sangue transportado Fôra em horas de paz e de silencio Levado ao leito extremo e eterno. Vive Ao menos tu... » XVI Um familiar lhe corta O adeus último: « Vamos: é ja tempo! » Resignado o infeliz, ao seio aperta A filha, e todo o coração n’um beijo Lhe transmittiu, e a caminhar começa. Angela os lindos braços sobre os hombros Trava do austero pae; flores dissereis De parasita, que enroscou seus ramos Pelo cançado tronco, esteril, sêcco De árvore antiga: « Nunca! Hão de primeiro A alma arrancar-me! Ou se heis peccado, e a morte Pena hade ser da commettida culpa, Comvosco descerei á campa fria, Junctos a mergulhar na eternidade. Israel tem vertido Um mar de sangue. Embora! á tona delle Verdeja a nossa fe, a fe que anima O eleito povo, flor suave e bella Que o medo não desfolha, nem ja sécca Ao vento mau da colera dos homens! » XVII Trémula a voz do peito lhe saía. Das mãos lhe trava um dos algozes. Ella Entrega-se risonha, Como se o calix da amargura extrema Pelos meles da vida lhe trocassem Celeste e eterna. O coração do moço Latejava de espanto e susto. Os olhos Pousa na filha o desvairado velho. Que ouviu? — Attenta nella; o lindo rosto O ceu não busca jubiloso e livre. Antes, como travado de agra pena, Pende-lhe agora ao chão. Dizia acaso Entre si mesma uma oração, e o nome De Jesus repetia, mas tão baixo, Que o coração do pae mal pôde ouvir-lh’o. Mas ouviu-lh’o; e tão forte amor, tamanho Sacrifício da vida a alma lhe rasga E deslumbra. Escoou-se um breve tempo De silencio; elle e ella, os tristes noivos, Como se a eterna noite os recebêra. Gelados eram; levantar não ousam Um para o outro os arrasados olhos De mal contidas e teimosas lagrimas. XVIII Nuno emfim, lentamente e a custo arranca Do coração estas palavras: « Fôra Misericordia ao menos confessal-o Quando ao fogo do bárbaro inimigo Me era facil deixar o derradeiro Sopro da vida. Premio é este acaso De tamanho lidar? Que mal te hei feito, Porque me dês tão barbara e medonha Morte, como esta, em que o cadaver guarda Inteiro o pensamento, inteiro o aspecto Da vida que fugiu? » Angela os olhos Maguados ergue; arfa-lhe o peito afflicto, Como o dorso da vaga que entumece A aza da tempestade. « Adeus! » suspira E a fronte abriga no paterno seio. XIX O rebelde ancião, domado emtanto, Afracar-se-lhe sente dentro d’alma O sentimento velho que bebêra Com o leite dos seus; e sem que o labio Transmitta o ouvidos de homem O duvidar do coração, murmura Dentro de si: « Tão poderosa é essa Ingenua fé, que inda negando o nome Do seu Deus, confiada acceita a morte, E guarda puro o sentimento interno Com que o veu rasgará da eternidade? Ó Nazareno, ó filho do mysterio, Se é tua lei a unica da vida Escreve-m’a no peito; e dá que eu veja Morrer commigo a filha de meus olhos E unidos irmos, pela porta immensa Do teu perdão, á eternidade tua! » XX Mergulhára de todo o sol no occaso, E a noite, clara, deliciosa e bella, A cidade cobriu, — não socegada, Como costuma, — porém leda e viva, Cheia de luz, de cantos e rumores, Victoriosa emfim. Elles, calados, Foram por entre a multidão alegre, A penetrar o carcere sombrio Donde ao mar passarão, que os leve ás praias Da ancian Europa. Carregado o rosto, Ia o pae; ella, não. Serena e meiga, Entra affouta o caminho da amargura, A custo soffreando internas maguas Da amarga vida, breve flor como ella, Que inda mais breve a mente lhe affigura. Anjo, descêra da região celeste A pairar sobre o abysmo; anjo, subia De novo á esphera luminosa e eterna, Patria sua. Levar-lhe-ha Deus em conta O muito amor e o padecer extremo, Quando romper a tunica da vida E o silencio immortal fechar seus labios, JOSE BONIFACIO De tantos olhos que o brilhante lume Viram do sol amortecer no occaso, Quantos verão nas orlas do horisonte Resplandecer a aurora? Innumeras, no mar da eternidade, As gerações humanas vão cahindo; Sobre ellas vae lançando o esquecimento A pesada mortalha. Da agitação esteril em que as forças Consumiram da vida, raro apenas Um echo chega aos seculos remotos, E o mesmo tempo o apaga. Vivos transmitte a popular memoria O genio creador e a sã virtude, Os que o patrio torrão honrar souberam, E honrar a especie humana. Vivo irás tu, egregio e nobre Andrada! Tu, cujo nome, entre os que á patria deram O baptismo da amada independencia, Perpetuamente fulge. O engenho, as forças, o saber, a vida, Tudo votaste á liberdade nossa, Que a teus olhos nasceu, e que teus olhos Inconcussa deixaram. Nunca interesse vil manchou teu nome, Nem abjectas paixões; teu peito illustre Na viva chamma ardeu que os homens leva Ao sacrifício honrado. Se teus restos ha muito que repousam No pó commum das gerações extinctas, A patria livre que legaste aos netos, E te venera e ama, Nem a face mortal consente á morte Que te roube, e no bronze redivivo O austero vulto restitue aos olhos Das vindouras edades. « Vede (lhes diz) o cidadão que teve Larga parte no largo monumento Da liberdade, a cujo seio os povos Do Brasil se acolheram. « Póde o tempo varrer, um dia, ao longe, A fabrica robusta; mas os nomes Dos que o fundaram viverão eternos, E viverás, Andrada! » A VISÃO DE JACIUCA Prestes de novo a batalhar, chegavam Os valentes guerreiros. Mas onde elle, O duro chefe da indomavel tribu, O senhor das montanhas? Affirmava Tatupeba que o vira, antes da aurora, Erguer-se, e ao longo do visinho rio, Por algum tempo caminhar calado, Como se o abafára um pensamento E lhe impedíra o somno. Vão receio De batalhar? Oh! não! Quasi na infancia, A torva catadura viu da guerra, Officio de homens, que apprendeu brincando Com seu pae, extremado entre os guerreiros, E na bravura e na prudencia; a frecha Ninguem soubera menear como elle, Nem mais veloz, nem mais certeira nunca. A lentos passos caminhando chega, Emfim, o bravo Jaciuca. Torvo E merencorio traz o duro aspecto. « — Vamos (diz elle) a deseançar na taba, Entre festas e dansas; penduremos As armas nossas, que sobeja ha sido A glória, e a doce paz nos chama. » Leve, Surdo rumor entre os guerreiros soa; Vai subindo, é rugido, é já tumulto, Como o grunhir de tajassús no matto, Que se approxima e cresce. Jaciuca Olhos quietos pelo campo estende; Seu feio rosto é como a rocha dura Que o raio quebra, mas não lasca o vento. Fecha os labios e pensativo espera. Tatupeba, que a raiva a custo esconde, Ergue-se então; crava-lhe os fulvos olhos, Como a afiada ponta de uma frecha. Seu porte, entre os irmãos, semelha á vista Jequitibá robusto; mais que todos, Terror inspira e universal respeito. Ergue-se e falla: « — Longos soes hei visto, Pelejei muitas guerras; a meu lado Vi cair mais valentes do que folhas Arranca o furacão; mas nunca o animo Dos lidadores abalou palavra Como essa tua; nunca os braços nossos Ficar deixaram nos desertos campos Os ossos não vingados dos guerreiros. Que genio mau te insinuou tal crime? » Assim fallando, Tatupeba o solo Com a planta feriu. Os olhos todos Pendem da boca do sombrio chefe. Silencioso Jaciuca ouvíra As fallas do guerreiro; silencioso E quieto ficou. Após instantes, A fronte sacudiu, como expellindo Ideias más que o cerebro lhe turvam, E a voz lhe rompe do intimo do peito. « Ó guerreiros (diz elle), aqui deitados Estivestes a noite, e toda inteira A dormistes de certo; eu, não distante, Do rio á marge a trabalhar commigo, Afiava na mente atra vingança; Até que os frouxos membros descaíram Sobre a macia relva, e um tempo largo Assim fiquei entre vigilia e somno. Viam meus olhos ondular as aguas, Mas no alheado pensamento os ecos Sussurravam da infancia. Um genio amigo Aos tempos me levava em que no rosto De meu pae aprendi, com frio pasmo, A rara intrepidez, válida herança, Que tanto custa ao perfido inimigo. « De repente, uma luz pallida e triste Inunda o campo: transparente nevoa E luminosa aquillo parecia, Ou baço reflectir da branca lua Que nuvens cobrem. Livido e curvado, Içayba a meus olhos apparece. Vi-o qual era antes da fria morte; Só a expressão do rosto lhe mudára; Energicas não tinha, mas serenas As feições. «Vem commigo! » Assim me falla O extincto bravo; e, subito estreitando Ao peito o corpo do saudoso amigo, Juntos voámos á região das nuvens. «Olha! » disse Içayba, e o braço alonga Para a terra. O’ guerreiros! largo espaço Era prêsa de alheio senhorio. Fitei os olhos mais; e pouco a pouco, Como enche o rio e todo o campo alaga, Umas gentes extranhas se estendiam De sertão em sertão. Presas do fogo As mattas vi, abrigo do guerreiro, E ao torvo incendio e ás invasões da morte Vi as tribus fugir, ceder a custo, Com lagrimas alguns, todos com sangue, A virgem terra ao barbaro inimigo. Mau vento os trouxe de remota praia Aquelles homens novos, jamais vistos De guerreiro ancião, a quem não coube Sequer a gloria de morrer contente E todo reviver na ousada prole. Era o termo da vida que chegára Ao povo de Tupan! Grito de morte Unico enchia os ares, — um suspiro De tristeza e terror, que reboava Pelos recessos da floresta antiga E talvez ameigava o peito ás feras... Surdos os manitòs deixado haviam Os seus fortes heroes; surdos se foram Entre os genios folgar da raça nova, E rir talvez das lagrymas choradas Pelos olhos das virgens... Oh! se ao menos Fôra pranto de livres! Era a morte A menor das angustias; vi curvada E captiva rojar no po da terra A fronte do guerreiro, agora altiva, Livre, como o condor que frecha as nuvens; Não kanitar a cinge, mas vergonha, Melancholico adorno do vencido. « O rosto desviei do extranho quadro. « Olha! » repete o pallido Içayba. Olhei de novo, e na saudosa taba, Que os nossos arcos defender souberam, Em vez da sombra do piaga santo, Que ao som do maracá, colhia as vozes Do pensamento eterno, e as infundia No seio do guerreiro, como o fumo Do petum lhe dobrava impeto e força, Um vulto descobri de vestes negras, Nua quasi a cabeça, e cor de espuma Alguns cabellos raros. Tinha o rosto Alvo e quieto. Em suas mãos sustinha Extenso lenho com dous curtos braços. Ia só; todo o campo era deserto. Nem um guerreiro! um arco! « — A tribu? » — « Extincta. » « A tal palavra, uma pesada sombra A vista me apagou, e pela face Senti rolar a lagrima primeira. O sinistro espectaculo mudára. Ao dissipar-se a nuvem de meus olhos Achei-me junto do visinho rio, Reclinado como antes, e defronte A pallida figura de Içayba. « — Torna á taba, me disse o extincto moço; « Luas e luas volverão no espaço « Antes da morte, mas a morte é certa, « E terrivel será. Nação bem outra, « Sobre as ruinas da valente raça « Virá sentar-se, e brilhará na terra « Gloriosa e rica. Uma chorada lagryma, « Talvez, talvez, no meio de triumphos « Ha de ser a tardia, escassa paga « Da morte nossa. Poupa ao menos essa « Derradeira esperança de guardal-o « Todo o valor para o supremo dia « E com honra ceder a extranhas hostes; « Salva ao menos as ultimas reliquias « Desta nação vencida; não se rasguem « Peitos que irmãos ao mesmo sol nasceram « E Anhangá fez contrarios... Todos elles « Poucos serão para a tremenda luta, « Mas de sobra hão de ser para choral-a. » « Assim fallára o pallido Içayba; Alguns instantes contemplou meu rosto. Calado e firme. A cachoeira ao longe Interrompia apenas o silencio; E eu morto, eu mesmo me sentia morto. Elle um triste suspiro magoado Soltou do peito; os apagados olhos Ás estrellas ergueu, sereno e triste, E de novo rompendo o voo aos ares, Como uma frecha penetrou nas nuvens. A GONÇALVES DIAS Ninguem virá, com titubiantes passos. E os olhos lacrimosos, procurando O meu jazigo… GONÇALVES DIAS. — Ult. cant. Tu vive e gosa a luz serena e pura. J. BAZILIO DA GAMA. — Urug. C. v. Assim vagou por alongados climas, E do naufragio os humidos vestidos Ao calor enxugou de extranhos lares O luzitano vate. Acerbas penas Curtiu naquellas regiões; e o Ganges, Se o viu chorar, não viu pousar calada, Como a harpa dos exules prophetas, A heroica tuba. Elle a embocou, vencendo Co’a lembrança do ninho seu paterno, Longas saudades e miserias tantas. Que monta o padecer? Um só momento As maguas lhe pagou da vida; a patria Reviu, apoz a suspirar por ella; E a velha terra sua O despojo mortal cobriu piedosa E de sobejo o compensou do ingratos. Mas tu, cantor da America, roubado Tão cedo ao nosso orgulho, não te coube Na terra em que primeiro houveste o lume Do nosso sol, achar o ultimo leito! Não te coube dormir no chão amado, Onde a luz frouxa da serena lua, Por noite silenciosa, entre a folhagem Coasse os raios humidos e frios, Com que ella chora os mortos... derradeiras Lagrimas certas que terá na campa O infeliz que não deixa sobre a torra Um coração ao menos que o prantêe. Vinha contudo o pallido poeta Os desmaiados olhos estendendo Pela azul extensão dos grandes aguas, A pesquizar ao longe o esquivo fumo Dos patrios tectos. Na abatida fronte Ave de morte as azas lhe roçára; A vida não cobrou nos ares novos, A vida, que em vigilias e trabalhos. Em prol dos seus, gastou por longos annos, Co’ essa largueza de animo fadado A entornargoneroso a vital seiva. Mas, que importava a morte, se era doce Morrel-a á sombra deliciosa e amiga Dos coqueiros da terra, ouvindo acaso No murmurar dos rios, Ou nos suspiros do nocturno vento, Um eco melancholico dos cantos Que elle outriora entoara? Traz do exilio Um livro, monumento derradeiro Que á patria levantou; alli revive Toda a memoria do valente povo Dos seus Tymbiras… Subito, nas ondas Bate os pés, espumante e desabrido, O corsel da tormenta; o horror da morte Enfia o rosto aos nautas... Quem por elle, Um momento hesitou quando na fragil Tabua confiou a unica esperança Da existência? Mysterio obscuro é esse Que o mar não revellou. Ali, sosinho, Travou naquella solidão das aguas O duello tremendo, em que a alma e corpo As suas forças ultimas despendem Pela vida da terra e pela vida Da eternidade. Quanta imagem torva, Pelo turbado espirito batendo As fuscas azas, lhe tornou mais triste Aquelle instante funebre! Suave É o arranco final, quando o já frouxo Olhar contempla as lagrimas do affecto, E a cabeça repousa em seio amigo. Nem affectos nem prantos; mas somente A noite, o medo, a solidão e a morte. A alma que alli morava, ingenua e meiga, Naquelle corpo exiguo, abandonou-o, Sem ouvir os soluços da tristeza, Nem o grave salmear que fecha aos mortos O frio chão. Ella o deixou, bem como Hospede mal acceito e mal dormido, Que prosegue a jornada, sem que leve O osculo da partida, sem que deixe No rosto dos que ficam, — rara embora, — Uma sombra de pallida saudade. Oh! sobre a terra em que pousaste um dia, Alma filha do Dous, ficou teu rasto Como de estrella que perpétua fulge! Não visto as nossas lagrimas; comtudo O coração da patria as ha vertido. Tua gloria as seccou, bem como orvalho Que a noite amiga derramou nas flores E o raio enxuga da nascente aurora. Na mansão a que foste, em que ora vives, Has de escutar um eco do concerto Das vozes nossas. Ouvirás, entre ellas, Talvez, em labios de indiana virgem! Esta saudosa e suspirada nenia: « Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros! Virgens da matta, suspirae commigo « A grande agua o levou como invejosa. Nenhum pé trilhará seu derradeiro Funebre leito; elle repousa eterno Em sitio onde nem olhos de valentes, Nem mãos de virgens poderão tocar-lhes Os frios restos. Sabiá da praia De longe o chamará saudoso e meigo, Sem que elle venha repetir-lhe o canto. Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros! Virgens da matta, suspirae commigo! Elle houvera do Ybake o dom supremo De modular nas vozes a ternura, A colera, o valor, tristeza e magua, E repetir aos namorados ecos Quanto vive e reluz no pensamento. Sobre a margem das aguas escondidas, Virgem nenhuma suspirou mais terna, Nem mais válida a voz ergueu na taba, Suas nobres acções cantando aos ventos, O guerreiro tamoyo. Doce e forte, Brotava-lhe do peito a alma divina. Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros! Virgens da matta, suspirae commigo! « Coema, a doce amada de Itajuba, Coema não morreu; a folha agreste Póde em ramas ornar-lhe a sepultura, E triste o vento suspirar-lhe em torno; Ella perdura a virgem dos Tymbiras, Ella vive entre nós. Airosa e linda, Sua nobre figura adorna as festas E enflora os sonhos dos valentes. Elle, O famoso cantor quebrou da morte O eterno jugo; e a filha da floresta Hade a historia guardar das velhas tabas Inda depois das ultimas ruinas. Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros! Virgens da matta, suspirae commigo! « O piaga, que foge a extranhos olhos, E vive e morre na floresta escura, Repita o nome do cantor; nas aguas Que o rio leva ao mar, mande-lhe ao menos Uma sentida lagrima, arrancada Do coração que elle tocára outr'ora, Quando o ouviu palpitar sereno e puro, E na voz celebrou de eternos carmes. Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros! Virgens da matta, suspirae commigo! OS SEMEADORES (SECULO XVl) Eis ahi saiu o que semêa a semear. MATH. XIII, 3. Vós os que hoje colheis, por esses campos largos, O doce fructo e a flor, Acaso esquecereis os asperos e amargos Tempos do semeador? Rude era o chão; agreste e longo aquelle dia; Comtudo, esses heroes Souberam resistir na afanosa porfia Aos temporaes e aos soes. Poucos; mas a vontade os poucos multiplica, E a fé, e as orações Fizeram transformar a terra pobre em rica E os centos em milhões. Nem somente o labor, mas o perigo, a fome, O frio, a descalcez, O morrer cada dia uma morte sem nome, O morrel-a, talvez. Entre barbaras mãos, como se fora crime, Como se fora reu Quem lhe ensinára aquelle acção pura e sublime De as levantar ao ceu! O Paulos do sertão! Que dia e que batalha! Vencestel-a; e podeis Entre as dobras dormir da secular mortalha; Vivireis, vivireis! A FLOR DO EMBIROÇU Noite, melhor que o dia, quem não te ama? FIL. ELYS. Quando a noturna sombra envolve a terra E á paz convida o lavrador cançado, Á fresca brisa o seio delicado A branca flor do embiroçú descerra. E das limpidas lagrimas que chora A noite amiga, ella recolhe alguma; A vida bebe na ligeira bruma, Até que rompe no horisonte a aurora. Então, á luz nascente, a flor modesta, Quando tudo o que vive alma recobra, Languidamente as suas folhas dobra, E busca o somno quando tudo é festa, Suave imagem da alma que suspira E odeia a turba vã! da alma que sente Agitar-se-lhe a aza impaciente E a novos mundos transportar-se aspira! Tambem ella ama as horas silenciosas, E quando a vida as lutas interrompe, Ella da carne os duros elos rompe, E entrega o seio ás illusões viçosas. E tudo seu, — tempo, fortuna, espaço, E o ceu azul e os seus milhões de estrellas; Abrazada de amor, palpita ao vel-as, E a todas cinge no ideial abraço. O rosto não encara indifferente, Nem a traidora mão candida aperta; Das mentiras da vida se liberta E entra no mundo que jamais não mente. Noite, melhor que o dia, quem não te ama? Labor ingrato, agitação, fadiga, Tudo faz esquecer tua aza amiga Que a alma nos leva onde a ventura a chama. Ama-te a flor que desabrocha á hora Em que o ultimo olhar o sol lhe estende, Vive, embala-se, orvalha-se, recende, E as folhas cerra quando rompe a aurora. LUA NOVA Mãe dos fructos, Jacy, no alto espaço Eil-a assoma serena e indecisa: Sopro é della esta languida brisa Que sussurra na terra e no mar. Não se mira nas aguas do rio, Nem as hervas do campo branqueia; Vaga e incerta ella vem, como a ideia Que inda apenas começa a espontar. E iam todos; guerreiros, donzellas, Velhos, moços, as redes deixavam; Rudes gritos na aldêa soavam, Vivos olhos fugiam p’ra o ceu: Iam ve-la, Jacy, mãe dos fructos, Que, entre um grupo de brancas estrellas, Mal scintilla: nem póde vencel-as, Que inda o rosto lhe cobre amplo veu. E um guerreiro: « Jacy, doce amada, Retempera-me as forças; não veja Olho adverso, na dura peleja, Este braço ja frouxo cair. Vibre a setta, que ao longe derruba Tajassú, que roncando caminha; Nem lhe escape serpente damnínha, Nem lhe fuja pesado tapir. » E uma virgem: « Jacy, doce amada, Dobra os galhos, carrega esses ramos Do arvoredo co’as fructos que damos Aos valentes guerreiros, que eu vou A buscal-os na matta sombria, Por trazel-os ao moço prudente, Que venceu tanta guerra valente, E estes olhos consigo levou. » E um ancião, que a saudára ja muitos, Muitos dias: « Jacy, doce amada, Dá que seja mais longa a jornada, Dá que eu possa saudar-te o nascer, Quando o filho do filho, que hei visto Triumphar de inimigo execrando, Possa as pontas de um arco dobrando Contra os arcos contrarios vencer. » E elles riam os fortes guerreiros, E as donzellas e esposas cantavam, E eram risos que d’alma brotavam, E eram cantos de paz e de amor. Rude peito criado nas brenhas, — Rude embora, — terreno é propicio; Que onde o germen lançou beneficio Brota, enfolha, verdeja, abre em flor. SABINA Sabina era mucama da fazenda; Vinte annos tinha; e na provincia toda Não havia mestiça mais á moda, Com suas roupas de cambraia e renda. Captiva, não entrava na senzala, Nem tinha mãos para trabalho rude; Desbrochava-lhe a sua juventude Entre carinhos e affeições de sala. Era cria da casa. A sinhá moça, Que com ella brincou sendo menina, Sobre todas amava esta Sabina, Como esse ingenuo e puro amor da roça. Dizem que á noite, a suspirar na cama, Pensa n’ella o feitor; dizem que um dia, Um hospede que alli passado havia, Poz um cordão no collo da mucama. Mas que vale uma joia no pescoço? Não pôde haver o coração da bella. Se alguem lhe accende os olhos de gazella, É pessoa maior: é o senhor moço. Ora, Octavio cursava a Academia. Era um lindo rapaz; a mesma edade Co’as passageiras flores o adornava De cujo extincto aroma inda a memoria Vive na tarde pallida do outomno. Oh! vinte annos! Ó pombas fugitivas Da primeira estação, porque tão cedo Voaes de nós? Pudesse ao menos a alma Guardar comsigo as illusões primeiras, Virgindade sem preço, que não paga Essa descolorida, arida e sêcca Experiência do homem! Vinte annos Tinha Octavio, e a belleza e um ar de côrte E o gesto nobre, e seductor o aspecto; Um vero Adonis, como aqui diria Algum poeta classico, d’aquella Poesia que foi nobre, airosa e grande Em tempos idos, que ainda bem se foram… Cursava a Academia o moço Octavio; Ia no anno terceiro: não remoto Via desenrolar-se o pergaminho. Premio de seus labores e fadigas; E uma vez bacharel, via mais longe Os curvos braços da feliz cadeira D’onde o legislador a redea empunha Dos lepidos frisões do Estado. Emtanto, Sobre os livros de estudo, gota a gota As horas despendia, e trabalhava Por metter na cabeça o jus romano E o patrio jus. Nas suspiradas ferias Volvia ao lar paterno; ali no dorso De brioso corsel corria os campos. Ou, arma ao hombro, polvorinho ao lado, Á caça dos veados e cotias. Ia matando o tempo. Algumas vezes Com o padre vigario se entretinha Em desfiar um ponto de intrincada Philosophia, que o senhor de engenho, Feliz pae, escutava glorioso, Como a rever-se no brilhante aspecto Do suas ricas esperanças. Era Manhã de estio; erguera-se do leito Octavio; em quatro sorvos toda esgota A taça de café. Chapeo de palha, E arma ao hombro, lá foi terreiro fóra, Passarinhar no matto. Ia costeando O arvoredo que além beirava o rio, A passo curto, e o pensamento á larga, Como leve andorinha que saísse Do ninho, a respirar o hausto primeiro Da manhã. Pela aberta da folhagem, Que inda não doura o sol, uma figura Deliciosa, um busto sobre as ondas Suspende o caçador. Mãe d’agua fôra, Talvez, se a cor de seus quebrados olhos Imitasse a do ceu: se a tez morena, Morena como a esposa dos Cantares, Alva tivesse; e raios de ouro fossem Os cabellos da cor da noite escura, Que ali soltos e humidos lhe caem, Como um veu sobre o collo. Trigueirinha, Cabello negro, os largos olhos brandos Cor de jaboticaba, quem sería, Quem, senão a mucama da fazenda, Sabina, emfim? Logo a conhece Octavio, E n’ella os olhos espantados fita Que desejos accendem. — Mal cuidando D’aquelle extranho curioso, a virgem Com os ligeiros braços rompe as aguas, E ora toda se esconde, ora ergue o busto, Talhado pela mão da natureza Sobre modelo classico. Na opposta Riba suspira um passarinho; e o canto, E a meia luz, e o sussurrar das aguas, E aquella fada ali, tão doce vida Davam ao quadro, que o ardente alumno Trocára por aquillo, uma hora ao menos, A Faculdade, o pergaminho e o resto. Subito erige o corpo a ingenua virgem; Com as mãos, os cabellos sobre a espadua Deita, e rasgando lentamente as ondas, Para a margem caminha, tão serena, Tão livre como quem de extranhos olhos Não suspeita a cubiça... Veu da noute, Se lh’os cubrira, dissipára acaso Uma historia de lagrimas. Não póde Furtar-se Octavio á commoção que o toma; A clavina que a esquerda mal sustenta No chão lhe cae; e o baque surdo accorda A descuidada nadadora. Ás ondas A virgem torna. Rompe Octavio o espaço Que os divide; e de pé, na fina area, Que o molle rio lambe, erecto e firme, Todo se lhe descobre. Um grito apenas Um só grito, mas unico, lhe rompe Do coração; terror, vergonha... e acaso Prazer, prazer mysterioso e vivo De captiva que amou silenciosa, E que ama e vê o objecto de seus sonhos, Ali com ella, a suspirar por ella. « Flor da roça nascida ao pé do rio, Octavio começou — talvez mais bella Que essas bellezas cultas da cidade, Tão cobertas de joias e de sedas, Oh! não me negues teu suave aroma! Fez-te captiva o berço; a lei somente Os grilhões te lançou; no livre peito De teus senhores tens a liberdade, A melhor liberdade, o puro affecto Que te elegeu entre as demais captivas, E de affagos te cobre! Flor do matto, Mais viçosa do que essas outras flores Nas estufas criadas e nas salas, Rosa agreste nascida ao pé do rio Oh! não me negues teu suave aroma! » Disse, e da riba os cubiçosos olhos Pelas aguas estende, emquanto os d’ella, Cobertos pelas palpebras medrosas Choram, — de gosto e de vergonha a um tempo Duas unicas lagrimas. O rio No seio as recebeu; comsigo as leva, Como gottas de chuva, indifferente Ao mal ou bem que lhe povoa a margem; Que assim a natureza, ingenua e docil Ás leis do Creador, perpétua segue Em seu mesmo caminho, e deixa ao homem Padecer e saber que sente e morre. Pela azulada esphera inda tres vezes A aurora as flores derramou, e a noite Vezes tres a mantilha escura e larga Mysteriosa cingiu. Na quarta aurora, Anjo das virgens, anjo de azas brancas, Pudor, onde te foste? A alva capella Murcha e desfeita pelo chão lançada, Coberta a face do rubor do pejo, Os olhos com as mãos velando, alçaste Para a Eterna Pureza o eterno voo. Quem ao tempo cortar pudera as azas Se deleitoso voa? Quem pudera Suster a hora abençoada e curta Da ventura que foge, o sobre a terra O goso transportar da eternidade? Sabina viu correr tecidos de ouro Aquelles dias unicos na vida Toda enlevo e paixão, sincera e ardente Nesse primeiro amor d’alma que nasce E os olhos abre ao sol. Tu lhe dormias, Consciencia; razão, tu lhe fechavas A vista interior; e ella seguia Ao sabor dessas horas mal furtadas Ao captiveiro e á solidão, sem vel-o O fundo abysmo tenebroso e largo Que a separa do eleito de seus sonhos, Nem presentir a brevidade e a morte! E com que olhos ele pena e de saudade Viu ir-se um dia pela estrada fóra Octavio! Aos livros torna o moço alumno, Não cabisbaixo e triste, mas sereno E lepido. Com ella a alma não fica De seu joven senhor. Lagrima pura, Muito embora de escrava, pela face Lentamente lhe rola, e lentamente Toda se esvae n’um pallido sorriso De mãe. Sabina é mãe; o sangue livre Gyra e palpita no captivo seio [5]Da esperança. Ora, quiz fortuna adversa Que o coração do moço, tão voluvel Como a brisa que passa ou como as ondas, Nos cabellos castanhos se prendesse De donzella gentil, com quem atára O laço conjugal: uma belleza Pura, como o primeiro olhar da vida, Uma flor desbrochada em seus quinze annos, Que o moço viu n’um dos serões da côrte E captivo adorou. Que ha de fazer-lhes Agora o pae? Abençoar os noivos E ao regaço trazel-os da familia. Oh longa foi, longa e ruidosa a festa Da fazenda, por onde alegre entrára O moço Octavio conduzindo a esposa. Viu-os chegar Sabina, os olhos seccos Attonita e pasmada. Breve o instante Da vista foi. Rapido foge. A noite A seu tremulo pé não tolhe a marcha; Voa, não corre ao malfadado rio, Onde a voz escutou do amado moço. Ali chegando: « Morrerá commigo O fructo de meu seio; a luz da terra Seus olhos não verão; nem ar da vida Hade aspirar... » Ia a cair nas aguas, Quando subito horror lhe toma o corpo; Gelado o sangue e tremula recúa. Vacilla e tomba sobre a relva. A morte Em vão a chama e lhe fascina a vista; Vence o instincto de mãe. Erma e calada A ficou. Viu-a jazer a lua Largo espaço da noite ao pé das aguas, E ouviu-lhe o vento os tremulos suspiros; Nenhum d’elles, comtudo, o disse á aurora. ULTIMA JORNADA I E ella se foi n’esse clarão primeiro, Aquella esposa misera e ditosa; E elle se foi o perfido guerreiro. Ella serena ia subindo e airosa, Elle á fôrça de incognitos pesares Dobra a cerviz rebelde e luctuosa. Iam assim, iam cortando os ares, Deixando em baixo as fertiles campinas, E as florestas, e os rios e os palmares. Oh! candidas lembranças infantinas! Oh! vida alegre da primeira taba: Que aurora vos tomou, aves divinas? Como um tronco do matto que desaba, Tudo caiu; lei barbara e funesta: O mesmo instante cria e o mesmo acaba. De esperanças tamanhas o que resta? Uma historia, uma lagrima chorada Sobre as ultimas ramas da floresta. A flor do ipê a viu brotar maguada, E talvez a guardou no seio amigo, Como lembrança da estação passada. Agora os dous, deixando o bosque antigo, E as campinas, e os rios e os palmares, Para subir ao derradeiro abrigo, Iam cortando lentamente os ares. II E elle clamava á moça que ascendia « — Oh ! tu que a doce luz eterna levas, E vás viver na região do dia, « Vê como rasgam barbaras e sevas As tristezas mortaes ao que se afunda Quasi na fria região das trevas! « Olha esse sol que a creação inunda! Oh quanta luz, oh quanta doce vida Deixar-me vae na escuridão profunda! « Tu ao menos perdoa-me, querida! Suave esposa, que eu ganhei roubando. Perdida agora para mim, perdida! Ao maldito na morte, ao miserando, Que mais lhe resta em sua noite impura? Sequer allivio ao coração nefando. « Nos olhos trago a tua morte escura. Foi meu odio cruel que ha decepado, Ainda em flor, a tua formosura. « Mensageiro de paz, era enviado Um dia á taba de teus paes. um dia Que melhor fôra se não fôra nado. Ali te vi; ali, entre a alegria De teus fortes guerreiros e donzellas Teu doce rosto para mim sorria. « A mais bella eras tu entre as mais bellas. Como no ceu a creadora lua Vence na luz as vívidas estrellas. « Gentil nasceste por desgraça tua; Eu covarde nasci; tu me seguiste; E ardeu a guerra desabrida e crua. « Um dia o rosto carregado o triste Á taba de teus paes volveste, o rosto Com que alegre e feliz d’ali fugiste. « Tinha expirado o passageiro gosto, Ou o sangue dos teus, correndo a fio, Em teu seio outro affecto havia posto. « Mas, ou fôsse remorso, ou já fastio, Ias-te agora leve e descuidada, Como folha que o vento entrega ao rio. « Oh! corça minha fugitiva e amada! Anhangá te guiou por mau caminho, E a morte poz na minha mão fechada. « Feriu-me da vingança agudo espinho; E fiz-te padecer tão cruas penas, Que inda me doe o coração mesquinho. « Ao contemplar aquellas tristes scenas, As aves, de piedosas e sentidas, Chorando foram sacudindo as pennas. « Não viu o cedro ali correr perdidas Lagrimas de materno amado seio; Viu somente morrer a flor das vidas. « O que mais houve da floresta em meio O sinistro expectaculo, de certo Nenhum estranho contemplal-o veiu. « Mas, se alguem penetrasse no deserto Víra cair pesadamente a massa Do corpo do guerreiro; e o craneo aberto, « Como se fôra derramada taça, Pela terra jazer, alí chamando O feio grasno do urubú que passa. « Em vão a arma do golpe irão buscando, Nenhuma houve; nem guerreiro ousado A tua morte ali foi castigando « Talvez, talvez Tupan, desconsolado, A pena contemplou maior do que era O delicto; e de colera tomado. « Ao mais alto dos Andes estendêra O forte braço, e da arvore mais forte A setta e o arco vingador colhêra; « As pontas lhe dobrou, da mesma sorte Que o junco dobra, sussurrando o vento, E de um só tiro lhe enviou a morte. » Ia assim suspirando este lamento, Quando subitamente a voz lhe cala, Como se a dor lhe suffocára o alento. No ar se perdêra a lastimosa falla, E o infeliz, condemnado á noite escura, Os dentes range e treme de encontral-a. Leva os olhos na viva aurora pura Em que vê penetrar, já longe, aquella Doce, mimosa, virginal figura. Assim no campo a timida gazella Foge o se perde; assim no azul dos mares Some-se e morre fugidia vela. E nada mais se viu fluctuar nos ares; Que elle, bebendo as lagrimas que chora Na noute entrou dos immortaes pesares, E ella de todo mergulhou na aurora. OS ORIZES (FRAGMENTO) I Nunca as armas christans, nem do Evangelho O lume creador, nem frecha extranha O valle penetraram dss guerreiros Que, entre serros altissimos sentado, Orgulhoso descança. Unico o vento, Quando as azas desprega impetuoso, Os campos varre e as selvas estremece, Um pouco leva, ao recatado asylo, Da poeira da terra. Acaso o raio Alguma vez nos asperos penedos, Com fogo escreve a assolação e o susto. Mas olhos de homem, não; mas braço affeito A pleitear na guerra, a abrir ousado Caminho entre a espessura da floresta., Não affrontára nunca os atrevidos Muros que a natureza a pino erguêra Como eterna atalaia. II Um povo indocil Nessas brenhas achou ditosa patria, Livre, como o rebelde pensamento Que ímpia força não doma, e airoso volve Inteiro á eternidade. Guerra longa E porfiosa os adestrou nas armas; Rudes são nos costumes mais que quantos Ha criado este sol, quantos na guerra O tacape meneiam vigoroso. Só nas festas de plumas se ataviam Ou na pelle do tigre o corpo envolvem, Que o sol queimou, que a rispidez do inverno Endureceu como os robustos troncos Que só verga o tufão. Tecer não usam A preguiçosa rede em que se embale O corpo fatigado do guerreiro, Nem as tabas erguer como outros povos; Mas á sombra elas arvores antigas, Ou nas medonhas cavas dos rochedos, No duro chão, sobre mofinas hervas, Acham somno de paz, jamais tolhido De ambições, de remorsos. Indomavel Essa terra não é; prompto lhes volve O semeado pão; vecejam flores Com que a rudez tempera a extensa matta, E o fructo pende dos curvados ramos Do arvoredo. Harta messe do homem rude, Que tem na ponta da farpada seita O pesado tapir, que lhes não foge, Nhandu, que á flor de terra inquieta voa, Sobejo pasto, o deleitoso e puro Da selvagem nação. Nunca vaidade De seu nome souberam, mas a força, Mas a destreza do provado braço Os foros são do imperio a que hão sugeito Todo aquelle sertão. Murmuram longe, Contra elles, as gentes debelladas Vingança e odio. Os ecos repetiram Muita vez a pocema de combate; Nuvens e nuvens de afiadas seitas Todo o ar cobriram; mas o extremo grito Da vicloria final só delles fora. III Despem armas de guerra; a paz os chama E o seu barbaro rito. Alveja perto O dia em que primeiro a voz levante A ave sagrada, o nume de seus bosques, Que de agouro chamamos, Cupuaba Melancholica e feia, mas ditosa E benefica entre elles. Não se curvam Ao nome de Tupan, que a noite e o dia No ceu reparte, e ao rispido guerreiro Guarda os sonhos do Ybake e eternas dansas Seu deus unico é ella, a bemfazeja Ave amada, que os campos despovoa Das venenosas serpes, — viva imagem Do tempo vingador, lento e seguro, Que as calumnias, a inveja o o ódio apagai E ao conspurcado nome o alvor primeiro Restitue. Uso é delles celebrar-lhe Com festas o primeiro e o extremo canto. IV Terminára o cruento sacrifício. Ensopa o chão da dilatada selva Sangue de caitetus, que o pio intento Largos mezes cevou; barbara usança Tambem de alheios climas. As donzellas, Mal sahidas da infancia, inda embebidas Nos ledos jogos de primeira edade, Ao brutal sacrifício... Oh! cala, esconde. Labio christão, mais barbaro costume. V Agora a dansa, agora alegres vinhos, Trez dias ha que de inimigos povos Esquecidos os trazem. Sobre um tronco Sentado o chefe, carregado o rosto, Inquieto o olhar, o gesto pensativo, Como alheio ao prazer, de quando em quando Á multidão dos seus a vista alonga, E um rugido no peito lhe murmura. Quem a fronte enrugára do guerreiro? Inimigo não foi, que o medo nunca O sangue lhe esfriou, nem vão receio Da batalha futura o desenlace Lhe fez incerto. Intrepidos como elle Poucos vira este ceu. Seu forte braço, Quando vibra o tacape nas pelejas, De rasgados cadaveres o campo Inteiro alastra, e ao peito do inimigo, Como um grito de morte a voz lhe soa. Nem só nas gentes o terror infunde; É fama que em seus olhos cor da noite, Inda creança, um genio lhe deixára Mysteriosa luz, que as forças quebra Da onça e do jaguar. Certo é que um dia (A tribu o conta, e seus pagés o juram) Um dia em que, do filho acompanhado, Ia costeando a orla da floresta, Um possante jaguar, escancarando A bocca, em frente do famoso chefe Estacara. De longe um grito surdo Solta o joven guerreiro; logo a setta Embebe no arco, e o tiro sibilante Ia já disparar, quando de assombro A mão lhe afrouxa a distendida corda. A fera o collo timida abatêra, Sem ousar despregar os fulvos olhos Dos olhos do inimigo. Ureth ousado Arco o frechas atira para longe, A massa empunha, e lento, e lento avança; Tres vezes volteando a arma terrivel, Emfim despede o golpe; um grito apenas. Unico atroa o solitario campo, E a fera jaz, e o vencedor sobre ella. OCCIDENTAES O DESFECHO Prometheu sacudiu os braços manietados E supplice pediu a eterna compaixão. Ao ver o desfilar dos seculos que vão Pausadamente, como um dobre de finados. Mais dez, mais cem, mais mil e mais um billião, Uns cingidos de luz, outros ensanguentados... Subito, sacudindo as azas de tufão, Fita-lhe a aguia em cima os olhos espantados. Pela primeira vez a viscera do heroe, Que a inimensa ave do ceu perpetuamente roe, Deixou de renascer ás raivas que a consomem. Uma invisivel mão as cadeias dilue; Frio, inerte, ao abysmo um corpo morto roe; Acabára o supplicio e acabára o homem. CIRCULO VICIOSO Bailando no ar, gemía inquieto vagalume: — « Quem me dera que fosse aquella loura estrella, Que arde no eterno azul, como uma eterna vela! » Mas a estrella, fitando a lua, com ciume: — « Pudesse eu copiar o transparente lume, Que, da grega columna á gothica janella, Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bella! » Mas a lua, fitando o sol, com azedume: — « Misera! tivesse eu aquella enorme, aquella Claridade immortal, que toda a luz resume! » Mas o sol, inclinando a rutila capella: — « Pesa-me esta brilhante aureola de nume... Enfara-me esta azul e desmedida umbella... Porque não nasci eu um simples vagalume? » UMA CREATURA Sei de uma creatura antiga e formidavel, Que a si mesma devora os membros e as entranhas, Com a sofreguidão da fome insaciavel. Habita juntamente os valles e as montanhas; E no mar, que se rasga, á maneira de abysmo, Espreguiça-se toda em convulsões extranhas. Traz impresso na fronte o obscuro despotismo Cada olhar que despede, acerbo e mavioso, Parece uma expansão de amor e de egoísmo. Friamente contempla o desespero e o goso, Gosta do colibri, como gosta do verme, E cinge ao coração o bello e o monstruoso. Para ella o chacal é, como a rola, inerme; E caminha na terra imperturbavel, como Pelo vasto areal um vasto pachyderme. Na arvore que rebenta o seu primeiro gomo Vem a folha, que lento e lento se desdobra, Depois a flor, depois o suspirado pomo. Pois essa creatura está em toda a obra: Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fructo; E é nesse destruir que as suas forças dobra. Ama de qual amor o polluto e o impolluto; Começa e recomeça uma perpetua lida, E sorrindo obedece ao divino estatuto. Tu dirás que é a Morte: en direi que é a Vida. A ARTHUR DE OLIVEIRA, ENFERMO Sabes tu de um poeta enorme Que andar não usa No chão, e cuja extranha musa, Que nunca dorme. Calça o pé, melindroso e leve, Como uma pluma, De folha e flor, de sol e neve, Crystal e espuma; E mergulha, como Leandro, A fórma rara No Pó, no Sena, em Guanabara E no Scamandro; Ouve a Tupan e escuta a Momo, Sem controversia, E tanto ama o trabalho, como Adora a inercia; Ora do fuste, ora da ogiva, Sair parece; Ora o Deus do occidente esquece Pelo deus Siva; Gosta do estrepito infinito, Gosta das longas Solidões em que se ouve o grito Das arapongas; E, se ama o lepido besouro, Que zumbe, zumbe, E a mariposa que succumbe Na flamma de ouro, Vagalumes e borboletas, Da côr da chamma, Roxas, brancas, rojadas, pretas, Não menos ama Os hippopotamos tranquillos, E os elephantes, E mais os bufalos nadantes, E os crocodilos, Como as girafas e as pantheras, Onças, condores, Toda a casta de bestas feras E voadores. Se não sabes quem elle seja Trepa de um salto, Azul acima, onde mais alto A aguia negreja; Onde morre o clamor iniquo Dos violentos, Onde não chega o riso obliquo Dos fraudulentos; Então, olha de cima posto Para o oceano, Verás n ‘um longo rosto humano Teu proprio rosto. E has de rir, não do riso antigo. Potente e largo, Riso de eterno moço amigo, Mas de outro amargo, Como o riso de um deus enfermo Que se aborrece Da divindade, e que appetece Tambem um termo… MUNDO INTERIOR Ouço que o natureza é uma lauda eterna De pompa, de fulgor, de movimento e lida, Uma escala de luz, uma escala de vida De sol á infima luzerna. Ouço que a natureza, — a natureza externa, — Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida, Feiticeira que ceva uma hydra de Lerna Entre as flores da bella Armida. E contudo, se fecho os olhos, e mergulho Dentro em mim, vejo á luz de outro sol, outro abysmo, Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho, Róla a vida immortal e o eterno cataclysmo, E, como o outro, guarda em seu ambito enorme, Um segredo que attrae, que desafia — e dorme. O CORVO (EDGAR POE) Em certo dia, á hora, á hora Da meia noite que apavora, Eu, cahindo de somno e exhausto de fadiga. Ao pé de muita lauda antiga, De uma velha doutrina, agora morta, Ia pensando, quando ouvi á porta Do meu quarto um soar devagarinho E disse estas palavras taes: « É alguém que me bate á porta de mansinho; « Ha de ser isso e nada mais. » Ah! bem me lembro! bem me lembro! Era no glacial Dezembro; Cada braza do lar sobre o chão reflectia A sua ultima agonia. Eu, ancioso pelo sol, buscava Saccar d’aquelles livros que estudava Repouso (em vão!) á dôr esmagadora D’estas saudades immortaes Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora, E que ninguem chamará mais. E o rumor triste, vago, brando Das cortinas ia acordando Dentro em meu coração um rumor não sabido Nunca por elle padecido. Emfim, por applacal-o aqui no peito, Levantei-me de prompto, e: « Com effeito, (Disse) é visita amiga e retardada « Que bate a estas horas taes. « É visita que pede á minha porta entrada: « Ha de ser isso e nada mais. » Minh’alma então sentiu-se forte; Não mais vacillo e d’esta sorte Fallo: « Imploro de vós, — ou senhor ou senhora, « Me desculpeis tanta demora. « Mas como eu, precisado de descanço, « Já cochilava, e tão de manso e manso « Batestes, não fui logo, prestemente, « Certificar-me que ahi estaes. » Disse; a porta escancaro, acho a noite somente, Sómente a noite, e nada mais. Com longo olhar escruto a sombra, Que me amedronta, que me assombra, E sonho o que nenhum mortal ha já sonhado, Mas o silencio amplo e calado, Calado fica; a quietação quieta; Só tu, palavra unica e dilecta, Lenora, tu, como um suspiro escasso, Da minha triste boca saes; E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço; Foi isso apenas, nada mais. Entro co a alma incendiada. Logo depois outra pancada Sôa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ella: « Seguramente, ha na janella « Alguma cousa que sussura. Abramo « Eia, fôra o temor, eia, vejamos « A explicação do caso mysterioso « D’essas duas pancadas taes. « Devolvamos a paz ao coração medroso « Obra do vento e nada mais. » Abro a janella, e de repente, Vejo tumultuosamente Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias. Não despendeu em cortezias Um minuto, um instante. Tinha o aspecto De um lord ou de uma lady. E prompto e recto, Movendo no ar as suas negras alas, Acima vôa dos portaes, Trepa, no alto da porta, em um busto de Pallas; Trepado fica, e nada mais. Diante da ave feia e escura, Naquella rigida postura, Com o gesto severo, — o triste pensamento Sorriu-me alli por um momento, E eu disse: « Ó tu que das nocturnas plagas « Vens, embora a cabeça nua tragas, « Sem topete, não és ave medrosa, « Dize as teus nomes senhoriaes; « Como te chamas tu na grande noite umbrosa? » E o corvo disse; « Nunca mais. » Vendo que o passaro entendia A pergunta que lhe eu fazia, Fico attonito, embora a resposta que dera Difficilmente lh’a entendera. Na verdade, jamais homem ha visto Cousa na terra semelhante a isto: Uma ave negra, friamente posta N’um busto, acima dos portaes, Ouvir uma pergunta e dizer em resposta Que este é seu nome: « Nunca mais. » No emtanto, o corvo solitario Não teve outro vocabulario, Como se essa palavra escassa que alli disse Toda a sua alma resumisse. Nenhuma outra proferiu, nenhuma, Não chegou a mexer uma só pluma, Até que eu murmurei: « Perdi outr’ora « Tantos amigos tão leaes! « Perdeirei tambem este em regressando a aurora, » E o corvo disse: « Nunca mais! » Estremeço. A resposta ouvida É tão exacta! é tão cabida! « Certamente, digo eu, essa é toda a sciencia « Que elle trouxe da convivência « De algum mestre infeliz e acabrunhado « Que o implacavel destino ha castigado « Tão tenaz, tão som pausa, nem fadiga. « Que dos seus cantos usuaes « Só lhe ficou, na amarga e ultima cantiga, « Esse estribilho: « Nunca mais. » Segunda vez, nesse momento, Sorriu-me o triste pensamento; Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rodo: E mergulhando no velludo Da poltrona que eu mesmo alli trouxera Achar procuro a lugubre chimera, A alma, o sentido, o pavido segredo Daquellas syllabas fataes. Entender o que quiz dizer a ave do medo Grasnando a phrase: — Nunca mais. Assim posto, devaneando, Meditando, conjectturando, Não lhe fallava mais; mas, se lhe não fallava. Sentia o olhar que me abrazava. Conjecturando fui, tranquillo, a gosto, Com a cabeça no macio encosto Onde os raios da lampada cahiam Onde as trancas angelicaes De outra cabeça outr’ora alli se desparziam, E agora não se esparzem mais. Suppuz então que o ar, mais denso, Todo se enchia de um incenso, Obra de seraphins que, pelo chão roçando Do quarto, estavam meneando Um ligeiro thuribulo invisivel; E eu exclamei então: « Um Deus sensivel « Manda repouso á dor que te devora « D’estas saudades immortaes. « Eia, esquece, eia, olvida essa extincta Lenora. » E o corvo disse: « Nunca mais. » « Propheta, ou o que quer que sejas! « Ave ou demonio que negrejas! « Propheta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno « Onde reside o mal eterno, « Ou simplesmente naufrago escapado « Venhas do temporal que te ha lançado « N’esta casa onde o Horror, o Horror profundo « Tem os seus lares triumphaes, « Dize-me: existe acaso um balsamo no mundo? » E o corvo disse: « Nunca mais. » « Propheta, ou o que quer que sejas! « Ave ou demonio que negrejas! « Propheta sempre, escuta, attende, escuta, attende! « Por esse céu que além se estende, « Pelo Deus que ambos adoramos, falla, « Dize a esta alma se é dado inda escutal-a « No Eden celeste a virgem que ella chora « Nestes retiros sepulchraes, « Essa que ora nos ceus anjos chamam Lenora! E o corvo disse: « Nunca mais. » « Ave ou demonio que negrejas! « Propheta, ou o que quer que sejas! « Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa! « Regressa ao temporal, regressa « Á tua noite, deixa-me commigo. « Vae-te, não fique no meu casto abrigo « Pluma que lembre essa mentira tua. « Tira-me ao peito essas fataes « Garras que abrindo vão a minha dor já crua. » E o corvo disse: « Nunca mais. » E o corvo ahi fica; eil-o trepado No branco marmore lavrado Da antiga Pallas; eil-o immutavel, ferrenho. Parece, ao ver-lhe o duro cenho, Um demonio sonhando. A luz cahida Do lampeão sobre a ave aborrecida No chão espraia a triste sombra; e fóra D’aquellas linhas funeraes Que fluctuam no chão, a minha alma que chora Não sai mais, nunca, nunca mais! PERGUNTAS SEM RESPOSTA Venus formosa, Venus fulgurava No azul do ceu da tarde que morria, Quando á janella os braços encostava Pallida Maria. Ao ver o noivo pela rua umbrosa, Os longos olhos avidos enfia, E fica de repente côr de rosa Pallida Maria. Correndo vinha no cavallo baio, Que ella de longe apenas distinguia, Correndo vinha o noivo, como um raio. Pallida Maria! Tres dias são, tres dias são apenas, Antes que chegue o suspirado dia. Em que elles porão termo ás longas penas... Pallida Maria! De confusa, naquelle sobresalto, Que a presença do amado lhe trazia, Olhos accesos levantou ao alto Pallida Maria E foi subindo, foi subindo acima No azul do ceu da tarde que morria, A ver se achava uma sonora rima... Pallida Maria! Rima de amor, ou rima de ventura. As mesmas são na escala da harmonia. Pousa os olhos em Venus que fulgura Pallida Maria. E o coração, que de prazer lhe bate, Acha no astro a fraterna melodia Que á natureza inteira dá rebate... Pallida Maria! Maria pensa: « Tambem tu, de certo, « Esperas ver, neste final do dia, « Um noivo amado que cavalga perto, « Pallida Maria? » Isto dizendo, subito escutava Um estrepito, um grito e vozeria, E logo a frente em ancias inclinava Pallida Maria. Era o cavallo, rabido, arrastando Pelas pedras o noivo que morria; Maria o viu e desmaiou gritando... Pallida Maria! Sobem o corpo, vestem-lhe a mortalha, E a mesma noiva, semi-morta e fria, Sobre elle as folhas do noivado espalha. Pallida Maria! Cruzam-lhe ao mãos, na derradeira prece Muda que o homem para cima envia, Antes que desça á terra em que apodrece. Pallida Maria! Seis homens tomam do caixão fechado E vão leval-o á cova que se abria; Terra e cal e um responso recitado... Pallida Maria! Quando, tres soes passados, rutilava A mesma Venus, no morrer do dia, Tristes olhos ao alto levantava Pallida Maria. E murmurou: « Tens a expressão do goivo, « Tens a mesma roaz melancholia; « Certamente perdeste o amor e o noivo, « Pallida Maria? » Venus, porém, Venus brilhante e bella, Que nada ouvia, nada respondia, Deixa rir ou chorar n’uma janella Pallida Maria. TO BE OR NOT TO BE (SHAKESPEARE) Ser ou não ser, eis a questão. Acaso E mais nobre a cerviz curvar aos golpes Da ultrajosa fortuna, ou já lutando Extenso mar vencer de acerbos males? Morrer, dormir, não mais. E um somno apenas, Que as angustias extingue e á carne a herança Da nossa dor eternamente acaba, Sim, cabe ao homem suspirar por elle. Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe? Ai, eis a duvida. Ao perpetuo somno, Quando o lodo mortal despído houvermos, Que sonhos hão de vir? Pesal-o cumpre. Essa a razão que os luctuosos dias Alonga do infortunio. Quem do tempo Soffrer quizera ultrages e castigos, Injurias da oppressão, baldões do orgulho, Do mal prezado amor choradas maguas, Das leis a inercia, dos mandões a affronta, E o vão desdem que de rasteiras almas O paciente merito recebe, Quem, se na ponta da despida lamina Lhe acenára o dascanço? Quem ao pezo De uma vida de enfados e miserias Quereria gemer, se não sentira Terror de alguma não sabida cousa Que aguarda o homem para lá da morto, Esse eterno paiz mysterioso D’onde um viajor sequer ha regressado? Este só pensamento enleia o homem; Este nos leva a supportar as dores Já sabidas de nós, em vez de abrirmos Caminhoo aos males que o futuro esconde; E a todos acovarda a consciencia. Assim da reflexão á luz mortiça A viva côr da decisão desmaia; E o firme, essencial commettimento, Que esta ideia abalou, desvia o curso. Perde-se, até de acção perder o nome. LINDOYA Vem, vem das aguas, misera Moema, Senta-te aqui. As vozes lastimosas Troca pelas cantigas deleitosas, Ao pé da doce e pallida Coema. Vós, sombras de Iguassú e de Iracema, Trazei nas mãos, trazei no collo as rosas Que amor desabrochou e fez viçosas Nas laudas de um poema e outro poema. Chegai, folgai, cantai. É esta, é esta De Lindoya, que a voz suave e forte Do vate celebrou, a alegre festa. Alem do amavel, gracioso porte, Vede o mimo, a ternura que lhe resta. Tanto inda é bella no seu rosto a morte! SUAVE MARI MAGNO Lembra-me que, em certo dia, Na rua, ao sol de verão, Envenenado morria Um pobre cão. Arfava, espumava e ria, De um riso espurio e bufão, Ventre e pernas sacudia Na convulsão. Nenhum, nenhum curioso Passava, sem se deter, Silencioso, Junto ao cão que ia morrer, Como se lhe désse gozo Ver padecer. A MOSCA AZUL Era uma mosca azul, azas de ouro e granada, Filha da China ou do Indostão, Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada, Em certa noite de verão. E zumbia, e voava, e voava, e zumbia, Refulgindo ao clarão do sol E da lua, — melhor do que refulgiria Um brilhante do Grão-Mogol. Um poleá que a viu, espantado e tristonho, Um poleá lhe perguntou : « Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho, Dize, quem foi que t’o ensinou? » Então ella, voando, e revoando, disse: — « Eu sou a vida, eu sou a flor « Das graças, o padrão da eterna meninice, « E mais a gloria, e mais o amor. » E elle deixou-se estar a contempla-a, mudo, E tranquillo, como um fakir, Como alguem que ficou deslumbrado de tudo. Sem comparar, nem reflectir. Entro as azas do insecto, a voltear no espaço, Uma cousa lhe pareceu Que surdia, com todo o resplendor de um paço. E viu um rosto, que era o seu. Era elle, era um rei, o rei de Cachemira, Que tinha sobre o collo nú, Um immenso collar de opala, e uma saphyra Tirada ao corpo de Vischnu. Cem mulheres em flor, cem nayras superfinas. Aos pés delle, no liso chão, Espreguiçam sorrindo as suas graças finas, E todo o amor que tem lhe dão. Mudos, graves, de pé, cem ethiopes feios. Com grandes leques de avestruz, Refrescam-lhes de manso os aromados seios, Voluptuosamente nus. Vinha a gloria depois; — quatorze reis vencidos. E emfim as páreas triumphaes De trezentas nações, e os parabens unidos Das coroas occidentaes. Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto Das mulheres e dos varões, Como em agua que deixa o fundo descoberto, Via limpos os corações. Então elle, estendendo a mão callosa e tosca, Affeita a só carpintejar, Com um gesto pegou na fulgurante mosca, Curioso de a examinar. Quiz vel-a, quiz saber a causa do mysterio. E, fechando-a na mão, sorriu De contente, ao pensar que alli tinha um imperio, E para casa se partiu. Alvoroçado chega, examina, e parece Que se houve nessa occupação Miudamente, como um homem que quizesse Dissecar a sua illusão. Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ella, Rota, baça, nojenta, vil, Succumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquella Visão fantástica e subtil. Hoje, quando elle ahi vae, de áloe e cardamomo Na cabeça, com ar taful, Dizem que ensandeceu, e que não sabe como Perdeu a sua mosca azul. ANTONIO JOSE ( 21 DE OUTUBRO ME 1739) Antonio, a sapiencia da Escriptura Clama que ha para a humana creatura Tempo de rir e tempo de chorar, Como ha um sol no occaso, e outro na aurora. Tu, sangue de Ephraim e de Issacar, Pois cjue já riste, chora. SPINOZA Gosto de ver-te, grave e solitario, Sob o fumo de esqualida candeia, Nas mãos a ferramenta de operario, E na cabeça a coruscante ideia. E emquanto o pensamento delineia Uma philosophia, o pão diario A tua mão a labutar grangeia E achas na independencia o teu salario. Sôem cá fra agitações e lutas, Sibille o bafo asperrimo do inverno, Tu trabalhas, tu pensas, e executas Sóbrio, tranquillo, desvellado e terno, A lei commum, e morres, e transmutas O suado labor no premio eterno. GONÇALVES CRESPO Esta musa da patria, esta saudosa Niobe dolorida, Esquece acaso a vida, Mas não esquece a morte gloriosa. E pallida, e chorosa, Ao Tejo vôa, onde no chão caida Jaz aquella evadida Lyra da nossa America viçosa. Com ella torna, e, dividindo os ares, Trepido, molle, doce movimento Sente nas frouxas cordas singulares. Não é a aza do vento, Mas a sombra do filho, no momento De entrar perpetuamente os patrios lares. ALENÇAR Hão de os annos volver, — não como as neves De alheios climas, de geladas cores; Hão de os annos volver, mas como as flores, Sobre o teu nome, vívidos e leves… Tu, cearense musa, que os amores Meigos e tristes, rusticos e breves, Da indiana escreveste, — ora os escreves No volume dos patrios esplendores. E ao tornar este sol, que te ha levado, Já não acha a tristeza. Extincto é o dia Da nossa dor, do nosso amargo espanto. Porque o tempo implacavel e pausado, Que o homem consumiu na terra fria, Não consumiu o engenho, a flor, o encanto… CAMÕES I Tu quem és? Sou o seculo que passa. Quem somos nós? A multidão fremente. Que cantamos? A gloria resplendente. De quem? De quem mais soube a força e a graça. Que cantou elle? A vossa mesma raça. De que modo? Na lyra alta e potente. A quem amou? A sua forte gente. Que lhe deram? Penuria, ermo, desgraça. Nobremente soffreu? Como homem forte. Esta immensa oblação?... É-lhe devida. Paga?... Paga-lhe toda a adversa sorte. Chama-se a isto? A gloria appetecida. Nós, que o cantamos?... Volvereis á morte. Elle, que é morto?... Vive a eterna vida. II Quando, transposta a lugubre morada Dos castigos, ascende o florentino Á região onde o clarão divino Enche de intensa luz a alma nublada, A saudosa Beatriz, a antiga amada, A mão lhe estende e guia o peregrino, E aquelle olhar ethereo e cristallino Rompe agora da palpebra sagrada. Tu que tambem o Purgatorio andaste, Tu que rompeste os circulos do Inferno, Camões, se o teu amor fugir deixaste, Ora o tens, como um guia alto e superno Que a Natercia da vida que choraste Chama-se Gloria e tem o amor eterno. III Quando, torcendo a chave mysteriosa Que os cancellos fechava do Oriente, O Gama abriu a nova terra ardente Aos olhos da companha valorosa, Talvez uma visão resplandecente Lhe amostrou no futuro a sonorosa Tuba, que cantaria a acção famosa Aos ouvidos da propria e estranha gente. E disse: « Se já n’outra, antiga edade, « Troya bastou aos homens, ora quero « Mostrar que é mais humana a humanidade. « Pois não serás heroe de um canto fero, « Mas vencerás o tempo e a immensidade « Na voz do outro moderno e brando Homero. » IV Um dia, junto á foz de brando e amigo Rio de extranhas gentes habitado, Pelos mares asperrimos levado, Salvaste o livro que viveu comtigo. E esse que foi ás ondas arrancado, Já livre agora do mortal perigo, Serve de arca immortal, de eterno abrigo, Não só a ti, mas ao teu berço amado. Assim, um homem só, naquelle dia, Naquelle escasso ponto do universo, Lingua, historia, nação, armas, poesia, Salva das frias mãos do tempo adverso. E tudo aquillo agora o desafia. E tão sublime preço cabe em verso. 1805-1885 Um dia, celebrando o genio e a eterna vida, Victor Hugo escreveu numa pagina forte Estes nomes que vão galgando a eterna morte, Isaias, a voz de bronze, alma sahida Da coxa de David; Eschylo que a Orestes E a Prometheu, que soffre as vinganças celestes, Deu a nota immortal que abala e persuade, E transmitte o terror, como excita a piedade; Homero, que cantou a colora potente De Achilles, e colheu as lagrimas troyanas Para gloria maior da sua amada gente, E com elle Virgilio e as graças virgilianas; Juvenal, que marcou com ferro em brasa o hombro Dos tyrannos, e o velho e grave florentino, Que mergulha no abysmo, e caminha no assombro, Baixa humano ao inferno e regressa divino; Logo após Calderon, o logo após Cervantes; Voltaire, que mofava, e Rabelais que ria; E, para coroar esses nomes vibrantes, Shakespeare, que resume a universal poesia. E agora que elle ahi vae, galgando a eterna morte, Pega a Historia da penna e na pagina forte, Para continuar a serie interrompida, Escreve o nome d’elle, e dá-lhe a eterna vida. JOSÉ DE ANCHIETA Esse que as vestes asperas cingia, E a viva flor da ardente juventude Dentro do peito a todos escondia; Que em paginas de areia vasta e rude Os versos escrevia e encommendava Á mente, como esforço de virtude; Esse nos rios de Babel achava, Jerusalem, os cantos primitivos, E novamente aos ares os cantava. Não procedia então como os captivos De Syão, consumidos de saudade, Velados de tristeza, e pensativos. Os cantos de outro clima e de outra edade Ensinava sorrindo ás novas gentes, Pela lingua do amor e da piedade. E iam caindo os versos excellentes No abençoado chão, e iam caindo Do mesmo modo as mysticas sementes. Nas florestas os passaros, ouvindo O nome de Jesus e os seus louvores Iam cantando o mesmo canto lindo. Eram as notas como alheias flores Que verdejam no meio de verduras De diversas origens e primores. Anchieta, soltando as vozes puras, Achas outra Syão neste hemispherio, E a mesma fé e egual amor apuras. Certo, ferindo as cordas do psalterio, Unicamente contas divulgal-a A palavra christã e o seu mysterio. Trepar não cuidas a luzente escala Que aos heroes cabe e leva á clara esphera Onde eterna se faz a humana fala. Onde os tempos não são esta chimera Que apenas brilha e logo se esvaece, Como folhas de escassa primavera. Onde nada se perde nem se esquece E no dorso dos seculos trazido O nome de Anchieta resplandece Ao vivo nome do Brasil unido. SONETO DE NATAL Um homem, — era aquella noite amiga, Noite christã, berço do Nazareno, — Ao relembrar os dias de pequeno, E a viva dansa, e a lepida cantiga, Quiz transportar ao verso doce e ameno As sensações da sua edade antiga, Naquella mesma velha noite amiga, Noite christã, berço do Nazareno. Escolheu o soneto... A folha branca Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca, A penna não acode ao gesto seu. E, em vão lutando contra o metro adverso, Só lhe saiu este pequeno verso: « Mudaria o Natal ou mudei eu? » OS ANIMAES ISCADOS DA PESTE ( LA FONTAINE) Mal que espalha o terror e que a ira celeste Inventou para castigar Os peccados do mundo, a peste, em summa, a peste, Capaz de abastecer o Acheronte n’um dia, Veiu entre os animaes lavrar; E, se nem tudo succumbia, Certo é que tudo adoecia. Já nenhum, por dar mate ao moribundo alento, Catava mais nenhum sustento. Não havia manjar que o appetite abrisse, Raposa ou lobo que saisse Contra a presa innocente e mansa, Rola que á rola não fugisse, E onde amor falta, adeus, folgança. O leão convocou uma assembléa é disse: « Socios meus, certamente este infortunio veiu A castigar-nos de peccados. Que o mais culpado entre os culpados Morra por applacar a colera divina. Para a commum saúde esse é, talvez, o meio. Em casos taes é de uso haver sacrificados; Assim a historia nol-o ensina. Sem nenhuma illusão, sem nenhuma indulgencia, Pesquizemos a consciencia. Quanto a mim, por dar mate ao impeto glotão, Devorei muita carneirada. Em que é que me offendera? em nada. E tive mesmo occasião De comer egualmente o guarda da manada. Portanto, se é mister sacrificar-me, prompto. Mas, assim como me accusei, Bom é que cada um se accuse, de tal sorte Que (devemos querel-o, e é de todo ponto Justo) caiba ao maior dos culpados a morte. » « — Meu senhor, accudiu a raposa, é ser rei Bom demais; é provar melindre exagerado. Pois então devorar carneiros, Raça lorpa e villã, pode lá ser peccado? Não. Vós fizeste-lhes, senhor, Em os comer, muito favor. E no que toca aos pegureiros, Toda a calamidade era bem merecida, Pois são daquellas gentes taes Que imaginaram ter posição mais subida Que a de nós outros animaes. » Disse a raposa, e a corte applaudiu-lhe o discurso. Ninguem do tigre nem do urso, Ninguem de outras eguaes senhorias do matto, Inda entre os actos mais damninhos. Ousava esmerilhar um acto; E até os ultimos rafeiros, Todos os bichos resingueiros Não eram, no estender geral, mais que uns santinhos. Eis chega o burro: « — Tenho ideia que no prado De um convento, indo eu a passar, e picado Da occasião, da fome e do capim viçoso, E póde ser que do tinhoso, Um bocadinho lambisquei Da plantação. Foi um abuso, isso é verdade. » Mal o ouviu, a assembléa exclama: o Aqui d’el-rei! » Um lobo, algo lettrado, arenga o persuade Que era força immolar esse bicho nefando, Empesteado autor de tal calamidade; E o peccadilho foi julgado Um attentado. Pois comer herva alheia! ó crime abominando! Era visto que só a morte Poderia purgar um peccado tão duro E o burro foi ao reino escuro. Segundo sejas tu miserável ou forte Aulicos te farão detestavel ou puro. DANTE (PURGATORIO, CANTO XXV.) Acabára o ladrão, e, ao ar erguendo As mãos em figas, deste modo brada: « Olha, Deus, para ti o estou fazendo! » E desde então me foi a serpe amada, Pois uma vi que o collo lhe prendia, Como a dizer: « não falarás mais nada! » Outra os braços na frente lhe cingia Com tantas voltas e de tal maneira Que elle fazer um gesto não podia. Ah! Pistoia, por que n’uma fogueira Não ardes tu, se a mais e mais impuros, Teus filhos vão nessa mortal carreira? Eu, em todos os circulos escuros Do inferno, alma não vi tão rebellada, Nem a que em Thebas resvalou dos muros. E elle fugiu sem proferir mais nada. Logo um centauro furioso assoma A bradar: « Onde, aonde a alma damnada? » Maremma não terá tamanha somma De reptis quanta vi que lhe ouriçava O dorso inteiro desde a humana coma. Junto á nuca do monstro se elevava De azas abertas um dragão que enchia De fogo a quanto alli se approximava. « Aquelle é Caco, — o Mestre me dizia, — Que, sob as rochas do Aventino, ousado Lagos de sangue tanta vez abria « Não vae de seus irmãos acompanhado Porque roubou malicioso o armento Que alli paseia na campanha ao lado, « Hercules com a maça e golpes cento, Sem lhe doer um decimo ao nefando, Poz remate a tamanho atrevimento. Elle falava, e o outro foi andando. Na emtanto embaixo vinham para nós Trez espiritos que só vimos quando Atroára esto grito: « Quem sois vós? » Nisto a conversa nossa interrompendo Elle, como eu, no grupo os olhos pôz. Eu não os conheci, mas succedendo, Como outras vezes succeder é certo, Que o nome de um estava outro dizendo, « Cianfa aonde ficou? » Eu, por que esperto E attento fosse o Mestre em escutal-o, Puz sobra a minha boca o dedo aberto. Leitor, não maravilha que acceital-o Ora te custe o que vás ter presente, Pois eu, que o vi, mal ouso acredital-o. Eu contemplava-os, quando uma serpente De seis pés temerosa se lhe atira A um dos tres e o colhe de repente. Co’ os pés do meio o ventre lhe cingira, Com os os da frente os braços lhe peava, E ambas as faces lhe mordeu com ira. Os outros dous ás coxas lhe alongava, E entre ellas insinua a cauda que ia Tocar-lhe os rins e dura os apertava. A hera não se enrosca nem se enfia Pela arvore, como a horrivel féra Ao peccador os membros envolvia. Como se fossem derretida cera, Uma só vulto, uma côr iam tomando, Quaes tinham sido nenhum delles era. Tal o papel, se o fogo o vae queimando, Antes de negro estar, e já depois Que o branco perde, fusco vae ficando. Os outros dous bradavam: « Ora pois, Agnel, ai triste, que mudança é essa? Olha que ja não és nem um nem dois! » Faziam ambas uma só cabeça, E na unica face um rosto mixto, Onde eram dois, a apparecer começa. Dos quatro braços dous restavam, e isto, Pernas, coxas e o mais ia mudado N’um tal composto que jamais foi visto. Todo o primeiro aspecto era acabado; Dous e nenhum era a cruel figura, E tal se foi a passo demorado. Qual cameleão, que variar procura De sebe ás horas em que o sol esquenta, E correndo parece que fulgura, Tal uma curta serpe se apresenta, Para o ventre dos dous corre accendida, Livida e côr de um bago de pimenta. E essa parte por onde foi nutrida Tenra creança antes que á luz saisse, N’um delles morde, e cae toda estendida. O ferido a encarou, mas nada disse; Firme nos pés, apenas bocejava, Qual se de febre ou somno alli caisse. Frente a frente, um ao outro contemplava, E á chaga de um, e á boca de outro, forte Fumo saía e no ar se misturava. Cale agora Lucano a triste morte De Sabello e Nasidio, e attento esteja Que o que lhe vou dizer é de outra sorte. Cale-se Ovidio e neste quadro veja Que, se Arethusa em fonte nos ha posto E Cadmo em serpe, não lhe tenho inveja. Pois duas naturezas rosto a rosto Não transmudou, com que ellas de repente Trocassem a materia e o ser opposto. Tal era o accordo entre ambas que a serpente A cauda em duas caudas fez partidas, E a alma os pés ajuntáva estreitamente. Pernas e coxas vi-as tão unidas Que nem leve signal dava a juntura De que tivessem sido divididas. Imita a cauda bifida a figura Que alli se perde, e a pelle abranda, ao passo Que a pelle do homem se tornava dura. Em cada axilla vi entrar em braço, A tempo que iam esticando á fera Os dous pés que eram de tamanho escasso. Os pés de traz a serpe os retorcêra Até formarem-lhe a encoberta parte, Que no infeliz em pés se convertêra. Emquanto o fumo os cobre, e de tal arte A côr lhes muda e põe á serpe o vello Que já da pelle do homem se lhe parte, Um caiu, o outro ergueu-se, sem torcel-o Aquelle torvo olhar com que ambos iam A trocar entre si o rosto e o vel-o. Ao que era em pé as carnes lhe fugiam Para as fontes, e alli do que abundava Duas orelhas de homem lhe saiam. E o que de sobra ainda lhe ficava O nariz lhe compõe e lhe perfaz E o labio lhe engrossou quanto bastava. A boca estende o que por terra jaz E as orelhas recolhe na cabeça, Bem como o caracol ás pontas faz. A lingua, que era então de uma só peça, E prestes a falar, fendida vi-a, Emquanto a do outro se une, e o fumo cessa. A alma, que assim tornado em serpe havia, Pelo valle fugiu assobiando, E esta lhe ia falando e lhe cuspia. Logo a recente espadua lhe foi dando E á outra disse: « Ora com Buoso mudo; Rasteje, como eu vinha rastejando! » Assim na cova setima vi tudo Mudar e transmuclar; a novidade Me absolva o estylo desornado e rudo. Mas que um tanto perdesse a claridade Dos olhos meus, e turva a mente houvesse, Não fugiram com tanta brevidade, Nem tão occultos, que eu não conhecesse Puccio Sciancato, unica alli vinda Alma que a fórma propria não perdesse; O outro chóral-o tu, Gaville, ainda. A FELICIO DOS SANTOS Felicio amigo, se eu disser que os annos Passam correndo ou passam vagarosos, Segundo são alegres ou penosos, Tecidos de affeições ou desenganos, « Philosophia á esta de rançosos! » Dirás. Mas não ha outra entre os humanos. Não se contam sorrisos pelos damnos, Nem das tristezas desabrocham gosos. Banal, confesso. O precioso e o raro É, seja o ceu nublado ou seja claro, Tragam os tempos amargura ou gosto, Não desdizer do mesmo velho amigo, Ser com os teus o que elles são comtigo, Ter um só coração, ter um só rosto. MARIA Maria, ha no seu gesto airoso e nobre, Nos olhos meigos e no andar tão brando, Um não sei quê suave que descobre, Que lembra um grande passaro marchando. Quero, ás vezes, pedir-lhe que desdobre As azas, mas não peço, reparando Que, desdobradas, podem ir voando Leval-a ao tecto azul que a terra cobre. E penso então, e digo então commigo: « Ao ceu, que vê passar todas as gentes Bastem outros primores de valia. « Passaro ou moça, fique o olhar amigo, O nobre gesto e as graças excellentes Da nossa cara e lepida Maria. » A UMA SENHORA QUE ME PEDIU VERSOS Pensa em ti mesma, acharás Melhor poesia, Viveza, graça, alegria, Doçura e paz. Se já dei flores um dia, Quando rapaz, As que ora dou tem assaz Melancolia. Uma só das horas tuas Valem um mez Das almas já resequidas. Os soes e as luas Creio bem que Deus os fez Para outras vidas. CLODIA Era Clodia a vergontea illustre e rara De uma familia antiga. Tez morena, Como o casca do pecego, deixava Transparecer o sangue e a juventude. Era a romana ardente e imperiosa Que os écos fatigou de Roma inteira Co’a narração das longas aventuras. Nunca mais gentil fronte o sol da Italia Amoroso beijou, nem mais gracioso Corpo envolveram tunicas de Tyro. Sombrios, como a morte, os olhos eram. A vermelha botina em si guardava Breve, divino pé. Humida boca, Como a rosa que os zephyros convida, Os beijos convidava. Era o modelo Da luxuosa Lamia, — aquella moça Que o marido esqueceu, e amou sem pejo O musico Pollião. De mais, fazia A illustre Clodia trabalhados versos; A cabeça curvava pensativa Sobre as tabellas núas; invocava Do classico Parnaso as musas bellas, E, se não mente linguaruda fama, Davam-lhe inspiração vadias musas. O ideal da matrona austera e fria, Cazeira e nada mais, esse acabava. Bem hajas tu, patricia desligada De preconceitos vãos, tu que presides Ao festim dos rapazes, tu que estendes Sobre verdes coxins airosas fórmas, Emquanto o esposo, consultando os dados, Perde risonho válidos sestereios... E tu, viuva misera, deixada Na flor dos annos, merencoria e triste, Que seria ele ti, se o gozo e o luxo Não te alegrassem a alma? Cedo esquece A memoria de um obito. E bem hajas, Discreto esposo, que morreste a tempo. Perdes, bem sei, dos teus rivaes sem conta Os custosos presentes, as ceiatas, Os jantares opiparos. Comtudo, Não verás cheia a casa de creanças Loiras obras ele artifices estranhos. Baias recebe a celebrada moça Entre festins e jubilos. Faltava Ao pomposo jardim das lacias flores Esta rosa de Poestum. Chega; é ella, É ella, a amavel dona. O ceu ostenta A larga face azul, que o sol no occaso Co’ os frouxos raios desmaiado tinge. Terno e brando abre o mar o espumeo seio; Molles respiram virações do golpho. Clodia chega. Tremei, moças amadas; Ovelhinhas dos placidos idylios, Roma vos manda esta faminta loba. Prendei, prendei com vinculos de ferro, Os voluveis amantes, que os não veja Esta formosa Páris. Inventai-lhes Um philtro protector, um philtro ardente, Que o fogo leve aos corações rendidos, E aos vossos pés eternamente os prenda; Clodia... Mas, quem pudera, a frio e a salvo, Um requebro affrontar daquelles olhos, Ver-lhe o turgido seio, as mãos, o talhe, O andar, a voz, ficar marmore frio Ante as supplices graças? Menor pasmo Fôra, se ao gladiador, em pleno circo, A panthera africana os pés lambesse, Ou se, á cauda de indomito cavallo, Ovantes hostes arrastassem Cesar. Coroados de rosas os convivas Entram. Trajam com graça vestes novas Tafues de Itália, finos e galhardos Patricios da republica expirante, E madamas faceiras. Vem entre elles Celio, a flor dos vadios, nobre moço, E opulento, o que é mais. Ambicioso Quer triumphar na classica tribuna E honras aspira até do consulado. Mais custoso lavor não vestem damas, Nem aroma melhor do seio exhalam. Tem na altivez do olhar sincero orgulho, E certo que o merece. Entre os rapazes Que á noite correm solitarias ruas, Ou nos jardins de Roma o luxo ostentam, Nenhum como elle, com mais ternas falas, Galanteou, vencendo, as raparigas. Entra: pregam-se nelle cobiçosos Olhos que amor venceu, que amor domina, Olhos fieis ao férvido Catullo. O poeta estremece. Brando e frio, O marido de Clodia os olhos lança Ao mancebo, e um sorriso complacente A boca lhe abre. Imparcial na luta, Vença Catullo ou Celio, ou vençam ambos, Não se lhe oppõe o dono: o aresto acceita. Vistes já como as ondas tumultuosas, Uma após outra, vem morrer á praia, E mal se rompe o espumeo seio áquella, Já esta corre e expira? Tal no peito Da calorosa Lesbia nascem, morrem As voluveis paixões. Vestal do crime, Dos amores vigia a chamma eterna, Não a deixa apagar; prompto lhe lança Oleo com que a alimente. Enrubecido De ternura e desejo o rosto volve Ao mancebo gentil. Baldado empenho! Indifferente aos magicos encantos, Celio contempla a moça. Olhar mais frio, Ninguem deitou jamais a graças tantas. Ella insiste; elle-foge-lhe. Vexada, A moça inclina languida a cabeça... Tu nada vês, desapegado esposo, Mas o amante vê tudo. Clodia arranca Uma rosa da fronte, e as folhas deita Na taça que enche generoso vinho. « Celio, um brinde aos amores! » diz, e entregalh'a. O cortejado moço os olhos lança, Não a Clodia, que a taça lhe offerece, Mas a outra não menos afamada, Dama de igual prosapia e iguaes campanhas, E taça igual lhe acceita. Affronta é esta Que á moça faz subir o sangue ás faces, Aquelle sangue antigo, e raro, e illustre, Que atravessou purissimo e sem mescla A corrente dos tempos... Uma Clodia! Tamanha injuria! Ai, não! mais que a vaidade, Mais que o orgulho de raça, o que te peza, O que te faz doer, viciosa dama, É ver que uma rival merece o zelo Deste pimpão de amores e aventuras. Pega na taça o nescio esposo e bebe, Com o vinho, a vergonha. Sombra triste, Sombra de occultas e profundas magoas, Tolda a fronte ao poeta. Os mais, alegres, Vão ruminando a saborosa ceia; Circúla o dito equivoco o chistoso, Commentam-se os decretos do senado, O molho mais da moda, os versos ultimos De Catullo, os leões mandados de Africa, E as victorias de Cesar. O epigramma Rasga a pelle ao caudilho triumphante; Chama-lhe este: « O larapio endividado… Aquelle: « Venus calva », outro: « O bilhynio... » Opposição de ceias e jantares, Que a marcha não impede ao crime e á gloria. Sem liteira, nem lybicos escravos, Clodia vae consultar armenio aruspice. Quer saber se hade Celio amal-a um dia Ou desprezal-a sempre. O armenio estava Meditabundo, á luz escassa e incerta De uma candeia etrusca; aos hombros delle Decrepita coruja os olhos abre. « Velho, aqui tens dinheiro (a moça fala), Se á tua inspiração é dado agora Adivinhar as cousas do futuro, Conta-me... » O resto expõe. Ergue-se o velho Subito. Os olhos lança cobiçosos Á fulgente moeda. — « Saber queres Se te hade amar esse mancebo esquivo? » — « Sim. » — Cochilava a um canto descuidada A avesinha de Venus, branca pomba Lança mão della o aruspice, e de um golpe Das entranhas lhe arranca o sangue e a vida. Olhos fitos no velho a moça aguarda A sentença da sorte; empallidece Ou ri, conforme do ancião no rosto Occultas impressões vem debuxar-se. « Bem haja Venus! a victoria é tua! O coração da victima palpita Inda que morto já… Não eram ditas Estas palavras, entra um vulto... É elle? És tu, cioso avante! A voz lhes falta, Aos dous, contemplam-se ambos, interrogam-se; Rompe afinal o lugubre silencio… Quando o vate acabou, tinha nos braços A namorada moça. Lacrimosa, Tudo confessa. Tudo lhe perdôa O desvairado amante. « Nuvem leve Isto foi; deixa lá memorias tristes, Erros que te perdoo; amemos, Lesbia; A vida é nossa; é nossa a juventude. » « Oh! tu és bom! » — « Não sei; amo e mais nada. Foge o mal donde amor plantou seus lares. Amar é ser do ceu. » Supplices olhos Que a dor humedecera e que humedecem Lagrimas de ternura, os olhos buscam Do poeta; um sorriso lhes responde, E um beijo sella esta alliança nova. Quem jamais construiu solida torre Sobre a arêa voluvel? Poucos dias Decorreram; viçosas esperanças Subito renascidas, folha a folha, Alastraram a terra. Ingrata e fria, Lesbia esqueceu Catullo. Outro lhe pede Premio á recente, abrazadora chamma; Faz-se agora importuno o que ora esquivo Victoria é delia; o arúspice acertára. VELHO FRAGMENTO I Reinava Affonso VI. Da coròa em nome Governava Alvarenga, incorruptivel No serviço do rei, astuto e manso, Alcaide-mór e protector das armas; No mais, amigo deste povo infante, Em cujo seio placido vivia Até que uma revolta mysteriosa Na cadeia o metteu. O douto Mustre A vara de ouvidor nas mãos sustinha. II Que lance ha hi, nossa comedia humana, Em que não entrem moças? Descorada, Como heroina de romance de hoje, Alva, como as mais alvas deste mundo, Tal, que disseras lhe negara o sangue A madre natureza, Margarida Tinha o suave, delicado aspecto De uma santa de cêra, antes que a tinta O matiz beatifico lhe ponha. Era alta e fina, senhoril e bella, Delicada e subtil. Nunca mais vivo Transparecera em rosto de donzella, Vergonhoso pudor, agreste e rude, Que até de uns simples olhos se offendia, E chegava a corar, se o pensamento Lhe adivinhava anonymo suspiro Ou remota ambição de amante ousado. Era vel-a, ao domingo, caminhando Á missa, co’os parentes e os escravos A um de fundo, em grave e compassada Procissão; era ver-lhe a compostura, A devoção com que escutava o padre, E no agnus-dei levava a mão ao peito, Mão que enchia de fogos e desejos Dez ou doze amadores respeitosos De suas graças, varios na figura, Na posição, na edade e no juizo, E que alli mesmo, á luz dos bentos cyrios (Tão de longe vêm já os maus costumes)! Ousavam inda suspirar por ella. III Entre esses figurava o moço Vasco. Vasco, a flor dos vadios da cidade, Namorador dos adros das egrejas, Taful de cavalhadas, consummado Nas hippicas façanhas, era o nome Que mais na baila andava. Moca havia Que por elle trocara (erro de moça)! O seu logar no céu; e este peccado, Inda que todo interior e mudo, Dous terços lhe custou de penitencia Que o confessor lhe impoz. Era sabido Que nas salas da casa do governo, Certa noite, de magua desmaiaram Duas damas rivaes, porque o magano As cartas confundira do namoro. Estas proezas taes, que o fertil vulgo Com augmentos de casa encarecia, E a bem lançada perna, e o luzidio Dos sapatos, e as sedas e os velludos, E o franco applauso de uns, e a inveja de outros, O sceptro lhe doaram dos peraltas. IV E, comtudo, era em vão que á ingenua dama A flor do esquivo coração pedia; Inuteis os suspiros lhe brotavam Do intimo do peito; nem da esperta Mucama, — natural complice amiga Desta sorte de crimes, — lhe valiam Os recados de boca; — nem as longas, Maviosas lettras em papel bordado, Atadas co’a symbolica fitinha Cor de esperança, — e olhares derretidos, Se a topava á janella, — raro evento, Que o pae, varão de bolsa e qualidade, Que repousava das fadigas longas Havidas no mercado de africanos, Era um typo de solidas virtudes E muita experiencia. Poucas vezes Ia á rua. Nas horas de fastio, A jogar o gamão, ou recostado, Com um vizinho, a tasquinhar nos outros, Sem trabalho maior, passava o tempo. V Ora, em certo domingo, houve luzida Festa de cavalhadas e argolinhas, Com danças ao ar livre e outros folgares, Recreios do bom tempo, infancia d’arte, Que o progresso apagou, e nós trocamos Por brincos mais da nossa juventude E melhores de certo; tão ingenuos, Tão simples, não. Vão longe aquellas festas, Usos, costumes são que se perderam, Como se hão perder os nossos de hoje, Nesse rio caudal que tudo leva Impetuoso ao vasto mar dos seculos. VI Abalada a cidade, quasi tanto Como nos dias da solemne festa Da grande acclamação, de que inda fallam Com saudade os muchachos de outro tempo, Varões agora de medida e peso, Todo o povo deixara as casas suas. Grato ensejo era aquelle! Resoluto A correr desta vez uma argolinha, O intrepido mancebo empunha a lança Dos combates, na fronte um capacete De longa, verde, fluctuante pluma, Escancha-se no dorso de um cavallo E armado vae para a festiva guerra. Ia a passo o corcel, como ia a passo Seu pensamento, certo da conquista, Se ella visse o brilhante cavalleiro Que, por amor daquelles bellos olhos, Derrotar promettia na estacada Um cento de rivaes. Subitamente Vê apontar a rispida figura Do rispido negreiro; a esposa o segue, E logo atraz a suspirada moça, Que lentamente e placida caminha Com os olhos no chão. Corpilho a veste De azul velludo; a manga arregaçada Ate á doce curva, o braço amostra Delicioso e nú. A indiana seda Que a linda mão de moça arregaçava, Com aquella sagaz indifferença Que o demo ensina ás mais singelas damas, A furto lhe mostrou, breve e apertado No sapatinho fino, o mais gracioso, O mais galante pé que inda ha nascido Nestas terras: — tacão alto e forrado De setim rubro lhe alteava o corpo, E airoso modo lhe imprimia ao passo. VII Ao brioso corcel encurta as redeas Vasco, e detem-se. A bella ia caminho E iam com ella seus perdidos olhos, Quando (visão terrivel)! a figura Pallida e commovida lhe apparece Do Freire, que, como elle namorado, Contempla a dama, a suspirar por ella. Era um varão distincto o honrado Freire, Tabellião da terra, não mettido Nas arengas do bairro. Pouco amante Dessa gloria que tantas vezes fulge Quando os mortaes merecedores della Jazem no eterno pó, não se illustrara Com actos de bravura ou de grandeza, Nem cobiçara as distincções do mando. Confidente supremo dos que á vida Dizem o ultimo adeus, só lhe importava Deitar em amplo in-folio as derradeiras Vontades do homem, repartir co’a penna Pingue ou magra fazenda, já cercada De farejantes corvos, — grato emprego A um coração philosopho, e remedio Para matar as illusões no peito. Certo, ver o usurario, que a riqueza Obteve á custa dos vintens do proximo, Comprar a eterna paz na eterna vida Com biocos do posthumas virtudes; Em torno delle contemplar andados Os que, durante longo-aridos annos, De lisonjas e afagos o cercaram; Depois alegres uns, sombrios outros. Conforme foi silencioso ou grato O abastado defuncto, — emprego é esse Pouco adequado a jovens e a poetas. IX Joven não era, nem poeta o Freire; Tinha oito lustros e fallava em prosa. Mas que és tu, mocidade? e tu, poesia? Um auto de baptismo quatro versos? Ou brancas azas da sensivel pomba Que arrulha em peito humano? Unico as perde Quem o lume do amor nos seios d’alma Apagar-se-lhe sente. A nevoa póde, Qual turbante mourisco, a cumiada Das montanhas cingir da nossa terra, Que muito, se ao redor viceja ainda Primavera immortal? Um dia, ao vel-a De tantos requestada a esquiva moça, Sente o Freire bater-lhe as adormidas Azas o coração. Que não desdoura, Antes lhe dá realce e lhe desvinca A nobre fronte a um homem da justiça, Como os outros mortaes, morrer de amores; E amar e ser amado é, neste mundo, A tarefa melhor da nossa especie, Tão cheia de outras que não valem nada. NO ALTO O poeta chegára ao alto da montanha, E quando ia a descer a vertente do oeste, Viu uma cousa extranha, Uma figura má. Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste, Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha, N’um tom medroso e agreste Pergunta o que será. Como se perde no ar um som festivo e doce, Ou bem como se fosse Um pensamento vão, Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta. Para descer a encosta O outro estendeu-lhe a mão. NOTAS Nota A. FLOR DA MOCIDADE ……………………………………………………………… pag. 61 Os poetas classicos francezes usavão muito esta fórma a que chamavão triolet. Depois do longo desuso, alguns poetas d’este seculo resuscitarão o triolet, não desmerecendo dos antigos modelos. Não me consta que se haja tentado empregal- a em portuguez, nem talver seja cousa que mereça trasladação. A fórma entretanto é graciosa e não encontra difficuldade na nossa lingua, creio eu. Nota B. LA MARCHESA DE MIRAMAR ……………………………………………………..pag. 55 Maximiliano, quando estava em Miramar, costumava retratar photographicamenle a archiduqueza, escrevendo por baixo do retrato: « La marchesa de Miramar. » Nota C. UN VIEUX PAYS ……………………………………………………………………...pag- 86 Perdoem-me estes versos em francez; e para que de todo em todo não fique a pagina perdida aqui lhes dou a traducção que fez dos meus versos o talentoso poeta maranhense Joaquim Serra É um velho paiz, de luz e sombras, Onde o dia traz pranto, e a noite a scisma; Um paiz de orações e de blasphemia, N’elle a crença na duvida se abysma. Ahi, mal nasce a flôr, o verme a corta, O mar é um escarcéo, e o sol sombrio; Se a ventura n’um sonho transparece A suffoca em seus braços o fastio. Quando o amor, qual sphynge indecifravel. Ahi vai a bramir, perdido o sizo… Ás vezes ri alegre, e outras vezes É um triste soluço esse sorriso… Vive-se n’esse e paiz com a mágoa e o riso: Quem d’elle se ausentou treme e maldiz; Mas ai, eu n’elle passo a mocidade, Pois é meu coração esse paiz! Nota D. LYRA CHINEZA ……………………………………………………………………....pag. 89 Os poetas postos n’esta collecção são todos contemporaneos. Encontrei-os no livro publicado em 1868 pela Sra. Judith Walter, distincta viajante que dizem conhecer profundamente a lingua chineza, e que os traduziu em simples e corrente prosa. Nota E. Fez-se Niobe em pedra ………………………………………………………………..pag. 126 É do S Antonio Feliciano de Castilho a traducção d’esta odezinha, que deu lugar á composição do meu quadro. Foi immediatamente á leitura da Lyrica de Anacreonte, que eu tive a idéa de pôr em acção a ode do poeta de Teos, tão portuguezmente sahida das mãos do Sr. Castilho que mais parece original que traducção. A concha não vale a pérola; mas o delicado da pérola disfarçará o grosseiro da concha. Nota F. POTYRA ……………………………………………………………………………...pag. 179 Simão de Vasconcellos não declara o nome da india, cuja acção refere em sua Chronica. Achei que não foi o caso desta tamoya o unico em que tão galhardamente se manifestou a fidelidade conjugai e christã. O padre Anchieta, na carta escripta ao padre-mestre Laynez, a 16 de Abril de 1563, menciona o exemplo de uma india, mulher de um colono, a qual, depois de lh’o matarem os indios, caiu em poder destes, cujo Principal a quiz violentar. Ella resistiu e desapareceu. Os indios fizeram correr a voz do que se matara; Anchieta suppõe que elles mesmos lhe tiraram a vida. Caso analogo é referido pelo padre João Daniel (Thesouro descoberto no Amazonas, p. 2ª., cap. III); essa chamava-se Esperança e era da aldêa de Cabu. Nota G. A nascente cidade brasileira …………………………………………………………pag. 181 A villa de S. Vicente. Nota H. Conduz nos braços tremulos a moça Que renegou Tupan …………………………………………………………………....pag. 181 Tinham os indios a religião monetheista que a tradicção lhes attribue? Nega-o positivamente o Sr. Dr. Conto de Magalhães em seu excedente estudo acerca dos selvagens, asseverando nunca ter encontrado a palavra Tupan nas tribus que frequentou, e ser admissivel a ideia de tal deus, no estado rudimentario dos nossos aborigenes. O Sr. Dr. Magalhães restitue aos selvagens a theogonia verdadeira. Não integralmente, mas só em relação ao sol e á lua (Coaracy e Jacy), acho noticia della no Thesouro do padre João Daniel (citado na nota A); e o que então faziam os indios, quando apparecia a lua nova, me serviu á composição que vae incluida neste livro. Sem embargo das razões allegadas pelo Sr. Dr. Magalhães, que todas são de incontestavel procedencia, conservei Tupan nos versos que ora dou a lume; fil-o por ir com as tradicções litterarias que achei, tradicções que nada valem no terreno da investigação scientifica, mas que tem por si o serem acceitas e haverem adquirido um como direito de cidade. Nota I. Quando ferve o cauim ………………………………………………………………...pag. 189 E ocioso explicar em notas o sentido desta palavra e de outras, como pocema, mussurana, tangapema, kanitar, com as quaes todo o leitor brasileiro está já familiarisado, graças ao uso que dellas teem feito poetas e prosadores. É também desnecessário fundamentar com trechos das chronicas a scena do sacrifício do prisioneiro, na estancia XI; são cousas comesinhas. Nota J. As azas colhe Guanumby, e o aguçado bico embebe No tronco, onde repousa adormecido Até que volte uma estação de flores …………………………………………………pag. 192 Simão de Vasconcellos (Not. do Bras., liv. 2.°) citando Maregraff e outros autores, conta, como verdadeira, a fabula a que alludem estes versos. Aproveitou-se d’alli uma comparação poetica: nada mais. Nota K. Cova funda Da terra, mãe commum ……………………………………………………………….pag. 194 Veja G. DIAS, Ult. Cant., pag. 159: ...Quando o meu corpo Á terra, mãe commum… Nota L. Inutil foges: gavião te espreita ………………………………………………………...pag. 199 Anagé, na lingua geral, quer dizer gavião. Nota M. Panenioxe é guerreirn Da velha, dura nação ………………………………………………………………….pag. 206 Tratando de descobrir a significação de Panenioxe, conforme escreve Rodrigues Prado, apenas achei no escasso vocabulario guaycurú, que vem em Ayres do Casal, a palavra nioxe traduzida por jacaré. Não pude accertar com a significação do primeiro membro da palavra, pane; ha talvez relação entre elle e o nome do rio Yppané. Note N. Cayavaba ha ja sentido A sua lança e facão ……………………………………………………………………pag. 206 « Estas duas armas (lança e facão) tem sido tomadas aos portuguezes e hespanhóes, e algumas compradas a estes que inadvertidamente lh'as lem vendido. » (Rodr. Prado, Hist. dos Ind. Cav.). Nota O. Niani ao melhor delles Não dera o seu coração ………………………………………………………………..pag. 207 Nanine é o nome transcrípto na Hist. dos Ind. Cav. Na lingua geral temos niani, que Martius traduz por infans. Esta fórma pareceu mais graciosa; e não duvidei adoptal-a, desde que o meu distincto amigo, Dr. Escragnolle Taunay, me asseverou que, no dialecto guaycurú, de que elle ha feito estudos, niani exprime a ideia de moça franzina, delicada, não lhe parecendo que exista a fórma empregada na monographia de Rodrigues Prado. Nota P. Limpo sangue tem o noivo, Que é filho de capitão ………………………………………………………………....pag. 207 Os Guaycurús dividem-se em nobres, plebeus ou soldados, e captivos. Do proprio texto que me serviu para esta composição se vê até que ponto repugna aos nobres toda a alliança com pessoas de condição inferior. A este proposito direi a anedocta que me foi referida por um distincto official da nossa armada, o capitão de fragata Sr. Henrique Baptista, que em 1857 esteve no Paraguay commandando o Japorá, entre o forte Coimbra e o estabelecimento Sebastopol. Ia muita vez a bordo do Japorá um chefe guaycurú, Capitãosinho, muito amigo da nossa officialidade. Tinha elle uma irmã, que outro chefe guaycurú, Lapagata, cortejava e desejava receber por esposa. Lapagata recebera o titulo de capitão das mãos do presidente de Matto-Grosso. Oppunha-se com todas as forças ao enlace o Capitãosinho. Um dia, perguntando-lhe o Sr. H. Baptista porque motivo não consentia no casamento da irmã com Lapagata, respondeu o altivo Guaycurú: — Opponho-me, porque eu sou capitão por herança de meu pae, que ja o era par herança do pae delle. Lapagata ccapilão de papel. Nota Q. A bocayuva tres vezes No tronco amadureceu ………………………………………………………………...pag. 208 As bocayuvas servem de alimento aos Guaycurús; nas proximidades ds sazonarem os cocos fazem elles grandes festas. (Veja CASAL e PRADO.) Nota R. Collar de prata não usa Como usava de trazer Pulseiras de finas contas Todas as veiu a romper ………………………………………………………………..pag. 210 Taes eram os adornos das mulheres guaycurús. (Veja PRADO, CASAL e D’AZARA). Nota S. Pintam-n’a de vivas côres E lhe lançam um collar ………………………………………………………………..pag. 213 As moças rias vão enfeitadas, como se ornariam para o proprio noivado. » (AYRES DO CASAL, Corog., 280). Nota T. Oleo que a unge, Finas telas que a vestem, atavios De ouro e praia que o collo e os braços lhe ornam, Ea flor de trigo e mel de que se nutre, Sonhos, são sonhos do propheta ……………………………………………………....pag. 220 Allude a um trecho do propheta Daniel: « — E lavei-te na agua, e alimpei-te do teu sangue; e te ungi com um oleo: « — E foste enfeitada de ouro e prata, e vestida de linho e de roupas bordadas, e de diversas cores: nutriste-te da farinha e de mel e de azeite, e foste mui aformoseada em extremo. » (DANIEL, XV.) Nota U. A delicada virgem Que entre os rios nasceu ………………………………………………………………pag. 231 Rebecca, filha da Mesopotamia. Nota V. O hardido Bento ……………………………………………………………………....pag. 233 Bento do Amaral Gurgel, que dirigiu a companhia de estudantes por occasião daquella e da seguinte invasão, em 1711. Nota X. Israel tem vertido Um mar de sangue. Embora! á tona delle Verdeja a nossa fé ……………………………………………………………………..pag. 239 Angela pratica o inverso daquelle conselho attribuido aos rabbinos de Constantinopla, respondendo aos judeus de Hespanha, que baptisassem os corpos, conservando as almas firmes na Lei. Angela conserva o baptismo da alma, e entrega o corpo ao supplicio como se fosse verdadeiramente judeu. Nega a fé com os labios, confessando-a no coração: maneira, de conciliar o sentimento christão e a piedade filial. Nota Y. E Anhangá fez contrarios ……………………………………………………………..pag. 252 A verdadeira pronúncia desta palavra é an-hanga. É outro caso em que fui antes com a maneira corrente e commum na poesia. Nota Z. Os Semeadores ………………………………………………………………………..pag. 260 Il y aurail une Ibrt grande injustice a juger les jesuites du seizième siècle et leurs travaux, d'après les idées que peut inspirer Ie système suivi dans les missions. Lá on peut voir des projets ambilieux s'allier à des vucs habiles: dans les premiers travaux executes par les pères de Ia compagnie, au Brésil, tout fut désintéressé; et au besoin, le récit de leurs souffrances pourrait le prouver. F. DEXIS, Le Brésil.) Nota A A. Lua Nova ……………………………………………………………………………...pag. 264 Veja nota H. « ...E na verdade tem occasiões em que festejam muito a lua, como quando apparece nova; porque então saem de suas choupanas, dão saltos de prazer. saudam-n’a e dão-lhe as boas vindas. (JOÃO DANIEL, Thes. descob. no Amaz., part. 2.ª cap. X.) Nota B B. Ultima Jornada ………………………………………………………………………...pag. 277 Não me recordo de haver lido nos velhos escriptos sobre os nossos aborigenes a crença que Montaigne lhes attribue acerca das almas boas e más. Este grande moralista tinha informações geralments exactas a respeito dos indios; e aquella crença traz certamente um ar de verosimlhança. Não foi só isso o que me induziu a fazer taes versos; mas tambem o que achei poetico e gracioso na abusão. Nota C C. Os Orizes ……………………………………………………………………………...pag. 283 Tinha planeado uma composição de dimensões maiores, e não a levei a cabo, por intervirem outros trabalhos, que de todo me divertiram a attenção. Foi o nosso eminente poeta e litterato Porto Alegre, hoje barão de Santo Angelo, que ha cerca de 4 annos, me chamou a attenção para a relação de Monterroyo Mascarenhas, Os Orizes conquistados, que vem no Rev. do Inst. Hist., t. VIII. A aspereza dos costumes daquelle povo, habitante do sertão da Bahia, cêrca de duzentas legoas da capital, sua rara energia, as circumstancias singulares da conquista e conversão da tribu, eram certamente um quadro excedente para uma composição poetica. Ficou em fragmento, que ainda assim não quiz excluir do livro. Nota D D. A ave sagrada, o nume de seus bosques, Que de agouro chamamos, Cupuaba, Melancholica e feia, mas ditosa E benefica entre elles ………………………………………………………………….pag. 285 Lastimosamente cegos de discurso, reconhecem e adoram por deus a coruja, chamado na sua linguagem Oitipôcupuaaba; e o motivo de sua adoração consiste no beneficio que recebem desta ave, que, naturalmente inimiga das cobras, numerosissimas naquelle paiz, as espia nos mattos, e lhes tira a vida. » (J. F. MONTERROYO MASCARENHAS, Os Orizes conquistados.) INDICE ADVERTENCIA. V CHRYSALIDAS ………………………………………………………………….1 Musa consolatrix ………………………………………………………….3 Visio ……………………………………………………………………....5 Quinze annos ……………………………………………………………...8 Stella ……………………………………………………………………..12 Epitaphio do Mexico …………………………………………………….14 Polonia …………………………………………………………………...16 Erro ……………………………………………………………………….20 Elegia ……………………………………………………………………..22 Sinhá ……………………………………………………………………....26 Horas vivas………………………………………………………………...28 Versos a Corinna …………………………………………………………..30 Ultima folha ……………………………………………………………….50 PHALENAS ……………………………………………………………………....53 Flor da mocidade ………………………………………………………….55 Quando ella fala …………………………………………………………..57 Manhã de inverno ………………………………………………………...59 La marchesa de Miramar ………………………………………………….61 Sombras …………………………………………………………………...66 Ite, missa est……………………………………………………………….68 Ruinas ……………………………………………………………………..70 Musa dos olhos verdes …………………………………………………….72 O noivado ………………………………………………………………….74 A Elvira …………………………………………………………………....77 Lagrimas de cera …………………………………………………………..79 Livros e flores ……………………………………………………………...81 Passaros …………………………………………………………………....82 O verme …………………………………………………………………....84 Un nieux pays ……………………………………………………………...86 Luz entre sombras ………………………………………………………….88 Lyra chineza ………………………………………………………………..89 Uma ode de Anacreonte …………………………………………………..101 Pallida Elvira ……………………………………………………………...137 AMERICANAS …………………………………………………………………...177 Potyra ……………………………………………………………………...179 Niani ……………………………………………………………………….204 A Christã nova ……………………………………………………………..214 José Bonifacio ……………………………………………………………...244 A visão de Jaciuca ………………………………………………………….247 A Gonçalves Dias …………………………………………………………..254 Os semeadores ……………………………………………………………...260 A flor do embiroçu ………………………………………………………….262 Lua nova …………………………………………………………………….264 Sabina ……………………………………………………………………….267 Ultima jornada ……………………………………………………………....277 Os Orises …………………………………………………………………….283 OCCIDENTAES …………………………………………………………………….289 O desfecho …………………………………………………………………...291 Circulo vicioso ……………………………………………………………….292 Uma creatura ………………………………………………………………....293 A Arthur de Oliveira, enfermo ……………………………………………….295 Mundo interior ………………………………………………………………..298 O corvo ……………………………………………………………………….299 Perguntas sem resposta ……………………………………………………….306 To be or not to be ……………………………………………………………..310 Lindoya ……………………………………………………………………….312 Suave mari magno …………………………………………………………….313 A mosca azul ………………………………………………………………….314 Antonio José …………………………………………………………………..317 Spinoza ………………………………………………………………………..318 Gonçalves Crespo ……………………………………………………………..319 Alencar ………………………………………………………………………...320 Camões ………………………………………………………………………...321 1802-1835 ……………………………………………………………………...325 José de Anchieta ……………………………………………………………….327 Soneto de Natal ………………………………………………………………...330 Os animaes iscados da peste …………………………………………………...331 Dante …………………………………………………………………………...334 A Felicio dos Santos …………………………………………………………....341 Maria …………………………………………………………………………....342 A uma senhora que me pediu versos …………………………………………....343 Clodia …………………………………………………………………………...344 Velho fragmento ………………………………………………………………...352 No alto …………………………………………………………………………..361 NOTAS ………………………………………………………………………………….363 Na versão do PDF colorido "velhas" foi substituída por "rudes". solidão? (ver no PDF preto e branco) do poema V pula para o VII pág. 242 do pdf. No livro pula da página 220 para a 230 No PDF a página 284 e 285 são repetições da página 273, adicionar aqui a digitalização da página 274 do livro.