RESURREIÇÃO ROMANCE OBRAS QUE SE ACHÃO Á VENDA NA MESMA CASA: Machado de Assis CONTOS FLUMINENSES, contendo: Miss Dollar, Luiz Soares, A mulher de preto, O segredo de Augusta, Confissões de uma moça, Frei Simão, Linha recta e linha curva. 1 v. enc………………………………………………………………………………………..3$000 CHRYSALIDAS. Poesias. 1 v. in-8 br. 2$000…………………………………………...2$600 PHALENAS. Poesias. 1 v. in-8…………………………………………………………..3$000 RESURREIÇÃO, romance, 1 v. in-8 br. 2$000, enc……………………………………..3$000 J. M. Pereira da Silva JERONYMO CÔRTE REAL. 1 v. enc…………………………………………………...3$000 MANOEL DE MORAES. 1 v. br. 2$000, enc…………………………………………...3$000 GONZAGA. Poema. 1 v. in-8 enc………………………………………………………..3$000 Bernardo Guimarães O GARIMPEIRO, romance. l v. in-8 br. 2$000, enc…………………………………….3$000 O ERMITÃO DO MUQUEM, ou historia da fundação da romaria do Muquem, na provincia de Goyaz; romance de costumes nacionaes. 1 v. enc.........................................................3$000 LENDAS E ROMANCES: Uma Historia de Quilombólas, a Garganta do Inferno, a Dansa dos Ossos. 1 v. br. 2$000, enc……………………………………………………………3$000 POESIAS. Cantos da solidão. 1 v. enc...............................................................................6$000 Moreira de Azevedo OS FRANCEZES NO RIO DE JANEIRO, romance historico. 1 v. in-8º br……………2$000 LOURENÇO DE MENDONÇA, romance historico. 1 v. br…………………………….1$500 L. Guimarães Junior HISTORIA PARA GENTE ALEGRE. 2 v. in-8 br……………………………………....4$000 CURVAS E ZIG-ZAGS. Caprichos humoristicos. 1 v. in-8º br. 2$000, enc…………….3$000 Rozendo Moniz FAVOS E TRAVOS, romance. 1 vol. in-8 br. 2$000, enc………………………………..3$000 V. Valmont O ESPIÃO PRUSSIANO, romance historico, inglez, resumindo os principaes acontecimentos da guerra Franco-Prussiana; traduzidos por V. Colonna. 1 gr. v. in-8º br. 2$000, enc………………………………………………………………………………..3$000 ________________________________________________________ Typ. Franco-Americana, rua d’Ajuda n. 18 RESURREIÇÃO ROMANCE POR MACHADO DE ASSIS ________ RIO DE JANEIRO B. L. GARNIER LIVREIRO EDITOR DO INSTITUTO 69, RUA DO OUVIDOR, 69 ADVERTENCIA Não sei o que deva pensar deste livro; ignoro sobre tudo, o que pensará delle o leitor. A benevolencia com que foi recebido um volume de contos e novellas, que ha dous annos publiquei, me animou a escrevel-o. É um ensaio. Vai despertenciosamente ás mãos da crítica e do publico, que o tratarão com a justiça que merecer. A crítica desconfia sempre da modestia dos prologos, e tem razão. Geralmente são arrebiques de dama elegante, que se ve ou se crô bonita, e quer assim realçar as graças naturaes. Eu fujo e benzo-me tres vezes quando encaro alguns desses prefacios contrictos e singellos, que trazem os olhos no po da sua humildade, e o coração nos pincaros da sua ambição. Quem so lhes ve os olhos, e lhes diz verdade que amargue, arrisca-se a descahir no conceito do auctor, sem embargo da humildade que elle mesmo confessou, e da justiça que pediu. Ora pois, eu atrevo-me a dizer á boa e sisuda crítica, que este prologo não se parece com esses prologos. Venho apresentar-lhe um ensaio em genero novo para mim, e desejo saber se alguma qualidade me chama para elle, ou se todas me faltam, — em cujo caso, como em outro campo ja tenho trabalhado com alguma approvação, a elle volverei cuidados e esforços. O que eu peço á crítica vem a ser — intenção benevola, mas expressão franca e justa. Applausos, quando os não fundamenta o merito, aflagam certamente o espirito, e dão algum verniz de celebridade; masquem tem vontade de apprender e quer fazer alguma cousa,. prefere a lição que melhora ao ruido que lisonjea. No extremo verdor dos annos presumimos muito de nós, e nada, ou quasi nada, nos parece escabroso ou impossivel. Mas o tempo, que é bom mestre, vem diminuir tamanha confiança, deixando-nos apenas a que é indispensavel a todo o homem, e dissipando a outra, a confiança perfida e cega. Com o tempo, adquire a reflexão o seu imperio, e eu incluo no tempo a condição do estudo, sem o qual o espirito fica em perpétua infancia. Da-se então o contrário do que era d’antes. Quanto mais versámos os modelos, penetrámos as leis do gosto e da arte, comprehendemos a extensão da responsabilidade, tanto mais se nos acanham as mãos e o espirito, posto que isso mesmo nos experte a ambição, não ja presumpçosa, senão reflectida. Esta não é talvez a lei dos genios, a quem a natureza deu o poder quasi inconsciente das supremas audacias; mas é, penso eu, a lei das aptidões médias, a regra geral das intelligencias minimas. Eu cheguei ja a esse tempo. Grato ás affaveis palavras com que juizes benevolos me tem animado, nem por isso deixo de hesitar, e muito. Cada dia que passa me faz conhecer melhor o agro destas tarefas litterarias, — nobres e consoladoras, é certo, — mas difficeis quando as perfaz a consciencia. Minha ideia ao escrever este livro foi pôr em acção aquelle pensamento de Shakespeare: Our doubts are traitors, And make us lose the good we oft might win, By fearing to attempt*. Não quiz fazer romance de costumes; tentei o esbôço de uma situação e o contraste de dous caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse do livro. A critica decidirá se a obra corresponde ao intuito, e sobretudo se o operario tem geito para ella. É o que lhe peço com o coração nas mãos. M. A. Rio, 17 de Abril de 1872. * «São as nossas dúvidas uns traidores, que nos fazem perder muita vez o bem que poderiamos obter, incutindo-nos o receio de o tentar.» Measure for Measure, act. I, sc. V. RESURREIÇÃO I. NO DIA DE ANNO BOM. Naquelle dia, — ja la vão dez annos! — o Dr. Félix levantou-se tarde, abriu a janella e comprimentou o sol. O dia estava esplendido; uma fresca bafagem do mar vinha quebrar um pouco os ardores do estio; algumas raras nuvenzinhas brancas, finas e transparentes se destacavam no azul do ceo. Chilreavam na chacara vizinha á casa do doutor alg-umas aves affeitas á vida semiurbana, semi-silvestre que lhes póde offerecer uma chacara nas Larangeiras. Parecia que toda a natureza collaborava na inauguraçao do anno. Aquelles para quem a edade ja desfez o viço dos primeiros tempos, não se terão esquecido do fervor com que esse dia é saudado na meninice e na adolescencia. Tudo nos parece melhor e mais bello, — fructo da nossa illusão, — e alegres com vermos o anno que desponta, não reparámos que elle é tambem um passo para a morte. Teria esta última ideia entrado no espirito de Felix, ao contemplar a magmificencia do ceo e os esplendores da luz? Certo é que uma nuvem ligeira pareceu toldar-lhe a fronte. Felix embebeu os olhos no horisonte e ficou largo tempo immovel e absorto, como se interrogasse o futuro ou revolvesse o passado. Depois, fez um gesto de tedio, e parecendo envergonhado de se ter entregue á contemplação interior de alguma chimera, desceu rapidamente á prosa, accendeu um charuto, e esperou tranquillamente a hora do almoço. Felix entrava então nos seus trinta e seis annos, edade em que muitos ja são paes de familia, e alguns homens de Estado. Aquelle era apenas um rapaz vadio e desambicioso. A sua vida tinha sido uma singular mistura de elegia e melodrama; passara os primeiros annos da mocidade a suspirar por cousas fugitivas, e na occasião em que parecia esquecido de Deus e dos homens, cahio-lhe nas mãos uma inesperada herança, que o levantou da pobresa. So a Providencia possue o segredo de não aborrecer com esses lances tao estafados no theatro. Felix conhecêra o trabalho no tempo em que precisava delle para viver; mas desde que alcançou os meios de não pensar no dia seguinte, entregou-se corpo e alma á serenidade do repouso. Mas entenda-se que não era esse repouso aquella existencia apathica e vegetativa dos animos indolentes; era, se assim me posso exprimir, um repouso activo, composto de toda a especie de occupações elegantes e intellectuais que um homem na posição delle podia ter. Não direi que fosse bonito, na significação mais ampla da palavra; mas tinha as feições correctas, a presença sympathica, e reunia á graça natural a apurada elegancia com que vestia. A cor do rosto era um tanto pallida, a pelle lisa e fina. A physionomia era placida e indifferente, mal alumiada por um olhar de ordinário frio, e não poucas vezes morto. Do seu caracter e espirito melhor se conhecerá lendo estas paginas, e acompanhando o heroe por entre as peripecias da singelissima acção que emprehendo narrar. Não se trata aqui de um caracter inteiriço, nem de um espirito logico e egual a si mesmo; trata-se de um homem complexo, incoherente e caprichoso, em quem se reuniam oppostos elementos, qualidades exclusivas, e defeitos inconciliaveis. Duas faces tinha o seu espirito, e com quanto formassem um so rosto, eram todavia diversas entre si, uma natural e espontanea, outra calculada e systematica. Ambas porêm se mesclavam de modo que era difficil discriminal-as e definil-as. Naquelle homem feito de sinceridade e affectação tudo se confundia e baralhava. Um jornalista do tempo, seu amigo, costumava comparal-o ao escudo de Achilles, — mescla de estanho e ouro, — «muito menos solido», accrescentava elle. Aquelle dia, aurora do anno, escolhera-o o nosso heroe para occaso de seus velhos amores. Não eram velhos; tinham apenas seis mezes de edade. E contudo iam acabar sem saudade nem pena, não só por que ja lhe pesavam, como tambem porque Felix lera pouco antes um livro de Henri Murger, em que achara um personnagem com o sestro destas catastrophes prematuras. A dama dos seus pensamentos, como diria um poeta, recebia assim um golpe moral e litterario. Havia meia hora ja que o doutor sahira da janella, quando lhe appareceu uma visita. Era um homem de quarenta annos, vestido com certo apuro, gesto ao mesmo tempo familiar e grave, estouvado e discreto. — Entre, Sr. Vianna, disse Felix quando o viu apparecer á porta da sala. Vem almoçar comigo, ja sei? — Esse é um dos tres motivos da minha visita, respondeu Vianna; mas affirmo-lhe que é o último. — Qual é o primeiro? — O primeiro, disse o recem-chegado, é dar-lhe o comprimento de bons annos. Folgo que lhe corra este tão feliz como o passado. O segundo motivo é entregar-lhe uma carta do coronel. Vianna tirou uma cartinha da algibeira e entregou-a ao doutor, que a leu rapidamente. — Creio que é um convite para o sarau de hoje? perguntou Vianna quando o viu dobrar a carta. — É; transtorna-me um pouco, porque eu tencionava ir para a Tijuca. — Não caia nessa, acudiu Vianna; eu era capaz de deixar todas as viagens do mundo so para não perder uma reunião do coronel; é um excellente homem, e dá boas festas. Vae? Felix hesitou algum tempo. — Olhe que eu venho incumbido de lhe destruir todas as objecções que fizer, disse Vianna. — Não faço nenhuma. O convite transtorna-me o programma; mas, apezar disso, acceito. — Ainda bem! Um moleque veio dar parte de que o almoço estiva na mesa. Vianna descalçou as luvas e acompanhou o amphytrião. — Que novidades ha? perguntou Felix sentando-se á mesa. — Nada que me conste, respondeu Vianna imitando o dono da casa; o Rio de Janeiro vae a peor. — Sim? — É verdade; ja não apparece um escandalo. Vivemos em completa abstinencia, e chegou o reinado da virtude. Olhe, eu sinto a nostalgia da immoralidade. Vianna era um homem essencialmente pacato com a mania de parecer libertino, mania que lhe resultava da frequencia de alguns rapazes. Era casto por principio e temperamento. Tinha a libertinagem do espirito, não a das acções. Fazia o seu epigramma contra as reputações duvidosas, mas não era capaz de perder nenhuma. E todavia, teria um secreto prazer se o accusassem de algum delicto amoroso, e não defenderia com extremo calor a sua innocencia, contradicção que parece algum tanto absurda, mas que era natural. Como Felix não lhe animasse a conversa no terreno em que elle a poz, Vianna entrou a elogiar-lhe os vinhos. — Onde acha o senhor vinhos tão bons? perguntou depois de esvasiar um calix. — Na minha algibeira. — Tem razão; o dinheiro compra tudo, inclusive os bons vinhos. A resposta de Felix foi um sorriso ambiguo, que podia ser benevolente ou malevolo, mas que pareceu não produzir impressão no hospede. Vianna era um parasita consummado, cujo estomago tinha mais capacidade que preconceitos, menos sensibilidade que disposições. Não se supponha porêm que a pobresa o obrigasse ao officio; possuia alguma cousa que herdára da mãe, e conservára religiosamente intacto, tendo até então vivido do rendimento de um emprêgo de que pedira demissão por motivo de dissidencia com o seu chefe. Mas estes contrastes entre a fortuna e o caracter não são raros. Vianna era um exemplo disso. Nasceu parasita como outros nascem anões. Era parasita por direito divino. Não me parece provavel que houvesse lido Sá de Miranda; todavia, punha em prática aquella maxima de um personagem do poeta: «boa cara, bom barrete e boas palavras, custam pouco e valem muito...» Chamando-lhe parasita não alludo so á circumstância de exercer a vocação gastronomica nas casas alheias. Vianna era tambem o parasita da consideração e da amisade, o intruso polido e alegre, que, á fôrça de arte e obstinação, conseguia tornar-se acceitavel e querido, onde a principio era recebido com tedio e frieza, um desses homens mettidiços e dobradiços que vão a toda a parte e conhecem todas as pessoas, «boa cara, bom barrete, boas palavras.» Parecendo-lhe que Felix estaria preoccupado, Vianna entendeu não dizer palavra antes de achar occasião opportuna. Veio o café, e o primeiro que rompeu o silencio foi o doutor. Vianna aproveitou habilmente o ensejo para reatar o fio dos louvores, tão asperamente quebrado pelo dono da casa. Não lhe elogiou desta vez os vinhos, mas as qualidades pessoaes; affirmou-lhe que ninguem era mais querido na casa do coronel Moraes, e que elle proprio não se recordava de pessoa a quem mais estimasse neste mundo. — O senhor é tão feliz a este respeito, terminou o hospede, que até as pessoas que o não veem ha muito conservam em toda a integridade o affecto que o senhor lhes inspirou. Adivinha de quem lhe fallo? — Não. — Bem, sabelo-ha de noite; la verá em casa do coronel uma pessoa que o admira, e que o não ve ha muito. Sejamos francos; é minha irmã Livia. — Admira-me isso, porque eu apenas a vi duas vezes. — Não é possivel, insistiu Vianna. Lembra-me que eu mesmo os apresentei um ao outro. Se não me engano foi em dia da Gloria, ha dous annos… — Eu descia o outeiro, continuou Felix, quando os encontrei. Estivemos parados cinco minutos. Á noite encontrámo-nos em um baile; comprimentámo-nos apenas e nada mais. — So isso? — Nada mais. — N’esse caso, concluiu Vianna, cuido que o senhor possue o segredo de fascinar as moças, so com cinco minutos de conversa e um comprimento de sala. Minha irma falla muito no senhor; pelo menos depois que veiu de Minas… — Ah! ella esteve em Minas? — Foi para la ha perto de dous annos, depois que lhe morreu o marido. Veio ha oito dias; sabe o que me propõe? — Não. — Uma viagem á Europa. — E vão? — Os desejos de Livia são ordens para mim. Comtudo era talvez melhor que eu fosse, porque uma senhora é sempre obstaculo aos desmandos de um peccador como eu. Não lhe parece? — E' então uma viagem de recreio? perguntou Felix. — Ou de romance; Livia tem esse defeito capital: é romanesca. Traz a cabeça cheia de caraminholas, fructo naturalmente da solidão em que viveu nestes dous annos, e dos livros que ha de ter lido. Faz pena, porque é boa alma. — Vejo que tem todas as condicções necessarias a um poeta, observou o doutor; lembra-me que era bonita. — Oh! a esse respeito a viuvez foi para ella uma renovação. Era bonita quando o senhor a viu; hoje está fascinante. Ha occasiões em que eu sinto ser irmão della; tenho impetos de a adorar de joelhos. Com franquesa, assusta-me. Leve sorriso encrespou os labios de Felix, em quanto Vianna proseguia o panegyrico da irmã, com um enthusiasmo que podia ser sincero e interessado ao mesmo tempo. Ao fim de um quarto de hora levantou-se para sahir. — Até á noite? disse o parasita apertando a mão do dono da casa. — Até á noite. Felix ficou so. — Que mulher será essa, perguntou a si mesmo, tão bella que mette medo, tão fantasiosa que causa lastima? _____ II. LIQUIDAÇÃO DO ANNO VELHO. Meia hora depois apeava-se Felix de um tilbury á porta de uma casa no Rocio. Subiu lentamente as escadas; a porta do fundo estava aberta; Felix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até á sala, sem que o sentisse uma moça, que estava assentada perto da janella, com o rosto voltado para a rua. — Cecilia! disse elle. A moça estremeceu e voltou-se. — Ah! es tu. Tão tarde! Felix approximou-se, deu-lhe um beijo, e tirou-lhe o livro da mão. — Tarde? disse elle folheando o livro; não pôde ser mais cedo; tive visitas em casa. A moça contentou-se com a resposta; levantou-se e pondo-lhe os braços á roda do pescoço, perguntou: — Jantas hoje com alguem? — Janto la em casa. — La em casa? repetiu ella; e porque não ca em casa? — Não posso. — Tens visitas? — Não. — Jantas so? — Janto. — Preferes isso á minha companhia? murmurou emfim a moça com voz triste. — Cecilia, respondeu Felix dando á voz toda a doçura compativel com a rigidez da sua resolução, ha circumstâncias que me obrigam a não jantar ca nem hoje nem nunca. Cecilia empallideceu. Felix procurou tranquillisal-a dizendo que ia explicar-se melhor. Insensível ás suas palavras, foi ella sentar-se no sopha e ahi permaneceu alguns instantes silenciosa. Felix deu alguns passos na sala, aspirou as flores que tinham sido postas n’uma jarra, naquelle mesmo dia, talvez para recebel-o melhor; acendeu um charuto, e foi sentar-se em frente de Cecilia. A moça fitou nelle os olhos humidos de lagrymas. Depois, como se os labios tivessem medo de romper uma cratera á chamma interior, murmurou estas palavras: — E porque nunca mais? — Cecilia, disse o doutor pondo fóra o charuto apenas encetado, eu tenho a infelicidade de não comprehender a felicidade. Sou um coração defeituoso, um espirito vesgo, uma alma insipida, capaz de fidelidade, incapaz de constancia. O amor para mim é o idylio de um semestre, um curto episodio sem chammas nem lagrymas. Ha seis mezes que nos amâmos; porque perderás tu o dia em que começa o anno novo, se podes tambem começar uma vida nova? Cecilia não respondeu; fitava nelle os olhos, que, se eram ternos e boliçosos nas horas de alegria, eram naquelle momento sombrios e profundos. Felix pegou-lhe na mão. Estava fria. — Não fiques abatida; o que faço agora não é novidade; ouviste-me dizer muita vez que a nossa affeição era um capitulo curto. Rias então de mim; fazias mal, porque era alimentar uma esperança vã. — Era, interrompeu Cecilia com voz trémula; reconheço agora que era. Esperava, com effeito, que eu pudesse, com a minha constancia, resgatar os erros que me pesavam na consciencia. Agarrei-me a ti como a uma taboa de salvação; a taboa não comprehendeu que salvaria uma vida e deixa-se levar pela onda que a arrebata das minhas mãos. Enganei-me. Não te faço recriminações; espero que me faras justiça...... — Faço-te toda a justiça, redarguio elle; accuso-me eu mesmo de estar abaixo do papel de redemptor. Cecilia não prestou attenção ao tom ironico destas palavras, nem sequer as ouviu. Levantou-se, deu alguns passos, encostou-se ao piano e pondo a cabeça entre as mãos soluçou á vontade. Mas essa explosão foi quasi silenciosa e durou pouco. Meia hora depois despedia-se Felix de Cecilia declarando-lhe que sahia dalli como um gentleman, e que ella receberia os meios necessarios para viver até que o esquecesse de todo. Cecilia recusou esse acto de generosidade. Espantou-o immensamente tamanho desinteresse; concluiu que ella teria algum amor em perspectiva. Sahiu. Na rua do Ouvidor encontrou o doutor Menezes, joven advogado com quem entretinha relações. — Vem jantar comigo, disse. — Não jantas com Cecilia? — Acabei o capitulo; Cecilia está livre. — Houve choro? — O choro pertence ao ceremonial da separação. Era indispensavel. Cecilia verteu algumas lagrymas, que eu procurei enxugar, promettendo-lhe os meios de viver algum tempo. Recusou; mas eu não lhe acceito a recusa. — Fizeste mal em separar-te della; Cecilia amava-te. — Menezes, disse Felix, eu nunca faço mal quando quebro uma cadeia: liberto-me. — Talvez tenhas razão. — Mas vem jantar commigo, continuou Felix, dando-lhe o braço. — Não posso; vou jantar com minha mãe. — Ah! — São apenas duas horas; passearei comtigo até ás tres. Ou vaes para casa? — Não. Deram o braco e desceram a rua. — Se não é indiscrição, Felix, disse Menezes ao cabo de algmns minutos, houve algum arrufo serio entre vocês? — Não. — Desconfiavas della? — Tambem não. — Nem te arrufaste, nem tinhas desconfiança. Sei que ella gostava de t i; e tu mesmo me aífirmaste que não era nenhuma desperdiçada. Havia portanto um milheiro de razões para que vocês proseguissem neste romance. Dar-se-lia que tenhas em vista algum casamento? Felix riu-se e levantou os hombros. — Então, não comprehendo, concluiu Menezes. — Eu te digo, respondeu Felix; os meus amores são todos semestraes; duram mais que as rosas, duram duas estações. Para o meu coração um anno é a eternidade. Não ha ternura que va alêm de seis mezes; ao cabo desse tempo, o amor prepara as malas e deixa o coração como um viajante deixa o hotel; entra depois o aborrecimento — mau hóspede. Menezes ouviu as palavras de Felix com os olhos postos no chão; sorriu ligeiramente quando elle acabou. — Queres ouvir uma cousa? perguntou. — Dize. — O teu cynismo parece-me hypocrisia. — Não é hypocrisia nem cynismo; é temperamento. — Não creio. — Porquê? Menezes não respondeu. — Quasi me arrependo de ser teu amigo, disse elle depois de algum tempo. — És meu amigo? perguntou Felix com ar de mofa. Menezes parou e encarou o companheiro. — Duvidas? disse. — Não duvido; mas ignorava isso até agora; sabes que as nossas relações datam de pouco tempo. — Que importa o tempo? Ha amigos de oito dias e indifferentes de oito annos. — Ha. A conversa tomou outra direcção. Menezes ainda tentou fallar da moça, mas Felix não lhe prestou attenção. Ás 3 horas separaram-se, Felix para as Larangeiras, Menezes para o Rocio. Menezes era uma boa alma, compassiva e generosa. Tinha em flor todas as illusões da juventude; era enthusiasta e sincero; estava totalmente limpo da menor eiva de cálculo. Podia ser que com os annos perdesse algumas das suas qualidades nativas, que nem todos resistem a estes dous terriveis dissolventes: os lances da fortuna e o attrito dos caracteres. Mas naquelle tempo ainda não era assim. A situação de Cecilia tinha-o commovido. Resolveu ir ter com ella. Cecilia ficára resignada, mas triste. Quando Menezes entrou na sala estava ella ao piano, tinha apoiada a cabeça em uma das mãos, e corria os dedos pelo teclado. Contou-lhe tudo o que se passára; confessou que não esperava a subita mudança de Felix; que a sua dor fora immensa, e que daria tudo para fazer reviver o recente passado; mas que não nutria nenhuma esperança de reconciliação. — E se eu tentar fazer alguma cousa? — Tentará em vão, respondeu ella. Alêm de que, eu não tenho nenhum direito de prolongar uma felicidade incompativel com a vontade delle. Errei, confiando de mais; errarei se tiver ainda uma esperança…. — Quem sabe, Cecilia? disse o moço, pondo-lhe a mão no hombro; é possivel que Felix tenha cedido a um capricho. Virá a arrepender-se depois, mas o seu orgulho não lhe deixará dar o primeiro passo. N’esse caso uma pessoa influente póde convencel-o de que a primeira gloria é a reparação dos erros. Cecilia levantou os hombros; foi a sua unica resposta. Menezes perguntou se haveria alguma razão de ciumes. — Posso jurar-lhe que durante todo este tempo pertenci-lhe exclusivamente. O juramento de Cecilia não devia valer muito aos olhos de um homem que conhecesse bem todos os recursos de uma mulher naquellas condições. Mas o nosso Menezes era ingenuo em cousas taes. Sahio de la cheio de piedade. Nessa mesma tarde mandou uma carta ás Larangeiras, justamente na occasião em que Felix acabava de ler outra carta de Cecilia. A carta da moça era tranquilla e até certo ponto nobre. Não lhe fazia nenhuma recriminação, nem implorava nenhum favor. Defendia-se apenas, retirando de si a responsabilidade da separação. A carta de Menezes era cavalheiresca: descobria o estado da alma de Cecilia e não hesitava em chamar ingrato ao profugo dardanio. Menezes sorriu lendo ambas as missivas; depois atirou-as a uma cesta e nunca mais as viu. _____ III. AO SOM DA VALSA. A casa do coronel podia conter o triplo das pessoas convidadas para o sarau daquella noite; mas o coronel preferira convidar apenas as pessoas mais íntimas e familiares. Era homem pouco cerimonioso, gostava sobretudo da intimidade. Quando Felix entrou dansava-se uma quadrilha. O coronel foi ter com elle e levou-o para onde estava a mulher, que ja o esperava com anciedade, pela razão, dizia ella, de que era um dos poucos rapazes que ainda conversavam com velhas, estando entre moças. Felix sentou-se ao pé de D. Mathilde. Estava então de bom humor e conversou alegremente até que a musica parou. A mulher do coronel era o typo da mãe de familia. Tinha quarenta annos, e ainda conservava na fronte, embora sêccas, as rosas da mocidade. Era uma mistura de austeridade e meiguice, de extrema bondade e extrema rigidez. Gostava muito de conversar e rir, e tinha a particularidade de amar a discussão, excepto em dous pontos que para ella estavam acima das controversias humanas: a religião e o marido. A sua melhor esperança, affirmava, seria morrer nos braços de ambos. Dizia-lhe Felix ás vezes que não era acertado julgar pelas apparencias, e que o coronel, excellente marido em reputação, fôra na realidade peccador impenitente. Ria-se a boa senhora destes inuteis exforços para abalar a boa fama do esposo. Reinava uma santa paz naquelle casal, que soubera substituir os fogos da paixão pela reciprocidade da confiança e da estima. A conversa com a dona da casa roubou algum tempo ás moças, segundo a expressão do coronel. Era necessario que Felix se dividisse com as senhoras que ainda tinham amor aos exercicios choregraphicos. Recusou, pretextando a presença de D. Mathilde. — Oh! por mim não! respondeu a boa senhora; o direito das velhas tem um limite no direito das moças. Va, doutor, e mais tarde volte ca, se o não agarrarem por ahi… Valsava-se. Felix levantou-se e foi buscar um par. Não tendo preferencia por nenhuma senhora, lembrou-lhe ir pedir a filha do coronel. Atravessava a sala para ir buscal-a defronte, quando foi abalroado por um par valsante. Com quanto fosse navegante práctico daquelles máres, não pôde evitar o turbilhão. Susteve o equilibrio com rara felicidade e foi procurar melhor caminho, costeando a parede. Nesse momento os valsantes pararam perto delle. Pareceu-lhe reconhecer Livia, irmã de Vianna. Com as faces avermelhadas e o seio offegante, a moça pousava mollemente o braço no braço do cavalheiro. Murmurou algumas palavras, que Felix não pôde ouvir, e depois de lançar um olhar em roda de si, continuou a valsar. Durou isto minutos. Felix apenas se achou livre, foi buscar a filha do coronel, interessante criança de desesete annos, figura delgada, rosto angelico, formas graciosas, toda languidez e effluvios. Era uma dessas mulheres que fazem o mesmo effeito que um vaso de porcelana fina; toca-se-lhes com medo de as quebrar. Rachel era o seu nome; tinha grandes pretenções a mulher, que lhe não ficavam mal naquella edade de transiçcão; mas o que Felix lhe achava melhor era justamente o seu aspecto de criança, mal disfarçado pela formação do seio. Como caracter, fazia-lhe a mãe grandes elogios, e eram fundados, posto fossem de mãe. Rachel acceitou o convite. Felix passou-lhe o braço á roda da cintura, e ella estremeceu da cabeça aos pés; depois entregou-se-lhe toda com aquelle abandono que a valsa prescreve ou permitte, e voaram pela sala no turbilhão geral. A agitação coloriu um pouco as faces da moça, commummente descoradas. Quando pararam estava offegante. — Sentemo-nos, disse Felix. — Não; passeemos um pouco. Porque não apparece ca? — Receio não os encontrar; estão sempre fóra…. — Não; ha dous meses estamos na cidade. Mamãe diz que ja não está para éstas viagens contínuas, e eu acho que tem razão. Tambem me cansam a mim; o mais influido é papae. — Não gosta da roça? — Eu não tenho preferencias; gósto tanto da roça como da cidade; comtudo…. dou-me melhor ca. Está olhando para aquella moça? não a acha bonita? — Quem? Eu não olhava para ninguem. — Pois fazia mal; porque valia a pena olhar: Livia é a rainha da noite. Comquanto Rachel, na opinião de Felix, fosse uma menina, não deixou este de estranhar que tão facilmente cedesse a realeza da noite a outra mulher; mas por outro lado reflectia que ésta abdicação bem podia ser uma affectação de modestia. Comtudo, o limpido olhar da moça revelava a mais absoluta ingenuidade. Fez-lhe um comprimento á belleza della, e entrou a admirar de longe a belleza de Livia. Livia tinha effectivamente um ar de rainha, uma natural majestade, que não era rigidez convencional e affectada, mas uma grandeza involuntaria e sua. A impressão de Felix foi boa e má; achou-lhe uma belleza deslumbrante, mas pareceu-lhe ver atravez daquelle rosto senhoril uma alma altiva e desdenhosa. — Será a rainha da noite, disse elle voltando-se para Rachel; mas não serei eu quem lhe faça côrte. — Porquê? — Parece-me orgulhosa; hade tractar a todos como vassallos seus. Não ve com que desdem ouve ella as palavras do cavalheiro que lhe dá o braço? O cavalheiro era o mesmo rapaz que valsára com a viuva, um Dr. Baptista, descendente em linha recta do Leonardo de Camões, «manhoso e namorado.» — Oh! isso não é razão, disse Rachel; Livia não gosta delle. Pouco tempo depois foi servida a ceia. Felix dirigiu-se para uma sala interior onde o coronel tinha os livros, e que servia temporariamente de refugio aos fumantes. Felix accendeu um charuto e começou a correr os olhos pelos livros. Alli foram ter alguns rapazes que fallaram enthusiasticamente da irmã de Vianna. Era o objecto de todas as attenções da noite. E foi no meio das apologias daquelles cortezãos da belleza, que ella appareceu pelo braço do coronel, atravessando a sala, para ir ter ao toucador. — Doutor! disse Vianna, aproximando-se de Felix. E voltando-se para a irmã: — O Dr. Felix quer fallar-te. — Ah! disse a moça, voltando-se para o medico. Felix approximou-se. — Não sei se se lembra de mim? perguntou elle. — O Dr. Felix? Perfeitamente; foi-me apresentado ha muito tempo, mas eu tenho boa memoria. De mais, só se esquecem as pessoas vulgares. Felix agradeceu-lhe o comprimento. Ella extendeu-lhe a ponta dos dedos elegantemente apertados na pellica da luva. Trocaram algumas palavras mais. Dahi a pouco, tendo-se ouvido o preludio de uma quadrilha, toda a gente se retirou. Ficaram na sala Felix e Moreirinha. Moreirinha tinha cêrca de trinta annos, um bigode espesso, uma apparencia agradavel e um espirito frivolo. Confessou que estava impressionado pela viuva, mas que eram muitos os seus rivaes. — Mas não são temiveis esses rivaes? perguntou Felix. — Não; um apenas. — Qual? — O Baptista. — E o que está nas graças? — Não sei; mas é o mais valente de todos, e o que dispõe de mais tempo, posto seja casado. — Casado? — Com um anjo. Felix procurou reanimar o pretendente, pondo em relevo todas as suas qualidades merecedoras de admiração. Inventou-lhe algumas que não tinha; reconheceu-lhe outras que possuia realmente, inda que de um merecimento relativo ou duvidoso. Não se podia negar a influencia do Moreirinha entre senhoras. Era elle galanteador por indole e por systema; tinha, alêm disso (cousa importante) a plena convicção de que a sua conversa era preferida pelas damas. Ninguem melhor do que elle sabia lisongear o amor proprio feminino; ninguem prestava com mais alma esses leves serviços de sociedade, que constituem muita vez toda a reputação de um homem. Dirigia os pique-niques, comprava o romance ou a musica da moda, encommendava os camarotes para as representações de celebridades, levava os pianistas aos saraus, tudo isso com um modo tão serviçal que era de se ficar morrendo por elle. Felix voltou á sala quando se dansavam os ultimos passos da quadrilha. Livia estava esplendida de graça e elegancia. Nenhuma affectação nem acanhamento; seus movimentos eram a um tempo desembaraçados e modestos. O medico procurou ver se o doutor pretendente estaria nas graças da moca; mas elle dansava do mesmo lado em que ella estava; os olhares não podiam encontrar-se. Um sobrinho do coronel indicou-lhe a mulher do Baptista; era uma moça de vinte annos, loura, assás bonita e digna de inspirar amores. Porque motivo, o marido, casado ha pouco, queria ir queimar a um templo estranho os perfumes que a esposa merecia? Algum tempo depois de finda a quadrilha, dispôz-se Felix a deixar a casa do coronel, que lhe interceptou a passagem em nome, disse elle, da mulher e das moças. Felix respondeu-lhe que estava incommodado. — Pretextos de peraltice, disse o velho, rindo alegremente; não o deixo sahir nem que me caia morto na sala. Faz favor, minha senhora? Estas últimas palavras eram dirigidas á irmã de Vianna, que ia atravessando a saleta onde se achavam os dous. — Que me quer, coronel? disse ella parando. — Um favor apenas. Retenha-me este senhor, que se quer ir embora. Não tenho forças para tanto. Veja se m’o consegue. Comece dando-lhe uma quadrilha. — Dou-lhe a proxima, que é a minha última. — Tambem se vae embora? — Tambem. — É uma debandada geral. Vou mandar trancar as portas. O coronel affastou-se depois desta ameaça. Felix deu o braço a Livia e foram sentar-se n’um sopha que ficava proximo. — Meu irmão é muito seu amigo, disse Livia accommodando as ondas de seda do vestido. Falla-me muito no senhor. — É muito meu amigo, repetiu Felix, fazendo interiormente uma careta. — Não admira, observou ella; o senhor merece ser estimado. — Como sabe disso? — Todos o affirmam. — Nem todos serão sinceros, observou Felix. Felix não se illudia a respeito da estima de Vianna. Sem negar que o irmão da viuva lhe tivesse alguma amizade, dava-lhe todavia, limitado valor. Livia asseverava entretanto, que o irmão fallava delle com grande enthusiasmo, e até certo ponto o enthusiasmo era sincero. Felix tinha sobre Vianna certa ascendencia moral; alêm disso, era um homem franco e hospedeiro, rude mas serviçal. Dentro de pouco tempo a conversa entre o médico e a viuva foi perdendo a frieza ceremoniosa do comêço. Passaram a fallar do baile, e Livia manifestou com expansiva alegria as suas excellentes impressões, sobretudo porque, dizia ella, vinha da roça, onde tivera uma vida reclusa e monastica. Fallaram naturalmente da viagem que ella pretendia fazer. Confessou-lhe ella que era um desejo antigo e várias vezes differido. — Não pense, accrescentou Livia, que me seduzem unicamente os esplendores de Paris, ou a elegancia da. vida europea. Eu tenho outros desejos e ambições. Quero conhecer a Italia e a Allemanha, lembrar-me do nosso Guanabara juncto ás ribas do Arno ou do Rheno. Nunca teve eguaes desejos? — Estimaria poder fazel-o, se me supprimissem os incommodos da viagem; mas com os meus habitos sedentarios difficilmente me resolveria a isso. Eu participo da natureza da planta; quedo-me onde nasci. V. Ex. será como as andorinhas… — E sou, disse ella reclinando-se mollemente no sopha: andorinha curiosa de ver o que ha alêm do horizonte. Vale a pena comprar o prazer de uma hora por alguns dias de enfado. — Não vale, respondeu Felix, sorrindo; esgotta- se depressa a sensação d’aquelle momento rapido; a imaginação ainda póde conservar uma leve lembrança, até que tudo se desvanece no crepusculo do tempo. Olhe, os meus dous polos estão nas Larangeiras e na Tijuca; nunca passei destes dous extremos do meu universo. Confesso que é monotono, mas eu acho felicidade nesta mesma monotonia. Livia entrou a combater isto que lhe parecia um insigne paradoxo, mas sem que nenhuma de suas palavras mostrasse a mais leve sombra de pedantismo. Tinha uma maneira natural e simples de dizer as cousas menos vulgares deste mundo. Sabia exprimir as suas ideias em phrase elegante, mas despertenciosa. O prelúdio de uma valsa chamou a attenção dos dous para o baile. Felix convidou-a para valsar; ella desculpou-se, dizendo que se achava cansada. — Vi-a valsar quando entrei, disse Felix, e affirmo que poucas pessoas valsarão tão bem. Creia na sinceridade do elogio, porque eu não os faço nunca. A moça acceitou este comprimento com ingenua satisfação. — Gósto muito da valsa, disse ella. Não admira; é a primeira dansa do mundo. — Pelo menos é a unica dansa em que ha poesia, accrescentou Felix. A quadrilha tem certa rigidez geometrica; a valsa tem todo o abandono da imaginação. — Justamente! exclamou Livia, como se Felix lhe tivesse reunido em poucas palavras todas as suas ideias a respeito d’aquelle assumpto. — Demais, continuou o doutor, animado pelo enthusiasmo da viuva, a quadrilha franceza é a negação da dansa, como o vestuario moderno é a negação da graça, e ambos são filhos deste seculo, que é a negação de tudo. — Oh! murmurou ella sorrindo. E o protesto não foi so com os labios, foi tambem com os olhos — uns olhos avelludados e brilhantes, feitos para os desmaios de amor. Felix começou a sentir-se bem ao lado d’aquella moça, e esquecendo de boa vontade a festa em que so apparentemente figurava, alli se demorou longo tempo com ella, alheio aos commentarios extranhos, todo entregue ao capricho do seu proprio pensamento. Todavia, escapou-lhe, no meio da conversa, não sei que phrase de melancholico scepticismo que fez estremecer a moça. Livia olhou para elle e depois para o chão, parecendo tão absorta que nem deu pelo silencio que se seguiu ao seu gesto e ás palavras de Felix. Este aproveitou a circumstância para examinal-a melhor. Livia representava ter vinte e quatro annos. Era extremamente formosa; mas o que lhe realçava a belleza era um sentimento de modesta consciencia que ella tinha de suas graças, uma cousa semelhante á tranquillidade da fôrça. Nenhum gesto seu revelava o amor proprio geralmente inseparavel das mulheres bonitas. Sabia que era formosa, mas tinha para si que, se a natureza se havia esmerado com ella, era por uma razao de harmonia e de ordem nas cousas terrestres. Afeiar as suas graças, parecia-lhe um crime; tirar orgulho d’ellas, frivolidade. Felix examinou-lhe detidamente a cabeça e o rosto, modêlo de graça antiga. A tez, levemente amorenada, tinha aquelle macio que os olhos percebem antes do contacto das mãos. Na testa lisa e larga, parecia que nunca se formára a ruga da reflexão; não obstante, quem examinasse n’aquelle momento o rosto da moça veria que ella não era extranha ás luctas interiores do pensamento: os olhos, que eram vivos, tinham instantes de languidez; mas n’aquella occasião não eram vivos nem languidos; estavam parados. Sentia-se que ella olhava com o espirito. Felix contemplou-lhe longo tempo aquelle rosto pensativo e grave, e involuntariamente foram-lhe os olhos descendo ao resto da figura. O corpinho apertado desenhava naturalmente os contornos delicados e graciosos do busto. Via-se ondular ligeiramente o seio turgido, comprimido pelo setim; o braço esquerdo, atirado mollemente no regaço, destacava-se pela alvura sôbre a côr sombria do vestido, como um fragmento de estátua sôbre o musgo de uma ruina. Felix recompoz na imaginação a estátua toda, e estremeceu. Livia acordou da especie de lethargo em que estava. Como tambem estremecesse, cahio-lhe o leque da mão. Felix apressou-se a apanhar-lh’o. — Obrigada, murmurou ella distrahida. Depois, parecendo envergonhada d’aquelle longo silencio, pretextou um incómmodo nervoso; levantaram-se e dirigiram-se ao salao. Alli, no meio da conversa e do bulicio, readquiriu ella o imperio de si mesma, e conversaram largamente com volubilidade e galanteria. A viuva era um pouco sarcastica, mas d’aquelle sarcasmo benevolo e anodyno, que sabe misturar espinhos com rosas. Pela primeira vez Felix a conhecia, porquanto apenas a tinha visto duas vezes, e não basta ver uma mulher para a conhecer, é preciso ouvil-a tambem; ainda que muitas vezes basta ouvil-a para a não conhecer jamais. Livia demorou-se em casa do coronel mais tempo do que promettêra, milagre devido ao doutor, dizia Vianna. O certo é que o resto da noite quasi não existiram para ninguem mais. Não passou isto sem que o notassem alguns labios despeitados. Um cavalheiro disse a uma senhora: — Não lhe parece que D. Livia tem um gosto deploravel? A senliora arregaçou levemente a ponta esquerda do labio superior, e respondeu: — O Felix não o tem melhor. A viuva sahio no meio de um geral murmurio de admiração. Felix não se demorou muito tempo mais; metteu-se no carro e foi para as Larangeiras. Uma hora depois o baile, a viuva, a dansa, tudo se lhe desvaneceu do espirito, graças a um somno tranquillo e profundo, como essas nuvens douradas do occaso que a noite absorve ou dissipa. _____ IV. PRELUDIO. No dia seguinte partiu Felix para a Tijuca, onde tinha uma casa de recreio e refúgio; regressou duas semanas depois. Durante esse tempo nada soube do que occorrêra na cidade: não leu jornaes nem abriu cartas de amigos. Alguma cousa, entretanto, havia occorrido: a primeira notícia com que o saudaram os amigos, apenas elle chegou á cidade, foi que Cecilia conquistára o coraçao de Moreirinba. O successor de Felix, pouco depois que este chegou, não deixou de lhe ir participar a sua boa fortuna, não sei se por fatuidade, se por despicar a dama. — Dou-lhe os meus parabéns, respondeu Felix; conquistou uma rapariga socegada, carinhosa, capaz de o comprebender.... — Tanto melhor! accudiu o rapaz. O que me faltava era isso mesmo; uma mulher que me comprehendesse. Cecilia nao é positivamente uma alma perdida; não está na linha dessas outras mulheres com quem tenho despendido o meu dinheiro sem colhêr nada mais que alguns tardios remorsos. É uma moça de bons sentimentos, conserva certa dignidade no vício, tem uma alma nobre, elevada…. Este panegyrico durou alguns minutos mais. Dentro de tão pouco tempo descobrira-lhe Moreirinha qualidades desconhecidas para o antecessor. Seria mais nescio ou mais perspicaz? Cecilia não era hypocrita quando dizia gostar de um homem; qualquer que fosse a natureza dos seus affectos, ella os sentia sinceramente; mas era raro que sobrevivessem vinte e quatro horas á causa que lh’os inspirára. Não se lhe desmentira a constancia durante os seis mezes de intimidade com Felix; mas se ella era amante para querer a um so homem, era independente para o esquecer depressa. Tinha uma fidelidade filha do costume; a sua maxima era não esquecer o amante presente, não recordar o amante passado, nem se preoccupar com o amante futuro. Moreirinlia era o amante presente; podia contar com a fidelidade da rapariga, ao menos com as suas boas intenções. Quando Menezes soube deste desenlace ficou attonito. Julgou a princípio que era apenas uma affectação de Moreirinlia; mas logo verificou que não. Foi ter com o médico. — Meu amigo disse: peço-te que me desculpes a carta ridicula que te escrevi. — Que carta? — A respeito de Cecilia. Nunca pensei que fossem fingidas aquellas lagrymas que me entraram pelo coração. Aprendi a não crer tão superficialmente. — Não aprendeste cousa nenhuma, retorquiu Felix, encolhendo os hombros; não é em terra que se fazem os marinheiros, mas no oceano, encarando a tempestade. O episodio dos amores de Cecilia foi assumpto de conversa no círculo dos rapazes que os quatro frequentavam. Nem tardou que passasse alêm. No fim de algum tempo, pouca gente ignorava que a moreninha que passeava todas as tardes em carro descoberto pela praia de Botafogo era o altar em que o Moreirinha fazia os seus sacrificios diarios e pecuniarios. Felix admirou-se ao princípio desta mania de passear tão contrária aos habitos preguiçosos de Cecilia,; mas atinou logo com a chave do enigma. Moreirinha não comprehendia o que era ser feliz sem publicidade. Para elle, a ilha de Cythera não podia ser jamais a ilha de Robinson. Entretanto, passára um mez desde o sarau do conselheiro. Felix não se havia aproveitado do convite que a viuva lhe fizera, nem cedido ás instancias de Vianna, Encontrou-os, porêm, uma noite no Gymnasio. Estava elle nas cadeiras quando os viu n‘um camarote da 2.ª ordem. Comprimentaram-se. No fim do 2.º acto Felix subiu ao camarote. Teve excellente recepção, posto que a viuva, sem deixar de ser cortez e graciosa, parecia um pouco reservada e preoccupada. Não fallava com a mesma volubilidade da noite do baile. Esquecia-se ás vezes de si e dos outros. Duas vezes lhe aconteceu dar uma resposta sem pergunta e deixar uma pergunta sem resposta. A conversa, portanto, não foi muito animada. Felizmente Vianna encarregou-se de preencher os intervallos com a symphonia das suas reflexões. Variou como um folhetim sem assumpto, e aborreceu como um relatorio sem estylo. Quando se levantou o panno para o terceiro acto, Felix quiz sahir, mas tanto a viuva como o irmão pediram-lhe que ficasse. Acceitou o convite e ficou. Do que houve em scena durante esse acto póde-se affirmar que Felix nada soube absolutamente. O acto era curto, e Felix empregou todo o tempo em observar a moça, que, mollemente reclinada na cadeira, acompanhava distrahida o diálogo dos actores. — Em que estará pensando esta moça? dizia Felix comsigo. Evidentemente, não lhe importam os suspiros do galan, nem as facecias do gracioso. Olha, mas não vê a scena. Estará á espera de algum namorado remisso? Mas quem é então esse lorpa que deixa entristecer uns olhos tão bonitos? A ingenua da peça, que desde o acto anterior se sabia estar apaixonada pelo galan, como é de geito no theatro e no mundo, entrou precipitadamente em scena e lançou-se nos braços do amado. Algumas palmas do público premiaram essa resolução inesperada e energica. Então começou entre a dama e o galan um diálogo de sentimento e paixão, um duello de suspiros, um protestar de fidelidade e constancia, que a plateia ouviu com demonstrações de enthusiasmo. — Ama, não ha dúvida, continuou Felix a dizer entre si; basta ver como lhe brilham os olhos a cada phrase do diálogo. Agradam-lhe os protestos do namorado e as lagrymas da dama. Creio que sorri; é de approvação. Oh! como está divina! Emfim, cahiu o panno; e a viuva, que ja no fim do acto, parecera ter voltado á sua anterior preocupação, levantou-se, dizendo que se ia embora. Vianna pediu-lhe para ficar até o fim da peça; ella insistiu, e era forçoso ceder. Felix acompanhou-os até o carro. — Até quando? perguntou Livia, acceitando a mão que Felix lhe offerecia. — Até breve. Seria acaso ou illusão? Felix sentiu uma forte pressão dos dedos da moça, em quanto ésta subia rapidamente para o carro, e ia responder com um aperto ainda mais forte; mas era tarde; a moça ja estava sentada, e Vianna punha o pe no estribo para subir. Illusão era de certo; illusão ou casualidade. Mas o médico não o percebeu logo, o que foi um primeiro erro na maneira de julgar a viuva. Poucos dias depois do encontro no theatro, dirigiu-se Felix a Catumby onde elles moravam. Não os achou. Quando Livia voltou para casa soube da visita de Felix pelo cartão que a mucama lhe deu. Tão apressadamente descalçou as luvas que as rasgou; e como o irmão fizesse um reparo a este respeito, a moça respondeu com azedume. Vianna estava acostumado ás asperezas da irmã; levantou os hombros e sahiu. Felix encontrou-a dous dias depois na rua do Ouvidor, fazendo compras para a viagem. — Se adivinhasse a sua visita, não teria sahido de casa, disse a viuva. Félix inclinou-se. — Por outro lado, estimo ter estado fóra; morando eu tão longe, não teria o prazer de recebêl-o segunda vez, e nesse caso antes nada. — O tilbury encurta as distancias, observou Félix; procurarei desempenhar-me da obrigação em que estou. — Da obrigação ja se desempenhou; agora… — Perdão; o seu comprimento constitue uma obrigação nova. Despediram-se. Menezes, que estava na calçada opposta, durante as poucas palavras trocadas entre Félix e a viuva, atravessou a rua e veiu ter com o amigo. — Quem é aquella moça? — É a irma do Vianna. — Bravo! é lindissima. — É realmente bonita, o que lhe merece a admiração geral. Ve como todos lhe estão, com os olhos em cima… — Se não ha indiscrição, disse Menezes depois de a ver entrar em uma loja, queimas os teus perfumes naquelle altar? — Não. Para quê? — Talvez algum casamento incumbado… — Casar?... disse Felix rindo. A pergunta é tão original que merece um sorvete. Vem ao Carceller. No Carceller contou-lhe Menezes que andava incommodado e triste. Vivia elle maritalmente com uma perola que pouco antes encontrára no lodo. Na vespera descobrira em casa vestigios de outro amador de pedras finas. Estava certo da infidelidade da amante; pedia-lhe conselho. — Não te dou conselho nenhum, respondeu o médico; resolve tu mesmo. — Mas, se eu podesse resolver alguma cousa no estado em que estou, não viria fallar a um amigo… — Lisongea-me a escolha; mas não passa disso. Imita-me, se podes; mas não me peças reflexões. — Mas, no meu caso, que farias tu? — Cousa nenhuma; pegava no chapeu e sahia. — E se o não podesses fazer sem dor? — Hypothèse absurda. — Para ti. — Naturalmente. Houve uma pausa. — Dou-te emfim um conselho, disse Felix. Menezes levantou os olhos com anciedade. — Qualquer que seja a resolução que tomares, continuou Felix, não recues um passo. — Onde acharei esta resolução? — Aqui, disse Felix pondo-lhe o dedo na testa. — Oh! não! suspirou Menezes; a cabeça nada tem com isto; todo o mal está no coracão. — Recorre á cirurgia: corta o mal pela raiz. — Como? — Supprime o coração. _____ V. FICO. Dous dias depois, estando Felix a vestir-se para ir a Catumby, entrou-lhe Menezes por casa. Vinha pallido e abatido, olhos vermelhos, passo trémulo. Não se sentou, deixou-se cahir n’uma cadeira. — Que é isso? perguntou Felix. — Está tudo acabado, respondeu elle; romperam-se os vinculos fataes. Custou-me muito, mas era necessario; foi agora ha pouco; corri para ca; precisava de alguem com quem desabafasse. Isto é ridiculo, bem sei; mas que queres? Eu soffro... tenho um coração miseravel, e deixo-me levar por elle… Felix pareceu condoer-se da situação do rapaz, e disse-lhe algumas palavras de animação, que elle ouviu com reconhecimento. — Eu ja desconfiava, disse Menezes, de que era trahido; so tive a certeza hontem. O que mais me doe em tudo isto, continuou elle depois de alguns instantes de silencio, é que, para servir ao homem que me trahiu, desfazia-me eu em obsequios, e até, confessso-te aqui, era seu credor. — É por isso que eu não empresto dinheiro a ning-uem, respondeu Felix, penteando as suiças. — Mas quem póde adivinhar o mal, quando nos apresentam uma physionomia risonha? Eu confiava em ambos. Felix encolheu os hombros. — Toma um charuto, disse. — Não quero fumar. — Fuma; eu ja observei que o fumo impede as lagrymas, e ao mesmo tempo leva ao cerebro uma especie de nevoeiro salutar. — Vaes sahir? perguntou Menezes, vendo que o outro punha o chapeu na cabeça. — Vou á casa do Vianna. Queres vir? — Não posso. — Devias vir commigo; apresentava-te á irmã d’elle, e passavamos algumas horas em companhia amavel. Esquecerias depressa as tuas penas. Menezes recusou; Felix levou-o no carro até á rua do Lavradio, onde elle morava. Em caminho conversaram longamente a respeito dos seus extinctos amores. Menezes jurava que era a última aventura a que expunha o seu coração; achava-se curado de uma vez. — Não affirmes nada, Menezes; podes errar. Sabes o que te falta? Têmpera. Amanhã, entre duas lagrymas, apparece-te um raio de sol; e eis-te de novo namorado, confiado e arriscado. — Oh! não! protestou Menezes. — Quem dera que não! Mas eu estou a ler no teu rosto que a unica maneira de te consolar deste naufragio é dar-te outro navio. Só muito tarde te convencerás de que viver não é obedecer ás paixões, mas aborrecel-as ou suffocal-as. Os maricas, como tu, choram; os homens, esses ou não sentem ou abafam o que sentem. Isto não tem réplica, meu... amigo, diria eu, se me não lembrasse do teu afortunado rival, que é positivamente um mariola. Vem á casa do Vianna; hasde gostar da Livia; parece-se comtigo. — Não posso, respondeu Menezes, que so ouvira as últimas palavras de Felix. — Mas has de ir depois? — Sim, depois. — E se te apaixonas por eila? Menezes sorriu tristemente; o carro parou; despediram-se um do outro, e Felix seguiu para Catumby. Livia estava so em casa. Fora convidada a um jantar, mas respondeu pretextando um incómmodo que não tinha. O irmão encarregou-se de ir representál-a. — Tinha o presentimento, disse ella depois de referir éstas cousas ao doutor, tinha o presentimento de que o senhor vinha ca hoje, e não desejava que lhe acontecesse a mesma cousa que da primeira vez. — E acredita em presentimentos? perguntou Felix. — Não os explico, mas acredito nelles. Livia parecia mais bella que das outras vezes. Não so a luz natural dizia melhor com a sua tez, como tambem a simplicidade do vestuario era para ella um realce. Felix não dissimulou a impressão que lhe causava aquelle novo aspecto da moça. Livia, que, como toda a mulher bella, e posto não fosse vaidosa, sabia mirar-se na physionomia dos outros, não deixou de perceber a impressão do doutor. A scena da portinhola do carro não havia sahido do espirito de Felix, que se convencera de duas cousas: primeiro, de que a viuva gostava delle; depois, de que era facil triumphar da viuva. As apparencias davam fundamento á opinião de que a moça o amava. Felix aproveitou a situação e dispoz-se a tirar della todo o proveito possivel. Pouco se demorou, entretanto, naquelle dia. Quando annunciou que se ia embora, pediu-lhe a viuva que não esquecesse a casa. — Aproveitarei o tempo, observou Felix, emquanto não embarcam para a Europa. Seu irmão diz-me que a viagem é breve. — Se não houver transtorno. Em todo o caso, venha, e não faça visitas de médico. — Eu fui médico; fiquei com esse costume, respondeu Felix sorrindo. — Ja não é médico? — Do corpo, não. — Mas da alma? — Talvez. Deixei agora mesmo um doente da alma, que eu desejaria apresentar-lhe, por que estes ares dão saude, creio eu. — De que soffre o seu doente? Felix sorriu-se. — Victima de uma inconstancia, molestia vulgar. Está no periodo agudo. É um pobre rapaz, innocente e singelo, que vai buscar as regras da vida nos compêndios da imaginação. Maus livros, não lhe parece? Livia não respondeu; estava embebida a ouvil-o. — Menezes não conhece outros, continuou Felix. Parece filho d’aquelle astrologo antigo que, estando a contemplar os astros, cahiu dentro de um poço. Eu sou da opinião da velha., que apostrophou o astrologo: «Se tu não ves o que está a teus pes, porque indagas do que está acima da tua cabeça?» — O astrologo podia responder, observou a viuva, que os olhos forão feitos para contemplar os astros. — Teria razão, minha senhora, se elle podesse supprimir os poços. Mas que é a vida senão uma combinação de astros e poços, enlevos e precipicios? O melhor meio de escapar aos precipicios é fugir aos enlevos. Livia ficou pensativa alguns instantes. — O pensamento é melancholico, disse ella; comtudo pode ser verdadeiro. Mas porque razão condemnaremos a vida contemplativa dos que não conhecem a vida positiva? Os livros da imaginação... esses livros não são detestaveis, como o senhor disse; não os ha detestaveis nem optimos. Deus os dá conforme a sciencia de cada um. Felix despediu-se de Livia, não enlevado, não palpitante, mas disposto a uma aventura. Amiudou as suas visitas a Catumhy, a grande aprazimento de Vianna, que suspeitou alguma affeição entre os dous, e imaginára uma alliança de familia. A presença de Felix era até vantajosa naquella casa. Entre a viuva e o irmão havia um abysmo. Eram dissimilhantes nos sentimentos, nos habitos de viver, na maneira de pensar. Livia tinha alternativas de affabilidade e rispidez, ao passo que o irmão era de uma inalteravel paz de espirito. Vianna tinha cousas más e boas, sendo que as cousas boas erão justamente as que se oppunham ao genio especulativo da viuva. Era homem essencialmente práctico; o seu reino era todo deste mundo. Apezar das suas pretenções a rapaz estouvado e extravagante, tinha habitos de ordem e economia. Livia era a este respeito negligente e «meia douda», como lhe chamava o irmão; alheiava-se muitas vezes das cousas que a cercavam para subir a um mundo superior e chimerico. O médico era entre ambos uma especie de mediador plastico. Não pertencia á esphera de nenhum delles; mas sabia a maneira de os conciliar. Felix encontrou algumas vezes em Catumby o Dr. Baptista, que elle víra dansar com a viuva em casa do coronel. Livia não parecia prestar-lhe attenção; nem o pretendente magoar-se por isso. Era um modêlo de dissimulação e cálculo. Conhecia todos os artificios da campanha amorosa, a indifferença, o desdem, o enthusiasmo, e até a resignação; não era homem de tomar um coração á escala vista, mas por assédio longo e paciente. Uma noite em que sahiram de la juntos, Felix procurou sondar-lhe o espirito a respeito da moca. — Nada ha, respondeu Baptista com indifferença; nem eu pretendo cortejál-a. Mas, se o pretendesse, triumpliaria; a paciencia é a gazua do amor. — Não lhe parece que essa sua maxima é immoral? — Effectivamente é assim; mas é por isso mesmo que estes amores são deliciosos. Quinze dias depois appareceu Vianna em casa de Felix. Deu-lhe parte de que a irmã ja não ia para a Europa. — Porque motivo? perguntou Félix. — É justamente o que eu desejava saber, disse Vianna com um gesto de mal contido despeito; mas estou certo de que o não saberei jamais. Aquella minha irmã não me parece ter a cabeça no seu logar. — Algum a razão haver ia. Estara doente? — Está de perfeita saude. — Quem sabe se... algum namôro? — Ja pensei nisso, disse Vianna; póde ser algum namôro. — Naquella edade as paixões são soberanas. Seria inutil querer dissuadil-a, e ainda que não fosse inutil, seria desarrazoado, porque uma viuva moça... Ella amava muito o marido, não? — Antes de casar, muito; tres mezes depois muitissimo; ao cabo de alguns mezes, nem muito nem pouco. Toda essa história é mysterio para mim… — Não lhe vejo mysterio nenhum; o casamento é justamente isso: acalma os affectos para os tornar mais duradouros. Se a paixão de sua irmã se tornou mais calma… — Não se tracta disso. Livia não amava menos; aborrecia o marido... Mas porque nos demoraremos nestas cousas que não podemos explicar? A unica explicação que lhe acho é o seu caracter exquisito. O senhor não imagina bem que eterna variação de genio é aquella moça. Ha dias em que se levanta meiga e alegre; outros em que toda ella é irritação e melancholia. Ninguem a entende, e eu menos que ninguem. — Não esteja o senhor a exagerar uma cousa naturalissima. Todos temos essa mesma alteração de humor. Ha manhãs tristes e aziagas. Quer que lhe dê um conselho? Não a contrarie nunca; é o melhor. — Mas o senhor hade concordar que quando a gente ja preparava os beiços para ir saborear a vida parisiense… — Ha tempo para tudo, disse Félix, e o senhor ainda está moço. Iremos juntos daqui a um anuo. — Palavra? — Palavra. _____ VI. DECLARAÇÃO. — Então, ja não vae para a Europa? perguntou Felix á viuva nessa mesma tarde. — Quem lh’o disse? — Seu irmão. — Desfiz a viagem, bem contra a vontade delle, que me chamou caprichosa e não sei que mais. Talvez tenha razão. Eu mesma não me entendo ás vezes. Esta viagem, que era um desejo ardente, acha-me agora fria. Que lhe parece isto? — Algum a razão ha de haver, ponderou o médico; e eu sentiria se o motivo…. — Se o motivo? repetiu a moça. Calaram-se e ficaram algum tempo a olhar um para o outro. A explicação, que ja os labios não pediam nem davam, começaram a pedil-a e a lel-a os olhos de ambos. Livia abaixou os sens. — Vamos para o terraço, disse ella por fîm; a tarde está bonita. A tarde estava realmente linda. Felix, entretanto, cuidava menos da tarde que da moça. Não queria perder o ensejo de lhe dizer, como se fôra verdade, que a amava loucamente. Encostada ao parapeito do terraço que dava para a chacara, a viuva simulava contemplar os esplendores do occaso; na realidade, afiava o ouvido para escutar a confissão amorosa. Felix olhava para ella e não ousava romper o silencio. Quasi a soltar dos labios a palavra decisiva, a si mesmo perguntava se ella não iria pesar no seu destino mais do que imaginava então, e se daquelle capricho de momento não resultaria o mal de toda a sua vida. Mas a hesitação foi curta; Felix ia emfim lançar a sorte, quando um escravo appareceu no terraço, a annunciar a visita do Dr. Baptista. — Não quero fallar a ninguem, João, disse a moça; estou incommodada. — Que resposta é essa? perguntou Felix, baixinho, quando o escravo voltou as costas. — João! disse a moça. O escravo voltou. — Eu hoje so posso receber as pessoas mais íntimas de casa, os amigos de meu irmão. As outras dize que estou incommodada. O escravo sahiu. — Adopta esta explicação? — Antes essa, respondeu Felix; é melhor para a senhora; sinto-a comtudo por mim; não quizera ser envolvido entre os íntimos da casa. — Quer que eu corrija a ordem que dei? — Não peço tanto; não tenho direito a isso; e todavia… — E todavia?... Houve um curto silencio. — Não me comprehende? disse Felix com voz quasi sumida. — Comprehendo, murmurou ella, depois de uma pausa; mas receio enganar-me. — Não se engana, insistiu Felix com calor; amo-a, e seria impossivel negal-o, porque a minha voz e o meu rosto hão de tel-o dito melhor do que as minhas palavras. Não percebe isso ha muito tempo? Não adivinhou ja que a esperança do seu amor é para mim toda a felicidade de amanhã? Diga! diga uma palavra so, cruel ou benevola, mas uma e definitiva. Livia escutara-o enlevada, e a sua resposta foi mais eloquente que a declaração do doutor; estendeu-lhe a mão trémula e fria, e embebeu nos olhos delle um longo olhar de agradecimento e felicidade. — Ama-me tambem? perguntou Felix, depois de alguns minutos de muda contemplação. — Oh! muito! suspirou a moça. E ambos alli ficaram silenciosos, offegantes enamorados, nesse extasis dulcissimo que é porventura o melhor estado da alma humana. Ambos, porque o coração do médico, naquelle instante ao menos, palpitava com egual fervor. — Muito! repetiu Livia, como se essa palavra fosse apenas um echo do seu pensamento ou uma resposta á muda interrogação dos olhos do médico. Felix passou-lhe o braço á roda da cintura e puxou-a docemente para si; depois segurou-lhe a cabeça entre as mãos, e inclinou os labios para lhe imprimir um beijo na fronte. Deteve-o um rumor extranho, uma voz infantil e desconhecida. Instantes depois appareceu no terraço um menino de cinco annos, criança gentil e esperta, rosada e gorda, como os anjos e os cupidos que a arte nos representa em seus paineis. — Mamãe! mamãe! gritava o pequeno, correndo a abraçar-se com a mae e fugindo à mucama que vinha atraz delle. Livia recebeu a criança nos braços; beijou-a e pol-a ao collo. — Apresento-lhe meu filho, disse ella ao médico; estava em casa da madrinha; veiu hontem para ca. E voltando-se para o menino: — Luiz, conheces o Dr. Felix? O menino olhou para o medico com a expressão pasmada e interrogativa das crianças que veem uma pessoa pela primeira vez, e voltou-se para a mãe, sem parecer impressionar-se muito. Livia encheu-lhe as faces de beijos. A criança, rindo de prazer, repelliu com as mãosinhas aquella chuva de caricias maternas. — Ora bem, disse a viuva, quem te deu ordem de andar a correr por aqui? — Ninguem, respondeu o menino, eu pedi a Clara para me deixar vir; ella não quiz, mas eu vim. Não fiz bem, mamãe? — Fizeste mal. Vae brincar, vae, mas não corras. — Quem é este moço? pevguutou Luiz, olhando outra vez para Felix. — Ja te disse: é o Dr. Felix. — Ah! Luiz encarou o médico; depois olhou para a mãe, e fez um gesto para descer. Livia pol-o no chão. — Posso ir á chacara? — Podes; leva-o, Clara. Luiz deitou a correr seguido pela mucama. A mãe acompanhou-o com os olhos até elle desapparecer do terraço. Durante esta scena, Felix parecera completamente extranho a tudo que o rodeava. Não ouvia as reprehensões da moça, nem a tagarelice da criança; ouvia-se a si mesmo. Contemplava aquelle quadro com deleitosa inveja, e sentia pungir-lhe um remorso. — É mãe, repetia o moço comsigo; é mãe! — Olhe, dizia a moça debruçada sobre o parapeito que dava para a chacara; veja como elle vae correndo… Felix debruçou-se tambem; o menino corria effectivamente adiante de Clara que o acompanhava de longe. De quando em quando, parava o menino aguardando a mucama; mas tão depressa esta se lhe aproximava, a criança negaceava o corpo, e deitava a correr outra vez. A mãe parecia esquecida de tudo mais; Felix contemplava-a com religioso respeito. Estiveram assim calados alguns segundos. De repente, Livia voltou-se para o médico; — Ve? disse ella; a pouco se reduz a minha felicidade: o senhor e aquella criança. Dizendo isto, deixou pender a fronte; Felix beijou-a ardentemente, mas não pôde dizer nada. A commoção embargou-lhe a voz; a reflexão impoz-lhe silencio. _____ VII. O GAVIÃO E A POMBA. Iniciando affoutamente esta aventura, era natural que Felix sahisse de Catumby com a h vaidade satisfeita de um triumphador. Não era elle amado, e amado sem esforço seu, sem resistencia nem combate? E a mulher que lhe acabava de dar francamente o coração não tinha todas as qualidades que podem seduzir um homem e lisongear-lhe o amor proprio? Qualquer outro teria motivo de se julgar superior ao resto dos mortaes; mas era a natureza mesma da victoria que vinha travar a felicidade de Felix. A que proposito interviria o coração neste episodio, que devia ser curto para ser bello, que não devia ter passado nem futuro, arroubos nem lagrymas? — Fui longe de mais, ia elle dizendo comsigo; não devia alimentar uma paixão que hade ser uma esperança, e uma esperança que não póde ser outra cousa mais que um infortunio. Que lhe posso eu dar que corresponda ao seu amor? O meu espirito, se quizer, a minha dedicação, a minha ternura, so isso... porque o amor... Eu amar? Pôr a existencia toda nas mãos de uma creatura extranha... e mais do que a existencia, o destino, sei eu o que isso é? Neste ponto, parece que alguma ideia vaga e remota lhe surgiu no espirito e o levou a uma longa excursão no campo da memoria. Quando voltou á realidade presente tinha o carro entrado no largo do Machado. Apeou-se e seguio a pe para casa. A viuva tornou a occupar-lhe o espirito. Recapitulou então tudo o que se passára em Catumby, as palavras trocadas, os olhares ternos, a confissão mutua; evocou a imagem da moça e vio-a juncto delle, pendente de seus labios, palpitante de sentimento e ternura. Então a phantasia começou a debuxar-lhe uma existencia futura, não romanesca nem legal, mas real e prosaica como elle suppunha que não podia deixar de ser com um homem inhahil para as affeições do ceu. — E que outra cousa quer ella? dizia o médico a si mesmo. Era, sem dúvida, melhor que houvesse menos sentimento naquella declaração, que tivéssemos navegado mais juncto á terra, em vez de nos lançarmos ao mar largo da imaginação. Mas, emfim, é uma questão de fórma; creio que ella sente da mesma maneira que eu. Devia tel-o percebido. Falla com muita paixão, é verdade; mas naturalmente sabe a sua arte; é colorista. De outro modo pareceria que se entregava por curiosidade, talvez por costume. Uma paixão louca póde justificar o erro; prepara-se para errar. Não me anda ella a seduzir ha tanto? É positivo; mette-se-me pelos olhos. E eu a imaginar que... Quando Felix chegou a casa, estava plenamente convencido de que a affeição da viuva era uma mistura de vaidade, capricho e instincto sensual. Isto lhe parecia melhor que uma paixão desinteressada e sincera, em que, aliás, não acreditava. Não admira pois que ainda desta vez a lembrança de Livia lhe não perturbasse o somno, e que o primeiro clarão da aurora, atravessando os vidros da janella da alcova, alumiasse o rosto do médico, tão grave e placido como na vespera. Felix voltou a Catumby naquelle mesmo dia. A viuva estava radiante de felicidade, trémula de alegria. Estendeu-lhe a mão, que elle apertou, não palpitante como ella, mas cheio de delicadeza e graça. A presença de Vianna, alêm disso, impedia qualquer outra manifestação exterior. O parasita, que parecia empenhado em preparar uma alliança de familia com o médico, dispoz-se a não ser cruel para os dous namorados; fechou os olhos, cerrou os ouvidos, e, se em todo o caso foi importuno, não o deveu á vontade, mas á situação, porque em taes circumstâncias nem todo o engenho de Voltaire póde fazer um homem interessante. Amiudaram-se ainda mais as visitas de Felix, que alli encontrou algumas vezes a familia do coronel Moraes, e outras, poucas, da intimidade de Livia. D. Mathilde sentia enthusiasmo pelo médico; quanto a Rachel olhava para elle com uma especie de adoração. Dos homens alguns o detestavam cordialmente, outros tinham-lhe medo, não raros inveja, e alguns poucos sympathia. Felix, entretanto, parecia indifferente aos sentimentos que inspirava, e deste modo obedecia a um systema não menos que á disposição do seu espirito. O mesmo practicava em relação ao amor. Evitava, quanto podia, animar as esperanças da moça, e posto soubesse a fundo a rhetorica da paixão, não a empregava sem uma parcimonia, que lhe parecia economia razoavel. Livia porêm não dissimulava nem hesitava; deixava transparecer no rosto o que sentia no coração. Jogava com as cartas na mesa sem previsão nem cálculo. Expansiva e discreta, energica e delicada, enthusiasta e reflectida, Livia possuia esses contrastes apparentes, que não eram mais que as harmonias do seu caracter. Os proprios defeitos della nasciam de suas qualidades. Era credula á fôrça de ser confiante, rispida com tudo o que lhe parecia baixo ou futil, e nisto mostrava conhecer bem pouco a vida real. Tinha a imaginação chimerica, ás vezes — o coração supersticioso, a intelligencia austera de mais para o seu sexo e para a sociedade em que vivia. Mas ella compensava estes defeitos, se o eram, por qualidades capitaes e raras. Um dia, em que ambos conversavam do unico assumpto que lhes podia interessar — pelo menos do unico que lhe interessava a ella, Félix pediu-lhe explicação de uma cousa que lhe parecia obscura. — Obscura? repetiu Livia. — Lembra-se da noite em que a encontrei no Gymnasio? disse o médico. Estava preoccupada e alheia a tudo. Conversou mal e distrahida; interessavam-lhe as scenas amorosas; tudo mais parecia aborrecel-a. No fim do terceiro acto levantou-se e foi-se embora. Diz-me, entretanto, que desde o sarau do coronel ja começava a sentir este amor que é a sua vida. Pois bem, não estava eu lá, a seu lado, no theatro? — Não. — Oh! — Estava outro homem, mui diverso deste que eu vejo, agora ao pé de mim, porque ainda me não amava. Mas não era só isso; era mais. Pensa que os seus actos, sentimentos e pessoa, não são objecto dos commentarios extranhos? — Importam-me tão pouco os commentarios! — Pois bem, fallaram-me muito mal do seu coração naquelle dia. — Que lhe disseram desse viajante incognito? — Viajante? perguntou Livia. — Que foi, emendou Felix. — Disseram-me muitas cousas más. — Deu-lhes credito? — Não; mas fiquei triste. Eu estava acostumada a admiral-o de longe. Conhecia-o pouco, mas meu irmão fallava-me muita vez a seu respeito nas cartas que me escrevia para Minas, e Rachel fazia coro com elle. — Seu irmão tem certo enthusiasmo por mim, disse Felix; é natural que exaggere os meus meritos. Quanto á filha do coronel, é uma criança, que se acostumou a ver-me com olhos de irmã mais moça. — Quer então que eu acredite antes nas cousas más? — Nem más nem boas, Livia; conheça-me primeiro; fara depois juizo seguro. — Oh! conheço-te! exclamou ella. A entrada de Vianna interrompeu o colloquio. Felix dirigiu-se á mesa e abriu um album, emquanto Vianna referia á irmã as peripecias de um jantar a que assistira. O album da viuva, que o médico abria pela primeira vez, estava ja alastrado de prosa e verso. Nem tudo era bom, como acontece nesses livros, que são ás vezes verdadeiros asylos de invalidos do Parnaso, onde as musas rheumaticas e manetas vão soltar os seus gemidos. Uma página havia que lhe pareceu mysteriosa: era uma declaração de amor sem assignatura. Leu-a, e não pôde deixar de sorrir: só havia uma cousa peior que a fórma, era o pensamento. — De que se ri? perguntou a viuva. Vianna approximou-se de Felix e lançou os olhos para a página aberta. — Ah! disse elle estouvadamente; isto é de meu defuncto cunhado. Livia estremeceu e corou. — Viuva de um nescio! pensou Felix. Estava pedindo um homem intelligente. _____ VIII. QUÉDA. O desenlace desta situação desegual entre um homem frio e uma mulher apaixonada, parece que devêra ser a quéda da mulher: foi a quéda do homem. Para triuinphar da viuva, Félix contava apenas com a sua resolução; mas a viuva, alêm do seu amor, tinha dous auxiliares actives e latentes: o tempo e o habito. Cada dia que passava cabia como uma gotta d‘agoa no coração do médico, e ia cavando fundo com a fria tenecidade do destino. Ironia da sorte chamará o leitor a este desfecho de uma situação que, algumas semanas antes, tão outra se lhe affigurava. Chame-lhe antes lógica da natureza, porque o coração de Félix, que apparenta va ser de mármore, era simplesmente da nossa commuin argila. Não era seguramente um coração virg-inal e puro; tinha uma certa dose do egoismo que a natureza maternalmente repartiu por todos os homens, e não se póde dizer que não fosse algum tanto sceptico; mas estes senões exaggerava-os elle de maneira que veiu a perder, na imaginação dos outros, a sua phisionomia original. As armas com que luctava eram certamente de boa têmpera, mas se valiam muito para esgrimir, valiam pouco para pelejar. Com uma mulher que apenas tivesse a somma de aífecto necessaria para dissimular o erro, o nosso heroe ficaria na altura da reputação; mas o amor da viuva era um verdadeiro combate. Quando Félix chegou a encarar-lhe o coracão, sentiu a fascinação do abysmo, e cahiu nelle. Esta quéda, como disse, foi lenta; o médico começou a sentir que a presença da moça era para elle uma necessidade. Pesavam-lhe as ausências mais longas, e, o que era mais, vinham suavizar-lh’as umas saudades, que elle definia por outro modo, mas que, em summa, eram saudades. Quando a ia ver, e á proporção que se aproximava della, sentia bater-lhe alguma cous a dentro do peito; o médico dizia que era o sangue ainda juvenil e irrequieto. Seria uma razão pliysiologica; mas havia tambem uma razão moral; era a lava da paixão que se ia formando e subindo até romper a garganta do volcão. Longa foi a gestação do amor; mas quando o médico descobriu o estado de sua alma, não era scentelha que se podesse abafar, mas incêndio que lavrava e consumia tudo. Decidam lá os doutores da escriptura qual destes dous amores é melhor, se o que vem de golpe, se o que invade a passo lento o coração. Eu por mim não sei decidir; ambos são amores; ambos teem suas energias. O de Felix parecia ter criado no silencio uma força invencivel. Um potro arisco e selvagem, quando a mão do homem lhe põe o freio pela primeira vez, não se irrita mais do que o nosso heroe no dia em que sentiu violada a liberdade do seu coração. Colera singular e insensata, mas amarga e sincera. Planeou desde logo uma separação violenta, que lhe desse tempo e armas para vencer-se a si proprio. A execução seguiu de perto a ideia; e o médico cessou repentinamente as suas visitas a Catumby. A ausencia, porêm, foi ainda um auxiliar da viuva. O despeito do médico não se applacou, transformou-se; não accusava ja a fraqueza do coração, mas a rebeldia delle. O que a principio lhe parecera necessario para restituir-lhe a paz do espirito, começou a ter a seus olhos o caracter de ingratidão. Ingratidão, era ja confessar muito; mas o médico foi alêm; achou-se ridiculo. Aqui ja não era possivel a resistencia. Algum homem póde gloriar-se de ser ingrato; dira, com um moralista sceptico, que é uma maneira de ser independente. Mas ninguem é ridiculo convencido; convencer-se é emendar-se. A essas razões que o médico dava a si proprio, e que eram filhas da consciencia, accresciam outras que elle não articulava, mas sentia, as saudades, as recordações, os desejos, a voz mysteriosa e constante que lhe sussurrava aos ouvidos o nome de Livia. Demais, a bella viuva escreveu-lhe. Felix, como um verdadeiro namorado, jurara não abrir as cartas que ella lhe mandasse, e correu á porta para receber a primeira. Não era carta de recriminações, mas de sorpresa e de lagrymas. Quando veiu segunda carta, ja o médico sabia a outra de cór. A segunda era a última, dizia Livia; eram ja recriminações, mas não contra elle, nem contra o destino; eram recriminações contra si mesma. A melancholica resignação da moca commoveu o medico; no fim de uma semana estava aos pés della fazendo acto de sincera contricção. Livia perdoou-lhe as lagrymas choradas durante aquelles oito dias de angustiosa incerteza. Perdoou-lh’as como sabem perdoar as almas verdadeiramente femininas, — sem resentimento. Mas a causa da ausencia não a explicou Felix. — Não me perdoou ja? disse o médico, quando ella lhe fez uma pergunta directa a este respeito. Isso basta; não queira saber a razão desta singular loucura, que me levou tão longe do unico logar em que me é possivel a felicidade. Para minha expiação basta o que soffri tambem nestes oito dias e a vergonha de ter… Calou-se: receiava dizer tudo. A moca ouviu aquellas palavras com manifesta satisfação, e murmurou: — Ciumes? Felix estremeceu. Uma sombra ligeira pareceu toldar-lhe os olhos. Livia inclinou para elle o rosto como querendo ler-lhe na physionomia a verdade que elle forcejava por esconder. — Não, disse Felix, não foram ciumes. Ciumes de que e de quem? — De ninguem, bem sei; mas esta-me a parecer, Felix, que o seu amor é um pouco visionario e melindroso. Oh! não me lastimo por tão pouco; agradeço-lhe até. Que perderia eu com isso? Alguns dias de paz, talvez; mas a certeza de ser amada é uma grande compensação. O purgatorio não é uma porta que abre para o ceu? Cada qual sabe amar a seu modo; o modo pouco importa; o essencial é que saiba amar. Pode ser que eu me engane, continuou ella pondo-lhe as mãos na fronte, mas eu creio que ha nesta cabeça muita imaginação, e imaginação doente. Ou então… — Ou então? repetiu o médico, vendo que ella fazia uma pausa. — Ou então, a doença está aqui, concluiu Li via apontando-lhe para o coração. Não importa; eu supportarei tudo, contanto que me ame. — Oh! Livia, exclamou Félix, depois de lhe beijar ternamente a fronte, essa resolução sera o penhor do nosso futuro. Consulte o seu coração; veja se ha nelle bastante misericordia para mim, e prometto-lhe que seremos felizes. — Tudo lhe perdoarei, contanto que me ame, disse a moça. Comprehenderia ella então que dolorosa e pesada obrigaçcão contrahira? Talvez não. Confiava em si mesma, no prestigio do seu amor, no coração de Felix, para vencer tudo, e realisar o que era agora o sonho da sua vida. O caminho melhor para isto era seguramente o da egreja. Que obstaculo podia haver? Um e outro dependiam exclusivamente de si; o casamento era o desfecho logico e sacramental daquelle romance. Mas nem a viuva o insinuava,: nem o médico o propunha; e nesta situação mal definida alguns dias correram de tranquilla felicidade. Aos olhos extranhos buscavam ambos esconder o seu segredo; mas a reserva de Livia era apenas a que bastava para acatar as conveniencias, ao passo que a de Felix era tão completa e calculada que á propria moça illudia. Ésta facilidade de dissimulação desconsolou-a. Achava-a perfeita de mais. Era um symptoma de tranquillidade que desdizia com o amor impetuoso de Felix. Demais, que razão haveria para esconder tão mysteriosamente dos olhos dos outros, uma cousa que deveria e não tardaria a ser pública? A indifferença de Felix, entretanto, não era tão completa como parecia; era uma indifferença vigilante. Quando os olhos da viuva procuravam os do médico, este desviava cautelosamente os seus; mas olhava, digamo-lo assim, por baixo da palpebra. Foi então que começou para ella uma vida de lucta. _____ IX. LUCTA O amor de Felix em um gosto amargo, travado de dúvidas e suspeitas. Melindroso lhe chamára ella, e com razão; a mais leve folha de rosa o magoava. Um sorriso, um olhar, um gesto, qualquer cousa bastava para lhe turbar o espirito. O proprio pensamento da moça nao escapava ás suas suspeitas: se alguma vez lhe descobria no olhar a atonia da reflexão, entrava a conjecturar as causas della, recordava um gesto da vespera, um olhar mal explicado, uma phrase obscura e ambigua, e tudo isto se amalgamava no ânimo do pobre namorado, e de tudo isto brotava, authentica e luminosa, a perfidia da moça. Livia prefiria de certo uma confiança honesta e leal; mas a desconfiança estava longe de lhe amargurar o coração; aceitava-a com singular alegria. — Antes isto, dizia-lhe depois de uma reconciliação; vejo que me ama. A confiança tambem se parece com a indifferenca, e a indifferença é o peior de todos os males. Ésta philosophia teve seus instantes de desmaio. Não bastava a força do amor para resistir a suspeita de todos os dias, que se apagava ás vezes logo, mas que renascia depois, para de novo se apagar e renascer. Livia começou a fugir dos logares que até então frequentava habitualmente. Raras vezes apparecia no theatro ou n’uma reunião. Felix comprehendeu a causa desta reserva e disse-lh’a. A moca negou; mas como elle insistisse em affirmar e pedir que ella não alterasse os seus habitos, respondeu: — É bom de dizer, Felix; assim vamos melhor; la fóra, como aqui, la peior do que aqui, a menor cousa basta para lhe transviar o espirito. — Juro-lhe que não. Jurava, mas quebrava o juramento. O espirito não ratificava as promessas do coração. De que lhe servia a ella a maxima prudencia nas suas relações com as demais pessoas, se tudo era pouco para obter a confiança de Felix? Uma hora de inalteravel felicidade era comprada á custa de muitas horas de tedio, ás veses de lagrymas. Elle as sentia de certo, e pagar-lh’as-hia com sacrificios, se precisos fossem; mas eram curtos esses lucidos instantes. Livia não se acostumou a ler logo na physionomia do medico. Elle possuia em alto grau a faculdade de esconder o bem e o mal que sentisse. Era uma faculdade preciosa, que o orgulho educára, e se fortificou com o tempo. O tempo, entretanto, a pouco e pouco lhe foi adelgaçando essa couraça, á medida que se prolongava e multiplicava a lucta. Então os olhos da viuva aprenderam a soletrar-lhe no rosto os terrores e as tempestades do coração. Ás vezes, no meio de uma conversa indifferente, alegre, pueril, os olhos de Livia se obscureciam e a palavra lhe morria nos labios. A razão da mudança estava n’uma ruga quasi imperceptivel que ella descobria no rosto do médico, ou n’um gesto mal contido, ou n’um olhar mal disfarçado. Ésta situação pôde esconder-se aos olhos de todos, menos aos de Luiz Baptista. Observador e perspicaz, e ao mesmo tempo sem paixões nem escrupulos, percebeu este que quanto mais o amor de Felix se tornasse suspeitoso e tyranico, tanto mais perderia terreno no coração da viuva; e assim, roto o encanto, chegaria a hora das reparações generosas com que elle se propunha a consolar a moça dos sens tardios arrependimentos. Para alcançar esse resultado, era mister multiplicar as suspeitas do médico, cavar-lhe fundamente no coração a ferida do ciume, tornal-o em summa instrumento de sua propria ruina. Não adoptou o methodo de Yago, que lhe parecia arriscado e pueril; em vez de insinuar-lhe a suspeita pelo ouvido, metteu-lh’a pelos olhos. A difficuldade era certamente maior e mais delicada, mas o pretendente tinha em larga escala as qualidades precisas para ella. Era-lhe necessario affectar com a moça uma intimidade mysteriosa, mas discreta, sem apparato, antes cercada de infinitas caulellas, tão habil que ella não percebesse, mas tão claramente dissimulada que fosse direito ao coração de Félix. Mas a mulher delle? A mulher delle, amigo leitor, era uma moça relativamente feliz. Estava mais que resignada, estava acostumada á indifferença do marido. Dera-lhe a Providencia essa grande virtude de se affazer aos males da vida. Clara havia buscado a felicidade conjugal com a ância de um coração que tinha fome e sede de amor. Não logrou o que sonhára. Pedira um rei e deram-lhe um cepo. Acceitou o cepo e não pediu mais. Todavia o cepo não o fora tanto antes do casamento. Paixão não a teve nunca pela noiva; teve sim um sentimento todo pessoal, mistura de sensualidade e fatuidade, especie de enthusiasmo passageiro, que os primeiros raios da lua de mel abrandaram até apagal-o de todo. A natureza readquirio os seus aspectos normaes; a pobre Clarinha, que havia ideiado um paraiso no casamento, viu desfazer-se em fumo a sua chimera, e acceitou passivamente a realidade que lhe deram, — sem esperanças, é certo, mas tambem sem remorsos. Faltava-lhe, — e ainda bem que lhe faltava, — aquella curiosidade funesta com que o amphibio classico, desenganado do cepo, entrou a pedir um rei novo, e veiu a ter uma serpente que o engoliu. A virtude salvou-a da quéda e da vergonha. Lastimava-se talvez no refúgio do seu coração; mas não fez imprecações ao destino. E como nem tinha força de aborrecer, a paz domestica nunca fôra alterada; ambos podiam dizer-se creaturas felizes. Ora pois, em quanto Clarinha nenhum lugar occupava no espirito do marido, este executou o plano que havia organisado. O resultado foi lento, mas certo. O coração de Felix bebeu aos poucos o veneno que lhe propinava tranquillamente o astuto rival; mil circumstâncias fortuitas vieram favorecer a obra de Luiz Baptista. O espirito de Felix era apropriado terreno para ella; a suspeita rara vez lhe morria em embryão; uma vez lançada a semente, germinava com força, crescia, apoderava-se delle, e então batia a hora da crise, a hora que o seu rival pacientemente esperou, e conseguiu. Desta vez assentou Felix n’uma resolução heroica: romper o encanto que o prendia á bella viuva. Tinham ja passado alguns mezes, todos elles assim entremeados de felicidade e amargura. Cem vezes se convencera das suas injustiças, mas a cada suspeita nova resurgiam as anteriores, as que ella perdoára, e a última confirmava então as primeiras, e o pobre rapaz achava-se sinceramente ludibriado e ridiculo. Escreveu uma carta longa e violenta, em que accusava a moça de perfidia e dissimulação. Havia amargura na carta, mas livia tambem odio e desprezo, tudo quanto podia ferir para sempre um coração que até alli soubera amar e soffrer, mas que emfim podia cançar e desprezar. Enviada a carta, deixou-se elle entregue á sua dor, disposto a não voltar a Catumby. Ninguem viu então uma lagryma que o desespero lhe arrancou, e que elle se apressou de enxugar com vergonha de si mesmo[.] Recapitulou então todos os successos dos ultimos dias; nunca lhe parecera mais evidente a traição da moça, nem mais cruel a situação do seu espirito. Um raio de esperança veiu entretanto projectar-se na sua noite de duvidas. Imaginou que tudo podia ser erro e illusão; e esperou que a resposta de Livia tudo viesse esclarecer. Nada esclareceu a resposta da moça, porque o portador da carta voltou sem ella. Ao ciume que o devorava, veiu misturar-se o despeito; complicou-se a dor com o orgulho offendido. Livia appareceu-lhe com todos os caracteres de uma loureira vulgar; e loureira não traduz bem o pensamento do moço, cujo ciume não era so violento, mas brutal. Nesse estado passou Felix o resto do dia. Longas lhe correram as horas, friamente longas como ellas são, quando o coração padece ou espera. Emfim, cahiu a tarde, apagou-se de todo o sol, as sombras da noite começaram a luctar com os derradeiros lampejos do crepusculo, até que de todo dominaram o ceu. A melancholia da hora insinuou-se no coração do médico, e a pouco pouco lhe aquietou o desespero do dia. Felix meditou longo tempo na situação que as circumstâncias lhe haviam creado. Viu o immenso espaço que aquelle amor lhe tomara na vida, e a terrivel influencia que poderia exercer nella, caso não achasse forças para resistir á separação. Qual seria o meio de escapar a esse desenlace peor que tudo? Felix pensou n’uma viagem, como o meio mais facil e prompto. Dispunha mentalmente as cousas para esse fim, quando ouviu parar um carro. Dahi a pouco entrou um escravo dizendo que uma pessoa insistia em fallar-lhe: era uma senhora. — Uma senhora! repeliu Felix. Era Livia. Quando Felix, chegou á sala, estava ella á porta, com o rosto coberto por um veu que arregaçou immediatamentc. Felix não pôde reter um grito de sorpresa. Livia trazia pela mão um menino: era o filho. Caminhou para o médico depois de alguns instantes de absoluto silencio, e estendeu-lhe a mão. — Não esperava a minha visita? disse ella com tranquilidade. — Confesso que não. — Devia esperar, porque eu não havia respondido á sua carta, e alguma cousa cumpria que lhe dissesse. — Não receiou que os olhos da sociedade… disse elle. — A sociedade está tomando cha, atalhou aviuva procurando sorrir-se. Era preciso que eu eu viesse e vim. Felix fez um movimento. — Sim, era preciso, insistiu Livia. Uma carta seria ja inutil, entre nós as cartas perderam a virtude, Felix. Eu ja não sei, ja não tenho palavras com que lhe restitua a confiança ao coração. Ésta ousadia talvez… A luz batia de chapa no rosto da moça, Felix viu tremeram-lhe duas lagrymas nos olhos, hesitarem um instante, e rolarem depois na face, levemente corada de agitação e de pejo. — Fui talvez cruel no que lhe escrevi, disse elle, e quero crer que fosse tambem injusto, mas amo-a e é todo o meu crime… Livia suspirou. — Não o amo eu tambem? disse ella. Nem por isso sou cruel ou injusta. Mas não o accuso; se o accusasse não viria aqui. Venho por que sei que padece; e a despeito de tudo devia vir. Felix conduzi-a para o sopha, e sentou-se n’uma cadeira. Luiz ficou de pe entre elle e ella, meio indifferente, meio curioso, do que ouvia sem entender. — Não receiou que este menino pudesse dizer alguma cousa? perguntou Felix. — Não pensei n’isso. Fui visitar Rachel, que está muito mal; fui so com elle. Tinha a idéa de vir ás Larangeiras: isso dominava tudo. Se conseguir dissipar-lhe as novas dúvidas que o affligem, pouco me importam as consequencias. Que quer? Eu sou assim. Vejo no mundo o meu amor e a sua felicidade; tudo o mais me é extranho ou nullo. Livia dizia estas palavras com um tom singello e verdadeiramente d’alma, que commoveu o médico. — Oh! para isso basta uma cousa, disse Felix com impetuosidade. Jura-me que nenhuma razão havia para suspeitar? Livia abriu muito os olhos como espantada do que ouvira; depois abanando tristemente a cabeça. — O senhor hade quebrar todo o meu orgulho, disse com amargura. Eu arrisco tudo para lhe restituir a felicidade e a paz; o senhor recompensa-me este sacrificio com a humilhação. Jurar-lhe! De que serve um juramento mais entre nós? Se o que acabo de fazer não é bastante, Felix, concluamos aqui o nosso romance; e oxala que alguma página d’elle possa algum dia lembrar-lhe com saudade. Dizendo éstas palavras, a moça voltou o rosto para esconder a sua commoção. Felix sentiu pungir-lhe um remorso, e teve impeto de cahir aos pes da bella viuva. Murmurou algumas palavras que ella não percebeu ou não ouviu, até que o menino chamou a attencão de ambos dizendo[:] — Vamos, mamãe? Livia levantou-se e desceu o veu sobre o rosto. — Perdoe-me tudo, disse Felix; ainda uma vez lhe peço perdão. Não me julgue como os outros o fariam se conhecessem esta triste história de alguns mezes. Não sou máo; falta-me confiança; algum dia lhe direi porque. Por agora, perdoe-me outra vez. Injuriei-a, bem sei; não devia pedir-lhe nada mais, por que me deu generosamente a maior consolação que o meu espirito ousaria esperar. — Esse homem?.... disse a viuva depois de um instante. — Por que me pergunta? Quero affastal-o de minha casa, se elle lá vai, ou evitar as occasiões de me encontrar com elle. — É um homem que a não respeita se quer: um libertino, cuja mulher é um anjo.... — O Dr. Baptista? — Esse. Livia estendeu-lhe a mão. Felix quiz ainda fallar-lhe mas a viuva observou que era tarde e dirigiu-se para a porta. Felix acompanhou-a até o jardim. Ao despedir-se della pela última vez, o médico apertou-lhe fervorosamente a mão. — Perdoa-me? — Sim! disse ella. E pela primeira vez nessa noite era a sua voz terna e amorosa como de costume. Felix viu-a entrar no carro que partiu immediatamente. Voltou para a sala. Estava irritado contra si mesmo. Reconhecia a sua precipitação; achava-se grosseiramente injusto. Se lhe houvera lembrado a visita da moça, tel-a-ia pedido como o meio unico de lhe desvanecer de todo as suspeitas. Agora que ella o deixava, acusava-se de a haver obrigado áquelle extremo recurso. A noite pareceu-lhe ainda mais longa que o dia. Velava e remordia-lhe a consciencia. Ouviu bater uma por uma as horas todas, ancioso por que viesse o dia seguinte para ir a Catumby resgatar á força de ternura e respeito a injustiça com que tratára a viuva. Cerrou os olhos quando a arraiada despontou no ceo; pouco dormiu, entretanto. Ao levantar-se tinha o espirito mais socegado, e pôde apreciar melhor a situação. — O casamento me restituirá a confiança, pensava elle; quando estivermos juctos os dous, affastados da convivencia e do contacto de estranhos, a paz morará no meu coração; so então seremos felizes sem amargura nem remorso. _____ X. A ENFÊRMA A doença de Rachel era grave; durante alguns dias chegaram a receiar um desenlace funesto. Os velhos paes quasi enlouqueceram, quando o médico os preparou para a terrivel catastrophe. A menina percebeu o seu estado, mas nem o medo da morte, nem a saudade da terra lhe fez doer o coração. Morria como flor que era. A mág-oa era toda para os que a viam assim condemnada sem remedio. O médico assistente dera á molestia um nome tirado não sei se do grego, se do latim. Na opinião da mãe, havia alguma cousa mais do que o nome e a molestia; havia uma inexplicavel melancholia, anterior á doença, uma especie de tedio precoce da vida, se não era antes alg-uma esperança malograda, — on mais claramente, alguma affeição sem esperança. Para obter della a confissão que imaginava tinha D. Mathilde o necessario tacto e doçura: era mulher e mãe. Mas, ou porquê nada liouvesse realmente, ou porque qüizesse levar comsigo o segredo da sua mélancholia, Rachel nenhuma confissão lhe fez. Dous dias depois da visita de Livia, Felix foi á casa do coronel. O coronel estava na sala, mergulhado n’uma poltrona, com os olhos parados e as feições abatidas pela vigilia e pela dor. Quiz levantar-se quando Felix appareceu á porta, mas este correu para elle e impediu o movimento. — Soube ante-hontem do estado de sua filha, disse Felix sentando-se ao lado do velho pae. Disseram-me que estava mal… — Mal, repetiu o coronel, definitivamente mal. A pouca esperança que tinhamos veiu tirar-no-la o médico. O senhor não sabe o que é perder assim metade da alrna. Felix disse algumas palavras banaes de consolação, e chegou até a fallar de esperança; mas ainda que a esperança falla sempre ao coraçao dos desgraçados, o bom velho em outra cousa não acreditava mais que na morte. Algum tempo estiveram calados; emfim o coronel rompeu o silencio: — Rachel é muito sua amiga, disse elle. Duas vezes perguntou pelo senhor. — Desde quando estâ doente? — De cama está ha quinze dias; mas ja soffria antes disso. A principio não me deu muito cuidado; a molestia porêm aggravou-se rapidamente, e tem ido a peior. Foram ánterrompidos pelo médico assistente. Tinha este sido companheiro de Félix na eschüla. Ao vel-o alli suspeitou que o tivessem mandado chamar; Félix apressou-se a explicar o motivo da sua visita. — Em todo o caso, doutor, disse o outro, aproveito as suas luzes, e façamos, se lhe parece, uma conferência. O coronel foi ver se Rachel estava accordada; voltou pouco depois e acompanhou os dous médicos á alcova da doente. Félix foi o primeiro que assomou á porta: parou alguns instantes impressionado com o espectáculo que se lhe offerecia. Sentada á cabeceira da cama estava D. Mathilde, descorada e abatida, com os olhos tumidos, e por ventura cançados de chorar. Aos pes da cama via-se uma moça, amiga da infancia de Rachel, e sua dedicada enfermeira nesta occasiao. Am bas, triste e silenciosamente, contemplavam a doente. Rachel estava branca como a fronha do travesseiro em que descançava a formosa cabeça. Tinha os labios entreabertos e a respiração curta e difHcil. O pequeno rumor que fizeram os médicos ao entrar um pouco a sobresaltou. Rachel abriu os olhos, que ardiam de febre. Quando Felix se aproximou do leito e tomou o pulso da moça, ésta olhou para elle e fez um gesto de espanto. Olhou depois em volta de si como se duvidasse do logar em que se achava. D. Mathilde inclinou-se para a filha e disse: — É o Dr. Felix. Rachel olhou outra vez para Felix, com aquelle sorriso apagado e triste dos doentes, e murmurou: — Obrigada! — Como se sente? perguntou Felix. — Melhor, disse ella com uma voz tao fraca que parecia um suspiro. — Devéras melhor? Rachel fez um gesto de indifferença e não respondeu: — Vamos la, não desanime, disse Felix; e sobretudo não faça entristecer seus paes que lhe querem tanto. Felix examinou a doente, fazendo-lhe algumas perguntas, a que ella debilmente respondia. Quãndo elle cessou de a interrogar, a moca murmurou: — Morro, não é? — Não, disse Felix, não hade morrer, não deve morrer. Tem ainda vida larga; mas é preciso ânimo. Rachel fez um gesto de quem não acreditava nas boas palavras do médico, e voltou os olhos para a mãe. D. Mathilde tinha os seus cravados em Felix como se lhe quisesse ler no rosto a sentença da filha. A doente pareceu adivinhar pensamento, e disse com esforço: — Porque não dá as suas consolações a mamãe? A conferencia não durou muito tempo. Félix começou opinando por uma modificação no tratamento até ^lli seguido, e declarou, que nSo julgava todas as esperanças perdidas. O collega concordou facilmente na alteraçao pedida por Félix, tanto mais, disse elle, quanto as esperanças eram nenhumas. Em sua opinião, Rachel estava irremediavelmente perdida. Nao era opinião aerea e infundada; elle podia demonstral-a com augmentos cahaes e irrefutáveis. Demonstrou-o effectivamente. du rante vinte minutos, com a justa apreciação dos factos, os dados seguros da sciencia, e uma dialectica Uo cerrada que era impossivel fazer-lhe a menor objecçao. Quinze dias depois, entrava Rachel em convalescenc«a. No sentir dos paes, era Félix o salvador da filha. Fora elle quem lhes restituíra a esperança, e a realisára com os seus bons conselhos e diligente desvello. O collega de Félix, para quem o restabelecimento da moça era a destruição de todas as noções médicas recebidas, ficou profundamente sorprehendido com esse resultado. Em todo caso, era impossivel negal-o; limitou-se a applaudil-o, e quando a moça entrou em convalescença aconselhou aos paes que a mandassem para algum arrabalde da cidade, afim de respirar ares melhores. Não podia vir mais a proposito o conselho. Livia mudara-se para as Larangeiras. A ideia da mudança era de Vianna, que um dia a propoz á irmã, e fora approvado por ella. A casa ficava pouco acima da de Felix, do lado opposto. Era um prédio elegante, levantado no meio de uma chacara, não extensa nem esmeradamente tratada. Vianna entretanto organisára um programma de reforma, que promettia executar pontualmente. Seu contentamento parecia não ter limites; alêm de preferir aquelle bairro ao outro em que morava, havia a circunstância de ir ficar ao pe da casa de Felix, — o que era ja meia felicidade, dizia elle. Livia approvára a mudança sob a influencia de egual ideia. Aquelles ultimos dias tinham sido de plena e deliciosa paz. Seus projectos de futuro eram immensos; delineava uma vida independente de todas as escravidões sociaes, vida exclusiva delles, cheia de todos os prestígios da poesia e do amor. Ás vezes receiava que esses sonhos fossem apenas sonhos. Ainda assim não os dera por nenhum preço deste mundo. Estavam então nos primeiros dias de outubro; o casamento fora marcado para meiado de janeiro. Marcado, entenda-se bem, apenas entre os dous, por que Felix conseguira da viuva a promessa de que a notícia seria dada nas vesperas do acontecimento. — Mas a rasão deste segrêdo? perguntou Livia depois de lhe pormetter o que pedia. — Um capricho. A razão verdadeira era a vacillação do seu espirito; mas a que elle deu contentou perfeitamente a moça. — Se eu tivesse o teu coração, disse ella, desconfiava desta exigencia; mas vel-a; eu creio em ti. Estavam sos na chacara; Vianna, fiel ao seu programma de não perturbar os dous namorados, foi meditar a alguma distância nas reformas que pretendia fazer. Caminhavam os dous calados e distrahidos, ou melhor, concentrados em si mesmos. De repente, a viuva levantou a cabeça e disse como continuação das suas anteriores palavras: — Ha comtudo occasiões em que ésta confiança parece abalar-se, não porque eu duvide de ti, mas porque duvido do destino. Ja te disse que sou supersticiosa, — defeito das mulheres e das criancas. Estremeço algumas vezes quando encaro o futuro; e, sem saber por que, pergunto a mim mesma qual sera o fim de tudo isto. Desmaios apenas, e raros, de um coração que ambiciona talvez mais do que poder ia obter. — Não te parece que eu esteja'emendado? disse Felix sorrindo. Ha quantos dias não ha sequer… — Cala-te! interrompeu Livia tocando-lhe os labios com os dedos. Tenho medo de te ouvir fallar assim. E depois de um instante de silencio: — Não é o teu coração que me faz tremer; o teu coração é bom. Não é tambem o teu espirito, apesar de caprichoso, visionario, inconstante. Receio do futuro, á vista do passado. — Do passado! perguntou Felix estacando o passo. Livia suspirou. — Que houve de mau no teu passado? continuou o médico fitando nella um olhar prescrutador. — Tudo. Havia perto um velho sopha de vime. Livia encaminhou-se lentamente para elle e sentou-se. Felix contemplou-a algum tempo do logar em que ficara. Ja não sorria; a dúvida ensombrava-lhe os olhos. Emfim, deu alguns passos e parou em frente della. _____ XI O PASSADO — Serei indiscreto perguntando que passado foi esse? disse Felix depois de alguns instantes. — Oh! descança! Não me peza nada na consciencia; mas no coração. — Amaste alguem? — Amei a meu marido. A ésta resposta de Livia seguiu-se novo e longo silencio. A memoria do passado a que ella tão mysteriosamente alludíra parecia doer-lhe na alma. Arfava-lhe o seio; e as mãos, em que o médico amorosamente tocou, estavam geladas e trémulas. — Não acreditas que eu possa comprehender-te melhor que os outros? perguntou finalmente o médico. — Talvez não. Felix fez um gesto de despeito. A moça arredou o vestido e abriu espaço no sopha onde o médico se sentou a um signal d’ella. — Talvez me não comprehendas melhor que os outros, continuou Livia, e com isso não quero dizer que sejas tão vulgar como os mais d’elles. Não o és; mas ha cousas que' um homem difficilmente comprehenderá, creio eu. — Nem quando ama? perguntou Felix. Livia não respondeu; Felix continuou: — Mas que passado foi esse? Posso não comprehender-te como dizes; mas saberei dizer-te algumas palavras de consolação, e dissipar com ellas a tristeza que te ficar desta confidencia, que não é um remorso, de certo. — Amei a meu marido, começou Livia, e toda a minha confidencia se resume nessas poucas palavras. Tive uma paixão da primeira edade, quando o amor vem sorprehender a ignorancia do coração. Sera esse o amor o mais forte? Ha quem diga que o primeiro amor nasce apenas da necessidade de amar. Pode ser. Hoje que te amo sinto que póde ser assim. Em todo o caso, aquelle affecto dominou-me toda; cobrei uma vida que me parecia immortal. — E elle? — Amava-me, creio; mas não entendíamos o amor do mesmo modo; tal foi o meu doloroso e tardio desencanto. Para mim era um extasis divino, uma especie de sonho em acção, uma transfusão absoluta de alma para alma; para elle o amor era um sentimento moderado, regrado, um pretexto conjugal, sem ardores, sem azas, sem illusões... Errariamos ambos, quem sabe? — Vejo que eram incompativeis, interrompeu Felix; mas porque exigir de todos essa maneira de ver e sentir, que é mais da imaginação que da realidade? Livia levantou os hombros. — Estou explicando a situação da minha alma, continuou ella. Foi afflictiva e triste; não lh’a occultei. Riu-se de mim. Era um homem apathico e frio; honesto, é verdade, e bom coração, mas fallavamos lingua diversa e não nos podiamos entender. Confiei todavia na influencia do amor. Emprehendi a tarefa de o trazer á atmosphera dos meus sentimentos, errada tentativa, que so me produziu attribulação e cançasso. Fatigava-o com isso a que elle chamava pieguices poeticas; da fadiga passou á exasperação, da exasperação ao tedio. No dia em que o tedio appareceu conheci que o mal estava consummado. Quiz emendal-o e não pude. Tinha feito da nossa vida conjugal um deserto; e se a minha alma clamava contra o destino, minha consciencia me accusava de um êrro, o êrro de haver perturbado a paz domestica, a troco de um sonho que não veiu. Não me faço melhor do que sou, bem ves; mas uma parte da culpa não sera da natureza que me fez tão pueril? Tal é o meu receio agora, continuou Livia depois de alguns segundos de silencio; ás vezes cuido que não vim ao mundo para ser feliz, nem para dar a felicidade a ninguem. Nasci defeituosa, parece. Seras tu capaz de desfazer a aprehenção ou corrigir o defeito? A viuva concluiu estendendo-lhe a mão, que o medico apertou entre as suas. Um sorriso de sympathia ou de commiseração, ou de ambas as cousas junctas, entre-abriu os labios de Felix. Nenhum delles fallou; ambos pareciam conversar comsigo mesmo. Emfim, a viuva repetiu a pergunta. — Talvez possa dissipar-te a apprehensão, respondeu Felix; mas creio que não sera facil. Tens um coração ainda muito creanca, e que o ha de ser até a morte, penso eu. Felix calou-se, e contemplou á vontade a physionomia da moça, que tinha os olhos postos no chão, absorta e pensativa. A pouco e pouco o rosto do médico se foi egualmente fechando, e ambos, durante largo espaço, se deixaram ir na corrente de seus pensamentos sombrios. Felix foi o primeiro que despertou do lethargo. — Naufragaste á vista de terra! disse elle; e do naufragio trouxeste apenas humidos os vestidos. Sabes o que é naufragar em mar alto e solitario, e perder tudo, até a vida? Foi assim commigo. — Sim? disse Livia com um tom em que a alegria se misturava á curiosidade. Felix não pode reter um sorriso. — O infortunio é egoista, pensou, elle. E continuou: — Sim, perdi muito mais. Abraçar um cadaver, que é isso para quem ja abraçou uma serpente? Tu perdeste apenas alguns annos de amor mal comprehendido; não perdeste um bem precioso, que o tempo me levou: a confiança. Podes hoje ser feliz do mesmo modo que o querias ser então; basta que te ame alguem. Eu não, minha querida Livia, falta-me a primeira condição da paz interior: eu não creio na sinceridade dos outros. Aqui parou como se esperasse alguma observação da viuva; ella porêm olhava para elle tranquilla e até risonha. Felix continuou as suas confidencias do passado. Eram histórias de affeições malogradas e trahidas, contadas com sincera expansão, como se estivesse fallando a si mesmo. Ás vezes a commocão fazia tremer-lhe a voz, e nessas occasiões, sobretudo, lia-se nos olhos da moça o enlevo com que ella ouvia fallar-lhe o coração. — Ninguem esperdiçou mais generosamente os affectos do que eu, continuou o médico, ninguem mais do que eu soube ser amigo e amante. Era crédulo como tu; a hypocrisia, a perfidia, o egoismo nunca me pareceram mais que lastimaveis aberrações. Meu espirito creára um mundo seu, uma sociedade platonica, em que a fraternidade era a lingua universal, e o amor a lei commum. Deixei-me ir assim, rio abaixo dos annos, gastando a seiva toda da juventude, sem cálculo nem arrependimento, até que me bateu a hora das decepções funestas. Calou-se. Sentira um rumor proximo; era Vianna que passeava na chacara entregue ás suas combinações de horticultura. Ouviria elle a voz de Felix? Parece que sim, porque a pouco e pouco se foi affastando do logar. Os dous ficaram outra vez sos. O médico proseguiu: — Não me cahiram as illusões como folhas sêccas que um debil sopro desprega e leva; foram-me arrancadas no pleno vigor da vegetação. Sequer me deixaram essas doces recordações que são para as almas enfêrmas como que uma aura de vitalidade. Meu espirito ficou arido e sêcco. Invadiu-me então uma cruel mysanthropia, a principio irritada e violenta, depois melancholica e resignada. Calejou-se-me a alma a pouco e pouco, e o meu coracão litteralmente morrreu. Felix continuou a narração por este mesmo tom elegiaco e triste. Foi longa e fiel. Se a viuva não o escutasse so com o coracão, o poderia perceber alguma cousa mais do que resentimento e amargura. Felix não era virtualmente mau; tinha porêm um scepticismo desdenhoso ou hypocrita, segundo a occasião. Não perceberia so isso; veria tambem que a natureza fora um tanto complice na transformação moral do médico. A desconfiança dos sentimentos e das pessoas não provinha so das decepções que encontrara; tinha tambem raizes na mobilidade do espirito e na debilidade do coração. A energia delle era acto de vontade, não qualidade nativa: elle era mais que tudo fraco e voluvel. Livia não percebia nada disto; escutava-o com a fe pia de um coração amante. Sabendo que a razão do actual abatimento eram os infortunios passados, ella confiava de si mesma o renovar aquella alma que envelhecêra antes do tempo. Taes foram as suas consolações quando o médico terminou a longa confidencia. Elle agradeceu-lh’as commovido, não sem lhe perguntar se ella teria força bastante para concluir essa missão piedosa. — Tenho, affirmou Livia. — É certo que me resuscitaste, continuou o médico; e se o futuro me guarda ainda alguns dias de felicidade sem mescla, a ti so os deverei, minha boa Livia; tu so haveras feito o milagre. Mas… — Mas? repetiu a moça com impaciencia. — A obra não está completa, continuou Felix; metade apenas. Fizeste brotar d’entre as ruinas uma flor solitaria, mas bella; unica neste arido terreno do meu coração. Não basta: é preciso agora um raio que a anime e lhe conserve o perpétuo viço; essa é a confiança, não de uma hora, mas a de todos os dias, a que não fallece nunca e nos restitue a serenidade dos primeiros tempos. Sem ella, o meu amor sera um largo e inutil martirio. Dizendo isto, conchegou-a ao seio; tocavam-se quasi os rostos, que a ternura, não a voluptuosidade, enlanguiecia, Não foi longo esse instante de mútua contemplação, mas valeu por muitas horas de prática. Se a vida pudesse ser eternamente aquillo, é provavel que o coração de Felix adquirisse a paz que almejava. Emfim, a moça deixou cahir o corpo como se lh’o debilitasse o peso de commoções tão vivas, e a palavra affluiu aos labios de ambos. Fallaram então em prosa; conversaram de seus projectos de futuro, dos arranjos do casamento, de uma viagem que fariam logo depois. Iam levantar-se quando ao longe lhes appareceu o irmão de Livia. Caminhava apressadamente e alegre, ao encontro dos dous namorados. Felix compoz o rosto com a expressão que o caso pedia; Vianna approximou-se, e disse á irmã que o coronel Moraes estava na sala com a filha. Livia pediu licença ao médico e dirigiu-se para a casa. Felix deu o braço a Vianna. — Fallavamos das suas reformas, disse elle, e faziamos prosaicamente o orçamento da despeza que vai ter. Vianna sorriu-se á socapa: mas não deixou cahir o assumpto no chão. Fallou com volubilidade dos seus planos, que eram vastos e originaes, concluindo por uma singella confissão, acompanhada de um olhar indagador. — Receio, disse elle, que a Livia se case mais tarde ou mais cedo. Felix limitou-se a sorrir com indifferenca; entravam ambos na sala. _____ XII UM PONTO NEGRO Livia e Rachel estavam assentadas no sopha; o coronel, encostado a uma cadeira, consultava o relogio. Não consultava; tinha o relogio na mão, diante dos olhos, mas os olhos reviam-se na filha, em quanto esta respondia ás perguntas da viuva. — Aqui está a doente, disse Livia apenas viu assomar á porta da sala o médico e o irmão. Rachel voltou a cabeça, e não pôde reter uma exclamação de sorpreza e de alegria. Felix adiantou o passo e foi apertar-lhe a mão. — Então? não está salva? disse elle olhando alternadamente para as duas moças. — Foi o senhor que a salvou, disse o coronel chegando-se ao grupo. — Não fui; auxiliei a natureza, nada mais. — Havemos de pol-a totalmente boa e viva como era antes, disse Livia dando um beijo na convalescente. Rachel ouviu este dialogo com um sorriso triste que parecia ainda mais triste naquelles labios sem cor. Estava extremamente pallida e magra; os olhos, agora que o fogo da febre se apagara nelles, pareciam amortecidos e fundos. Ainda assim, não perdera ella a sua natural gentileza. Mais: a propria morbidez do aspecto como que lhe dava realce maior. Talvez essa circumstância intuisse na impressão que o médico agora recebia; pela primeira vez lhe pareceu Rachel uma mulher. O coronel respirava felicidade por todos os poros. A alegria que perdera durante a molestia da filha, voltava agora mais que nunca ruidosa e communicativa. Era um velho palreiro e jovial, amigo da palestra e de anedoctas, antes gracioso que chocarreiro, tendo aquella amavel gravidade com que a gente se familiarisa sem perder o respeito. De quando em quando olhava para a filha com olhos paternalmente namorados, e então parecia esquecer-se do resto do mundo, porque o mundo inteiro, ao menos parte delle, que a outra parte lhe ficára em casa, estava alli resumida naquella franzina e alquebrada creatura. — E promette-me que m’a restituirá, disse elle á viuva, nao corada, que ella nunca o foi, mas com aspecto de saude, viva como era, e alegre, e até se quizer travessa? — E por que não? Os ares são bons; os carinhos serão fraternaes, e melhor do que os ares e do que os carinhos, ha de cura-la a natureza, e creio tambem que a boa vontade della. Não é assim? disse Livia batendo na face de Rachel. A resposta de Rachel foi dar-lhe um beijo, e sorrir, não ja tristemente como da primeira vez. A tarde cahira de todo. O coronel fez algumas recommendações derradeiras á filha, agradeceu á viuva e ao médico, metteu-se no carro e voltou para Catumby. Livia foi mostrar á amiga o seu aposento; Felix despediu-se de ambas e dirigiu-se para a porta. — Volta? perguntou Livia. — Talvez não, minha senhora, respondeu Felix cuja intenção positiva era ir la tomar cha. A presença de Rachel veiu de algum modo alterar as relações dos dous namorados. Ja não podiam ser frequentes as entrevistas solitarias em que ambos se esqueciam do mundo e de si. Mais que nunca, procurou Felix recatar o seu amor das vistas alheias, por modo que, apezar da convivencia que tinha com os dous, Rachel nada suspeitou entre elles. Alguma cousa advinharia se reparasse que a viuva, quando estava com ella, quasi que so falava do médico; mas como ella tambem não fallava de outra pessoa, parecia-lhe que era antes a viuva quem a imitava. Por esse tempo começou Menezes a frequentar a casa de Vianna, com quem travára relações alguns mezes antes. Felix fez a respeito delle um elogio sincero e merecido. O parasita acompanhou a boa opinião do médico com um enthusiasmo que cheirava a bons jantares. O advogado correspondeu á expectação da viuva, e não tardou que se tornasse familiar na casa. Estava curado da sua malfadada paixão. Curado e vexado, dizia elle, quando Felix o interrogou a esse respeito. — Estes amores sao o cabo das Tormentas, concluia Menezes sorrindo, o cabo que todos nós dobramos antes de entrar no reino da aurora. Ja o passaste, creio eu; por que não aproas ao oriente? A esta metaphora um tanto rebuscada, respondeu Felix com um sorriso que podia ser confissão e neg-ativa ao mesmo tempo. Menezes, que não tinha nenhuma intenção occulta nas suas palavras, não se deu a averiguar qual das duas expressões convinha ao sorriso do amigo. As relações de ambos pareceram estreitar-se mais. Com um pouco mais de expansão e confiança, teria o médico referido ao amigo os seus amores e a sua felicidade proxima. Não o fez, nem Menezes lh’o adivinhou. Teve suspeitas uma noite em que sorprendeu os olhos da viuva amorosamente cravados no médico, mas a indifferença com que este se levantou para ir gracejar com Rachel de todo o dissuadiu. Os dias foram assim passando, longos para os dous amantes, breves para Menezes e Rachel que achavam naquella caza a mais deliciosa companhia deste mundo. Aqui podia acabar o romance muito natural e sacramentalmente casando-se estes dous pares de corações e indo desfructar a sua lua de mel em algum canto ignorado dos homens. Mas para isso, leitor impaciente, era necessario que a filha do coronel e o Dr. Menezes se amassem, e elles não se amavam, nem se dispunham a isso. Uma das razões que desviavam da gentil menina os olhos de Menezes era que este os trazia namorados da viuva. De admiração ou de amor? Foi de admiração primeiro, e depois foi de amor; cousa de que nem elle, nem o auctor do livro temos culpa. Que quer? Ella era formosa e moça, elle rapaz e amoravel, e de mais inexperiente ou cego, que não adivinhava a situação anterior da viuva e do médico, ainda por entre os veos com que lh’a occultaram. Ao inverso de Felix, cujo espirito so engendrava receios e dúvidas, Menezes era antes de tudo propenso ás fantasias côr de rosa. Irmanavam-se no ponto de serem joguetes de sua imaginação. Menezes facilmente entrevia um mundo de esperanças. A affabilidade com que a viuva o tratava pareceu-lhe auspiciosa; o mais innocente de todos os sorrisos servia-lhe de base a um castello de vento; uma expressão qualquer, simples cortezia de sala, afigurava-se-lhe cheia de mil promessas de futuro. Nem futuro nem esperanças havia; havia a candura delle, que era botão de flor, ainda entrefechado á corrupção da vida. Tal era o contraste desses dous caracteres, que a estrella da viuva, não sei se boa ou ma estrella, reuniu a seus pes. Um, se viesse a adorar um rosto hypocrita, desceria na escala das degradações, com os olhos fitos na chimera da sua felicidade; outro, ardendo pela mais angelica das creaturas humanas, quebraria com as proprias mãos a escada que o levaria ao ceu. Felix percebeu emfim o que se passava no coração do amigo. Sua primeira impressão foi de colera, não porque duvidasse logo da moça, mas por isso mesmo que outro homem se atrevia a amal-a. E não havia perigo em tal situação? A simples pergunta era sufficiente para dar largas ao espirito de Felix. Veiu immediatamente a ideia de que á moça não fosse desagradavel o amor de Menezes. A vaidade, primeiro, depois o habito, emfim a curiosidade do coração, os levariam uma para o outro. Talvez os houvessem levado ja … Aconteceu uma vez que, fallando della, a pliysionornia de Menezes, de risonha que estava, se tornasse subitamente melancholica. Felix era mais habil que elle; não lhe foi difficil sondar-lhe o coração. O amigo contou-lhe tudo, com o fervor que lhe era proprio, e a singelesa de um homem ainda pouco conversado nas cousas do mundo. O médico escutou-o com soffreguidão, mas appareatemente quieto. — E esperanças? disse elle. — Poucas ou muitas; não sei bem o que seja. Ha occasiões em que tudo se me afigura facil e decisivo; outras vezes desanimo e descreio de mim mesmo. Ella é affavel commigo, mas tambem o é contigo e com o os mais. Adivinharia ja alguma cousa? Quero crer que sim, e visto que se não agasta, é bom signal, penso eu. O peior de tudo é que eu me não atrevo a dizer-lhe o que sinto. Uma so palavra bastava ao médico para arredar do seu caminho aquelle rival nascente; Felix repelliu essa ideia, metade por cálculo, metade por orgulho, — mal entendido orgulho, mas natural delle. O cálculo era cousa peior; era uma cilada, — experiencia, dizia elle; — era pôr em frente uma da outra, duas almas que lhe pareciam, por assim dizer, consanguineas, tental-as a ambas, aquilatar assim a constancia e a sinceridade de Livia. Assim pois, era elle o artifice do seu proprio infortunio; com as suas mãos reunia os elementos do incêndio em que viria a arder, senão na realidade, ao menos na fantasia, porque o mal que não existisse depois, elle mesmo o tiraria do nada, para lhe dar vida e acção. Menezes explicou ainda mais o estado de sua alma; não era amor violento que sentia, mas affeição serena e branda; tranquilla, mas irresistivel fascinação. O médico, por um sentimento de pudor que lhe ficára, não animou abertamente as esperanças do amigo; mas a sua palavra era tão alegre, o riso de tão boa feição, que o espirito de Menezes para logo sentiu reflorirem-lhe as esperanças, se é que ellas haviam seccado alguma vez. XIII CRISE Livia não percebeu logo o amor de Menezes; mas era impossivel que tarde ou cedo o não suspeitasse. Não se fingiu admirada quando elle lh’o confiou depois de algum tempo de assiduidade nas Larangeiras. Nem se admirou nem se irritou; alêm de não ser motivo para colera, havia entre ambos, como Felix dissera um dia, certa conformidade de sentir e pensar, que de algum modo os vinculava. A resposta que lhe deu foi certamente fria e decisiva, mas não desdenhosa nem severa. Quando viu porêm a tristeza que lhe causou, esqueceu de todo as formalidades convencionaes e necessarias; sua palavra, que se tornára affectuosa, procurou suavisar as penas do moço. Tirou-lhe toda a esperança presente ou futura; não poderia amal-o nunca. A amisade porêm que lhe tinha, talvez o consolasse do desengano. Isso apenas; não devia simular um amor que não tinha, nem acenar-lhe com uma felicidade que lhe não podia dar. — Que me não póde dar! repetiu Menezes apegando-se ainda a uma esperança fugitiva; e se eu esperar que algum dia soe a hora da felicidade que me nega? Nada depende de nós; os proprios movimentos do coraçao parecem nascer de mil circumstâncias fortuitas, se não é que os rege uma lei mysteriosa, e essa... Quem sabe? um dia, talvez, — ouso crel-o, — um dia sentirá, que a sympathia que lhe inspiro se transforma, e… — Basta! interrompeu Livia em tom imperioso. Menezes calou-se; ella continuou: — O amor não é isso que o senhor diz; não nasce de uma circumstância fortuita nem de uma longa intimidade: é uma harmonia entre duas naturezas, que se reconhecem e completam. Por mais semelhante que seja o nosso espirito, sinto que Deus não nos fez para que o amor nos unisse. Menezes não estava para éstas averiguações theoricas; é até duvidoso que prestasse attenção ás últimas palavras da moca. O chimerico edificio que tão laboriosamente construíra via-o elle desfazer-se em fumo, e ésta so impressão o dominava agora. Decorreu algum tempo de completo e acanhado silencio. Estavam encostados á janella que dava para o jardim. Menezes não ousava levantar os olhos para ella; não era so natural vexame da posição em que se achava; era tambem medo de contemplar ainda uma vez o bem que perdia. Livia comprehendia esse estado da alma do moço. Lastimava, quem sabe? não ser elle o escolhido do seu coração. Era o mais que lhe podia dar, e era muito. Emfím: — Fiquemos amigos, disse ella. A amisade lhe fara esquecer o amor; é mais serena que elle, e talvez menos exposta a perecer. Conheço que sou egoista; peço-lhe uma cousa que so a mim aproveitará. Amigos, não lhe sera difficil achal-os; eu não os acharia tão facilmente nem taes como o senhor. Menezes tocou levemente na mão que a moça lhe estendeu ao terminar estas palavras. O pedido que ella lhe fazia era mais affectuoso que judicioso; a um coração desenganado não ha imediatamente compensações possiveis nem efficazes consolações. A bondade da viuva o commoveu todavia. Ia agradecer-lhe quando Rachel entrou na sala. Rachel estacou. Ambos estavam acanhados. A viuva foi a primeira que rompeu o silencio chamando a filha do coronel. Que queria dizer o sorriso benevolo, mas sonso que lhe pairava nos labios? Não o viu Menezes que olhava para fora, mas viu-o a viuva e estremeceu. Menezes não voltou la durante uma semana; prolongaria a ausencia, se o amor, fecundo de illusões, lhe não houvesse enchido o peito de esperanças novas. Livia tratou-o com a acostumada affabilidade, talvez com affabilidade maior. Como a confiança de Felix não se havia alterado, Livia usava assim uma dissimulação honesta, por simples motivo de piedade e gratidão. Estava no seu caracter este modo de interpretar as cousas, e de as tratar assim sem grande respeito ás conveniencias sociaes. Profanas, diria eu antes, se quizesse exprimir os verdadeiros sentimentos da viuva, que achava naquella obra de sympathia uma especie de missão espiritual. As missionárias d’aquella especie, se as ha, desejo-lhes maior perspicacia ou mais feliz estrêlla. Nem a estrêlla nem a perspicacia da nossa heroina estavam acima do seu coracão. O sentimento que a impellia era bom; o procedimento é que era errado. Ella não attentava nisso. Interrogava o rosto do médico, mais confiante e alegre que nunca, e so isto lhe bastava a seus olhos. Fossem elles menos namorados, e veriam que a tranquillidade de Felix era tão exaggerada e fóra delle, que não podia ser sincera. A esses erros e illusões, que podiam conter os elementos de um drama não remoto, veiu juntar-se ainda a illusão de Rachel. Esta applaudia sinceramente os sentimentos que attribuia á viuva em relação a Menezes; o sorriso com que os sorprehendêra não queria dizer outra cousa. Fel-o sentir um dia á viuva; a energia com que ella lhe respondeu mais a persuadiu ainda. Livia quiz então referir-lhe tudo, o verdadeiro objecto do seu amor e o seu proximo casamento; mas, posto que a edade não as separasse muito. Livia considerava-a ainda creança e reprimiu o seu primeiro impulso. Rachel ficou com as suas suspeitas. Perdoemos agora a inexperiencia da boa moça, — creança, como dizia a viuva — a leviandade com que insinuou ao médico as suspeitas que alimentava. Fel-o por meio de allusão delicada e fina n’uma occasião em que o pedia a conversa. O golpe foi profundo; a prova pareceu decisiva desta vez. Rachel notou a impressão do médico. O sorriso innocente e brincão que lhe entreabria os labios repentinamente se lhe apagou. Felix olhava para ella sem ver a mudança que se lhe havia operado. Viu-a emfim, mas não a entendeu. Tentou fazer-se galhofeiro como sempre fôra com ella; conseguiu-a fazel-a sorrir. Os dias que se seguiram a este foram de triste provação para a viuva. Sabemos ja que o ciume de Felix era ás vezes brutal. Nunca o fôra mais que desta vez. Longas cartas trocaram ambos, amargas as della, as delle friamente crueis e chocarreiras. Felix não lhe disse logo a causa desta nova crise: adivinhou-a Livia, e tudo lhe contou lealmente, sem lhe negar a boa intenção com que tratava o coração de Menezes. Era mostrar-se muito pouco mulher. Felix viu em tudo aquillo um tecido de absurdos. O que lhe disse então foi o transumpto das cartas que lhe escrevera. Grosseiro, ironico, incohérente, tudo isso foi nas palavras com que fulminou a pobre moça. Livia não protestava; quiz interrompel-o uma vez; mas quando elle acabou nada achou que lhe merecesse resposta. Estavam na sala. Olhou assustada para todas as portas, deixou-se cahir frouxamente n’uma cadeira e tapou o rosto com as mãos. Felix deu um passo para ella; o moviménto era bom, mas o arrependimento veiu logo. — Adeus! disse elle. A moça descobriu o rosto. — Felix! exclamou ella. O médico parou alguns instantes. Livia levantou-se e foi a elle arrebatadamente. Chegou a pegar-lhe n’uma das mãos, e abatida e lacrymosa ia começar uma última súpplica. Elle porêm puxou a mão violentamente, olhou para ella, e depois de longo e mortal silencio, repetiu: — Adeus! XIV OU CAPITULO DO ACASO Felix chegou a casa cheio de colera e desespero. Entrou impetuoso na sala; como se precisasse de xingar em alguma cousa a supposta injúria, lançou mão do primeiro vaso que se lhe deparou e deitou-o ao chão. O vaso fez-se em estilhas. — Que é isso? disse uma voz extranha. Felix estacou espantado; olhou para o vão de uma janella, donde viera a voz, e deu com a figura de Moreirinha, commodamente sentado n’uma cadeira americana, com um livro de gravuras aberto sobre os joelhos. — Sou eu, disse o visitante levantando-se e indo apertar a mão ao dono da casa. Admira-se de me ver aqui? Tomei a liberdade de o esperar, a despeito das observações que me fez o seu creado. Felix não pôde encobrir o desprazer que lhe causava a visita. Moreirinha leu-lhe isso claramente nos olhos; e com ar meio humilde, meio galhofeiro, continuou: — Talvez não lhe seja agradavel a minha presença, sobretudo porque me parece ter alguma cousa que o molesta nesta occasião; mas não podia ser de outro modo… Felix levantou os hombros. — E maior sera ainda o seu desgosto, continuou Moreirinha, quando souber que não lhe peço asylo so por uma hora, mas até amanhã. Dizendo isto, estendeu-lhe a mão. Felix estendeu-lhe a sua, e friamente lhe disse que podia ficar o tempo que quizesse. Quando o coração padece não ha maior importuno do que um conversador indifferente e frivolo. Esta circumstância veiu ainda azedar mais o espirito de Felix. A solidão lhe daria talvez um balsamo salutar, se o havia para elle. O acaso deparou-lhe entretanto uma testemunha diante de quem lhe era forçoso aparentar a serenidade que não tinha. O hóspede comprehendeu a situação, e francamente lhe disse que o não queria perturbar; viera como asylado, não como visita; não tinha direito ás attenções do dono da casa. Felix respondeu o melhor que pôde a ésta cortezia, que aliás o obrigava ainda mais. Não havendo meio de escapar, procurou ao menos ser egualmente cortêz. Demais, Moreirinha não era tão importuno como pareceria, porque fallava sempre, e não tinha o sestro dessa outra casta de importunos que interrompem a cada passo os discursos com perguntas de boca e de gesto. Não se demorou o hóspede em dizer a causa que o trouxera alli: era Cecilia. Apezar da situação em que se achava, Felix não pôde deixar de lhe prestar attenção. — Cecilia? perguntou elle. — É verdade: é o meu mau anjo. Lembra-se dos elogios que lhe fiz della? Eram sinceros, e eram tambem justos naquelle tempo. Até então não havia encontrado docilidade egual. Não sou piegas, sabe; mas gósto de um episodio assim. Não sei que lhe fizeram á boa rapariga, que de todo mudou e veiu a ser um verdadeiro diabo. Aquellas cadeias tão leves que nos prendiam um ao outro, e que eu chamava cadeias de rosas, tornaram-se de ferro pesado. Quero fugir-lhe e não posso; tenho tentado tudo para escapar-lhe, mas em vão. Escondo-me em casa, na casa dos amigos, nos hoteis; onde quer que esteja la irá buscar-me, e então Deus sabe o que soffro. Hoje lembrou-me vir passar aqui o resto do dia e a noute com o senhor; estou certo de que não dara commigo. Felix ouvira attentamente a exposição do Moreirinha, não sem achar alguma relação entre o estado delle e o seu. Moreirinha referiu então muitos episodios do que elle chamava sua escravidão. — E não conhece nenhum meio de lhe escapar por uma vez? — Nenhum; ainda quando eu pudesse sahir da côrte, estou certo de que ella iria buscar-me a bordo do navio ou á portinhola do carro que me levasse. Tão notavel mudança no caracter de Cecilia não deixou de chamar a attenção de Felix. Comprehendeu facilmente que era obra do proprio amante. A rôla fizera-se gavião, pela unica razão de que Moreirinha lhe dera ensejo de conhecer a propria fôrça. De abatimento em abatimento chegára Moreirinha á miseravel posição actual. Não era elle homem de salutares reacções nem de resignações philosophicas: era sim homem de fugir e adiar, — caracter feito de inercia e medo, maravilhosamente disposto para os desesperos inuteis e as capitulações vergonhosas. — Mas porque não sahe da côrte algum tempo? disse Felix apos alguns minutos. Sempre ha de haver meio de fugir… Moreirinha reflectiu um instante. — Por duas razões, disse elle: a primeira é que apesar de tudo, não deixo de gostar della, e se pudesse escapar-lhe durante trinta dias, ia no trigesimo-primeiro procural-a… — A segunda razão, interrompeu Felix a quem parecia incommodar essa ingenua confissão. — A segunda razão, respondeu Moreirinha com hesitação, é que... não posso. Felix desceu os olhos ao vestuario do rapaz, e viu nelle o commentario das palavras que acabava de ouvir. Elegancia ainda havia, mas ja pobre e rafada; os botins tinham signaes de longo serviço; o paleto, aliás bem lançado, era de fazenda visivelmente inferior. Trazia luvas côr havana, mas ao olhar curioso de Felix não escapou a circumstância de que as pontas dos dedos ja estavam assignalados por uma leve pasta de côr preta, vestigio de aturado uso. Não era preciso grande perspicacia para comprehender que aquillo tudo era obra de Cecilia. Nem ficaria longe da verosimilhança quem affiançasse que Moreirinha estava eternamente condemnado ao capricho daquella mulher. Não tinha de certo o rapaz com que lhe satisfazer todas as vaidades e necessidades; mas ella incumbia-se de abrir outras verbas no orçamento da receita, mediante um bem combinado sistema de impostos. Felix comprehendeu tudo isso de relance, e procurou trazer o espirito de Moreirinha a ideias mais alegres, menos ainda por elle que por si. Não foi cousa difficil. Ao espirito de Moreirinha repugnavam as preoccupações graves. Aproveitou o ensejo que o médico lhe offereceu e entrou a fallar das cousas correntes do dia. Dos mil episodios da vida de certa classe, não havia gazetta melhor informada do que o amante de Cecilia. Os novos amores de uma, os arrufos de outra, o dito chistoso desta, a aventura daquella, tudo elle sabia em primeira mão. Não lhe perguntassem por estreas litterarias nem crises politicas; mas a mobilia com que Fulano presenteára a certa dama, a ceia equivoca em que Sicrano chegara a beber champagne por uma botina, esse era dominio seu, desde que os amores de Cecilia de todo o separaram da sociedade. Isto não recreiava nem interessava, mas enchia o tempo, e desde que estava obrigado a soffrer o hóspede, era melhor soffrel-o assim. Era impossivel entretanto não volver o espirito á sua propria situação. De quando em quando o médico esquecia o narrador, e o seu pensamento ia esvoaçar em derredor da viuva. Foi n’uma dessas occasiões que lhe chegou uma carta della. Felix abriu-a soffregamente e leu-a duas vezes. Era longa; recapitulava a história daquelles ultimos mezes, e concluia fazendo um appello á razão do médico. Adivinhava-se que a moça escrevera com lagrymas, mas ja não havia o tom supplice com que em analogas occasiões lhe pedia a reconciliação. O tempo alguma obra havia ja feito no espirito de Felix; a carta veiu consummal-a. Felix não estava ainda certo da innocencia da moça; mas ja estava certissimo da brutalidade da sua explosão; e este reconhecimento era uma dor nova, quasi tão profunda como a outra. Seu primeiro impulso foi ir ter com Livia; desistiu delle e preferiu escrever-lhe uma carta. Tres vezes a começou sem lograr chegar ao fim. Vacillava entre ser aftectuoso ou severo; n’um caso lembrava-lhe a perfidia possivel da moça; n’outro, a sua provavel innocencia, temia ser injusto ou ridiculo. Como todos os caracteres indecisos, não achou mais recurso que uma inutil desesperação. Anoitecêra; Moreirinha estava mais alegre que nunca, e pagava a hospitalidade do médico com as suas galhofas costumadas. Não contava com Cecilia, mas adivinhou que era ella quando ouviu parar um carro á porta. — Estou perdido! disse elle desatando um longo suspiro. Era ella. Cançada de esperar que lhe levassem resposta do recado que dera, Cecilia desceu do carro e entrou em casa. Ao chegar á porta relanceou os olhos pela sala, onde não viu desde logo o amante; Moreirinha mettera-se no vão de uma janella. Felix olhou severamente para Cecilia, como quem lhe estranhava a liberdade que tomára. Mas onde iam ja as flores de antanho? A docil rapariga de outro tempo tornara-se mulher desgarrada e sôlta. Caminhou affoutamente para o médico e estendendo-lhe a mão: — Como estás, mon vieux? disse com um risinho de mofa. Nessa occasião descobriu o amante, que parecia entretido em contar as estrellas. Foi a elle, e soltava ja as primeiras palavras de uma vehemente apostrophe, quando Felix julgou prudente intervir a tempo de evitar um escandalo; reconciliou-os como pôde, e seccamente os despediu. Livia estava á janella desconsolada e triste, em quanto Rachel, não menos triste que ella, executava no piano uma melodia adequada á situação de ambas. Não viera resposta do médico; a viuva sentia desvanecer-se-lhe a esperança de tantos mezes, e com ella o futuro que tão perto se lhe afigurava. Estas eram as suas melancholicas reflexões, quando viu parar á porta de Felix um carro, descer uma mulher, entrar, sahir depois com um homem e partirem ambos. O golpe foi terrivel e mais profundo que nunca. A viuva não temia de certo uma rival triumphante; mas via e sentia o desprezo do homem por quem tantas lagrymas; chorára naquelle dia. Se o médico lhe apparecesse então, ella reconheceria o seu engano, e a alegria de se sentir estimada, lhe daria fôrças contra a dor de se ver offendida. Felix não veiu. Livia mal pôde resistir á humilhação. Uma lagryma, — a última que lhe restava, — foi a unica expressão do seu immenso desespero. _____ XV ENFANT TERRIBLE No dia seguinte, logo cedo, Vianna foi á casa do médico. Não ia almoçar com elle; ia convidal[-]o para jantar. — Faço annos hoje, disse o parasita, e quizera ter á mesa alguns amigos, poucos. O senhor é dos primeiros; não póde faltar. — Não faltarei, respondeu Felix. Vianna emittiu em seguida algumas ideias a respeito da maneira por que encarava um jantar de annos. Não devia comprehender senão amigos íntimos, por ser festa do coração, jubileo domestico, em que tudo o que não fallasse a lingua da amisade seria extrangeiro ou talvez inimigo. Não bastava gosto para a escolha de taes amigos; era preciso geito e sagacidade para discernir os que se prendiam pelo affecto dos que adheriam pelo costume. Esqueceu-lhe o principal; esqueceu-lhe dizer que, no seu ponto de vista, um jantar de annos era tambem um jantar a juros. Felix acceitou o convite com soffreguidão; esperava um pretexto para voltar á casa de Livia. Pungia-o ainda o ciume, mas a irritação passara, e em lugar della nascêra o desejo de ver restabelecida a harmonia antiga, não por acto de vontade propria, mas por uma completa justificação da moça. Com taes sentimentos sahiu de casa. Livia estava á janella quando o viu chegar; foi recebel-o no patamar da escada que dava para o jardim. Ao apertar-lhe a mão, meia triste, meia risonha: — Era eu quem devia perdoar-lhe, disse; mas seria offender o seu orgulho. — O meu orgulho? Perdoar-me? repetiu Felix. — Sim, disse a moça fazendo um gesto affirmativo. Leu-lhe Felix no rosto tão sincera tranquillidade, que esteve quasi a acceitar a reconciliação. Hesitou algum tempo; deitou os olhos á sala, e viu atravessal-a na direccão da escada a figura de Rachel. Então lembrou-lhe a semi-confidencia que ésta lhe fizera, e amargamente respondeu á viuva: — Sejamos serios. Livia empallideceu. Quiz responder alguma cousa, e não pode; Rachel estava com elles. Pouco depois chegaram o coronel e D. Mathilde; Menezes não tardou muito. Algumas pessoas mais completavam o pessoal da festa. A presença de extranhos constrangia a viuva e o médico; era forçoso ser alegre como os outros, e isso custava a ambos, mais ainda a ella que a elle. O jantar passou sem novidade de vulto. As pilherias do coronel, e os brindes repetidos de Vianna entretiveram a sociedade. Felix tentou seguir a corrente da alegria e logrou obtel-o. Não reparava, — ainda mal! — que a fronte da viuva parecia entristecer-se mais; seus olhos procuravam antes os de Menezes que os della. Menezes tinha os seus embebidos na moça. Assim corrêra o tempo. No fim do jantar Vianna propoz que se fosse conversar na chacara. Menezes pediu que a filha do coronel tocasse primeiro uma melodia que lhe ouvira alguns dias antes. Rachel consentiu. A melodia era extremamente melancholica, e Rachel tocava-a com alma. O tom da musica influiu nos animos; não havia so o simples silêncio da attenção, mas o recolhimento da tristeza. Em alguns dos convivas ésta impressão era mais natural e foi mais prompta. O médico, entretanto, forcejava, não so por sacudir a extranha influência, como por affectar completa isenção de espirito. Luiz estava em pe diante delle, com os cotovelos fincados nos seus joelhos. Felix brincava-lhe com os cabellos, e ambos sorriam um para o outro, como se fossem os unicos extranhos á commoção geral. Ora, no meio do absoluto silêncio da sala, apenas interrompido pelas notas sôltas e magoadas que os dedos de Rachel tiravam do piano, o filhinho de Livia fez ésta singelissima pergunta ao médico: — Porque é que o senhor não se casa com mamãe? Livia estremeceu. Rachel cessou de tocar e volveu rapidamente a cabeça para o grupo donde partira a voz. Dos outros convivas uns sorriam da innocente indiscrição do menino, outros observavam a viuva, ninguem reparava em Rachel. A filha do coronel deixou immediatamente o piano. Vianna lembrou então o passeio da chacara. Todos acceitaram o alvitre e sahiram da sala. A especie de acanhamento que a pergunta do menino deixára em todos, para logo desapareceu de alguns. Livia não sahíra logo. A alguma distancia repararam na falta della, e Rachel propoz-se a ir buscal-a. Achou-a a abraçar e beijar o filho. Com quanto ella fosse mãe extremosa, não havia razão immediata para aquela explosão de ternura. Rachel estacou sem comprehender nada. A viuva olhou para ella conchegando o filho ao coração. — Que queres? perguntou. Rachel não respondeu. A pouco e pouco se lhe ia alumiando o espirito. Olhou longo tempo para ella como se á força quizesse arrancar-lhe a explicação, que o seu coração presentia. Emfim pareceu adivinhar tudo. — Ama-o então? perguntou ella com os labios tremulos. — Creio que o amei, respondeu Livia baixando tristemente a cabeça. Se o espirito de Rachel não fosse ainda o regaço da castidade, aquella confissão mentirosa da viuva, porque ella ainda amava, podia fazer-lhe nascer alguma desairosa suspeita. Mas Rachel não viu naquellas palavras mais do que um amor medroso e não comprehendido. Sua eloquente resposta foi apertal-a nos braços. Livia apertou-a com fôrça. Era a primeira vez o acaso lhe deparava uma confidente. Alteava-se-lhe o seio, tumido de suspiros; duas lagrymas lhe romperam dos olhos e foram morrer na espadua de Rachel. O menino interrompeu essa doce effusão. Livia respirou largamente, e beijando com ternura a moça, disse: — Vamos. Mas Rachel não se movia. Tinha os olhos postos nella, os labios apertados, os braços pendentes. Livia saccudiu-lhe brandamente os hombros. — Que tens? disse. — Nada, suspirou Rachel. Livia estremeceu. Subito relampago lhe atravessou as sombras do espirito. Interrogou-a de novo, mas foi em vão. Então sentiu em si todas as energias do seu temperamento, e com um grito, que a colera abafava, exclamou: — Ah! tu o amas tambem! Rachel não lhe respondeu. Se a viuva lhe houvera fallado com brandura é provavel que lhe fizesse plena confissão de seus sentimentos. Mas, ás palavras colericas de Livia, a pobre moça começou a tremer. — Tu o amas tambem! respondeu Livia com voz surda e concentrada. Rachel curvou o corpo, pôz as mãos em attitude de súpplica, e murmurou com voz trémula: — Perdão! Pairou nos labios da viuva um sorriso sarcastico. Rachel repetia ainda muitas vezes a palavra perdão; mas a unica resposta da sua rival foi pegar-lhe do braço e indicar-lhe a porta. — Vae ter com elle! exclamou. Depois sahiu arrebatada da sala. Rachel, magoada pela violencia do gesto da viuva, acompanhou-a com o olhar até á porta. Mas os olhos da corça offendida não chamejavam odio contra a leôa irritada. XVI RACHEL Quando Rachel ficou so atirou-se ao sophá, trémula, fria, com os olhos seccos, sem comprehender bem aquelle drama íntimo, mas sentindo-lhe ja algum terrivel desenlace. O que ella via claro é que a outra amava o mesmo homem, e com tal força que cedêra a um impulso de colera, tão contrário aos seus habitos de brandura. As reflexões de Rachel não passarão dahi. Nem todas as almas podem encarar as grandes crises. Quer-se um espirito robusto para éstas situações complexas. Rachel ficou simplesmente attonita e abatida. Sua indole passiva era feita para a resignação, não para a tempestade. Na chacara foi notada a auzencia das duas moças. Vianna deixou os hóspedes e foi á sala. — Que faz aqui? perguntou elle á filha do coronel. Rachel ficára perturbada com a presença de Vianna, e ainda mais com a pergunta. Emfim, balbuciou uma resposta infantil. — Estava pensando n’uma cousa, disse ella. — Onde está Livia? perguntou Vianna sem attender á resposta da moça nem ao sorriso forçado que lhe entreabria os labios. — Creio que está encommodada; foi para dentro. — Cousa de cuidado? — Parece que não. Vianna deu duas voltas na sala e sahiu para a chacara, pedindo á moça que la se fosse reunir aos outros. Felix, entretanto, viera até o jardim, que ficava em frente da casa. Mal havia dado alguns passos quando viu encostada á porta da sala a filha do coronel, com os olhos postos no céu, acaso pedindo a Deus que lhe estendesse a mão para subir até la[.] Era sol posto, hora de melancholia; tudo alli em volta assumia a cor pardacenta e luminosa dos ultimos instantes da tarde. Felix caminhou cautellosamente para a casa, subia por um dos lanços da escada, e sorprendeu a moça, dizendo-lhe: — Está linda assim; mas nós precisâmos vel-a ca fóra. Rachel retrahiu o corpo sem ousar dizer uma so palavra. Felix estendeu-lhe a mão convidando-a a descer. A moça entrou para dentro; o médico deu ainda um passo, mas ella, fazendo um gesto supplicante, disse com voz afflicta: — Pelo amor de Deus, saia! Felix não resistiu; desceu ao jardim e caminhou para a chacara a reunir-se ás outras pessoas. Em vão buscava conjecturar a causa daquella súpplica. Era impossivel conciliar o procedimento de Rachel com a familiaridade e a confiança que entre ambos havia. A razão da differença devia ser grave. Mas qual seria ella? Os convidados retiraram-se cedo. Menezes e Felix foram os ultimos que sahiram, ao lado um do outro, ambos entregues a reflexões diversas, por que Felix pensava nas palavras de Rachel, Menezes na pergunta do menino. A filha do coronel desceu ao jardim. Era noite fechada. Sentou-se n’um banquinho, e alli ficou em triste meditação. A pobre moça tremia de susto, de incerteza, de apprehensão. Não ousava encontrar os olhos de Livia; tinha-lhe medo, medo pueril, excusado, sem razão, mas emfim medo, e nada havia que tranquillisasse a sua alma franzina e pusillanime. Como beneficio celeste, entraram-lhe a correrias lagrymas, até então retidas pela presença de extranhos. Ninguem lh’as viu, que a noite era fechada e o sitio ermo; mas a aura estiva, que começava a bafejar a folhagem resequida do sol, acaso lhe ouviu os soluços, acaso lh’os levou ao seio de Deus. Veiu então, de influxo divino, uma doce consolação ás suas maguas solitarias. Não ousando voltar para dentro, determinou esperar alli o irmão da viuva, que fôra acompanhar um amigo da visinhança. Pedir-lhe-hia então para a levar no dia seguinte á casa de seus paes. Não hesitava entre a ternura delles e o odio de Livia. Assim reflectia ella, quando sentiu passos no jardim. Voltou-se; era a viuva. — Ah! exclamou Rachel levantando-se, trémula e assustada; pelo amor de Deus! eu não lhe fiz mal nenhum! Livia acercou-se de Rachel; travou-lhe brandamente das mãos, apezar do esforço com que ella buscava esquivar-se, e disse; — Que mal me farias tu, creança? A culpada sou eu; sou eu que te peço perdão, porque fui cruel e injusta, e cedi ao egoismo do meu coração... Perdoa-me! — Perdoo-lhe tudo! respondeu Rachel. Cahiram nos braços uma da outra[.] Jamais duas rivaes se estreitaram mais sinceramente amigas do que essas duas. Largos minutos correram sem que nenhuma dellas faltasse; reflectiam talvez; talvez não pudessem vencer o acanhamento da sua posição. Livia foi a primeira que rompeu o silencio: — Como é que o vieste a amar? perguntou ella. — Não sei, respondeu ingenuamente Rachel; nasceu-me o amor sem que eu reparasse nelle. Nem sei se nasceria; creio que foi apenas transformação, por que eu de pequena me acostumei a admiral-o. Foi talvez a admiração que se fez amor quando eu cresci. — Nunca lh’o déste a entender? — Oh! nunca. — E elle? — Percebi que me queria. Brincava commigo como quando eu era creança; nada mais. — E resignavas-te á sorte? — Que poderia fazer senão isso? Alguma esperança tive nestes ultimos tempos; em que a fundava, não sei; talvez na circumstnâcia de nos vermos mais á miudo. Enganava-me; penso que não nasci para ser feliz. — Quem sabe? disse a viuva. Nem sempre o nosso coração acerta; pode ser que mais tarde te appareça outro a quem ames do mesmo modo... — Do mesmo modo? interrompeu Rachel com sorpresa. Livia pegou-lhe nas mãos. — Não te parece que assim seja? perguntou. — Oh! não. Chame-me creança, se lhe parece; a senhora ha de saber mais do que eu, naturalmente; mas o meu coração me diz que eu não poderia amar a ninguem mais. — A ninguem mais! murmurou a viuva amargamente. Concentraste então toda a seiva do teu coração neste amor silencioso e chimerico? Não digas isso; amarás mais tarde a outro que te amará tambem, e seras feliz, creio eu. Murchará ésta primeira flor do teu coração, mas, ha seiva nelle para dar vida a outra flor, tão bella talvez, e com certeza mais afortunada. O contrário, Rachel, seria injustiça de Deus. O amor é a lei da vida, a razão unica da existencia. Encher de uma so vez a alma, sem que ninguem lhe beba o licor divino, e regressar ao ceu sem ter conhecido a felicidade na terra, nem o quererá Deus, nem o temeras tu. Fallas pela bocca da tua amargura de hoje; espera a acção do tempo, que é bom amigo. Rachel meditava. Era a primeira vez que ella ouvia fallar daquelle modo em cousas do coração. A linguagem da viuva servia-lhe a um tempo de consolação e de luz. Livia fallou ainda muito tempo, sem preconceito nem reserva; não fallou como rival, senão como amiga e mãe. Não reparava sequer que lhe dava armas contra si. Fallaria talvez de outro modo se se considerasse feliz; mas como a situação de ambas era egual, ella entornou na alma de Rachel todo o sentimento de que a sua alma estava cheia; e foi eloquente, porque foi sincera. — Sim, disse Rachel, quando ella acabou; comprehendo tudo isso que me está dizendo. A senhora sabe amar... E ainda o ama, não? Livia calou-se. — Que lhe custa dizer? insistiu a donzella. — Custa-me lagrymas. Eu não te poderia explicar nunca este sentimento que me nasceu como herva ruim para me envenenar a existencia, e que eu tanto tempo suppuz que seria a coroa de minha vida... Não te quero enfadar, que são tristezas para isso. — Mas então elle? aventurou Rachel. — Não me perguntes mais; affirmo-te so que o amei, que talvez tornasse a amal-o… — E que ainda o ama, concluiu a rival. Livia esteve callada alguns instantes, procurando ler-lhe no rosto, apesar das sombras da noite, as impressões que lhe iriam na alma. — Não! ja o não amo! disse a viuva com esforço. Seguiu-se um longo silencio. — E se o amasse, disse emfim Livia, que farias tu? — Nada! respondeu resolutamente Rachel. — Devéras, nada? — Pediria a Deus que a fizesse feliz, e estou que Deus me ouviria. — Eras capaz disso? perguntou a viuva segurando-lhe nos pulsos e fitando-lhe os olhos em cheio. — Era, respondeu ingenuamente a donzella. Livia não disse palavra. Se das commoções da sua alma, algum vestigio lhe subiu ao rosto, disfarçou-lh’o a noite ás vistas de Rachel. Ambas ficaram pensativas algum tempo. Uma forte rajada fel-as estremecer. Era signal de chuva proxima; nuvens negras começavam a povoar o ceu. As duas moças recolheram-se a casa. — Vales mais do que eu, dizia a viuva entrando com Rachel na sala. Eu sou apenas egoista; egoista e nada mais. Guarda essas flores evangelicas do sacrificio, do perdão e do amor. São raras; e por isso é que és um anjo. Foi differente a noite que ambas passaram. Rachel estava mais tranquilla depois da conversa no jardim; mas que destino teria a flor de sua alma, lyrio transformado em goivo, vivido de lagrymas, medrado no silêncio? Não lhe appeteciam luctas. Faltavam-lhe as armas de combate: — a astúcia ou a energia; faltava-lhe principalmente o desejo de despertar um coração que sabia não ser seu. Mas esse coração possuia-o acaso Livia? Parecia-lhe que não; o mysterio, porêm, a reticencia, a indecisão das palavras da rival, tudo se lhe affigurava cobrir um drama que ella não comprehendia nem conjecturava. No ânimo de Livia outras foram as preoccupações. Para ella, a situação era mais clara. Sentia desvanecer-se o amor de Felix, e via surgir uma rival perigosa. Tinha medo da ignorancia de Rachel; receiava que a innocencia dessa alma ainda em flor podesse dominar o espirito rebelde de Felix; e tal seria a catastrophe das suas esperanças. E quando todas essas sombras lhe povoavam o espirito, e o coração lhe pulsava com mais força, perguntava-lhe a consciencia se lhe era licito oppor algum obstaculo á felicidade da donzella, dado que ésta vencesse o coração do seu noivo. Livia não dormiu a noite toda. No dia seguinte, apenas a claridade da manhã lhe entrou no quarto, a viuva levantou-se, vestiu á pressa um roupão, e foi ao quarto de Rachel. A filha do coronel dormia profundamente. Repousava de suas longas reflexões. Livia abriu o cortinado muito ao de leve, contemplou-lhe o rosto sereno e risonho, os olhos cerrados, e os labios semi-abertos como se em sonhos murmurasse palavras de amor. Os cabellos esparsos lhe serviam de resplendor á sua cabeça angelica. — Não! pensava Livia, o amor não dorme assim tranquillo em dias de infortunio e desespero. Creança inconsciente que te suppões alar ás regiões do sol, que sabes tu dos precipicios da viagem, que conheces tu das voragens do coração? — Ah! estava aqui! exclamou Rachel acordando; ainda bem! — Porque? — Sonhei que morria, e que era recebida no ceu. Fôra bom morrer assim; mas eu sempre tinha pena de deixar a terra. Acordou hoje muito cedo. — Queria dar um passeio, disse Livia indo abrir a janella, mas a manhã ja está quente. Rachel olhou para ella; viu-lhe os olhos pisados e o rosto desfeito. Comprehendeu que não havia dormido, e que chorára. — Ama-o então muito? perguntou ella a si mesma. _____ XVII SACRIFICIO. A situação das duas moças demandava um termo. Rachel foi a primeira que resolveu deixar completamente o campo; tinha no seu restabelecimento uma excellente razão para regressar a casa. Livia comprehendeu a intenção da amiga, quando ésta lhe communicou a sua resolução. Era tão simples e tocante o sacrificio, que a viuva não resistiu a um impulso generoso. Respondeu-lhe com um beijo. O beijo era de admiração; Rachel acreditou que fosse de agradecimento, e sorriu com tristeza. Ficou assentado que Rachel iria no domingo proximo, e nesse sentido foi avisado o coronel. Estavam ainda no dia seguinte ao do episodio do menino. Nenhuma das suas circumstâncias esquecera ao médico. A esquivança de Rachel continuava a preocupar-lhe o espirito, não menos que a infundada suspeita que nutria a respeito da viuva. Era meiado o mez de dezembro. A data do casamento estava proxima. Tudo exigia um desenlace a tempo. Não tardou que o médico descobrisse os sentimentos que a filha do coronel nutria a seu respeito. Sorprehendeu-a perto de uma janella interior, a beijar uma página de um album de retratos. Approxirnou-se cautelloso, lançou os olhos á página e viu nella o seu proprio retrato. A descoberta fel-o sorrir. Seria aquillo a razão da mudança que notára nella? Nesse caso sabia ja da affeição que o ligava á viuva, talvez do projectado casamento. Era possivel tambem que a volta della á casa de seus paes não tivesse outro motivo. Por mais isento que seja o espirito de um homem, é raro que o não lisonjêe uma affeição assim, medrosa e silenciosa, nascida e vivida na soledade da alma. Felix sentiu primeiro essa impressão de egoismo. Veiu depois outro sentimento melhor, — o de uma respeitosa admiração. Seu pensamento entrou a conjecturar a data daquelle singular amor; á proporção que se internava nos dias do passado, ia combinando uma serie de episodios esparsos, apparentemente vagos, agora significativos e eloquentes. Não era recente a affeição della; era talvez anterior á sua enfermidade. Chegára o sabbado, vespera da partida de Rachel. Era de noite. Felix estava em casa da viuva, e ambos, e Rachel, e até Vianna todos pareciam preoccupados e tristes. O médico olhava para a filha do coronel, sem reparar que os olhos de Livia seguiam os seus e como que buscavam ler por elles os sentimentos do coração. Rachel esquivava-se ás attenções do médico. Uma occasião porêm, — achando-se Felix mais affastado, — approximou-se delle com um livro. — Ja leu este romance? perguntou ella. — Deixe ver, disse Felix, convidando-a com um gesto a sentar-se. Rachel não se sentou; estendeu-lhe o livro, e olhou com insistencia para o médico. Felix pegou no livro e consultou primeira página; ia voltar distrahidamente a segunda. quando lhe cahiu nos joelhos um papelinho dobrado. Rachel voltou assustada a cabeça para o lado de Livia, que de pe, juncto do piano, tirava notas sôltas do teclado, sem olhar para o grupo. Rachel fez ao médico um signal de silêncio, e affastou-se delle. Felix guardou o papel no bolso. — Quasi uma creança! ia elle pensando quando se retirava para casa depois do cha. Quando alli chegou não se deu ao trabalho de tirar o chapeo. Abriu a carta logo na sala. Dizia a carta: «Pela memoria de sua mãe, não seja cruel! Livia ama-o muito. Não a faça a morrer, que seria um peccado!» Felix esfregou os olhos e releu o bilhete. Não havia negal-o; a letra era de Rachel e o conteudo era uma súpplica a favor da rival. Não sorria o médico; estava attonito. A verdade, tão inverosimil desta vez, mettia-se-lhe pelos olhos, singella, eloquente, expontanea. Expontanea seria? Felix fez essa pergunta a si mesmo, e affirmativamente lhe respondeu; não attribuia á viuva tamanha influência, nem á donzella tamanha submissão, que uma inspirasse e a outra escrevesse aquella carta. A cousa pareceu-lhe o que realmente era: um sacrificio de Rachel. Felix não era homem de grandes expansões; mas se Rachel estivesse diante delle naquella occasião era capaz de cahir-lhe aos pes. Abafar uma affeição silenciosa, a primeira talvez, para pedir a felicidade de outra mulher, era abnegação rara, que o sorprehendia. A acção de Rachel fez-lhe esquecer por algum tempo a viuva, objecto da carta que acabava de ler. Rachel não affirmaria tão claramente os sentimentos da amiga, se não tivesse plena certeza delles. Como conciliaria entretanto a affirmação de hoje com a suspeita de hontem? A mesma Rachel lhe insinuára diversa inclinação da viuva. Naturalmente reconhecera o contrário. A ideia da rehabilitação de Livia para logo dominou o espirito de Felix. Seu amor existia no mesmo estado de força e viço; facil de desmaiar, não era menos facil de se restabelecer. No dia seguinte parecia desfeita a nuvem que por alguns dias o abafára. Foi á casa da viuva; era uma hora da tarde. Tinha curiosidade de encarar a filha do coronel. Achou-a tão alegre e travêssa como era d’antes. Era assim apparentemente; os olhos extranhos não viam a magoa interior e encoberta que lhe roia o coração. Seu infortunio tinha pudor. Ao médico era impossivel encobrir esse estado. A tocante generosidade da moça fez-lhe bem ao coração. Teve elle a delicadeza de não tratar a viuva por modo que magoasse a donzella; mas tão outro se mostrava do que fôra até então, que a viuva não pôde resistir-lhe, e aquelle dia foi muito menos triste que os outros. As travessuras de Luiz faziam côro com as de Rachel. A porta da sala estava aberta. Luiz desceu os degraus que communicavam da sala com o jardim, na occasião em que Livia fechava uma pulseira de Rachel. Quando a viuva deu por falta do filho, correu á porta. O menino corria na direcção da porta da rua. A mãe desceu atraz delle. Rachel ia descer tambem; Felix pegou-lhe na mão. A moça estremeceu toda; afoguearam-se-lhe as faces, e ella balbuciou. — Leu a minha carta? — Li, respondeu Felix cravando nella um olhar que era a um tempo de sympathia e de pena; li, e não sei se deva crer o que la me diz. — É a verdade. — Mas então suppõe?.. — Que ella o ama; affirmo-lh’o. — E que eu a amo tambem? perguntou com hesitação. — Isso... creio, assentiu Rachel, abaixando os olhos. Felix calou-se. Decorreram dous ou tres minutos de silêncio. Rachel continha com difficuldade os movimentos do coração. Preferia estar a cem legoas dalli, mas lembrava-se da outra e isso lhe dava ânimo. O médico foi o primeiro que fallou: — Como sabe que ella me ama? — Sei, respondeu Rachel sorrindo com affectação, e é quanto basta. Demais, nenhuma moça escreveria semelhante carta a um homem se não tivesse certeza do que affirmava. So lhe peço uma cousa: destrua essa carta. Nada vale, mas eu não quizera que a conservasse. Livia approximava-se; sentiram passos na escada de pedra. Rachel correu á porta, em quanto Felix tirava a carteira do bolso, e procurava o bilhete de Rachel. Foi nessa occasião que o coronel e a esposa chegaram. As duas moças desceram a recebel-os. Felix desceu tambem, e caminhou a alguns passos de distância, com o coração dividido entre o amor de Livia e a admiração de Rachel. Os paes da moça jantaram nas Larangeiras. Livia acompanhou depois toda a familia á cidade. Na occasião de se despedir do médico, a filha do coronel sentiu que as forças lhe iam faltando. Reagiu porêm sobre si mesma, e sem olhar para elle, estendeu-lhe a mão, que o médico respeitosamente apertou. Ao voltar-lhe as costas um suspiro lhe sahiu do peito; partira-se o último vínculo da sua esperança. _____ XVIII RENOVAÇÃO Livia não ignorou muito tempo a existencia da carta de Rachel. Felix mostrou-lh’a no dia seguinte, desejoso de saber como havia nascido no espirito da moça a convicção tão gonerosamente affirmada. — Contei-lhe tudo, disse a viuva, quando suppunha que tudo estivesse morto no teu coração. Ella condoeu-se de mim, e vejo agora que não era sentimento esteril o que me revelára. Pobre Rachel! — Ésta carta foi excellente consolação, Livia, por que eu sentia uma dúvida cruel a teu respeito... Mas a que proposito lhe fallaste? Livia hesitou alguns instantes. Ou melhor, reprimiu o seu primeiro impulso, que foi referir ao médico o amor e a confissão do Rachel. Estaria no seu caracter se o fizesse; mas um vislumbre de reflexão atalhou essa confidência prestes a subir-lhe aos labios. Recearia que a noticia de um amor tão generoso o desviasse della? Póde ser. A explicação que lhe deu foi breve. — Ja lhe disse, respondeu a moça; confiei-lhe a causa das minhas magoas, n’um dia em que mostrava condoer-se de mim. Se errei a culpa é sua. Felix não insistiu. Pela sua parte, deixou tambem de referir a razão da recente frieza nas suas relações com ella. A viuva, que o sabia, achou mais acertado não lhe fallar nisso. Tantas vezes apagada no ceu, reapparecia emfim a estrella da felicidade, e para sempre? Era caso de dúvida, á vista do passado; mas a credulidade da viuva estava acima da sua experiencia. A ternura de Felix nunca fora mais expontanea e viva do que então. Seu coração como que se renovára. O sacrificio de Rachel não era extranho a essa reacção, que fazia reviver todas as esperanças da amada. A alegria tornou a florir no rosto e no peito da viuva. Ella possuia a memoria da felicidade, não a das tristezas. O que eram reminiscencias de infortunio apagaram-se com o tempo; a serenidade dos primeiros dias foi so o que lhe ficou. Houve em certa occasião uma leve nuvem passageira; foi a presença de Menezes, que ainda frequentava a casa da viuva. A maneira por que Felix recebêra o amigo fez comprehender á moça que no coração delle havia ainda um travo de amargura. Não lhe foi difficil extinguil-o de todo. Referiu-lhe ingenuamente tudo o que se passara entre ella e Menezes, a branda austeridade com que respondera ás suas declarações amorosas, emfim o procedimento honesto do rapaz. Felix abanou a cabeça. — Censuras-me? inquiriu a moça. — Não, affirmou o médico. Lastimo-te. — A intenção era boa. — Seria; mas a vida não é fábrica de sentimentos; não se vive como se romancea. Impetos de generosidade são muito bons, quando se não corre perigo nenhum. Quem te affiançava a honestidade desse moço? — Oh! advinha-se!... Queres uma prova? Elle não voltará ca. — Porque? — Creio que percebeu tudo. O médico ficou algum tempo pensativo. Duas vezes tentou fallar e conteve-se. Emfim disse: — Não é preciso perceber aquillo de que hia de ter certeza amanhã. Casamo-nos na segunda semana de janeiro. A notícia sera pública desde ja. Felix esperava um movimento expansivo da viuva, ao ouvir esta declaração. Livia não se alterou; apenas empallideceu. — Tens razão, disse Felix depois de olhar para ella algum tempo; eu não tenho direito a mais. Tantas vezes te illudi, que é legitimo o teu receio. No dia seguinte fez o médico officialmente o seu pedido na presença de Vianna, que abraçou com enthusiasmo o futuro cunhado. — Isto devia acabar assim mesmo, disse elle; ha muito que eu previa e desejava o casamento. Nasceram um para o outro; estão na fôrça da edade; não podia haver melhor união. Pela minha parte desistirei até, se for preciso, da viagem que o senhor me prometteu. Lembra-se? Não faz mal. O que eu quero é vel-os felizes. Eu logo vi que tramavam alguma cousa, mas gabo-lhe a habilidade. Dê-me outro abraço, doutor. Felix prestou-se ás espansões do parasita. Livia contemplava o noivo com adoração. Para ambos elles o mundo inteiro havia desapparecido. Inteiro não; Vianna fez casualmente allusão a Rachel, e essa intempestiva recordação entristeceu a moça. Ella via que a sua felicidade era causa da desventura da amiga, e agora que a tinha quasi realisada, sentia morder-lhe um piedoso remorso. Adiantaram-se os preparativos do casamento. Livia pediu ao médico a suppressão de todo o apparato, para não ferir o coração de Rachel, pensava ella. A publicidade seria apenas a necessaria. Não contava com o irmão, que se encarregou de dar ao consorcio proporções de acontecimento. A noticia foi referida por elle na rua do Ouvidor, esquina da rua Direita. Dahi a dez minutos chegára á rua da Quitanda. Tão depressa correu que um quarto de hora depois era assumpto de conversa na esquina da rua dos Ourives. Uma hora bastou para percorrer toda a extenção da nossa principal via publica. Dalli espalhou-se em toda a cidade. Foi geral o espanto. Ninguem acreditava que Felix se determinasse ao casamento. Fallava-se, é verdade, no namôro; mas alêm de ser boato sem importancia nem generalidade, alguns não attribuiam ao médico mais do que a intenção de um passatempo, ao passos que outros davam ás relações entre elle e a viuva um caracter absolutamente íntimo, sem nenhuma aspiração de legalidade. A convicçcão entrou em fim no espirito público. Moreirinha attribuia o caso a um desconcerto cerebral do médico. O Dr. Luiz Baptista não deu opinião; parecia-lhe indifferente o casamento da viuva. Rachel recebeu a notícia sem admiração, mas com magoa. Esperanças não as tinha ja; mas o mal que nos não espanta não nos doe menos por isso. Quem lhe deu a notícia foi Menezes, que a recebeu com philosophica resignação. Seu amor tinha-se convertido n’uma especie de adoração religiosa. Achava na mulher amada todas as qualidades que podiam seduzir um homem como elle. Havia alêm disso aquelle vínculo sympathico de duas creaturas que viviam mais da imaginação que da vida práctica. A recusa de Livia não rompêra, transformára as cadeas que o prendiam a ella. Não acontecia o mesmo a Rachel, e esta circunstância não escapou ao rapaz, que habilmente a interrogou, e adivinhou tudo. Menezes sacudiu lentamente a cabeça, mas não lhe disse palavra. Apenas pensou comsigo que, se o acaso ou a providencia houvesse disposto as cousas de outro modo, ambos elles podiam ser felizes. Menezes repelliu a ideia de fazer confidências á filha do coronel; tanto porêm lhe fallou da viuva, que a outra alguma cousa desconfiou. Sabedores emfim do que padeciam interiormente, a commum desventura os vinculou de algum modo. Como as relações eram antes cortezes que familiares, nenhum d’elles fallou com a effusão que lhes pedia o sentimento; mas advinharam-se, o que era muito, e apiedavam-se um do outro, o que era quasi tudo. XIX Á PORTA DO CEU Dous dias antes do casamento, Livia foi jantar á casa do coronel, a convite deste que reuníra algumas pessoas de amisade. Felix não compareceu, apezar de instantemente chamado; cedera a um sentimento de delicadeza, não querendo mortificar com a sua presença a filha do coronel, nem perturbar de algum modo o espirito da viuva. A primeira ideia de Livia foi não acceder ao convite, afim de não affrontar a dor de Rachel. Instaram tanto os paes da moça que lhe foi impossivel recusar. As duas moças encararam-se commovidas; a differença era que Rachel pôde occultar melhor o seu abalo do que a viuva. Essa victória da donzella sobre si mesma fez redobrar a admiração da rival. Entendeu-lhe a delicada intenção, e agradeceu-lh’a na primeira occasião que se lhe deparou. — Sei tudo, accrescentou Livia; sei da tua carta, que foi a chave com que de novo se me abriram as portas da fortuna. Eu não sei se poderia ser tão heroica como tu. Separa-nos o destino; deixa-me beijar-te as mãos. O gesto acompanhou éstas palavras; mas Rachel recusou ceder ao desejo da viuva. — Seja feliz! murmurou ella. Taes foram as últimas palavras que houve entre ambas. Quando a viuva sahiu trocaram um beijo, a que não se podiam recusar, e que da parte de Rachel foi muito menos expontaneo que da outra. Livia o sentiu e sinceramente lh’o perdoou. Ao entrar no carro, com o irmão, a viuva ia desconsolada e triste. Seu coração sabia amar, e a ideia de que a sua felicidade custaria lagrymas a alguem fundamente lhe doia. — Por que razão, pensava ella, me ha de lançar a Providencia esta gotta amarga na taca das minhas delicias? Se eu ao menos o ignorasse... a minha felicidade não seria travada de remorsos... Felicidade? continuou ella dirigindo o pensamento a uma nova ordem de ideias; sera devéras felicidade? O sonho, tantas vezes dissipado, realisar-se-ha emfim?... Ha quasi um anno que eu puz toda a minha existencia nesta vaga probabilidade; está proximo o termo, não sei que sorte avessa me repelle para longe. Não a mereço talvez, ou então ambiciono de mais... Chamam-me bella; devia talvez contentar-me com ser admirada… Neste ponto foi a moça interrompida por uma observação banal do irmão, que tinha um thermometro infallivel nos pes e annunciou que havia trovoada imminente. A irmã olhou silenciosamente para elle, e admirou comsigo mesma a ventura daquelles para quem as tempestades do ar importam mais que as tempestades da vida. Vianna faria provavelmente a reflexao inversa se adivinhasse as preoccupações da irmã. Quando chegaram ás Larangeiras acharam FElix na sala, conversando infantilmente com O filho de Livia, que lhe pedia a explicação do mecanismo do relogio. Felix applicava todos os recursos da imaginação para satisfazer a curiosidade do menino. Como ouvisse parar um carro, e logo depois rumor de passos no jardim, o médico disse ao menino que a mamãe estava ahi, e aproveitou a occasião para lhe annunciar que ia casar com ella. Ao ouvir ésta notícia, o menino subiu aos joelhos do médico, e perguntou alegremente se era verdade o que dizia. — Sim, é verdade, repetiu Felix. — O senhor casa com mamãe? — Caso, ja disse. Neste momento assomou á porta a figura de Livia. O menino desceu dos joelhos de Felix e correu a abraçar a mãe. — É verdade que mamãe casa com o doutor Felix? disse elle depois de receber um beijo de viuva. — É, meu filho, respondeu ésta entrando e estendendo a mão ao médico. A presença de Felix e a alegria de Luiz mudaram o curso ás reflexões da moça. Cinco minutos bastaram para fazer esquecer a tristeza propria e o infortunio da rival abatida. Rachel verteria naquella occasião, no silencio da sua alcova, uma lagryma de saudade? Nenhum delles pensou nisso, nem a viuva a quem ella tão generosamente servíra, nem Felix que era o objecto daquellas dores solitarias. Felix estava mais jovial que nunca. Perdêra de todo as maneiras friamente polidas; tornara-se expansivo, garrulo, terno, quasi infantil. Seu coração parecia cheio do presente e do futuro. Não era so a situação que explicava ésta mudança; era tambem a volubilidade do seu espirito. A viuva lia-lhe na alma, que emfim resurgira, um poema de ineffaveis venturas. Houve um momento em que lhe lembraram as mesmas alegrias da vespera do seu primeiro casamento, e estremeceu; mas a impressão durou pouco; o segundo marido não era, como o primeiro, uma creatura sem alma, era sim uma alma sem acção. Mas o amor não começava ja a reanimal-a? Mais quarenta e oito horas, e elles uniriam para sempre os seus destinos. Esse acto decisivo e grave da vida do homem, ja o médico o encarava com a tranquillidade de ânimo resoluto, sem tropeçar na responsabilidade, nem arrecear-se das consequencias. Antolhava-se-lhe o lar domestico como a cidade da paz e da concordia. Não via ás portas della o livido espectro da dúvida; flores e folhas verdes, não mortiferas, senão vivificantes, pareciam alcatifar-lhe o caminho e convidal-o a descançar emfim da vida que tão mal vivêra. Livia saboreava esse renascimento do amante. Estavam sos e iam dar o penultimo beija de despedida. O último seria o da noite seguinte. As mãos della pousavam nos hombros de Felix, e os olhos de ambos procuravam fundir as duas almas no mesmo raio de luz. O ceu não dava razão aos receios de Vianna; tinham-se dissipado as nuvens que annunciavam proxima borrasca. Não havia luar, mas a noite estava clara; e as vivissimas estrellas que luziam no ceu, algum poeta imaginoso as compararia a linguas de fogo daquelle pentecostes de amor. — Jura-me ainda uma vez que me amas! dizia elle. É doce á minha alma ouvir-te essa confissão! — Pelo ceu, por meu filho, por ti, juro que te amarei sempre! Amava-te ainda quando eras indifferente ao meu affecto, quando o negavas, quando me pagavas com o desdem. Por que te não amaria agora que és todo meu... todo, não? — Duvidas? — Eu não sei duvidar; receiar, sim. Ja te disse porque razão. Mas hoje não receio, não; sinto que sou verdadeira mente amada. Quaesquer que fossem as minhas queixas, eu tudo te perdoaria agora, que me abres a porta do ceu. — Oh! tu és um anjo! — Adeus! — Adeus! Amas-me muito, não? — Muito! E um beijo casto, longo, quasi divino, sellou ésta confissão tantas vezes repetida entre elles. Depois apertaram as mãos, e Felix sahiu. A rua estava deserta, o silencio era profundo. Felix entrou em casa exaltado e alegre. Não tinha somno; recorreu aos livros, mas não lhe aproveitou o recurso, por que se os olhos corriam no papel, o espirito estava ausente, no tempo e no espaço: buscava a amada e planeava futuros. Com a fadiga veiu o somno. Felix adormeceu nos braços dos anjos. Batiam oito horas quando elle accordou e abriu as janellas. O dia estava triste. Caía uma chuva fina e constante, que havia começado pouco antes dos primeiros albores da manhã. Que lhe importava a elle a melancholia da natureza, se tinha dentro d’alma uma fonte de ineffaveis alegrias? Assentou-se á escrevaninha, e durante duas horas fez o inventário da sua vida de solteiro, rasgando com indifferenca uma immensidade de cartas que lhe lembravam affeições extinctas ou simples relações passageiras. Varria o templo em que devia entrar a escolhida de seu coração. Quando relia algumas dessas epistolas, — folhas cahidas da estação que se fôra, — desenhava-se-lhe nos labios um sorriso ironico, mas tranquillo, tal era a transformação de sua alma ja indifferente ás luctas do passado. Ás dez horas levantou-se para almoçar. Acabava de sentar-se á mesa quando lhe vieram dizer que uma pessoa o procurava. Era o Dr. Luiz Baptista. _____ XX UMA VOZ MYSTERIOSA Felix estacou á porta da sala. Luiz Baptista deu dous passos para elle. — Nunca me offereceu a sua casa, disse, e a minha indiscrição vem reparar o seu esquecimento. Era um gracejo ou um remoque? Felix limitou-se a apertar a mão que o outro lhe estendia e convidou-o a sentar-se. — Disseram-me que estava almoçando, observou Baptista; não quero de nenhum modo interrompel-o. Va, e eu ficarei aqui folheando algum livro. — Ia começar a almoçar, respondeu o médico; se quizer almoçaremos junctos. — Não; se me consente, visto que ainda está solteiro, irei familiarmente assistir ao seu almôço, e então lhe exporei o motivo que aqui me traz. Felix convidou-o a entrar e ambos se sentaram à mesa. As primeiras phrases trocadas forão acanhadas e frias, mas as maneiras livres do hóspede conseguiram abalar a reserva do dono da casa. — É verdade, disse Baptista, ouvi dizer que ia casar… — Amanhã. — Assisto portanto ao seu penultimo almôço de rapaz solteiro. Ha muita gente que ainda não acredita. Creio que o senhor tinha fama de celibatario convencido, e pela regra, um celibatario convencido é um noivo á mão. Tambem eu era assim; e contudo… O casamento é bom; tem seus inconvenientes, como tudo neste mundo; mas é bom, com a condição unica de o acceitarmos como elle deve ser… — Um pouco livre? disse Felix sorrindo. — Não sei se pouco ou muito, é questão de temperamento. O essencial é que seja livre. Eu assim o entendo e pratico; sou um peccador miseravel, confesso, mas tenho ao menos o merito de não ser hypocrita, e agora mesmo… — Agora mesmo? repetiu Felix depois de alguns instantes de silencio. — Não sei se deva contar-lhe isto; o senhor é ainda neophyto, vae naturalmente aborrecer-me e amaldiçoar-me... Mas, em summa, é indispensavel que eu lhe diga tudo, porque isso prende com o motivo que me traz á sua casa. Baptista acceitou uma chicara de cafe que o médico lhe offereceu. Depois, com um modo acintemente leviano, referiu ao dono da casa uma aventura amorosa daquelles ultimos dias. Tratava-se de uma mulher caprichosa e requestada. Seu triumpho era portanto duas vezes glorioso. Como belleza, desafiava ao proprio médico a resistir-lhe depois de meia hora de contemplação. Achar-se-hiam talvez outras mulheres mais formosas; nenhuma porêm tinha como essa o mysterioso encanto que sabe agrilhoar a vontade mais rebelde. — Quando ella me fita os seus grandes olhos, continuou pittorescamente Luiz Baptista, é o mesmo que se me entornasse chumbo derretido nas veias. Todo o estylo da sua descripção era assim, — galhofeiro e sensual. Fallou durante vinte minutos com o enthusiasmo proprio da sua situação. Felix ouvia pacientemente a narração do hóspede, sem atinar com a relação que teria aquillo com o pedido que lhe ia fazer. Interiormente estava aborrecido. Não fôra o médico em sua longa vida de rapaz solteiro nem casto nem cauto; mas a atmosphera do noivado começava a arejar-lhe o espirito, e semelhante confidência, naquella occasião, lhe parecia de todo o ponto extravagante. — Não desconheço, disse Luiz Baptista quando concluiu a sua expansão amorosa, não desconheço que uma aventura destas, em vespera de noivado, produz egual effeito ao de uma aria de Offenbach no meio de uma melodia de Weber. Mas, meu caro amigo, é lei da natureza humana que cada um trate do que lhe dá mais gosto. A vida é uma opera bufa com intervallos de musica séria. O senhor está n’um intervallo; delicie-se com o seu Weber até que se levante o panno para recomeçar o seu Offenbach. Estou certo de que virá cancanear commigo, e affirmo-lhe que achará bom parceiro. Dizendo isto, Luiz Baptista engoliu o resto, ja frio, do cafe que tinha na chicara, acendeu de novo o charuto, e recostou-se na cadeira. Felix teve tempo de reassumir a attitude tranquilla que as últimas palavras de Baptista lhe haviam alterado. — Emfim, disse elle, que ligação ha entre essa aventura e o pedido que me vae fazer? — Toda, respondeu Baptista; se ella não existisse, eu não viria pedir-lhe nenhum favor. O senhor sabe o que é um capricho de mulher amante; não ignora tambem que o menor desejo della é uma ordem para o cavalheiro seu escolhido. Felix fez um gesto affirmativo. — Pois bem, continuou Baptista. Estamos nesse caso. Ella é extremamente caprichosa, e mais ainda que caprichosa, é amante de cousas d’arte. Ha dias fui achal-a aborrecida. Interroguei-a; nada me quiz dizer. Pela conversa adiante fallou-me duas ou tres vezes n’uma gravura que víra na rua do Ouvidor, e que o dono vendera quando ella la voltou, disposta a compral-a. O assumpto era o mais orthodoxo possivel: a israelita Bethsabé no banho e o rei David a espreital-a do seu eirado. Não lhe parece galante? A gravura creio que era finissima; mas tinha alêm disso um merecimento para a pessoa de quem lhe fallo: é que a figura de Bethsabé era a copia exacta das suas feições. Vaidade de moça bonita. Mostrava-se tão desconsolada quando fallava naquillo, que facilmente percebi não ser outro o motivo do aborrecimento em que a fui encontrar. — E então? — Fiz o que faria qualquer outro. Era necessario que a todo o trance ella possuisse um exemplar da gravura. Fui procural-o, e não achei. Gastei dous longos dias nessas pesquizas, e quando voltei á casa della não tive remedio senão tirar-lhe a última esperança. Ella apertou-me affectuosamente as mãos, e agradeceu-me o trabalho, dizendo-me que era mais uma prova de amor que lhe dava; concluiu, porêm, tudo isso com um suspiro. Eu não me atrevo a dizer, ao senhor o que quer dizer um suspiro neste caso; aquelle suspiro era uma insistencia do desejo. — Parece que sim, disse Felix que ja adivinhára o final da exposição. — Dir-me-ha o senhor, continuou Baptista, que eu devia aproveitar o paquete que partiu hontem e mandar vir da Europa a gravura. Não duvidaria fazel-o, e ella esperaria de boa vontade; mas quem póde affirmar que o meu amor dure até á volta do paquete? Tive então uma ideia salvadora. — Ah! — Voltei à loja onde ella víra a gravura e inquiri do dono da casa quem lh’a havia comprado. Depois de algum trabalho de memoria disse-me que fôra o senhor. A principio hesitei se devia importunal-o. O pedido não seria indiscreto em qualquer outra occasião; mas quando o senhor está para tomar um estado moral, rogar-lhe que me ajude a enxugar as lagrymas de uma bella peccadora, é mais que indiscrição, é atrevimento. Hesitei, mas a voz da razão era mais fraca que a do peccado, e venceu o peccado. Luiz Baptista calou-se e esperando a resposta do médico. Houve un largo silencio. Levantaram-se da mesa e foram para a sala, sem que Felix desse a resposta. Luiz Baptista foi o primeiro que tornou ao assumpto. — Não me póde fazer o que lhe peço? disse elle. — Tenho estado a perguntar a mim mesmo se me é licito fazel-o, respondeu Felix sorrindo, e se ao entrar nas fileiras do matrimonio devo ajudar a deserção de um camarada. Luiz Baptista estava naquelle dia singularmente fallador. A simples observação do médico deu azo a um largo discurso a respeito do regimen matrimonial. Era meio dia; Felix estava ja fatigado da visita e da palestra. Aproveitou um intersticio para dizer: — Em summa, tem grande desejo de possuir a gravura? — Queria que m’a cedesse. — Faço-lhe presente della. — Eu não desejava de nenhum modo prejudical-o, disse Baptista; ha de consentir então que eu que lhe faça um presente de noivado. Felix não respondeu; foi buscar a disputada gravura e trouxe-lh’a. Luiz Baptista não pôde reter um grito de sorpresa. A figura de Bethsabé, dizia elle, parecia realmente uma cópia da sua dama. A dama era talvez mais formosa do que a cópia, Foi nesse momento que trouxeram ao médico uma carta, entregue pelo correio. Felix abriu-a distrahidamente, mas tanto que lhe leu o contendo ficou muito pallido e encostou-se a uma cadeira. Com a mão trémula approximou o papel dos olhos, em quanto os dentes mordiam os labios até deitar sangue. Luiz Baptista aproximou-se rapidamente de Felix e perguntou-lhe o que tinha. — Nada, disse o médico, uma vertigem apenas.. Hade dar-me licença, precizo estar so. O hóspede curvou-se, sorriu e sahiu. Felix encerrou-se no seu quarto. Do que la se passou ninguem de casa soube; algum rumor se ouvia de quando em quando, mas abafado, e uma ou outra exclamação vaga e sôlta. Eram quatro horas quando o médico sahiu á sala. O tempo tinha melhorado. O sol reaparecêra entre duas nuvens, dando de chapa nas árvores molhadas da chuva e nos telhados que escorriam um resto de agua. Dissera-se que a natureza queria fazer outro contraste ao inverso do da manhã, por que, se a tarde sorria alegre, o homem dava signaes de tempestade interior. Tinha os olhos vermelhos, a boca contrahida, os cabellos em desordem. Sahiu com passo vacilante. De quando em quando, colhia o alento com a expressão de quem lhe custa respirar. Um escravo, a quem elle deu algumas ordens, reparou no estado do senhor, e perguntou-lhe se estava doente. Félix respondeu seccamente que não. O escravo abanou a cabeça e sahiu. Felix escreveu em seguida uma carta que sobrescriptou para a viuva. Vestiu-se depois. Não tardou que lhe parasse um carro á porta. Metteu-se nelle e mandou tocar para a cidade. _____ XXI ULTIMO GOLPE. Era ja sobre tarde quando a carta chegou ás maos da viuva. Vianna descêra á chacara, emquanto a irmã dividia a attenção entre os gracejos do filho e o seu proprio pensamento. O menino enchia toda a sala com a sua pessoa; as travessuras delle não eram enfadonhas, mas graciosas. Livia não o contemplava so com olhos de mãe; via nelle como que o elo de ouro entre uma chimera desfeita e uma chimera realisada. Taes eram as suas reflexões quando a mucama lhe veiu trazer a carta de Felix. Entregou-lh’a e sahiu. Livia estremeceu; a lettra do sobrescripto revelava o estado febril da mão que o escrevera. Abriu rapidamente a carta e leu-a. Quando Luiz, n’uma das suas voltas, se chegou á mãe, achou-a com os olhos cravados no chão, trémula e pallida. Chamou por ella, mas inutilmente. Agarrou-lhe nas mãos e a moça pareceu accordar de um lethargo. — Que tem, mamãe? perguntou o menino affagando-a com voz lacrymosa. Livia não respondera a princípio. A voz da creança chamou-a emfim á realidade. Olhou vagamente á roda da sala, e como se a pouco e pouco lhe voltasse a consciencia, dirigiu lentamente os olhos á carta fatal. Tinha-a ainda entre as mãos. Releu-a com anciedade, levantou-se arrebatadamente, deu alguns passos e de novo se deixou cahir na cadeira. O menino correu à porta assustado. O tio entrava nesse momento. — Que é? disse Vianna vendo o ar assustado do menino, e as feições descompostas da irmã. Livia entregou-lhe a carta. A carta dizia assim: «LIVIA «O que vou fazer é indigno, bem o sei; mas é ainda mais cruel do que indigno. O nosso casamento é fatalmente impossivel. Não tens nenhuma culpa directa nem indirecta na minha resolução. Esta carta, que me condemna, sera a tua cabal defesa. Adeus. «FELIX» Quando Vianna acabou de ler este estranho e mysterioso documento, ficou tão pallido como a irmã. Não comprehendia nada do que se passava; indignava-o todavia o procedimento de Felix. Suffocou entretanto a sua colera a ver se evitava a explosão da viuva. Olharam-se ambos silenciosamente alguns instantes; o menino tinha-se approximado e segurava uma das mãos da mãe, olhando para o tio como se esperasse delle alguma explicação. — Recusa, disse emfim Vianna, e nenhuma explicação nos dá do seu procedimento. O acto é tão indigno que não te deve mortificar; quando um homem dá este triste documento da sua lealdade, penso que a mulher que o ama pode dar graças a Deus de o não ter acompanhado até o altar. Espero que penses como eu… Vianna não pôde acabar. As lagrymas, tanto tempo sustidas, romperam emfim dos olhos da viuva, impetuosas e amargas. A dôr, de tão concentrada que fora a princípio, fez-se violenta e explosiva; mas o organismo estava tão abalado por tantas commoções, que a infeliz moça perdeu os sentidos. Quando ella voltou a si era noite; achou-se no seu proprio leito, tendo ao pé de si o irmão e um médico. O médico fallou-lhe e ella respondeu sem saber o que dizia nem o que ouvia. A febre era intensa, mas o médico esperava que no dia seguinte cedesse á energia do remédio que lhe ia applicar. Vianna ficou so com a irmã, e procurou distrahil-a do successo da tarde, tarefa inutil porque a viuva não pensava nelle; o olhar vago indicava que ainda se não havia feito luz no seu espirito. Ás vezes contrahia os sobr’olhos e fitava o olhar no espaço como se estivesse a recordar-se. N’uma dessas vezes volveu os olhos pelo quarto parecendo procurar alguem. A ausencia de Felix de todo lhe alumiou o espirito. Deu um grito abafado e desatou a chorar. Accorreu o irmão, com palavras de brandura e conselho, dizendo-lhe que nem tudo estava perdido, e que era possivel remediar o mal. Livia não prestava fe a essas vans consolações; estava entregue ao seu desespero. Abafada com soluços, lavada em lagrymas, soltava gritos de angústia, e convulsivamente se revolvia no leito. Vianna teve medo desse grave estado e mandou chamar o médico. Quando este chegou, ja a doente havia socegado; mas, com as lagrymas, tinha-se ido a razão. O delirio durou toda a noite e parte da manhã seguinte. De tarde a febre declinou um pouco e a doente adormeceu. So no dia seguinte, quando o abatimento veiu substituir a exaltação, pôde a moça reflectir no recente infortunio. Debalde perguntava a si mesma a causa daquelle subito rompimento do amante; nada lh’o explicava. Algum mysterio haveria, algmma razão apparentemente legítima, porque á viuva nada lhe dizia o coração que fosse contrário á lealdade de Felix. Contou-lhe o irmão que havia ido á casa do médico, e não o encontrara, nem la lhe quizeram dizer para onde fôra. Era sua opinião agora, depois de maduro exame, que devia ir pedir a Felix uma explicação do seu procedimento. Livia desapprovou-lhe a resolução. — Mas, disse Vianna, não podemos ficar assim... — Podemos, interrompeu a viuva; em quanto estou doente a explicação sera natural para os outros. Quando me levantar da cama direi que eu mesma desfiz o casamento. Achaste-me sempre singular; é provavel que os outros me vejam com eguaes olhos; e tudo se explicará da melhor maneira. — Mas a explicação delle… — A explicação delle não é precisa. Rachel, apenas soube da doença de Livia, foi passar alguns dias com ella. Naquellas circumstâncias o encontro de ambas foi profundamente triste. A viuva não lhe confiou logo a causa verdadeira da sua enfermidade, mas durou pouco a reserva, porque a ausencia de Felix fez impressão na moça, e Livia julgou melhor dizer-lhe tudo. Era a segunda vez que ambas achavam no seio uma da outra, não a consolação, que não a ha para as desillusões recentes, mas o adormecimento momentaneo do coração. Livia entrou a convalescer do abalo que lhe dera a fatal carta. Rachel tornára-se enfermeira dedicada e continuou a ser o que sempre fora, amiga affectuosa. A viuva não acreditava na realidade do seu restabelecimento. Em sua opinião, era uma apparencia que a realidade desfaria em pouco tempo. Dez dias depois do rompimento de Felix, appareceu Menezes nas Larangeiras. Tinha ouvido algumas perguntas relativas ao casamento do médico, que sabia não se ter effectuado, sem que até então transpirasse a causa verdadeira. Soube porêm da molestia de Livia, e a isso attribuiu a demora do casamento. A moça abafou um suspiro quando o viu entrar. Não era arrependimento; era talvez lástima de si propria, que não pudera acceitar esse coração mais confiante e menos escabroso que o do outro. Mas se era ja impossivel uma alliança que a natureza não aconselhára, ainda que o pedira a razão, vinha de molde o amigo a quem confiaria os seus infortunios. Esse foi o primeiro impulso; o segundo foi, não de orgulho, mas de pudor. O coração teve pejo de ir confessar o seu erro diante daquelle mesmo a quem repellíra um dia. Era porêm difficil que semelhante situação se escondesse aos olhos de Menezes. A ausencia do noivo era inexplicavel; Menezes suspeitou a verdade e Rachel lh’a confirmou. O fim com que a donzella delatou o segredo confiado foi ainda um sacrificio; pediu a intervenção de Menezes para a reconciliação do médico com a viuva. — Peço-lhe uma cousa difficil, concluiu ella alludindo pela primeira vez ao amor de Menezes, mas é uma boa acção. — É uma boa acção, e não é difficil, replicou Menezes olhando para ella fixamente para ella. Rachel abaixou severamente os olhos. Um expectador attento concluiria talvez que a ferida delle não estava longa de cicatrisar, mas que pelo contrário a della continuava a deitar sangue. Menezes dispoz-se a tentar alguma cousa. Reconhecia que o procedimento dí Felix era singularmente mysteriöse; mas não desesperou de lhe descubrir a causa e confiava em que poderia removel-a. Conseguiu saber que o médico se refugiara na Tijuca. Quando estava prompto a ir ter com elle, hesitou, refletiu e recuou da primeira resolução. Foi preciso que uma nova crise o empuxasse para la. A viuva recahira enfêrma, não tendo podido resistir ás longas vigilias e mal dormidas noites. A molestia desta vez trouxe um caracter menos violento que da primeira vez, mas pertinaz; a febre não era intensa, mas sim constante. O médico assistente não achou que houvesse perigo; recomendou porêm o mais desvelado tratamento, o repouso absoluto de espirito. Menezes não hesitou mais; partiu para a Tijuca. _____ XXII A CARTA Quando Menezes chegou á Tijuca eram quatro horas da tarde. A casa de Felix ficava affastada do caminho. O portão estava aberto; Menezes atravessou rapidamente o espaço que ia da estrada á casa e bateu. Veiu um moleque abrir-lhe a porta. Menezes entrou precipitadamente e perguntou: [—] Onde está o senhor? — Senhor não falla a ninguem, respondeu o moleque com a mão na chave como se o convidasse a sahir. — Ha de fallar commigo, insistiu resolutamente Menezes. O tom decidido do rapaz abalou o escravo, cujo espirito, costumado á obediencia, não sabia quasi distinguil-a do dever. Seguiram ambos por um corredor, chegaram diante de outra porta, e ahi o moleque, antes de a abrir, recommendou a Menezes que esperasse fóra. Perdida recommendação, porque, apenas o moleque abriu a porta, Menezes entrou affoutamente atraz delle. Era um gabinete pequeno com quatro janellas que o enchiam de luz. Perto de uma janella havia uma rede estendida. Sobre a rede via-se um homem negligentemente deitado com um livro nas mãos. Era Felix. Felix levantou a cabeça, deu com os olhos em Menezes, e empallideceu. Menezes não dera um passo mais. Ficaram assim alguns segundos a olhar um o para outro. Enfim, o médico disse ao escravo que se retirasse, e os dous ficaram sos. O silencio prolongou-se ainda mais. Da parte de Felix era confusão; da parte de Menezes desappontamento. Viera elle em todo o caminho a descrever na imaginação o estado de Felix, acabrunhado por alguma grande dor, e em vez disso achava-o a ler pacificamente um livro. Quiz lançar mão do livro, para conhecer bem até que ponto a sua desillusão era completa; mas o médico rapidamente o affastou. — Não attendeste á ordem geral que eu havia dado, disse emfim o dono da casa, e creio que so alguma razao poderosa te obrigaria a isso. — Assim era, retorquiu Menezes, mas a razão acabou e eu volto para a cidade. Dizendo isto, poz o chapeu na cabeça e dirigiu-se para a porta. Parou um instante, caminhou de novo até a rede e proferiu seccaamente éstas palavras; — Tens consciencia do que fizeste? — Tenho, respondeu Felix.; fiz o que me cumpria fazer. Mas, antes de mais nada, vens aqui por inspiração tua ou por mandado de… — Venho porque era um dever da minha parte livrar-te da vergonha, e a ella da morte. — Da morte! exclamou Felix levantando-se de um pulo. O terror que se lhe pintára no rosto fez boa impressão no amigo. Suspeitou este que nem tudo estivesse perdido. Sentaram-se ambos, e Menezes referiu ao médico os acontecimentos que deixo narrados no capitulo anterior. Felix escutou a narração do amigo com um interesse que não podia vir senão do amor. Menezes concluiu pintando-lhe com as côres que o caso pedia a baixesa do seu procedimento, o desaire que recahia sobre a viuva, e o remorso que o havia de accompanhar a elle, ainda quando daquelle triste episodio não sahisse nenhuma fatal consequencia. Felix mostrou-se profundamente comovido com a narração de Menezes e as reflexões que lhe fizera. — Tens razão, disse elle quando o amigo acabou de fallar; procedi covardemente. Ella ainda me ama... E perdoa-me não é? Sim, hade perdoar-me... Pobre Livia! Se tu soubesses como ella tem soffrido por minha causa!... Menezes, satisfeito, disse-lhe que era indispensavel voltar á cidade. Emquanto fallava, porêm, o rosto de Felix mudou de expressão. A unica resposta do médico foi: — Não! O que está feito, está feito; agora é impossivel recuar. — Impossivel! gritou Menezes. — Impossivel, repetiu placidamente Felix. Menezes levantou-se impaciente e começou a passear. A serenidade do médico mais lhe doía do que indignava, porque alguma razão poderosa devia elle ter para cortar tão peremptoriamente toda a tentativa de reconciliação. Quizera sabel-a e tremia de o interrogar. O médico, entretanto, deixára-se estar sentado, quasi tão tranquillo como na occasião em que Menezes lhe entrára no gabinete. Não era fingida essa tranquillidade, que durava ja de alguns dias, depois de outros, — os primeiros, — que foram de afflictiva tempestade. Ante a opinião simula-se facilmente energia de caracter; mas o homem não se esconde de si mesmo, e o maior infortunio dos corações pusilanimes é sentirem que o são. Quando Felix chegou á Tijuca tinha passado a excitação do primeiro momento; o espirito, fraco de si, e abatido pela immensidade do abalo, não achou na solidão o allivio que lhe pedira. Vieram então muitos dias de lucta e de febre, em que elle, para fortalecer o ânimo, lia e relia a mysteriosa carta que trouxera consigo. O remedio era antes veneno para a sua alma ulcerada; lembrava-lhe a felicidade que perdêra. Era isto o que padecia o coração. A consciencia padecia tambem, porque a sociedade, que elle não víra no primeiro instante, agora lhe apparecia como um juiz inflexivel, a pedir-lhe conta de uma injúria sem explicação. Ás vezes arrependia-se do acto; outras vezes, não se arrependia, mas accusava-se de precipitado e louco. Nunca mais tristemente se revelára a inconsistencia do seu espirito. Com o tempo a consciencia foi calando as suas vozes, e com o tempo, e a distância, e a sua indole singularmente variavel, se lhe foi aquietando o coração. Aquelle homem, que alguns dias antes chorava de desespero, nenhum vestigio guardára de suas lagrymas. Não se lhe apagára o amor da viuva, mas no logar da paixão vehemente, como que ficára apenas uma recordação remota e suave. Ésta mudança era em parte obra do seu esforço, que buscava no esquecimento um refúgio; mas em grande parte era um effeito natural delle. Tal foi a situação em que o achou Menezes. A presença d’este trouxe á memoria do médico a última crise do seu coração. A impressão foi grande, mas não longa; a face do lago, que uma rajada encrespára, voltou á serenidade primitiva. Menezes passeava de um lado para outro, a observar de quando em quando o médico. Ao seu espirito repugnava a ideia de que Felix recorresse a um meio extraordinario para sahir de uma situação difficil, não sanccionada pelo coração. Uma causa havia, de certo, que se lhe afigurava grave, e que elle a todo custo queria conhecer. Seus esforços convergiram para esse ponto[.] Instado pelo amigo, Felix alludiu á carta que recebera, mas recusou mostral-a. — Ha n’ella um segrêdo, disse elle, que me impede de a commuuicar a ninguem. Livia tem jus ao meu respeito e possue ainda o meu amor. Estas últimas palavras foram ditas com certa commoção. Menezes não perdeu a esperança de o vencer. A sinceridade era a sua eloquencia; podia-se dizer que elle fallava com o coração nas mãos. O espirito de Felix ia cedendo ao encanto; elle mesmo recordava as horas felizes do passado e as saudosas esperanças do futuro. O coração palpitou-lhe com mais fôrça e a imaginação fez o resto. A carta, porêm, a fatal carta lhe occupou logo o pensamento, e a fronte descahiu diante do insuperavel obstaculo. Cançado de luctar, Menezes resolveu partir para a cidade. — Não sei o que pensarão os outros, disse elle; eu levo a suspeita de que não a amaste nunca, e que esse rompimento estrepitoso foi um meio de salvar a tua liberdade. Ouvindo éstas palavras Felix não pôde conter um movimento de colera. A attitude quieta de Menezes o fez cahir em si. — Tens razão, disse elle depois de algum tempo. Quero que pelo menos alguem me reconheça innocente e digno. Das-me a tua palavra de honra que nada revelarás do que vas ler? — Dou. Felix foi buscar a carteira, tirou della a carta, e entregou-a a Menezes. Menezes leu o que se segue: «Misero moço! Es amado como era o outro: seras humilhado como elle. No fim de alguns mezes teras um Cyreneo para te ajudar a carregar a cruz, como teve o outro, por cuja razão se foi desta para a melhor. Se ainda é tempo, recúa!» A carta não tinha assignatura. Menezes ficou attonito; mas foi obra de alguns instantes, poucos. Sua indole generosa repellia a ideia de acreditar na revelação que acabava de ler, — É impossivel! disse elle. Felix ergueu a cabeça, que apertava entre as mãos, e replicou: — Essa é a tua convicção; eu quizera que fosse a minha. Mas que testemunho tens tu contra o que ahi ves escripto? — Não sei, respondeu Menezes com calor, mas é o que me diz o coraçao. Repugna-me crer que essa pobre senhora... Não, é impossivel! Demais, uma carta anonyma! — Põe o nome que quizeres ahi embaixo não lhe augmentas nem lhe tiras o valor, se a revelação é verdadeira. — Quem te diz que é verdadeira? — Quem me diz que o não é? A dúvida era ja bastante para justificar o que fiz. Não foi so o receio do futuro que me impelliu, foi principalmente a lembrança do passado. A traição della, se a houve, não deve doer nada ao marido que se foi; mas ao marido que vem, a idea da perfidia anterior, destroe pela base toda a confiança, que é a condição da felicidade. Não sei o que farias tu no meu caso; eu segui o impulso do coração e da razão. Menezes ouvíra attentamente o amigo. Quando elle acabou: — Creio-te sincero, disse; e comprehendo que soffreste. — Muito! — Mas recusarás uma reflexão? Quem escreveria esta carta? Não foi um amigo, de certo. Um amigo, se lhe pezasse o teu acto, viria fallar-te cara a cara. Um indifférente tambem não foi. Resta pois um inimigo, teu ou della… — Della? — Ou um interessado: escolhe. Felix reflectiu um instante. — Inimigo, não sei se os tinha; interessado… em que? — Ella é rica; algum pretendente… — Não havia nenhum. Menezes não fraqueou na defeza da sua hypothese. Quanto mais attentava na revelação da carta, mais o seu coração lhe bradara contra ella. Para elle a innocencia de Livia era clara como o sol. Felix sentia-lhe a convicção, e lastimava-se de a não ter, tão viva e tão profunda. A noite cahíra de todo. Menezes declarou que so voltaria á cidade no dia seguinte. Felix comprehendeu que o amigo não perdêra a esperança de o converter, e longe de se irritar agradeceu-lhe a intenção. Era a primeira vez que elle se expandia com alguem a respeito do seu amor; fêl-o com abundancia e sinceridade. Não lhe lembrára sequer que Menezes tambem amára a viuva. Muitas vezes fallaram da carta. Menezes perguntou ao médico em que circumstâncias a recebêra. Felix referiu a visita de Luiz Baptista, o objecto della, a conversa travada entre ambos, até que a carta lhe chegou ás mãos. A singularidade da visita de Luiz Baptista não escapou a Menezes. — Visitava-te esse homem? perguntou elle. — Nunca. — Eras amigo delle? — Havia mais razões para sermos inimigos que outra cousa. Menezes hesitou; não se atrevia a desposar uma suspeita. Mas o espirito do médico era terreno fecundo para ella. Apenas as perguntas de Menezes lhe deitaram o germen, para logo foi lançando raizes e cresceu. — Cres então que elle?... aventurou a médico. — Não sei; mas não te parece curiosa toda essa história de gravuras? Felix reflectiu algum tempo. Como quando os olhos se vão acostumando á meia luz de um sítio, e começam a distinguir a pouco e pouco os objectos, o espirito do médico entrou a recordar e a examinar todos os incidentes daquella fatal manhã. O que elle a principio não víra, appareceu-lhe então claro e evidente. O tom ameno e jovial de Luiz Baptista, a sua extranha verbosidade, o episodio dos amores tão levemente contados a um homem que não era seu natural confidente, tudo isto com a circunstância da humilhação que recebêra quando a viuva lhe fechou a sua sala, emfim a ma reputação delle, eram indicios de sobejo para não achar natural a visita que lhe fizéra. Mas como deduzir daqui a autoria da carta? Menezes resolveu a dúvida naturalmente. — Se não désses credito á carta, disse elle, o último de quem te lembrarias seria Luiz Baptista, por que ninguem faz mal a um homem no mesmo instante em que lhe vae pedir um favor. Felix acceitou esta explicação; mas o que acabou de o convencer foi uma circumstância até então deslembrada e agora decisiva. O médico levantou-se rapidamente da cadeira; deu alguns passos na sala e parou em frente de Menezes. — É verdade, disse; foi elle com certeza! Quando eu li a carta fiquei fulminado. Elle approximou-se de mim; eu pedi-lhe que me deixasse so. Obedeceu, mas um sorriso, que então me pareceu feroz indifferença, mas que hoje vejo que era de triumpho, lhe roçou os labios. Foi elle; oh! sinto que foi elle! Entendamo-nos, leitor; eu, que te estou contando esta história, posso affirmar-te que a carta era effectivamente de Luiz Baptista. A convicção porêm do médico, — sincera, de certo, — era menos solida e pausada do que convinha. A alma delle deixava-se ir ao sabor de uma desconfiança nova, que as circumstâncias favoreciam e justificavam. Quando Menezes viu que o maior trabalho estava feito, não teve mais do que fallar outra vez de Livia. A placidez do médico desapparecêra; todo elle era agora amor e odio, arrependimento e vingança. A noite foi mal dormida, e quando a aurora os convidou a sahir do leito, Felix era totalmente outro. Ardia por ir fazer aos pes da viuva plena confissão da sua indignidade. Era o nome que lhe dava; dar-lhe-hia outro, se os acontecimentos o fizessem duvidar outra vez. Apressaram a viagem; Menezes estava alegre com o resultado da missão; lamentou com o médico a fatalidade do caso, mas estava certo de que tudo ia acabar como devia. Mil ideias côr de rosa enchiam o cérebro de Felix, e ambos descêram rapidamente na direccao da cidade. _____ XXIII ADEUS Apenas chegaram á cidade, Felix despediu-se se de Menezes e seguiu para as Larangeiras. Ia palpitante e receioso; pela primeira vez nesse dia lhe lembrou a doença da viuva. Temeu que fosse tarde. Não era; as janellas estavam abertas. Entrou no jardim; subiu as escadas, cabisbaixo; quando levantou os olhos viu Rachel diante de si. Rachel, cujo coração era menos philosophico, posto soubesse resignar-se como o de Menezes, não viu o médico sem algum abalo interior. Fel-o entrar e foi ter com a enfêrma. Quando Livia soube que Felix alli estava, sorriu tristemente e fechou os olhos. Abriu-os para contemplar a boa amiga que esperava ao pe do leito. Não estavam molhados. Cobria-os um veu de serena melancholia. — Agradece-lhe por mim, Rachel, e dize-lhe que me vera quando eu puder sahir daqui. Felix recebeu o recado e sentiu a frieza delle, apezar da doçura da voz que lh’o transmittia. Era muito comtudo; não estaria longe a reconciliação. A convalescença de Livia foi mais rapida do que se devêra esperar. Ella tinha uma grande fôrça de vitalidade, que podia triumphar de tamanha crise. O intervallo foi aproveitado por Felix em se reconciliar com Vianna. O irmão da viuva achou dentro de si bastante misericordia para perdoar o culpado. A submissão do médico o lisonjeou: e o seu arrependimento lhe pareceu o que realmente era, — sincero. Era natural perguntar-lhe a razão do rompimento. Vianna achou melhor calar-se; o que elle queria antes de tudo era a reparação do êrro. Livia consentiu finalmente em receber o médico. Estava na sala, envolvida n’um roupão branco, e ainda com um resto de pallidez que a enfermidade lhe deixára no rosto. Nas circumstâncias em que ambos se tornavam a ver não podia ella estar melhor. O ar da moça não era risonho, mas tambem não era severo. Felix caminhou lentamente para ella, timido e fascinado ao mesmo tempo. De novo sentia o imperio que a viuva sempre exercêra em seu espirito. Quando Felix confessou á viuva todo o seu arrependimento e lhe implorou o perdão da culpa que commettêra, escutou-o Livia com grande serenidade, e affectuosa lhe respondeu: — Não lhe nego o perdão que me pede; seria duvidar do seu arrependimento, e eu creio que é sincero. Podia talvez exigir que me dissesse a causa que o levou… — A causa é triste de confessar, interrompeu Felix. — Não lh’a peço. Mas quer ouvir o resto? Felix curvou a cabeça. — Creio no seu arrependimento, e não duvido do seu amor, apesar de tudo o que se ha passado. Isto lhe deve bastar. O destino ou a natureza não nos fez um para o outro. O casamento entre nós seria uma ceremonia apenas. Seria mais; seria o nosso infortunio, e mais vale sonhar com a felicidade que poderiamos ter do que chorar aquella que houvéssemos perdido. Felix ouviu as palavras da moça cabisbaixo e abatido. Não ousava responder-lhe, nem interrogal-a; mas do seu mesmo silencio colhia a moça a sinceridade da dor e do arrependimento. — Se isto lhe doe, continuou ella, vê bem que a culpa não é minha. Eu aceito uma situação não creada por mim, nem tambem pelo senhor, mas, — como eu lhe dizia, — pela natureza ou pelo destino. No ponto a que chegámos é ésta a resolução melhor. — Não é, interrompeu Felix com impetuosidade, não é a melhor porque ambos perderemos com ella, e nada nos impede a resolução contrária. Creio que não duvide do meu amor; mas digo-lhe que o não comprehende, nem avalia. Eu não teria ânimo de lhe propôr nas circumstâncias em que nos achâmos, um rompimento que… O sorriso com que a moça o ouvia cortou-lhe a palavra neste ponto. Cahiu em si, lembrou-lhe, — que elle facilmente esquecia tudo, — lembrou-lhe que lhe não cabia fallar de rompimento, e murmurou: — Não tenho direito de fallar assim, e vejo que mereço um castigo.... — Não é castigo, atalhou a viuva, é necessidade. Se alguma consolação póde levar desta última entrevista, leve a certeza de que o amo como d’antes; e de que o meu padecimento sera ainda maior do que o seu. O casamento é ja agora impossivel. Eu não sei o que motivou a sua carta, mas imagino que foi alguma dúvida nova a meu respeito. Se nos casássemos, cessariam ellas? — Sim! por que eu hoje creio e vejo o que padeceu por mim. Para duvidar do seu amor seria preciso que houvesse perdido a razão. Demais, continuou Felix emquanto Livia abanava tristemente a cabeça, — viveremos so para nós, fecharemos a nossa casa aos olhos extranhos… — Ainda assim o irá perseguir esse mau genio, Felix; seu espirito engendrara nuvens para que o ceu não seja limpo de todo. As dúvidas o acompanharão onde quer que nos achemos, por que ellas moram eternamente no seu coração. Acredite o que lhe digo; amemo-nos de longe; sejamos um para o outro como um traço luminoso do passado, que atravesse indelevel o tempo, e nos doure e aqueça os nevoeiros da velhice. Livia proferiu éstas últimas palavras com a voz trémula, e uma lagryma lhe rolou pela face pallida. — Porque nos separaremos agora que estamos á porta do ceu? perguntou Felix. Não me cabe o direito de exigir uma felicidade que repelli tantas vezes; mas se pudesse entrar na minha alma veria que os meus erros, por maiores que sejam, e são grandes, anima-os sempre um sentimento de amor, e que emfim eu cedo sempre ao grito de minha consciencia. A mais bella acção seria perdoar-me esquecendo, e o unico modo de esquecer seria voltarmos ao tempo de nossas esperanças. — Perdoei tudo, e tudo esqueci; apagou-se o passado e nenhum resentimento me ficou. O que se não apaga é o futuro. Felix torcia as mãos. Era patente o seu desespero. A viuva mal podia encaral-o. Seguiu-se um longo silencio, interrompido pela chegada de Luiz. O menino poz termo á entrevista. Felix olhou ainda algum tempo para a moça; mas leu-lhe na physionomia que a resolução era inabalavel. Levantou-se para sahir. — Conservaremos a estima reciproca, disse Livia entendendo-lhe a mão, e espero que me conserve tambem alguma cousa mais… como eu. Eram as últimas palavras da moça, vieram entercortadas de soluços. Felix quiz pegar-lhe nas mãos e aproveitar esse passageiro desmao para conseguir a retratação de suas palavras. Mas a moça abraçou-se com o filho em cujo seio escondeu o rosto. — Não faça chorar mamãe, disse Luiz enlaçando com os bracinhos o pescoço da viuva. Felix retirou-se lentamente, com os olhos annuvados, turvo o espirito, o passo vacillante, [e] transpoz a custo a soleira daquella porta qe se lhe ia fechar para sempre. _____ XXIV HOJE Dez annos volveram sobre os acontecimentos deste livro, longos e enfastiados para uns, ligeiros e felizes para outros, que é a lei uniforme desta mofina sociedade humana. Ligeiros e felizes foram elles para Rachel e Menezes, que eu tenho a honra de apresentar ao leitor, casados, e amantes ainda hoje. A piedade os uniu; a união os fez amados e venturosos. A pouco e pouco, o primeiro amor de Rachel se foi apagando, e o coração da moça não achou melhor convalescença que desposar o enfermeiro. Se lh’o dissessem no tempo em que ella adoecera por amor do médico, levantaria desdenhosamente os hombros, e com razão. Donde se colhe quão acertado é aquelle proverbio oriental que diz — que a noite vem pejada do dia seguinte. Qual fosse a aurora que a sua noite trazia no seio não o advinhára Rachel, mas a sua actual opinião é que não a podia haver mais bella em toda a escala do tempo. O coronel e D. Mathilde, com poucos mezes de intervallo, foram continuar na eternidade a doce união que os distinguira neste mundo. Livia entra serenamente pelo outono da vida. Não esqueceu até hoje o escolhido de seu coração, e á proporção que volvem os annos, espiritualisa e sanctifica a memoria do passado. Os erros de Felix estão esquecidos; o traço luminoso, de que ella lhe fallára na última entrevista, foi so o que lhe ficou. No tempo em que os mosteiros andavam nos romances, — como refúgio dos heroes, pelo menos, — a viuva acabaria os seus dias no claustro. A solidão da cella seria o remate natural da vida, e como a olhos profanos não seria dado devassar o sagrado recinto, la a deixariamos sozinha e quieta, aprendendo a amar a Deus e a esquecer os homens. Mas o romance é secular; e os heroes que precisam de solidão são obrigados a buscal-a no meio do tumulto. Livia soube isolar-se na sociedade. Ninguem mais a viu no theatro, na rua, ou em reuniões. Suas visitas são poucas e íntimas. Dos que a conheceram outr’ora, muitos a esqueceram mais tarde; alguns a desconheceriam agora. Talvez o tempo lhe respeitasse a belleza, a não ser a catastrophe que lhe enlutou a vida. Ja na meiga e serena physionomia vão apontando signaes de decadencia proxima. Os poucos que lhe frequentam a casa não reparam n’isso, por que a alma não perdeu o encanto, e é ainda hoje a mesma feiticeira amavel de outro tempo. Ella sim; ella ve que a flor inclina o collo, e que não tarda o vento da noite a dispersal-a no chão. Mas do mesmo modo que a belleza lhe não acordara vaidades, assim a decadencia lhe não inspira terror. Para consolo e companhia de sua velhice tem ella o filho, em cuja educação concentra todos os esforços. Luiz possue as graças da mãe, apenas modificadas por uns toques varonis. Tem so quinze annos; mas como herdou a indole austera da viuva, e pouco, muito pouco, da vivesa de imaginação, parece menos um adolescente do que um homem. Felix é que não iria parar ao claustro. A dolorosa impressão dos acontecimentos a que o leitor assistiu, se profundamente o abateu, rapidamente se lhe apagou. O amor extingiu-se como lampada a que faltou oleo. Era a convivencia da moça que lhe nutria a chamma. Quando ella desappareceu, a chamma exhausta expirou. Não foi so isto. A sagacidade de Livia adivinhára as provações que lhe daria o casamento. Quando de todo se lhe calou o coração, Felix confessou ingenuamente a si proprio que o desenlace de seus amores, por mais que o mortificasse outr’ora, foi ainda assim a solução mais razoavel. O amor do médico teve dúvidas posthumas. A veracidade da carta que impedira o casamento, com o andar dos annos, não so lhe pareceu possível, mas até provavel. Menezes disse-lhe um dia ter a prova cabal de que Luiz Baptista fôra o auctor da carta; Felix não recusou o testemunho nem lhe pediu a prova. O que elle interiormente pensava era que, supprimida a vilania de Luiz Baptista, não estava excluida a verosimilhança do facto; e bastava ella para lhe dar razão. A vida solitaria e austera da viuva não pôde evitar o espirito suspeitoso de Felix. Creu nella a princípio. Algum tempo depois duvidou de que fosse puramente um refúgio; acreditou que seria antes uma dissimulação — criminosa. Dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso, segundo a sociedade, Felix é essencialmente infeliz. A natureza o poz nessa classe de homens pusilanimes e visionarios, a quem cabe a reflexão do poeta: «perdem o bem pelo receio de o buscar.» Não se contentando com a felicidade exterior que o rodea, quer haver essa outra das affeições íntimas, duraveis e consoladoras. Não a ha de alcançar nunca, porque o seu coração, se resurgiu por alguns dias, esqueceu na sepultura o sentimento da confiança e a memoria das illusões. FIM INDICE PAG. ADVERTENCIA………………………………………………………………………………1 I. — No dia de anno bom………………………………………………………………..5 II. — Liquidação do anno velho………………………………………………………...17 III. — Ao som da valsa ………………………………………………………………….27 IV. — Prelúdio…………………………………………………………………………...45 V. — Fico………………………………………………………………………………..55 VI. — Declaração………………………………………………………………………...65 VII. — O gavião e a pomba……………………………………………………………….73 VIII. — Quéda……………………………………………………………………………..81 IX. — Lucta……………………………………………………………………………...89 X. — A enfêrma………………………………………………………………………..103 XI. — O passado………………………………………………………………………...113 XII. — Um ponto negro………………………………………………………………….123 XIII. — Crise……………………………………………………………………………..133 XIV. — Ou capitulo do acaso…………………………………………………………….141 XV. — Enfant terrible……………………………………………………………………151 XVI. — Rachel……………………………………………………………………………159 XVII. — Sacrificio………………………………………………………………………...171 XVIII. — Renovação……………………………………………………………………….179 XIX. — Á porta do céu…………………………………………………………………...187 XX. — Uma voz mysteriosa……………………………………………………………..195 XXI. — Último golpe……………………………………………………………………..205 XXII. — A carta…………………………………………………………………………...215 XXIII. — Adeus…………………………………………………………………………….229 XXIV. — Hoje……………………………………………………………………………...237 FIM DO INDICE