THEATRO DE MACHADO DE ASSIS VOLUME I. RIO DE JANEIRO. TYPOGRAPHIA DO DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO 84 RUA DO ROSÁRIO 84 1863. O CAMINHO DA PORTA. — O PROTOCOLLO. COMÉDIAS EM UM ACTO. CARTA A QUINTINO BOCAYUVA. MEU AMIGO, Vou publicar as minhas duas comêdias de estréa; e não quero faze-lo sem conselho da tua competencia. Já uma critica benevola e carinhosa, em que tomaste parte, consagrou a estas duas composições palavras de louvor e animação. Sou immensamente reconhecido, por tal, aos meus collegas da imprensa. Mas o que recebeu na scena o baptismo do applauso pode, sem inconveniente, ser trasladado para o papel? A differença entre os dous meios de publicação não modifica o juizq, não altera o valor da obra ? E' para a solução destas duvidas que recorro á tua autoridade litteraria. O juizo da imprensa vio destas duas comedias—simples tentativas de autor timido e receioso. Se a minha afíirmação não envolve suspeitas de vaidade disfarçada e mal cabida, declaro que nenhuma outra ambição levo nesses trabalhos. Tenho o theatro por cousa muita séria, e as minhas forças por cousa muita insufficiente; penso que as qualidades necessárias ao autor dramático desenvolvcm-se e apuram-se com o tempo e o trabalho; cuido que é melhor tactear para achar; é o que procurei e procuro fazer. Caminhar destes simples grupos de scenas — á comedia de maior alcance, onde o estudo dos carecteres seja consciencioso e acurado, onde a observação da sociedade se case ao conhecimento pratico das condições do genero — eis uma ambição propria de animo juvenil, e que eu tenho a immodestia de confessar. E, tão certo estou da magnitude da conquista, que me não dissimulo o longo estadio que ha percorrer para alcança-la. E mais. Tão difficil me parece este genero litterario, que, sob as difficuldades apparentes, se me afiigura que outras haverão, menos superaveis, e tão subtis, que ainda as não posso ver. Até onde vai a illusão dos meus desejos? Confio demasiado na minha perseverança? Eis o que espero saber de ti. E dirijo-me a ti, entre outras razões, por mais duas, que me parecem excellentes: razão de estima Iitteraria e razão de estima pessoal. Em respeito á tua modéstia, callo o que te devo de admiração e reconhecimento. O que nos honra, a mim e a ti, é que a tua imparcialidade e a minha submissão ficam salvas da minima suspeita. Serás justo e eu docil; terás ainda por isso o meu reconhecimento; e eu escapo a esta terrivel sentença de um escriptor: «Les amities que ne résistent pas à la franchise, valentelles un regret? Teu amigo e collega, MACHADO DE ASSIS. CARTA AO AUTOR. MACHADO DE ASSIS, Respondo á tua carta. Pouco preciso dizer-te. Fazes bem em dar ao prélo os teus primeiros ensaios dramáticos. Fazes bem, porque essa publicação envolve uma promessa e acarreta sobre ti uma responsabilidade para com o publico. E o publico tem o direito de ser exigente comtigo. E's moço, e foste dotado pela Providencia com um bello talento. Ora, o talento é uma arma divina que Deus concede aos homens para que estes a empreguem no melhor serviço dos seus semelhantes. A idéa é uma força. Inocula-la no seio das massas é inocular-lhe a sangue puro da regeneração moral. O homem que se civilisa, christianisa-se. Quem se illustra, edifica-se. Porque a luz que nos esclarece a razão é a que nos allumia a consciencia. Quem aspira a ser grande, não póde deixar de aspirar a ser bom. A virtude é a primeira grandeza deste mundo. O grande homem é o homem de bem. Repito, pois, nessa obra de cultivo Iitterario ha uma obra de edificação moral. Das muitas e variadas fórmas litterarias que existem e que se prestam ao conseguimento desse fim escolheste a fórma dramática. Acertaste. O drama é a fórma mais popular, a que mais se nivela com a alma do povo, a que mais recursos possue para actuar sobre o seu espirito, a que mais facilmente o commove e exalta; em resumo, a que tem meios mais poderosos para influir sobre o seu coração. Quando assim me exprimo, é claro que me refiro ás tuas comedias, acceitando-as como ellas devem ser acceitas por mim e por todos, isto é, como um ensaio, como umo [1]experiência, e, se pódes admittir a phrase, como uma gymnastica de estylo. A minha franqueza e a lealdade que devo á estima que me confessas obrigam-me a dizer-te em publico o que já te disse em particular. As tuas duas comedias, modeladas ao gosto dos proverbios francezes, não revelam nada mais do que a maravilhosa aptidão do teu espirito, a profusa riquesa do teu estylo. Não inspiram nada, mais do que sympathia e consideração por um talento que se amaneira a todas as fórmas da concepção. Como lhes falta a idéa, falta-lhes a base. São bellas. porque, são bem escriptas. São valiosas, como artefactos litterarios, mas até onde a minha vaidosa presumpção critica póde ser tolerada, devo declarar-to que ellas são frias e insensíveis, como todo sujeito sem alma. Debaixo deste ponto de vista, e respondendo a uma interrogação directa que me dirijes, devo dizer-te que havia mais perigo em apresenta-las ao publico sobre a rampa da scena do que ha em offerece-las á leitura calma e reflectida. O que no theatro podia servir de obstáculo á apreciação da tua obra, favorece-a no gabinete. As tuas comedias são para serem lidas e não representadas. Como ellas são um brinco de espirito podem distrahir o espirito. Como não têm coração não podem pretender sensibilisar a ninguém. Tu mesmo assim as consideras, e reconhecer isso e dar prova de bom critério comsigo mesmo, qualidade rara de encontrar-se entre os autores. O que desejo, o que te peço, é que apresentes nesse mesmo genero algum trabalho mais serio, mais novo, mais original e mais completo. Já fizeste esboços, atira-te á grande pintura. Posso garantir-te que conquistarás applausos mais convencidos e mais duradouros. Em todo o caso, repito-te que fazes bem. Sujeita-te á critica de todos, para que possas corrigir-te a ti mesmo. Como te mostras despretencioso, colherás. o fructo são da tua modestia não fingida. Pela minha parte estou sempre disposto a acompanhar-te, retribuindo-te em sympathia toda a consideração que me impõe a tua joven e vigorosa intelligencia. Teu Q. BOCAYUVA. O CAMINHO DA PORTA COMEDIA EM UM ACTO REPRESENTADA PELA PRIMEIRA VEZ NO ATHENEU DRAMATICO EM SETEMBRO DE 1862. PERSONAGENS PERSONAGENS. ACTORES. Dr. Cornelio. Sr. Cardozo Valentim. Pimentel. Innocencio Martins D. Carlota Sra. D. Maria Fernanda. Actualidade. O CAMINHO DA PORTA. EM CASA DE CARLOTA. Salla elegante.— Duas portas no fundo, portas-latteeraes, consolos, piano, divan, poltronas, cadeiras, mesa, tapete, espelhos, quadros; figuras sobre os consolos; album, alguns livros, lapis etc., sobre a mesa. Scena I. VALENTIM assentado á E. O DOUTOR entrando. VALENTIM. Ah! és tu? DOUTOR. Oh! Hoje é o dia das sorprezas. Accordo, leio os jornaes e vejo annunciado para hoje o Trovador. Primeira sorpreza. Lembro-me de passar por aqui para saber se D. Carlota queria ir ouvir a opera de Verdi, e vinha pensando na triste figura que devia fazer em casa de uma moça do tom ás 10 horas da manhã, quando te encontro firme como uma sentinella no posto. Duas sorprezas. VALENTIM. A triste figura sou eu? DOUTOR. Acertaste. Lucido como uma sybilla. Fazes uma triste figura, não t'o devo occultar. VALENTIM. (Ironico.) Ah! DOUTOR. Tens ar de não dar credito ao que digo! Pois olha, tens diante de ti a verdade em pessoa, com a differença de não sahir de um poço mas da cama, e de vir em traje menos primitivo. Quanto ao espelho, se o não trago comigo, ha nesta salla um que nos serve com a mesma sinceridade. Mira-te alli. Estás ou não uma triste figura? VALENTIM. Não me aborreças. DOUTOR. Confessas então? VALENTIM. E’s divertido como os teus protestos de virtuoso! Aposto que me queres fazer crer no desinteresse das tuas visitas a D. Carlota? DOUTOR. Não. VALENTIM. Ah! DOUTOR. Sou hoje mais assiduo do que era ha um mez, e a razão é que ha um mez que começas-te a fazer-lhe côrte. VALENTIM. Já sei: não me queres perder de vista. DOUTOR Presumido! Eu sou lá inspector dessas cousas? Ou antes sou; mas o sentimento que me leva a estar presente a essa batalha pausada e pariente está muito longe do que pensas; estudo o amor. VALENTIM. Somos então os teus compendios? DOUTOR. E' verdade. VALENTIM. E o que tens aprendido? DOUTOR. Descobri que o amor é uma pescaria… VALENTIM. Queres saber de uma cousa ? Estás prosaico como os teus libellos. DOUTOR. Descobri que o amor é uma pescaria… VALENTIM. Vai-te com os diabos! DOUTOR. Descobri que o amor é uma pescaria. O pescador senta-se sobre um penedo, á beira do mar. Tem ao lado uma cesta com iscas; vai pondo uma por uma no anzol, e atira ás aguas a perfida linha. Assim gasta horas e dias até que o descuidado filho das aguas agarra no anzol, ou não agarra e… VALENTIM. E's um tolo. DOUTOR. Não contesto; pelo interesse que tomo por ti. Realmente doe-me ver-te ha tantos dias exposto ao sol, sobre o penedo, com o caniço na mão, a gastar as tuas iscas e a tua saude, quero dizer, a tua honra. VALENTIM. DOUTOR. A tua honra, sim. Pois para um homem de senso e um tanto serio o ridiculo não é uma deshonra? Tu estás ridiculo. Não ha dia em que não venhas gastar tres, quatro, cinco horas a cercar esta viuva de galanteios e attenções, acreditando talvez ter adiantado muito, mas estando ainda hoje como quando começaste. Olha, ha Penolopes da virtude e Penolopes do galanteio. Umas fazem e desmancham teias por terem muito juiso; outras as fazem e desmancham por não terem nenhum. VALENTIM. Não deixas de ter uma tal ao qual razão. DOUTOR. Ora, graças a Deos! VALENTIM. Devo porém prevenir-te de uma cousa: é que ponho nesta conquista a minha honra. Jurei aos meus deuses casar-me com ella e hei de manter o meu juramento. DOUTOR. Virtuoso Romano! VALENTIM. Faço o papel de Sisypho. Rolo a minha pedra pela montanha; quasi a chegar com ella ao cimo, uma mão invisivel fa-la despenhar de novo, e ahi volto a repetir o mesmo trabalho. Se isto é um infortunio, não deixa de ser uma virtude. DOUTOR. A virtude da paciencia. Empregavas melhor essa virtude em fazer palitos do que em fazer a roda a esta namoradeira. Sabes o que aconteceu aos companheiros de Ulysses passando pela ilha de Circe? Ficaram transformados em porcos. Melhor sorte teve Acteon que por espreitar Diana no banho passou de homem a veado. Prova evidente de que é melhor pilha-las no banho do que andar-lhes á roda tapetes da salla. VALENTIM. Passas de prosaico a cynico. DOUTOR. E' uma modificação. Tu estás sempre o mesmo: ridiculo. Scena II. OS MESMOS, INNOCENCIO trazido por um criado. INNOCENCIO. Oh! DOUTOR. (Baixo a Valentim.) Chega o teu competidor. VALENTIM. (Baixo.) Não me vexes. INNOCENCIO. Meus senhores! Já por cá? Madrugaram hoje! DOUTOR. E' verdade. E V. S.? INNOCENCIO. Como está vendo. Levanto-me sempre com o sol. DOUTOR. Se V. S. é outro. INNOCENCIO. (Não comprehendendo.) Outro que? Ah! outro sol! Este doutor tem umas expressões tão… fóra do vulgar! Ora veja, a mim ainda ninguem se lembrou de dizer isto. Sr. Doutor, V. S. hade tratar de um negocio que trago pendente no fôro. Quem falla assim é capaz de seduzir a propria lei! DOUTOR. Obrigado! INNOCENCIO. Onde está a encantadora D. Carlota? Trago-lhe este ramalhete que eu proprio colhi e arranjei. Olhem como estas flores estão bem combinadas: rosas, paixão; assucenas, candura. Que tal? DOUTOR. Engenhoso! INNOCENCIO. (Dando-lhe o braço). Agora ouça, Sr. Doutor. Decorei umas quatro palavras para dizer ao entregar-lhe estas flores. Veja se condizem com o assumpto. DOUTOR. Sou todo ouvidos. INNOCENCIO. « Estas flores são um presente que a primavera faz á sua irmã por intermedio do mais ardente admirador de ambas. » Que tal? DOUTOR. Sublime! (Innocencio ri-se á socapa ) Não é da mesma opinião? INNOCENCIO. Poderá não ser sublime; se eu proprio copiei isto de um Secretario dos Amantes! DOUTOR. Ah! VALENTIM. (Baixo ao Doutor). Gabo-te a paciencia! DOUTOR. (Dando-lhe o braço) Pois que tem! E' miraculosamente tolo. Não é da mesma especie que tu… VALENTIM. Cornelio! DOUTOR. Descança; é de outra muito peor! Scena III. OS MESMOS, CARLOTA. CARLOTA. Perdão, meus senhores, de os haver feito esperar.... (Destribue apertos de mão). VALENTIM. Nós é que lhe pedímos desculpa de havermos madrugado deste modo.... DOUTOR. A mim, traz-me um motivo justificavel. CARLOTA. (Rindo). Ver-me ? (Voe sentar-se). DOUTOR. Não. CARLOTA. Não é um motivo justificavel, esse? DOUTOR. Sem duvida; incomoda-la é que o não é. Ah! minha senhora, eu aprecio mais do que nenhum outro o despeito que deve causar a uma moça uma interrupção no serviço da toilette. Creio que é cousa tão seria como uma quebra de relações diplomaticas. CARLOTA. O Sr. doutor graceja e exagera. Mas qual é esse motivo que justifica a sua entrada em minha casa a esta hora? DOUTOR. Venho receber as suas ordens ácerca da representação desta noite. CARLOTA. Que representação? DOUTOR. Canta-se o Trovador. INNOCENCIO. Bonita peça! DOUTOR. Não pensa que deve ir? CARLOTA. Sim, e agradeço-lhe a sua amavel lembrança. Já sei que vem efferecer-me o seu camarote. Olhe. hade desculpar-me este descuido mas prometto que vou quanto antes tomar uma assignatura. INNOCENCIO. (A Valentim) Ando desconfiado do doutor! VALENTIM. Porque? INNOCENCIO. Veja como ella o trata! Mas eu vou desbanca-lo com a minha phrase do Secretario dos Amantes...(Indo a Carlota) Minha senhora, estas flores são um presente que a primavera faz á sua irmã… DOUTOR. (Completando a phrase) Por intermedio do mais ardente admirador de ambas. INNOCENCIO. Sr. doutor! CARLOTA. O que é? INNOCENCIO. (Baixo) Isto não se faz! (A Carlota) Aqui tem, minha senhora… CARLOTA. Agradecida. Por que se retirou hontem tão cedo? Não lh'o quiz perguntar... de boca; mas creio que o interroguei como olhar. INNOCENCIO. (No cumulo da satisfação.) De boca?... Com o olhar?... Ah! queira perdoar, minha senhora... mas um motivo imperioso.... DOUTOR. Imperioso... não é delicado. CARLOTA. Não exijo saber o motivo; suppuz que se houvesse passado alguma cousa que o desgostasse... INNOCENCIO. Qual, minha senhora; o que se poderia passar? Não estava eu diante de V. Ex. para consolar-me com seus olhares de algum desgosto que houvesse? E não houve nenhum. CARLOTA. (Ergue-se e bate-lhe com o leque no hombro.) Lisongeiro! DOUTOR. (Descendo entre ambos.) V. Ex. hade desculpar-me se interrompo uma especie de idylio com uma cousa prosaica, ou antes com outro idyllio, de outro genero, um idyllio do estomago; o almoço… CARLOTA. Almoça comnosco? DOUTOR. Oh! minha senhora, não seria capaz de interrompe-la; peço simplesmente licença para ir almoçar com um desembargador da relação a quem tenho de prestar umas informações. CARLOTA. Sinto que na minha perda ganhe um desembargador; não sabe como odeio a toda essa gente do fôro; faço apenas uma excepção. DOUTOR. Sou eu. CARLOTA. (Sorrindo) E' verdade. Donde concluio? DOUTOR. Estou presente! CARLOTA. Maldoso! DOUTOR. Fica, não, Sr. Innocencio? INNOCENCIO. Vou, (Baixo ao Doutor) Estalo de felicidade! DOUTOR. Até logo! INNOCENCIO. Minha senhora! Scena IV. CARLOTA, VALENTIM VALENTIM. Ficou? VALENTIM. (Indo buscar o chapéo) Se a incomódo… CARLOTA. Não. Dá-me prazer até. Ora, porque hade ser tão susceptivel a respeito de tudo o que lhe digo? VALENTIM. E' muita bondade. Como não quer que seja susceptivel? Só depois de estarmos á sós é que V. Ex. se lembra de mim. Para um velho gaiteiro acha V. Ex. palavras cheias do bondade e sorrisos cheios de doçura. CARLOTA. Deu-lhe agora essa doença? (Vái sentar-se junto á mesa). VALENTIM. (Senta-se junto á mesa defronte de Carlota). Oh ! não zombe, minha senhora! Estou certo de que os martyres romanos prefereriam a morte rapida á luta com as feras do circo. O seu sarcasmo é uma fera indomavel; V. Ex. tem certesa disso e não deixa de lança-lo em cima de mim. CARLOTA. Então sou temivel? Confesso que ainda agora o sei. (Uma pausa. Em que scisma ? VALENTIM. Eu?.. em nada! CARLOTA. Interessante colloquio! VALENTIM. Devo crer que não faço uma figura nobre e seria. Mas não me importa isso! A seu lado eu affronto todos os sarcasmos do mundo. Olhen ou nem sei o que penso, nem sei o que digo. Ridiculo que pareça, to-me tão elevado o espirito que chego a suppôr em mim algum daquelles toques divinos com que a mão dos deuses elevava os mortaes e lhes inspirava forças e virtudes fóra do commum. CARLOTA. Sou eu o deusa… VALENTIM. Deusa, como ninguem sonhara nunca; com a graça de Venus e a magestade de Juno. Sei eu mesmo defini-la? Posso eu dizer em lingua humana o que é esta reunião de attrativos unicos feitos pela mão da natureza como uma prova suprema do seu poder? Dou-me por fraco, certo de que nem pincel nem lyra poderão fazer mais do que eu. CARLOTA. Oh! é de mais! Deos me livre de o tomar por espelho. Os meus são melhores. Dizem cousas menos agradaveis, porém mais verdadeiras. VALENTIM. Os espelhos são obras humanas; imperfeitos, como todas as obras humanas. Que melhor espelho, quer V. Ex., que uma alma ingenua e candida? CARLOTA. Em que corpo encontrarei.... esse espelho? VALENTIM. No meu. CARLOTA. Suppõe-se candido e ingênuo? VALENTIM. Não me supponho, sou. CARLOTA. E' por isso que traz parfumes e palavras que embriagam? Se ha candura é em querer fazer-me crer… VALENTIM. Oh ! não queira V. Ex. trocar os papeis. Bem sabe que os seus perfumes e as suas palavras é que embriagam. Se eu fallo um tanto diversamente do commum é porque fallam em mim o enthusiasmo e a admiração. Quanto a V. Ex. basta abrir os labios para deixar cahir delle aromas e philtros cujo segredo só a natureza conhece. CARLOTA. Estimo antes vê-lo assim. (Começa a desenhar distrahidamente em um papel). VALENTIM. Assim... como? CARLOTA. Menos... melancolico. VALENTIM. E' esse o caminho do seu coração? CARLOTA. Queria que eu propria lh'o indicasse? Seria trahir-me, e tirava-lhe a graça e a gloria de o encontrar por seus proprios exforços. VALENTIM. Onde encontrarei um roteiro?... CARLOTA. Isso não tinha graça! A gloria está em achar o desconhecido depois da luta e do trabalho... Amar e fazer-se amar por um roteiro... oh! que cousa de máo gosto! VALENTIM. Prefiro esta franqueza, Mas V. Ex. deixa-me no meio de uma encrusilhada com quatro ou cinco caminhos diante de mim, sem saber qual hei de tomar. Acha que isto é de coração compassivo? CARLOTA Ora! siga por um delles, á direita ou a esquerda. VALENTIM. Sim, para chegar ao fim e encontrar um muro; voltar, tomar depois por outro… CARLOTA. E encontrar outro muro? E' possível. Mas a esperança acompanha os homens e com a esperança, neste caso, a curiosidade. Enxugue o suor, descance um pouco, e volte a procurar o terceiro, o quarto, o quinto caminho, até encontrar o verdadeiro. Supponho que todo o trabalho se compensará com o achado final. VALENTIM. Sim. Mas, se depois de tanto esforço fôr encontrar-me no verdadeiro caminho com algum outro viandante de mais tino e fortuna? CARLOTA. Outro?.. que outro? Mas... isto é uma simples conversa... O Sr. faz-me dizer cousas que não devo... (cahe o lapis ao chão. Valentim appressa-se em apanhal-o e ajoelha nesse acto.) CARLOTA. Obrigada. (Vendo que elle continua ajoelhado.) Mas levante-se! VALENTIM. Não seja cruel! CARLOTA. (Levantando-se.) Faça o favor de levantar-se! VALENTIM. (Levantando-se.) E’ preciso pôr um termo a isto! CARLOTA. (Fingindo-se distraída.) A isto o que? VALENTIM. V. Ex. é de um sangue frio de matar! CARLOTA. Queria que me fervesse o sangue ? Tinha rasão para isso. A que proposito fez esta scena de comedia? VALENTIM. V. Ex. chama a isto comedia? CARLOTA. Alta comedia, está entendido. Mas que é isto? Está com lagrimas nos olhos? VALENTIM. Eu?.. ora... ora... que lembrança! CARLOTA. Quer que lhe diga? Está ficando ridiculo. VALENTIM. Minha senhora! CARLOTA. Oh! ridiculo! ridiculo! VALENTIM. Tem razão. Não devo parecer outra cousa a seus olhos! O que sou eu para V. Ex ? Um ente vulgar, uma facil conquista, que V. Ex entretem, ora animando, ora repellindo, sem deixar nunca conceber esperanças fundadas e duradouras. O meu coração virgem deixou-se arrastar. Hoje, se quizesse arrancar de mim este amor, era preciso arrancar com elle a vida. Oh! não ria, que é assim! CARLOTA. Sinto que não possa ouvil-o com interesse. VALETIM. Por que motivo havia de me ouvir com interesse? CARLOTA. Não é por ter a alma secca; é por não acreditar nisso. VALENTIM. Não acredita? CARLOTA, Não. VALENTIM. (Esperançoso.) E se acreditasse? CARLOTA. (Com indifferença.) Se acreditasse, acreditava! VALENTIM. Oh! é cruel! CARLOTA. (Depois de um silencio.) Que é isso? Seja forte! Se não por si, ao menos pela posição esquerda em que me colloca. VALENTIM. (Sombrio.) Serei forte! Fraco no parecer de alguns... forte no meu... Minha Senhora! CARLOTA. (Assustada.) Onde vae? VALENTIM. Até... minha casa! Adeus! (Sahe arrebatadamente. Carlota pára estacada; depois vae ao fundo, volta ao meio da scena, vae a direita; entra o Doutor.) Scena V. CARLOTA, O DOUTOR. DOUTOR. Não me dirá, minha senhora, o que tem Valentim que passou por mim como um raio, agora, na escada? CARLOTA. Eu sei! Ia mandar em procura delle. Disse-me aqui umas palavras ambiguas, estava exaltado, creio que… DOUTOR. Que se vae matar?... (Correndo para a porta.) Faltava mais esta !.. (Estaca.) Não, não se ha de matar! CARLOTA. Ah!.. por que? DOUTOR. Porque mora longe. No caminho ha de refletir e mudar de parecer. Os olhos das damas já perderam o condão de levar um pobre diabo á sepultura; raros casos provam uma diminuta excepção. CARLOTA. De que olhos e de que condão me falla? DOUTOR. Do condão de seus olhos, minha senhora! Mas que influencia é essa que V. Ex. exerce sobre o espirito de quantos se deixam apaixonar por seus encantos? A um inspira a idéa de matar-se; a outro exalta-o de tal modo, com algumas palavras e um toque de seu leque, que quasi chega a ser causa de um ataque apopletico! CARLOTA. Está me fallando grego! DOUTOR. Quer portuguez, minha senhora? Vou traduzir o meu pensamento. Valentim é meu amigo. E' um rapaz, não direi virgem de coração, mas com tendencias ás paixões da sua idade. V. Ex. por sua graça e belleza inspirou-lhe, ao que parece, um desses amores profundos de que os romances dão exemplo. Com vinte e cinco annos, intelligente, bemquisto, podia fazer um melhor papel que o de namorado sem ventura. Graças a V. Ex., todas as suas qualidades estão annuladas: o rapaz não pensa, não vê, não conhece, não comprehende ninguem mais que não seja V. Ex. CARLOTA. Pára ahi a fantazia? DOUTOR. Não, senhora. Ao seu carro atrelou-se com o meu amigo, um velho, um velho, minha senhora, que, com o fim de lhe parecer melhor, pinta a corôa veneravel de seus cabellos brancos. De sério que era, fel-o V. Ex. uma figurinha de papelão, sem vontade nem acção propria. Destes sei eu; ignoro se mais algum dos que frequentam esta casa andam atordoados como estes dous. Creio, minha senhora, que lhe fallei no portuguez mais vulgar e proprio para me fazer entender. CARLOTA. Não sei até que ponto é verdadeira toda essa historia, mas consinta que lhe observe quanto andou errado em bater á minha porta. Que lhe posso eu fazer? Sou eu culpada de alguma cousa ? A ser verdade isso que contou, a culpa é da natureza que os fez fáceis de amar, e a mim, me fez.... bonita? DOUTOR. Pode dizer mesmo—encantadora. CARLOTA. Obrigada! DOUTOR. Em troca do adjectivo deixe acrescentar outro não menos merecido:— namoradeira. CARLOTA. Ein? DOUTOR. Na-mo-ra-dei-ra! CARLOTA. Está disendo cousas que não tem senso commum. DOUTOR. O senso commum é commum a dous modos de entender. E' mesmo a mais de dous. E' uma desgraça que nos achemos em divergencia. CARLOTA. Mesmo que fosse verdade não era delicado dizer.... DOUTOR. Esperava por essa. Mas V. Ex. esquece que eu, lucido como estou hoje, já tive os meus momentos de allucinação. Já fiei como Hercules a seus pés. Lembra-se? Foi ha tres annos. Incorregivel a respeito de amores, tinha razões para estar curado, quando vim cahir em suas mãos. Alguns allopathas costumam a mandar chamar os homoepothas nos ultimos momentos de um enfermo e ha casos de salvação para o moribundo. V. Ex. servio-me de homoepathia, desculpe a comparação; deu-me uma dose de veneno tremenda, mas efficaz; desde esse tempo fiquei curado. CARLOTA. Admiro a sua fecundidade! Em que tempo padeceo dessa febre, de que tive a ventura de o curar? DOUTOR. Já tive a honra de dizer que foi ha tres annos. CARLOTA. Não me recordo. Mas considero-me feliz por ter conservado ao foro um dos advogados mais distinctos da capital. DOUTOR. Póde accrescentar: e á humanidade um dos homens mais uteis. Não se ria, sou um homem util. CARLOTA. Não me rio. Conjecturo em que se empregará a sua utilidade. DOUTOR. Vou auxiliar a sua penetração. Sou util pelos serviços que presto aos viajantes noveis relativamente ao conhecimento das costas e dos perigos do curso maritimo; indico os meios de chegar sem maior risco á ilha desejada de Cythera.. CARLOTA. Ah! DOUTOR. Essa exclamação é vaga e não me indica se V. Ex. está satisfeita ou não com a minha explicação. Talvez não acredite que eu possa servir aos viajantes? CARLOTA. Acredito. Acostumei-me a olha-lo como a verdade nua e crua. DOUTOR. E' o que dizia ha bocado áquelle doido Valentim. CARLOTA. A que proposito dizia?.. DOUTOR. A que proposito? Queria que fosse a proposito da guerra dos Estados-Unidos? da questão do algodão? do poder temporal? da revolução da Grecia? Foi a respeito da unica cousa que nos pódo interessar, a elle. como marinheiro novel, e a mim, como capitão experimentado. CARLOTA. Ah! foi… DOUTOR. Mostrei-lhe os pontos negros do meu roteiro. CARLOlA. Creio que elle não ficou convencido... DOUTOR. Tanto não que se ia deitando ao mar. CARLOTA. Ora, venha cá. Fallemos um momento sem paixão nem rancor. Admitto que o seu amigo ande apaixonado por mim. Quero admittir tambem que eu seja uma namoradeira… DOUTOR. Perdão: uma encantadora namoradeira… CARLOTA. Dentada de morcego; acceito. DOUTOR. Não: attenuante e aggravante; sou advogado CARLOTA. Admitto isso tudo. Não me dirá donde tira o direito de intrometter-se nos actos alheios, e de impôr as suas lições a uma pessoa, que o admira e estima, mas que não é, nem sua irmã, nem sua pupilla? DOUTOR. Donde? Da doutrina christã: ensino os que erram. CARLOTA. A sua delicadesa não me hade incluir entre os que erram. DOUTOR. Pelo contrario; dou-lhe um lugar de honra: é a primeira. CARLOTA. Sr. doutor! DOUTOR. Não se zangue, minha senhora. Todos erramos; mas V. Ex. erra muito. Não me dirá de que serve, o que aproveita usar uma mulher bonita de seus encantos para espreitar um coração de vinte e cinco annos e atrahi-lo com as suas cantilenas, sem outro fim mais do que contar adoradores e dar ura publico testemunho do que póde a sua bellesa? Acha que é bonito? Isto não revolta? (Movimento de Carlota) CARLOTA. Por minha vez pergunto: donde lhe vem o direito de pregar-me sermões de moral? DOUTOR. Não ha direito escripto para isto, é verdade. Mas, eu que játentei trincar o cacho de uvas pendente, não faço como a raposa da fabula, fico ao pé da parreira para dizer ao outro animal que vier: Não sejas tolo! não as alcançarás com o teu focinho! e á parreira impassível: Secca as tuas uvas ou deixa-as cahir; é melhor do que tel-as ahi a fazer cobiça ás raposas avulsas! E' o direito da desforra! CARLOTA. Ia-me zangando. Fiz mal. Com o Sr. doutor é inutil discutir : falla- se pela razão, responde pela parabola. DOUTOR. A parabola é a razão do evangelho, e o evangelho é o livro que mais tem convencido. CARLOTA. Por taes disposições vejo que não deixa o posto de sentinella dos corações alheios? DOUTOR. Avisador de incautos; é verdade. CARLOTA. Pois declaro que dou ás suas palavras o valor que merecem. DOUTOR. Nenhum? CARLOTA. Absolutamente nenhum. Continuarei a receber com a mesma affabilidade o seu amigo Valentim. DOUTOR. Sim, minha senhora! CARLOTA. E ao doutor tambem. DOUTOR. E' magnanimidade. CARLOTA. E ouvirei com paciencia evangelica as suas predicas não encommendadas. DOUTOR. E eu prompto a proferil-as. Ah! minha senhora, se as mulheres soubessem quanto ganhariam se não fossem vaidosas ! E' negocio de cincoenta por cento.... CARLOTA Estou resignada: crucifique-me! DOUTOR. Em outra occasião. CARLOTA. Para ganhar forças quer almoçar segunda vez? DOUTOR. Hade consentir que recuse. CARLOTA. Por motivo de rancor? DOUTOR (Pondo a mão no estomago.) Por motivo de incapacidade. (Comprimenta e dirige-se á porta. Carlota sahe pelo fundo. Entra Valentim.) Scena VI. O DOUTOR, VALENTIM. DOUTOR. Oh! A que horas é o enterro? VALENTIM. Que enterro? De que enterro me fallas tu? DOUTOR. Do teu. Não ias procurar o descanso, meu Werther? VALENTIM. Ah! não me falles! Esta mulher... onde está ella? DOUTOR. Almoça. VALENTIM. Sabes que a amo. Ella é invencivel. A's minhas palavras amorosas respondeu com a friesa do sarcasmo. Exaltei-me e cheguei a proferir algumas palavras que poderiam indicar da minha parte uma intenção tragica. O ar da rua fez-me bem; acalmei-me… DOUTOR. Tanto melhor!... VALENTIM. Mas eu sou teimoso. DOUTOR. Pois ainda crês?... VALENTIM. Ouve: sinceramente afflicto e apaixonado, apresentei-me a D. Carlota como era. Não houve meio de torna-la compassiva. Sei que não me ama; mas creio que não está longe disso; acha-se em um estado que basta uma faísca para accender-se-lhe no coração a chamma do amor. Se não se commoveu á franca manifestação do meu affecto, hade commover-se a outro modo de revellação. Talvez não se incline ao homem poetico e apaixonado; hade inclinar-se ao heroico ou até sceptico.... ou a outra espécie Vou tentar um por um. DOUTOR. Muito bem. Vejo que raciocinas; é porque o amor e a razão dominam em ti com força igual. Graças a Deus, mais algum tempo e o predominio da razão será certo. VALENTIM. Achas que faço bem? DOUTOR. Não acho, não, senhor! VALENTIM. Por que? DOUTOR. Amas muito esta mulher? E' proprio da tua idade e da força das cousas. Não ha caso que desminta esta verdade reconhecida e provada: que a polvora e o fogo, uma vez proximos fazem explosão. VALENTIM. E' uma doce fatalidade esta! DOUTOR. Ouve-me calado. A que queres chegar com este amor? Ao casamento; é honesto e digno de ti. Basta que ella se inspire da mesma paixão, e a mão do hymeneu virá converter em uma só as duas existencias. Bem. Mas não te occorre uma cousa: é que esta mulher, sendo uma namoradeira, não póde tornar-se vestal muito cuidadosa da ara matrimonial. VALENTIM. Oh! DOUTOR. Protestas contra isto? E' natural. Não serias o que és se acceitasses á primeira vista a minha opinião. E' por isso que te peço reflexão e calma. Meu caro, o marinheiro conhece as tempestades e os navios; eu conheço os amores e as mulheres; mas avalio no sentido inverso do homem do mar; as escunas veleiras são preferidas pelo homem do mar, eu voto contra as mulheres veleiras. VALENTIM. Chamas a isto uma razão? DOUTOR. Chamo a isto uma opinião. Não é a tual Hade sel-o com o tempo. Não me faltará occasião de chamar-te ao bom caminho. A tempo o ferro é mesinha, disse Sá de Miranda. Empregarei o ferro. VALENTIM. O ferro? DOUTOR. O ferro. Só as grandes coragens é que se salvam. Devi a isso salvarem-me das unhas deste gavião disfarçado de quem queres fazer tua mulher. VALENTIM. O que estás disendo? DOUTOR. Cuidei que sabias. Tambem eu já trepei pela escada de seda para cantar a cantiga do Romeo á janella de Julieta. VALENTIM. Ah! DOUTOR. Mas não passei da janella. Fiquei ao relento do que me resultou uma constipação. VALENTIM. E' natural. Pois como havia ella de amar a um homem que quer levar tudo pela razão fria dos seus libellos e embargos de terceiro? DOUTOR. Foi isso que me salvou; os amores como os desta mulher precisam um tanto ou quanto de chicana. Passo pelo advogado mais chicaneiro do fôro; imagina se a tua viuva podia haver-se comigo! Veio o meu dever com embargos de terceiro e eu ganhei a demanda. Se, em vez de comer tranquillamente a fortuna de teu pai, tivesses cursado a academia de S. Paulo ou Olinda, estavas, como eu, armado de broquel e cota de malhas. VALENT1M. E’ o que te parece. Podem acaso as ordenações e o codigo penal contra os impulsos do coração? E' querer reduzir a obra de Deos á condição da obra dos homens. Mas bem vejo que és o advogado mais chicaneiro do fôro. DOUTOR. E portanto, o melhor. VALENTIM. Não, o peor, por que não me convenceste. DOUTOR. Ainda não? VALENTIM. Nem me convencerás nunca. DOUTOR. Pois é pena! VALENTIM. Vou tentar os meios que tenho em vista; se nada alcançar talvez me resigne á sorte. DOUTOR. Não tentes nada. Anda jantar comigo e vamos á noite ao theatro. VALENTIM. Com ella? Vou. DOUTOR. Nem me lembrava que a tinha convidado. VALENTIM. Espero que heide vencer. DOUTOR. Com que contas? Com a tua estrella? Boa fiança! VALENTIM. Conto comigo. DOUTOR. Ah! melhor ainda! Scena VII. DOUTOR,VALENTIM, INNOCENCIO. INNOCENCIO. O corredor está deserto. DOUTOR. Os criados servem á mesa. D. Carlota está almoçando. Está melhor? INNOCENCIO. Um tanto. VALENTIM. Esteve doente, Sr. Innocencio? INNOCENCIO. Sim, tive uma ligeira vertigem. Passou. Effeitos do amor... quero dizer... do calor. VALENTIM. Ah! INNOCENCIO. Pois olhe já soffri calor de estalar passarinho. Não sei como isto foi. Emfim, são cousas que dependem das circumstancias. VALENTIM. Houve circumstancias ? INNOCENCIO. Houve... (sorrindo) Mas não as digo... não! VALENTIM. E' segredo ? INNOCENCIO. Se é! VALENTIM. Sou discreto, como uma sepultura; falle! INNOCENCIO. Oh! não! E' um segredo meu e de mais ninguem... ou a bem dizer, meu e de outra pessoa... ou não, meu só! DOUTOR. Respeitamos os segredos, seus ou de outros! INNOCENCIO. V. S. é um portento! Nunca me hei de esquecer que me comparou ao sol! A certos respeitos andou avisado: eu sou uma especie de sol, com uma differença, é que não nasço para todos, nasço para todas ! DOUTOR. Oh! Oh! VALENTIM. Mas V. S. está mais na idade de morrer que de nascer. INNOCENCIO. Apre lá! com trinta e oito annos, a idade viril! V. S. é que é uma criança! VALENTIM. Enganaram-me então. Ouvi dizer que V. S. fôra dos ultimos a beijar a mão de D. João VI, quando daqui se foi, e que nesse tempo era já taludo... INNOCENCIO. Ha quem se divirta em calumniar a minha idade. Que gente invejosa! Onde vae, doutor? DOUTOR. Vou sahir. VALENTIM. Sem fallar a D. Carlota ? DOUTOR. Já me havia despedido quando chegaste. Hei de voltar. Até jogo. Adeus, Sr. Innocencio! INNOCENCIO. Felizes tardes, Sr. Doutor! Scena VIII. VALENTIM, INNOCENCIO. INNOCENCIO. E' uma perola este doutor! Delicado e bem fallante! Quando abre a boca parece um deputado na assembléa ou um comico na casa da opera! VALENTIM. Com trinta e oito annos e ainda falla na casa da opera! INNOCENCIO. Parece que V. S. ficou engasgado com os meus trita e oito annos! Suppõe talvez que eu seja um Mathusalem? Está enganado. Como me vê, faço andar á roda muita cabecinha de moça. A proposito, não acha esta viuva uma bonita senhora? VALENTIM. Acho. INNOCENCIO. Pois é da minha opinião! Delicada, graciosa, elegante, faceira, como ella só.... Ah! VALENTIM. Gosta della? INNOCENCIO. (Com indifferença.) Eu? gosto. E V. S. ? VALENTIM. (Com indifferença.) Eu? gosto. INNOCENCIO. (Com indifferença.) Assim, assim ? VALENTIM. (Com indifferença.) Assim, assim. INNOCENCIO. (Contentissimo, apertando-lhe a mão.) Ah ! meu amigo! Scena IX. VALENTIM, INNOCENCIO, CARLOTA. VALENTIM. Aguardava-mos a sua chegada com a sem ceremonia de pessoas intimas. CARLOTA. Oh! fizeram muito bem! (Senta-se.) INNOCENCIO. Não occultarei que estava ancioso pela presença de. V. Ex. CARLOTA. Ah! obrigada... Aqui estou! (Um silencio.) Que novidades ha, Sr. Innocencio ? INNOCENCIO. Chegou o paquete. CARLOTA. Ah! (Outro silencio.) Ah! chegou o paquete? (Levanta-se.) INNOCENCIO. Já tive a honra de…. CARLOTA. Provavelmente traz noticias de Pernambuco?.. do cholera?... INNOCENCIO. Costuma a trazer... CARLOTA. Vou mandar ver cartas... tenho um parente no Recife... Tenham a bondade de esperar… INNOCENCIO. Por quem é... não se encomode. Vou eu mesmo. CARLOTA. Ora! tinha que ver... INNOCENCIO. Se mandar um escravo ficará na mesma... demais, eu tenho relações com a administração do correio... O que talvez ninguem possa alcançar já e já, eu me encarrego de obter. CARLOTA. A sua dedicação corta-me a vontade de impedi-lo. Se me faz o favor... INNOCENCIO. Pois não, até já! (Beija-lhe a mão e sahe). Scena X. CARLOTA, VALENTIM. CARLOTA. Ah! ah! ah! VALENTIM. V. Ex. ri-se? CARLOTA. Acredita que foi para despedi-lo que o mandei vêr cartas ao correio? VALENTIM. Não ouso pensar... CARLOTA. Ouse, porque foi isso mesmo. VALENTIM. Haverá indiscrição em perguntar com que fim? CARLOTA. Com o fim de poder inlerroga-lo acerca do sentido de suas palavras quando daqui sahio. VALENTIM. Palavras sem sentido… CARLOTA. Oh! VALENTIM. Disse algumas cousas... tolas! CARLOTA. Está tão calmo para poder avaliar desse modo as suas palavras? VALENTIM. Estou. CARLOTA. Demais, o fim tragico que queria dar a uma cousa que começou por idylio... devia assusta-lo. VALENTIM. Assustar-me? Não conheço o termo. CARLOTA. E’ intrepido? VALENTIM. Um tanto. Quem se expôz á morte não deve teme-la em caso nenhum. CAR LOTA. Oh! oh! poeta, e intrepido de mais a mais. VALENTIM. Como lord Byron. CARLOTA. Era capaz de uma segunda prova do caso de Leandro? VALENTIM. Era, Mas eu já tenho feito cousas equivalentes. CARLOTA. Matou algum elephante, algum hyppopotamo? VALENTIM. Matei uma onça. CARLOTA. Uma onça? VALENTIM. Pelle malhada das cores mais vivas e explendidas: garras largas e possantes; olhar fulvo, peito largo, e duas ordens da dentes afiados como espadas. CARLOTA. Jesus! Esteve diante desse animal! VALENTIM. Mais do que isso: lutei com elle e matei-o. CARLOTA. Onde foi isso? VALENTIM. Em Goyaz. CARLOTA. Conte essa historia, novo Gaspar Corrêa. VALENTIM. Tinha eu vinte annos. Andavamos á caça eu e mais alguns. Internamo-nos mais do que deviamos pelo mato. Eu levava comigo uma espingarda, uma pistola e uma faca de caça. Os meus companheiros affastaram-se de mim. Tratava de procura-los quando senti passos… Voltei-me.... CARLOTA. Era a onça? VALENTIM. Era a onça. Com o olhar fito sobre mim parecia disposta a dar-me o bote. Encarei-a, tirei cautelosamente a pistola e atirei sobre ella. O tiro não lhe fez mal. Protegido pelo fumo da polvora, acastelei-me atraz de um tronco de arvore. A onça foi-me no encalço, e durante algum tempo andámos, eu e ella, a dansar á roda do tronco. Repentinamente levantou as patas e tentou esmagar-me abraçando a arvore, mais rapido que o raio, agarrei-lhe as mãos e apertei-a contra o tronco. Procurando escapar-me, a fera quiz morder-me em uma das mãos; com a mesma rapidez tirei a faça de caça e cravei-lha no pescoço; agarrei-lhe de novo a pata e continuei a aperta-la, até que os meus companheiros, orientados pelo tiro, chegaram ao lugar do combate. CARLOTA. E mataram?.... VALENTIM. Não foi preciso. Quando larguei as mãos da fera, um cadaver pesado e tepido cahio no chão. CARLOTA. Ora. mas isto é a historia de um quadro da Academia! VALENTIM. Só ha um exemplar de cada feito heroico? CARLOTA. Pois, deveras, matou uma onça? VALENTIM. Conservo-lhe a pelle como uma reliquia preciosa. CARLOTA. E’ valente; mas pensando bem não sei de que vale ser valente. VALENTIM. CARLOTA. Palavra que não sei. Essa. valentia fóra do commum não é dos nossos dias. As proezas tiveram seu tempo; não me enthusiasma essa luta do homem com a fera, que nos aproxima dos tempos barbaros da humanidade. Comprehendo agora a razão porque usa dos perfumes mais activos; é para disfarçar o cheiro dos filhos do matto que naturalmente hade ter encontrado mais de uma vez. Faz bem. VALENTIM. Féra verdadeira é a que V. Ex. me atira com esse riso sarcastico. O que pensa então que possa excitar o enthusiasmo? CARLOTA. Ora, muita cousa! Não o enthusiasmo dos heroes de Homero; um enthusiasmo mais condigno dos nossos tempos. Não precisa ultrapassar as portas da cidade para ganhar titulos á admiração dos homens. VALENTIM. V. Ex. acredita que seja uma verdade o aperfeiçoamento moral do homens na vida das cidades? CARLOTA. Acredito. VALENTIM. Pois acredita mal. A vida das cidades estraga os sentimentos. Aquelles que eu pude ganhar e entreter na assistencia das florestas, perdi-os depois que entrei na vida tumultuaria das cidades. V. Ex. ainda não conhece as mais verdadeiras opiniões. CARLOTA. Dar-se-ha caso que venha pregar contra o amor?... VALENTIM. O amor! V. Ex. pronuncia essa palavra com uma veneração que parece estar fallando de causas sagradas! Ignora que o amor é uma invenção humana? CARLOTA. Oh! VALENTIM. Os homens, que inventaram tanta cousa, inventaram tambem este sentimento. Para dar justificação moral á união dos sexos inventou-se o amor, como se inventou o casamento para dar-lhe justificação legal. Esses pretextos, com o andar do tempo, tornaram-se motivos. Eis o que é o amor! CARLOTA. E' mesmo o senhor quem me falla assim? VALENTIM. Eu mesmo. CARLOTA. Não parece. Como pensa a respeito das mulheres? VALENTIM. Ahi é mais difficil. Penso muita cousa e não penso nada. Não sei como avaliar essa outra parte da humanidade extrahida das costellas de Adão. Quem póde pôr leis ao mar? E' o mesmo com as mulheres. O melhor é navegar descuidadamehtc, a panno largo. CARLOTA. Isso é leviandade. VALENTIM. Oh! minha senhora! CARLOTA. Chamo leviandade para não chamar despeito. VALENTIM. Então ha muito tempo que sou leviano ou ando despeitado, porque esta é a minha opinião de longos annos. Pois ainda acredita na affeição intima entre a descrença masculina e... dá licença? a leviandade feminina? CARLOTA. E' um homem perdido, Sr. Valentim. Ainda ha santas affeições, crenças nos homens, e juizo das mulheres. Não queira tirar a prova real pelas excepções. Somme a regra geral e hade ver. Ah!. mas agora percebo! VALENTIM. O que? CARLOTA. (Rindo). Ah! ah! ah! Ouça muito baixinho, para que nem as paredes possam ouvir: este não é ainda o caminho do meu coração, nem a valentia, tão pouco. VALENTIM. Ah! tanto melhor! Volto ao ponto da partida e desisto da gloria... CARLOTA. Desanima? (Entra o doutor). VALENTIM. Dou-me por satisfeito. Mas já se vê, como cavalleiro, sem rancor nem hostilidade. (Entra Innocencio). CARLOTA. E' arriscar-se a novas tentativas. VALENTIM. Não. CARLOTA. Não seja vaidoso. Está certo? VALENTIM. Estou. E a rasão é esta: quando não se pode atinar com o caminho do coração toma-se — o caminho da porta. (Comprimenta e dirige-se para a porta). CARLOTA. Ah!—Pois que vá!—Estava ahi Sr. doutor? Tome cadeira. DOUTOR. (Baixo). Com uma advertencia:—Ha muito tempo que me fui pelo caminho da porta. CARLOTA. (Seria). Prepararam ambos esta comedia? DOUTOR. Comedia, com effeito, cuja moralidade Valentim incumbio- se de resumir— Quando não se pode atinar com o caminho do coração, deve-se tomar sem demora o caminho da porta. (Sahem o doutor e Valentim) CARLOTA. (Vendo Innocencio), Pode sentar-se. (Indica-lhe uma cadeira, Risonha). Como passou? INNOCENCIO. (Senta-se meio desconfiado, mas levanla-se logo). Perdão: eu tambem vou pelo caminho da porta! (Sahe. Carlota attravessa arrebatadamente a scena. Cahe o panno.) FIM. O PROTOCOLLO COMEDIA EM UM ACTO REPRESENTADA PELA PRIMEIRA VEZ NO ATHENEU DRAMATICO EM NOVEMBRO DE 1862. PERSONAGENS. PERSONAGENS. ACTORES. Pinheiro. Sr. Cardozo. Venancio Alves. » Sr. Pimentel. Eliza. Sra. D. Maria Fernanda. Lulu . . . » D. Jesuina Montani. Actualidade. O PROTOCOLLO. EM CASA DE PINHEIRO. Salla de visitas. Scena I. ELIZA VENANCIO ALVES.[2] ELIZA. Está meditando? VENANCIO. (Como que accordando.) Ah! perdão! ELIZA. Estou affeita á alegria constante de Lulú, e não posso ver ninguém triste. VENANCIO. Excepto a senhora mesma. ELIZA. Eu! VENANCIO. A senhora! ELIZA. Triste, porque, meu Deus ? VENANCIO Eu sei! Se a roza dos campos me fizesse a mesma pergunta, eu responderia que era falta de orvalho e de sol. Quer que lhe diga que é falta de…... de amor ? ELIZA. (Rindo-se.) Não diga isso! VENANCIO. Com certeza, é. ELIZA. Donde concluo? VENANCIO. A senhora tem um sol official e um orvalho legal que não sabem animal-a. Ha nuvens… ELIZA. E' suspeita sem fundamento. VENANCIO. E' realidade. ELIZA Que franqueza a sua ! VENANCIO. Ah! é que o meu coração é virginal, e portanto sincero. ELIZA. Virginal a todos os respeitos ? VENANCIO. Menos, a um. ELIZA. Não serei indiscreta: é feliz. VENANCIO. Esse é o engano. Basta essa excepção para trazer-me em um temporal. Tive até certo tempo o socego e a paz do homem que está fechado no gabinete sem se lhe dar da chuva que açoita as vidraças. ELIZA. Porque não se deixou ficar no gabinete ? VENANCIO. Podia acaso faze-lo? Passou fóra a melodia do amor; o coração é curioso e bateu-me que sahisse, levantei-me, deixei o livro que estava lendo; era Paulo e Virgínia! Abri a porta e nesse momento a fada passava. (Reparando nella.) Era de olhos negros e cabellos castanhos. ELIZA. Que fez ? VENANCIO. Deixei o gabinete, o livro., tudo para seguir a fada do amor! ELIZA. Não reparou se ella ia só ? VENANCIO. (Suspirando.) Não ia só ! ELIZA. (Em tom de censura.) Fez mal. VENANCIO. Talvez. Curioso animal que é o homem! Em criança deixa a casa paterna para acompanhar os batalhões que vão á parada; na mocidade deixa os conchegos e a paz para seguir a fada do amor; na idade madura deixa-se levar pelo deos Momo da politica ou por qualquer outra fábula do tempo. Só na velhice deixa passar tudo sem mover-se, rnas... é porque já não tem pernas! ELIZA. Mas que tencionava fazer se ella não ia só? VENANCIO. Nem sei. ELIZA. Foi loucura. Apanhou chuva ? VENANCIO Ainda estou apanhando. ELIZA, Então é um extravagante. VENANCIO. Sim. Mas um extravagante por amor.... O' poesia ! ELIZA. Máo gosto ! VENANCIO. A Sra. é a menos competente para dizer isso. ELIZA. E' sua opinião? VENANCIO. E' opinião deste espelho… ELIZA. Ora ! VENANCIO. E dos meus olhos tambem. ELIZA. Também dos seus olhos? VENANCIO. Olhe para elles. ELIZA. Estou olhando. VENANCIO. O que vê dentro? ELIZA. Vejo... (Com enfado). Não vejo nada ! VENANCIO. Ah! está convencida ! ELIZA. Presumido! VENANCIO. Eu! Essa agora não é má! ELIZA. Para que seguio quem passava quieta pela rua? Suppunha abranda-la com as suas magoas? VENANCIO. Acompanhei-a, não para abrandal-a, mas para servil-a; viver do rasto de seus pés, das migalhas dos seus olhares; apontar-lhe os regos a saltar, apanhar-lhe o leque quando cahisse.... (Cahe o leque a Eliza. Venancio Alves apressa-se a apanha-lo e entrega-lh'o). Finalmente.... ELIZA. Finalmente... fazer profisssão de presumido! VENANCIO. Acredita deveras que o seja? ELIZA. Parece.. VENANCIO. Pareço, mas não sou. Presumido seria se eu exigisse a attenção exclusiva da fada da noite. Não quero! Basta-me ter coração para amal-a, é a minha maior ventura! ELIZA. A que pode leval-o esse amor? Mais vale suffocar no coração a chamma nascente do que condemnal-o a arder em vão. VENANCIO. Não; é uma fatalidade! Arder e renascer, como a phenix, supplicio eterno, mas amor eterno também. ELIZA. Eia! Ouça uma... amiga. Não dê a esse sentimento tanta importância. Não é a fatalidade da phenix, é a fatalidade... do relógio. Olhe para aquelle. Lá anda correndo e regulando; mas se amanhã não lhe derem corda, elle parará. Não dê corda á paixão, que ella parará por si. VENANCIO. Isso não! ELIZA. Faça isso... por mim! VENANCIO. Pela senhora! Sim.... Não.... ELIZA. Tenha animo! Scena II. VENANCIO ALVES, ELIZA, PINHEIRO. PINHEIRO. (A Venancio.) Como está? VENANCIO. Bom. Conversávamos sobre cousas da moda. Viu os ultimos figurinos? São de apurado gosto. PINHEIRO. Não vi. VENANCIO. Está com um ar triste…… PINHEIRO Triste, não; aborreccido…... E' a minha molestia do domingo. VENANCIO. Ah ! PINHEIRO. Ando a abrir e fechar a boca; é um circulo vicioso. ELIZA. Com licença. VENANCIO. Oh! minha senhora! ELIZA. Eu faço annos hoje; venha jantar comnosco. VENANCIO. Venho. Até logo. Scena III. PINHEIRO, VENANCIO ALVES. VENANCIO. Anda então em um circulo vicioso.? PINHEIRO. E' verdade. Tentei dormir, não pude; tentei ler, não pude. Que tedio, meu amigo! VENANCIO. Admira! PINHEIRO. Porque? VENANCIO. Porque não sendo viuvo nem solteiro…. PINHEIRO. Sou casado.... VENANCIO. E' verdade. PINHEIRO. Que adianto? VENANCIO. E' boa! adianta ser casado. Comprehende nada melhor que o casamento? PINHEIRO. O que pensa da China, Sr. Venancio? VENANCIO Eu? Penso…. PINHEIRO. Já sei, vai repe!ir-me[3] o que tem lido nos livros e visto nas gravuras; não sabe mais nada. VENANCIO. Mas as narrações verídicas.... PINHEIRO. São mingoadas ou exageradas. Vá á China, e verá como as cousas mudam tanto ou quanto de figura. VENANCIO. Para adquirir essa certeza não vou lá. PINHEIRO. E' o que lhe aconselho; não se case! VENANCIO. Que não me case? PINHEIRO. Ou não vá a China, como queira. De fóra, conjecturas, sonhos, castellos no ar, esperanças, commoções... Vem o padre, dá a mão aos noivos, leva-os, chegam ás muralhas..,. Upa! estão na China! Com a altura da queda fica-se atordoado, e os sonhos de fora continuam dentro: é a lua de mel; mas, á porporção que o espirito se restabelece, vai vendo o paiz como elle é; então poucos lhe chamam celeste império, alguns infernal império, muitos purgatorial império ! VENANCIO. Ora, que banalidade! PINHEIRO. Parece-lhe? VENANCIO. E que sophisma! PINHEIRO. Quantos annos tem, Sr. Venancio? VENANCIO. Vinte e quatro. PINHEIRO. , Está com a mania que eu tinha na sua idade. VENANCIO. Qual mania? PINHEIRO. A de querer acommodar todas as casas á logica, e a logica a todas as cousas. Viva, experimente e convencer-se-ha de que nem sempre se póde alcançar isso. VENANCIO. Quer-me parecer que ha nuvens no céo conjugal? PINHEIRO. Ha. Nuvens pezadas. VENANCIO. Já eu as tinha visto com o meu telescopio. PINHEIRO. Ah! se eu não estivesse preso.... VENANCIO. E' exageração de sua parte. Capitule, Sr. Pinheiro, capitule. Com mulheres bonitas é um consolo capitular. Ha de sêr o meu preceito de marido. PINHEIRO. Capitular é vergonha. VENANCIO. Com uma moça encantadora?.... PINHEIRO. Não é uma razão. VENANCIO. Alto lá! Belleza obriga. PINHEIRO. Póde ser verdade, mas eu peço respeitosamente licença para declarar-lhe que estou com o novo principio da não-intervenção nos estados. Nada de intervenções. VENANCIO. A minha intervenção é toda conciliatoria. PINHEIRO. Não duvido, nem duvidava. Não veja no que disse injuria pessoal. Folgo de recebel-o e de contal-o entre os affeiçoados de minha família. VENANCIO. Muito obrigado. Dá-me licença? PINHEIRO. Vai rancoroso ? VENANCIO. Ora qual! Até a hora do jantar. PINDEIRO.[4] Ha de desculpar-me, não janto em casa. Mas considere-se com a mesma liberdade. (Sahe Venancio. Entra Lulú.) Scena IV. PINHEIRO, LULU’. LULU’. Viva primo ! PINHEIRO. Como estás, Lulú? LULU’. Meu Deus, que cara feia! PINHEIRO. Pois é a que trago sempre. LULU'. Não é, não, senhor; a sua cara de costume é uma cara amavel; essa é de afugentar a gente. Deu agora para andar arrufado com sua mulher! PINHEIRO. Máu ! LULU’. Escusa de zangar-se também comigo. O primo é um bom marido; a prima é uma excellente esposa; ambos formam um excellente casal. E' bonito andarem amuados, sem se olharem nem se fallarem ? Até parece namoro ! PINHEIRO. Ah! tu namoras assim ? LULU’. Eu não namóro. PINHEIRO. Com essa idade ? LULU'. Pois então ! Mas escute: estes arrufos vão continuar? PINHEIRO.. Eu sei lá. LULU'. Sabe, sim. Veja se isto é bonito na lua de mel ; ainda não ha cinco mezes que se casaram. PINHEIRO. Não ha, não. Mas a data não vem ao caso. A lua de mel offuscou-se; é alguma nuvem que passa; deixa-la passar. Queres que eu faça como aquelle doudo que, ao ennublar-se o luar, pedia a Jupiter que espevitasse o candieiro.? Jupiter é independente, e me apagaria de lodo o luar, como fez com o doudo. Aguardemos antes que algum vento sopre do norte, ou do sul, e venha dissipar a passageira sombra. LULU’. Pois sim! Ella é o norte, o primo é o sul; faça com que o vento sopre do sul. PINHEIRO. Não, senhora, hade soprar do norte. LULU'. Capricho sem graça ! PINHEIRO. Queres saber de uma cousa, Lulú? Estou pensando que és uma brisasinha do norte encarregada de fazer clarear o céo. LULU'. Oh! nem por graça ! PINHEIRO. Confessa, Lulú! LULU'. Posso ser uma brisa do sul, isso sim! PINHEIRO. Não terás essa gloria. LULU'. Então o primo é caprichoso assim? PINHEIRO. Caprichoso? Ousas tu, posteridade de Eva, fallar de capricho a mim, posteridade de Adão! LULU'. Oh! ... PINHEIRO. Tua prima é uma caprichosa. De seus caprichos nasceram estas differenças entre nós. Mas para caprichosa, caprichoso: contrafiz-me, estudei no codigo femenino meios de pôr os pés á parede, e tornei-me de antes quebrar que torcer. Se ella não der um passo, tambem eu não dou. LULU'. Pois eu estendo a mão direita a um, e a esquerda a outro, e os aproximarei. PINHEIRO. Queres ser o anjo da reconciliação? LULU'. Tal qual. PINHEIRO. Com tanto que eu não passe pelas forças caudinas. LULU'. Heide fazer as cousas airosamente. PINHEIRO. Insistes nisso? Eu podia dizer que era ainda um capricho de mulher. Mas não digo não, chamo antes affeição e dedicação. Scena V. PINHEIRO, LULU', ELIZA. LULU’. (Baixo) Olhe, ahi está ella! PINHEIRO. (Baixo) Deixa-la. ELIZA. Andava a tua procura, Lulú. LULU'. Para que, prima? ELIZA. Para me dares uma pouca de lã. LULU'. Não tenho aqui; vou buscar. PINHEIRO. Lulú! LULU' O que é? PINHEIRO. (Baixo). Dize a tua prima que eu janto fora. LULU’. (Indo a Elisa, baixo). O primo janta fóra. ELIZA. (Baixo). Se é por ter o que fazer podemos esperar. LULU’. (A Pinheiro, baixo). Se é por ter fazer podemos esperar. PINHEIRO. (Baixo.) E' um convite. LULU’. (Alto). E' um convite. ELIZA. (Alto) Ah! Se é um convite pode ir; jantaremos sós. PINHEIRO. (Levantando-se). Consentirá, minha senhora, que lhe faça uma observação: mesmo sem a sua licença, eu podia ir! ELIZA. Ah! é claro! Direito de marido.... Quem lh'o contesta? PINHEIRO. Havia de ser engraçada a contestação! ELIZA. Mesmo muito engraçada! PINHEIRO. Tanto, quanto foi ridicula a licença. LULU'. Primo! PINHEIRO. (A Lulú). Cuida das tuas novellas! Vai encher a cabeça de romantismo, é moda; colhe as idéas, absurdas que encontrares nos livros, e depois faz da casa de teu marido a scena do que houveres aprendido com as leituras: é também moda. (Sahe arrebatadamente). Scena VI. LULU', ELIZA. LULU’. Como está o primo! ELIZA. Máo humor, hade passar! LULU'. Sabe como passava depressa? Pondo fim a estes amúos. ELIZA. Sim, mas cedendo elle. LULU'. Ora, isso é teima! ELIZA. E' dignidade LULU’. Passam dias se[5] fallarem, e, quando se fallam, é assim. ELIZA. Ahl isto é o que menos cuidado me dá. Ao principio fiquei amofinada, e devo dize-lo, chorei. São cousas estas que só se confessam entre mulheres. Mas hoje vou fazer os que as outras fazem: curar pouco das torturas domesticas. Coração á larga, minha filha, ganha-se o céu, e não se perde a terra. LULU'. Isso é zanga! ELIZA. Não é zanga, é philosophia. Ha de chegar o teu dia, deixa estar. Saberás então quanto vale a sciencia do casamento. LULU’. Pois explica, mestra. ELIZA. Não; saberás por ti mesma. Quero, entretanto, instruir-te de uma cousa. Não lhe ouviste fallar no direito? E' engraçada a historia do direito! Todos os poetas concordam em dar ás mulheres o nome de anjos. Os outros homens não se atrevem a negar, mas dizem consigo «Também nós somos anjos! » Nisto ha sempre um espelho ao lado, que lhes faz ver que, para anjos faltam-lhes... azas. Azas! azas! a todo o custo. E arranjam-as ; legitimas ou não, pouco importa. Essas azas os levam a jantar fóra, a dormir fóra, muitas vezes a amar fóra. A essas azas chamam emphaticamente: o nosso direito! LULU'. Mas, prima, as nossas azas? ELIZA. As nossas? Bem se vê que és inexperiente. Estuda, estuda, e has de acha-las. LULU'. Prefiro não usar dellas. ELIZA. Hasde dizer o contrario quando fôr occasião. Meu marido lá bateu ás suas; o direito de jantar fóraI Caprichou em não levar-me a casa de minha madrinha; é ainda o direito. Daqui nasceram os nossos arrufos, arrufos sérios. Uma santa zangar-se-hia, como eu, Para caprichoso, caprichosa! LULU'. Pois sim! mas estas cousas vão dando na vista; já as pessoas que frequentam a nossa casa têm reparado; o Venancio Alves não me deixa socegar com as suas perguntas. ELIZA. Ah! sim! LULU’. Que rapaz aborrecido, prima! ELIZA. Não acho! LULU’. Pois eu acho: aborrecido com as suas affectações! ELIZA. Como aprecias mal! Elle falla com graça e chamal-o affectado!.. LULU'. Que olhos os seus, prima! ELIZA. (Indo ao espelho.) São bonitos? LULU'. São maús. ELIZA, Em que, minha philosopha? LULU’. Em verem o anverso de Venancio Alves, e o reverso do primo. ELIZA.. E's uma tola. LULU'. Só? ELIZA. E uma descomedida. LULU'. E' porque os amo a ambos. E depois.... ELIZA. Depois, o que? LULU'. Vejo no Venancio Alves um arzinho de pretendente. ELIZA. A' tua mao[6] direita? LULU'. A' tua mão esquerda. ELIZA. Oh! LULU'. E' cousa que se advinha…. (ouve-se um carro.) Ahi está o homem. ELIZA. Vai recebel-o. (Lulú vai até á porta. Eliza chega-se a um espelho e compõe o toucado.) Scena VII. ELISA, LULU', VENANCIO. LULU'. O Sr. Venancio Alves chega a proposito; fallavamos na sua pessoa. VENANCIO. Em que occupava eu a attenção de tão gentis senhoras? LULU'. Faziamos o inventario das suas qualidades. VENANCIO. Exageravam-me o cabedal, já sei. LULU’. A prima dizia: «Que moço amável é o Sr. Venancio Alves! » VENANCIO. Ah! e a senhora? LULU’. Eu dizia: « Que moço amabillissimo é o Sr. Venancio Alves! » VENANCIO. Dava-me o superlativo. Não me cahe no chão esta attenção grammatical. LULU’. Eu sou assim: estimo ou aborreço no superlativo. Não é prima? ELIZA . (Contrariada) Eu sei lá! VENANCIO. Com deve ser triste cahir-lhe no desagrado! LULU'. Vou avisando, é o superlativo! VENANCIO. Dou-me por feliz. Crêio que lhe cahi em graça.... LULU’. Cahio! Cahio! Cahio! ELIZA. Lulú, vai buscar a lã. LULU'. Vou prima, vou. (Sahe correndo). Scena VIII. VENANCIO, ELIZA. VENANCIO. Vôa qual uma andorinha esta moça! ELIZA. E' proprio da idade. VENANCIO. Vou sangrar-me. ELIZA. Ein? VENANCIO. Sangrar-me em saude contra uma suspeita sua. ELIZA. Suspeita? VENANCIO. Suspeita de haver-me adiantado o meu relógio. ELIZA. (Rindo.) Posso crê-lo. VENANCIO. Estará em erro. Olhe, são duas horas; confronte con o seu: duas horas. ELIZA. Pensa que acreditei seriamente? VENANCIO. Vim mais cedo, e de passagem. Quiz anticipar-me aos outros no cumprimento de um dever. Os antigos, em prova de respeito, depunham aos pés dos deuses grinaldas e festões; o nosso tempo, infinitamente prosaico, só nos permitte offerendas prosaicas; neste album ponho eu o testemunho do meu jubilo pelo dia de hoje. ELIZA. Obrigada. Creio no sentimento que o inspira e admiro o gosto da escolha. VENANCIO. Não é a mim que deve tecer o elogio. ELIZA. Foi gosto de quem vendeu? VENANCIO. Não, minha senhora, eu proprio o escolhi; mas a escolha foi das mais involuntarias; tinha a sua imagem na cabeça, e não podia deixar de acertar. ELIZA. E' uma fineza de quebra. (Folhea o álbum). VENANCIO. E' por isso que me vibra um golpe? ELIZA. Um golpe? VENANCIO. E' tão casta que não hade calcular comigo; mas as suas palavras são proferidas com uma indifferença que eu direi instintiva. ELIZA. Não creia.... VENANCIO. Que não creia na indifferença? ELZIA. Não.... Não creia no calculo..... VENANCIO. Já disse que não. Em que devo crêr seriamente ? ELIZA. Não sei.... VENANCIO. Em nada, não lhe parece? ELIZA. Não reza a historia de que os antigos, ao depositarem as suas offerendas, apostrophassem os deuses. VENANCIO. E' verdade: este uso é do nosso tempo. ELIZA. Do nosso prosaico tempo. VENANCIO. A senhora ri? Riamos todos! Também eu rio, e da melhor vontade. ELIZA. Póde rir sem temor. Acha que sou deusa? Mas os deuses já se foram. Estatua, isto sim. VENANCIO. Será estatua. Não me inculpe, nesse caso, a admiração. ELIZA. Não inculpo, aconselho. VENANCIO. (Repoltreando-se) Foi excellente esta idéa do divan. E' um consolo para quem está cançado, e quando á commodidade junta o bom gosto, como este, então é ouro sobre azul. Não acha engenhoso, D. Elisa[7]? ELIZA. Acho. VENANCIO. Devia ser inscripto entre os benemeritos da humanidade o autor disto. Com trastes assim, e dentro de uma casinha de campo, prometto ser o mais sincero anachôreta que jámais fugio ás tentações do mundo. Onde comprou este? ELIZA. Em casa de Costrejean. VENANCIO. Comprou uma preciosidade. ELIZA. Com outra que está agora por cima, e que eu não comprei, fazem duas, duas preciosidades. VENANCIO. Disse muito bem! E' tal o conchego que até se podem esquecer as horas…. E' verdade, que horas são? Duas o meia. A senhora dá-me licença? ELIZA. Já se vai? VENANCIO. Até a hora do jantar. ELIZA. Olhe, não me queira mal. VENANCIO. Eu, mal! E porque? ELIZA. Não me obrigue a explicações inuteis. VENANCIO. Não obrigo, não. Comprehendo de sobejo a sua intenção. Mas. francamente, se a flôr está alta para ser colhida, é crime aspirar-lhe de longe o aroma e adoral-a ? ELIZA. Crime não é. VENANCIO. São duas e meia. Até á hora do jantar. Scena IX. VENANCIO, ELIZA, LULU’. LULU’. Sahe com a minha chegada ? VENANCIO lá sahir. LULU'. Até quando? VENANCIO. Até á hora do jantar. LULU’. Ah! janta comnosco? ELIZA. Sabes que faço annos, e esse dia é o dos amigos. LULU’. E' justo, é justo ! VENANCIO. Até logo. Scena X. LULU’, ELIZA. LULU'. Oh! teve presente! ELIZA. Não achas de gosto ? LULU'. Não tanto. ELIZA. E' prevenção. Suspeitas que é do Venancio Alves? LULU'. Atinei logo. ELIZA. Que tens contra esse moço ? LULU’. Já t'o disse. ELIZA. E máu deixar-se ir pelas antipathias. LULU’. Antipathias não tenho. ELIZA. Alguém sobe. LULU’. Hade ser o primo. ELIZA. Elle! (Sahe.) Scena XI. PINHEIRO, LULU’. LULU’. Viva ! está mais calmo? PINHEIRO. Calmo sempre, menos nas occasiões em que és… indiscreta. LULU’. Indiscreta! PINHEIRO. Indiscreta, sim senhora! Para que veio aquella exlamação[8] quando eu fallava com Eliza ? LULU'. Foi porque o primo fallou de um modo... PINHEIRO. De um modo, que é o meu modo, que é modo de todos os maridos contrariados. LULU'. De um modo que não é o seu, primo. Para que fazer-se máo quando é bom? Pensa que não se percebe quanto lhe custa contrafazer-se? PINHEIRO. Vás dizer que sou um anjo! LULU’. O primo é um excellente homem, isso sim. Olhe, sou importuna, e heide se Io até vê-los desamuados. PINHEIRO. Ora, prima, para irmã da caridade, és muito criança. Dispenso os teus conselhos e os teus serviços. LULU'. E' um ingrato. PINHEIRO. Serei. LULU'. Homem sem coração. PINHEIRO. Quanto a isso, é questão de facto; põe aqui a tua mão, não sentes bater ? E' o coração. LULU’. Eu sinto um charuto. PINHEIRO. Um charuto ? Pois é isso mesmo. Coração e charuto são simbolos um do outro; ambos se queimam e se desfazem em cinzas. Olha, este charuto, sei eu que o tenho para fumar; mas o coração, esse creio que já está todo no cinzeiro. LULU’. Sempre a brincar! PINHEIRO. Achas que devo chorar ? LULU’. Não, mas.... PINHEIRO. Mas o que ? LULU’. Não digo, é uma cousa muito feia. PINHEIRO. Cousas feias na tua boca, Lulú ! LULU'. Muito feia. PINHEIRO, Não hade ser, dize. LULU’. Demais, possa parecer indiscreta. PINHEIRO. Ora, qual. E' alguma cousa de meu interesse? LULU’. Se é! PINHEIRO. Pois, então, não és indiscreta! LULU’. Então, quantas caras tem a indiscrição? PINHEIRO. Duas. LULU’. Boa moral ! PINHEIRO. Moral á parte. Falla o que é ? LULU'. Que curioso ! E' uma simples observação; não lhe parece que é máu desamparar a ovelha, havendo tantos lobos, primo? PINHEIRO. Onde aprendeste isso ? LULU'. Nos livros que me dão para ler. PINHEIRO. Estás adiantada ! E já que sabes tanto, fallarei como se fallasse a um livro. Primeiramente, eu não desamparo; depois, não vejo lobos. LULU'. Desampara, sim! PINHEIRO. Não estou em casa ? LULU'. Desampara o coração. PINHEIRO. Mas os lobos?.... LULU’. Os lobos vestem-se de cordeiros, e apertam a mão ao pastor, conversam com ellè, sem que deixem de olhar furtivamente para a ovelha mal guardada. PINHEIRO. Não ha nenhum. LULU'. São assíduos ; visitas sobre visitas; muita zumbaía, muita attenção, mas lá por dentro a ruminarem cousas más. PINHEIRO. Ora, Lulú, deixa-te de tolices. LULU' Não digo mais nada. Onde foi Venancio Alves? PINHEIRO. Não sei. Alli está um que não hade ser acusado de lobo. LULU'. Os lobos vestem-se de cordeiros. PINHEIRO. O que é que dizes? LULU’. Eu não digo n? da. Vou tocar piano. Quer ouvir um nocturno ou prefere uma polká ? PINHEIRO. Lulú, ordeno-lhe que falle! LULU'. Para que? para ser indiscreta? PINHEIRO. Venancio Alves?.... LULU' E' um tolo, nada mais. (Sahe. Pinheiro fica pensalivo. Vai á meza evê o álbum.) Scena XII. PINHEIRO, ELIZA. PINHEIRO. Ha de desculpar-me, mas, creio não ser indiscreto, desejando saber com que sentimento recebeu este album. ELIZA. Com o sentimento com que se recebem albuns. PINHEIRO. A resposta em nada me exclarece. ELIZA. Ha então sentimentos para receber álbuns, e ha um com que eu devera receber este? PINHEIRO. Devia saber que ha. ELIZA. Pois ... recebi com esse. PINHEIRO. A minha pergunta poderá parecer indiscreta, mas….. ELIZA. Oh! indiscreta não! PINHEIRO. Deixe minha senhora esse tom sarcástico, e veja bem que eu fallo serio. ELIZA. Vejo isso. Quanto á pergunta, está exercendo um direito. PINHEIRO. Não lhe parece que seja um direito este de investigar as intenções dos pássaros que penetram em minha seara, para saber se são damninhos? ELIZA. Sem duvida. Ao lado desse direito, está o nosso dever, dever das searas, de prestar-se a todas as suspeitas. PINHEIRO. E' inútil a argumentação por esse lado: os pássaros cantam e as cantigas deleitam. ELIZA. Está fallando serio? PINHEIRO. Muito serio. ELIZA. Então consinta que faça constraste: eu rio-me. PINHEIRO. Não me tome por um máo sonhador de perfidias; perguntei porque estou seguro de que não são muito santas os intenções[9] que trazem á minha casa Venancio Alves. ELIZA. Pois eu nem suspeito….. PINHEIRO Vê o céo nublado e as aguas turvas: pensa que é azada occasião para pescar. ELIZA. Está feito, é de pescador atilado! PINHEIRO. Pode ser um merito a seus olhos, minha senhora; aos meus é um vicio, de que o pretendo curar, arrancando-lhe as orelhas. ELIZA. Jesus! está com intenções trágicas! PINHEIRO. Zombe ou não hade ser assim. ELIZA. Mutilado elle, que pretende fazer da mesquinha Desdemona ? PINHEIRO. Conduzil-a de novo ao lar paterno. ELIZA. Mas afinal de contas, meu marido, obriga-me á fallar-me tambem seriamente. PINHEIRO. Que tem a diser ? ELIZA. Fui tirada ha mezes da casa de meu pai para ser sua mulher; agora, por um pretexto frivolo, leva-me de novo ao lar paterno. Parece-lhe que eu seja uma casaca que se pode tirar por estar fora da moda? PINHEIRO. Não estou para rir, mas digo-lhe que antes fosse uma casaca. ELIZA. Muito obrigada! PINHEIRO. Qual foi a casaca que já me deu cuidados? Por ventura quando saio com a minha casaca não vou descançado a respeito delia ? Não sei eu perfeitamente que ella não olha complacente para as costas alheias, e fica descançada nas minhas. ELIZA. Pois tome-me por uma casaca.Vê em mim algum salpicos ? PINHEIRO. Não, não vejo. Mas vejo a rua cheia de lama e um carro que vai passando; e nestes casos, como não gosto de andar mal aceado, entro em um corredor, com a minha casaca, á espera de que a rua fique desimpedida ELIZA. Bem. Vejo que quer a nossa separação temporaria... até que passe o carro. Durante esse tempo como pretende andar? Em mangas de camiza. PINHEIRO. Durante esse tempo não andarei, ficarei em casa. ELIZA. Oh! suspeita por suspeita! Eu não creio nessa reclusão voluntária. PINHEIRO. Não crê? E porque? ELIZA. Não creio, por mil rasões. PINHEIRO. Dê-me uma, e fique com as nove centos e noventa e nove. ELIZA. Posso dar-lhe mais de uma e até todas. A primeira é a simples difficuldade de conter-se entre as quatro paredes desta casa. PINHEIRO. Verá se posso. ELIZA. A segunda é que não deixará de aproveitar o isolamento para ir ao alfaiate provar outras cazacas.[10] PINHEIRO. Oh! ELIZA. Para ir ao alfaiate é preciso sair; quero crer que não fará vir o alfaiate á caza. PINHEIRO. Conjecturas suas. Reflicta, que não está dizendo cousas assizadas. Conhece o amor que lha tive e lhe tenho, e sabe de que sou capaz. Mas, voltemos ao ponto de partil-a. Eeste livro póde nada significar e significar muito. (Folhêa.) Que responde ? ELIZA. Nada. PINHEIRO. Oh! que é isto? E' a letra delle. ELIZA. Não tinha visto. PINHEIRO. E' talvez uma confidencia. Posso ler? ELIZA. Porque não ? PINHEIRO. (Lendo.) Se me privas dos teus aromas, ó roza que foste abrir sobre um rochedo, não pódes fazer com que eu te não ame, comtemple e abençoe ! » Como acha isto? ELIZA. Não sei. PINHEIRO. Não tinha lido? ELIZA. (Sentando-se.) Não. PINHEIRO. Sabe quem é esta roza? ELIZA. Cuida que serei eu? PINHEIRO. Parece. O rochedo sou eu. Onde vai elle desencavar estas figuras ELIZA. Foi talvez escripto sem intenção… PINHEIRO. Ai! foi... Ora diga, é bonito isto ? Escreveria elle se não houvesse esperanças? ELIZA. Basta. Tenho ouvido. Não quero continuar a ser alvo de suspeitas. Esta phrase é intencional; elle via as aguas turvas... De quem a culpa? Delle ou sua? Se as não houvesse agitado, ellas estariam placidas e transparentes como d'antes. PINHEIRO. A culpa é minha ? ELIZA. Dirá que não é. Paciencia. Juro-lhe que não sou cumplice nas intenções deste presente. PINHEIRO. Jura? ELIZA. Juro. PINHEIRO. Acredito. Dente por dente, Eliza, como na pena do Talião. Aqui tens a minha mão em prova de que esqueço tudo. ELIZA. Tambem eu tenho a esquecer e esqueço. Scena XIII. ELIZA, PINHEIRO, LULU' LULU'. Bravo! voltou o bom tempo? PINHEIRO. Voltou. LULU’. Graças a Deus! De que lado soprou o vento? PINHEIRO. De ambos os lados. LULU'. Ora bem! ELIZA. Pára um carro. LULU'. (Vai á janella.) Vou ver. PINHEIRO. Hade ser elle. LULU'. (Vai á porta.) Entre, entre. Scena XIV. LULU' VENANCIO, ELIZA, PINHEIRO. PINHEIRO. (Baixo a Eliza.) Poupo-lhe as orelhas, mas heide tirar desforra... VENANCIO. Não faltei.... Oh ! não foi jantar fóra? PINHEIRO. Não. A Eliza pediu-me que ficasse.... VENANCIO. (Com uma carreta.) Muito estimo. PINHEIRO. Estima? Pois não é verdade? VENANCIO. Verdade o que? PINHEIRO. Que tentasse perpetuar as hostilidades entre a potencia marido e a potencia mulher ? VENANCIO. Não percebo… PINHEIRO. Ouvi fallar de uma conferencia e de umas notas.... uma intervenção da sua parte na dissidencia de dous estados unidos pela natureza e pela lei; gabaram-me os seus meios diplomaticos, as suas conferencias repetidas, e até veiu parar ás minhas mãos este protocollo, tornado agora inutil, e que eu tenho a honra de depositar em suas mãos. VENANCIO. Isto não é um protocollo.... é um album…. não tive intenção.... PINHEIRO. Tivesse ou não, archive o volume, depois de escrever nelle—que a potencia Venancio Alves não entra na santa-alliança. VENANCIO. Não entra?... mas... creia.... A senhora... me-fará justiça. ELIZA. Eu? Eu entrego-lhe as credenciàes. LULU’. Aceite, olhe que deve aceitar. VENANCIO. Minhas senhoras, Sr. Pinheiro. (Sahe.) TODOS. Ah ! Ah ! Ah! LULU'. O jantar está na mesa, Vamos celebrar o tratado de paz. FIM. OBSERVAÇÃO. Alguns erros typographicos escaparam neste volume. Apenas mencionamos os mais graves. Na pagina 5 falta a ultima linha que são as seguintes palavras de Venancio: — A minha honra? Na pagina 6, linha 31, em vez —andar-lhes á roda tapetes— lêa se —andar-lhes á roda nos tapetes. Na pagina 13, ultima linha, em vez de —Ridiculo que pareça, i.— lêa-se. —Ridiculo que pareça, sinto-me. no PDF está escrito exatamente "umo", não corrigi No PDF não aparece nenhum conectivo ou vírgula, mas são dois personagens: Eliza e Venancio No PDF realmente há uma exclamação no lugar da letra "t" na palavra "repertir-me". No PDF está escrito dessa mesma forma, "Pindeiro" ao invés de "Pinheiro". No PDF está escrito "se", mas o contexto indica que é "sem". No PDF não possui acentuação. No PDF Eliza está grafado com "s" Falta a letra "c" na palavra "exclamação" No PDF está escrito "os inteções" ao invés de "as intenções". Dessa vez, casaca está grafada com "z".