MACHADO DE ASSIS TU SÓ, TU, PURO AMOR… COMEDIA Rio de Janeiro M DCCC LXXXI TU SÓ, TU, PURO AMOR… COMEDIA Representada no Imperial Theatro de D. Pedro II, no dia 10 de Junho de 1880 Edição de cem exemplares. Numerados nº 22 [Machado de Assis][1] Tu só, tu, puro amor, com força crúa, Que os corações humanos tanto obriga... Camões, Luz. III, 119. ADVERTENCIA A composição que ora se reimprime foi escripta para as festas organisadas, nesta capital, pelo Gabinete Portuguez de Leitura, no tricentenario de Camões, e representada no theatro de D. Pedro II. O desfecho dos amores palacianos de Camões e de D. Catharina de Athayde é o objecto da comedia, desfecho que deu logar á subsequente aventura de Africa, e mais tarde á partida para a India, d'onde o poeta devia regressar um dia com a immortalidade nas mãos. Não pretendi fazer um quadro da côrte de D. João III, nem sei se permittiam as proporções minimas do escripto e a urgencia da occasião. Busquei, sim, haver-me de maneira que o poeta fosse contemporaneo de seus amores, não lhe dando feições epicas, e, por assim dizer, posthumas. Na Revista Brazileira, onde esta peçazinha primeiro viu a luz, escrevi uma nota, que reproduzo, accrescentando-lhe alguma cousa explicativa. Como na scena primeira se trata da anecdota que motivou o epigramma de Camões ao duque de Aveiro, disse eu alli que, posto se lhe não possa fixar data, usára della por me parecer um curioso rasgo de costumes. E adduzi: « Engana-se, creio eu, o Sr. Theophilo Braga, quando affirma que ella só podia ter occorrido depois do regresso de Camões a Lisboa, allegando, para fundamentar essa opinião, que o titulo de duque de Aveiro foi creado em I557. Digo que se engana o distincto escriptor, porque eu encontro o duque de Aveiro, cinco annos antes, em 1552, indo receber, na qualidade de embaixador, a princesa D. Joanna, noiva do principe D. João (Veja Mem. E Doc. annexos aos Annaes de D. João III, pags. 440 e 441); e, se Camões só em 1553 partiu para a India, não é impossivel que o epigramma e o caso que lhe deu origem fossem anteriores. » Temos ambos razão, o Sr. Theophilo Braga e eu. Com effeito, o ducado de Aveiro só foi creado formalmente em I557, mas o agraciado usava o titulo desde muito antes, por mercê de D. João III; é o que confirma a propria carta regia de 30 de Agosto d’aquelle anno, textualmente inserta na Hist. Geneal. de D. Antonio Caetano de Souza, que cita em abono da assersão o testemunho de Andrade, na Chronica D’el-Rei D. João III. N’aquella mesma obra se lê (liv. IV, cap. V) que em 1551, na trasladação dos ossos d'el-rei D.Manoel estivera prezente o duque de Aveiro. Não é pois impossivel que a anecdota occorresse antes da primeira ausencia de Camões. Machado de Assis. PERSONAGENS. Camões Sr. Furtado coelho D. Antonio de Lima Sr. Simões Caminha Sr. Ferreira D. Manoel de Portugal Sr. Torres D. Catharina de Athayde D. Lucinda F. Coelho D. Francisca de Aragão D. Faustina Lisboa. — MDXLV TU SÓ, TU, PURO AMOR… SCENA PRIMEIRA. CAMINHA, D. MANOEL DE PORTUGAL. (Caminha vem do fundo, á esquerda; vae a entrar pela porta da direita, quando lhe sae D. Manoel de Portugal, a rir.) CAMINHA. Alegre vindes, senhor D. Manoel de Portugal. Disse-vos El- rei alguma cousa graciosa, de certo… D. MANOEL. Não; não foi El-rei. Adivinhae o que seria, se é que o não sabeis já. CAMINHA. Que foi? D. MANOEL. Sabeis o caso da gallinha do duque de Aveiro? CAMINHA. Não. D. MANOEL. Não sabeis? — Pois é isto: uns versos mui galantes do nosso Camões. (Caminha estremece e faz um gesto de má vontade.) Uns versos como elle os sabe fazer. (A’ parte.) Dóe-lhe a noticia. (Alto.) Mas, devéras não sabeis dó encontro de Camões com o duque de Aveiro? CAMINHA. Não. D. MANOEL. Foi o proprio duque que m’o contou agora mesmo, ao vir de estar com El-rei… CAMINHA. Que houve então? D. MANOEL. Eu vol-o digo; achavam-se hontem, na egreja do Amparo, o duque e o poeta… CAMINHA, com enfado. O poeta! o poeta! Não é mais que engenhar ahi uns pêccos versos, para ser logo poeta! Desperdiçaes o vosso enthusiasmo, senhor D. Manoel. Poeta é o nosso Sá, o meu grande Sá! Mas, esse arruador, esse brigão de horas mortas… D. MANOEL. Parece-vos então...? CAMINHA. Que esse moço tem algum engenho, muito menos do que lhe diz a presumpção delle e a cegueira dos amigos; algum engenho não lhe nego eu. Faz sonetos soffriveis. E canções… Digo-vos que li uma ou duas, não de todo mal alinhavadas. Pois então? Com bôa vontade, mais esforço, menos soberba, gastando as noites, não a folgar pelas locandas de Lisboa, mas a meditar os poetas italianos, digo-vos que póde vir a ser… D. MANOEL. Acabae. CAMINHA. Está acabado: um poeta soffrivel. D. MANOEL. Deveras? Lembra-me que já isso mesmo lhe negastes. CAMINHA, sorrindo. No meu epigramma, não? E nego-lh’o ainda agora, se não fizer o que vos digo. Pareceu-vos gracioso o epigramma? Fil-o por desenfado, não por odio... Dizei, que tal vos pareceu elle? D. MANOEL. Injusto, mas gracioso. CAMINHA. Sim? Tenho em mui boa conta o vosso parecer. Algum tempo suppuz que me desdenhaveis. Não era impossivel que assim fosse. Intrigas da côrte dão azo a muita injustiça; mas principalmente acreditei que fossem artes desse rixôso… Juro-vos que elle me tem odio. D. MANOEL. O Camões? CAMINHA. Tem, tem… D. MANOEL. Porque? CAMINHA. Não sei, mas tem. Adeus. D. MANOEL. Ides-vos? CAMINHA. Vou a El-rei, e depois ao meu senhor infante. (Corteja-o e dirige-se para a porta da direita. D. Manoel dirige-se para o fundo.) D. MANOEL, andando. Eu já vi a taverneiro Vender vaca por carneiro… CAMINHA, volta-se. Recitaes versos?... São vossos?... Não me negueis o gosto de os ouvir. D. MANOEL. Meus não; são de Camões... (Repete, descendo a scena.) Eu já vi a taverneiro Vender vaca por carneiro… CAMINHA, sarcastico De Camões? … Galantes são. Nem Virgilio os daria melhores. Ora, fazei o favor de repetir comigo: Eu já vi a taverneiro Vender vaca por carneiro… E depois? Vá, dizei-me o resto, que não quero perder iguaria de tão fino sabor. D. MANOEL. O duque de Aveiro e o poeta encontraram- se hontem na egreja do Amparo. O duque prometteu ao poeta mandar-lhe uma gallinha de sua mesa, mas só lhe mandou um assado. Camões retorquiu-lhe com estes versos, que o proprio duque me mostrou agora, a rir: Eu já vi a taverneiro, Vender vaca por carneiro; Mas não vi, por vida minha, Vender vaca por gallinha, Senão ao duque de Aveiro. Confessae, confessae senhor Caminha, vós que sois poeta, confessae que ha, ahi certo pico, e uma simpleza de dizer... Não vale tanto de certo como os sonetos delle, alguns dos quaes são sublimes, aquelle por exemplo: De amor escrevo, de amor trato e vivo… ou este: Tanto de meu estado me acho incerto... Sabeis a continuação ? CAMINHA. Até lhe sei o fim: Se me pergunta alguem porque assim ando Respondo que não sei, porém suspeito Que só porque vos vi, minha senhora. (Fitando-lhe muito os olhos.) Esta senhora… Sabeis vós, de certo, quem é esta senhora do poeta, como eu o sei, como o sabem todos... Naturalmente amam-se ainda muito? D. MANOEL, á parte. Que quererá elle? CAMINHA. Amam-se por força. D. MANOEL. Cuido que não. CAMINHA. Que não? D. MANOEL. Acabou, como tudo acaba. CAMINHA, sorrindo. Andae lá; não sei se me dizeis tudo. Amigos sois, e não é impossivel que tambem vós… Onde está a nossa gentil senhora D. Francisca de Aragão? D. MANOEL. Que tem? CAMINHA. Vêde: um simples nome vos faz estremecer. Mas socegae, que não sou vosso inimigo; mui ao contrario, amo-vos, e a ella tambem... e respeito-a muito. Um para o outro nascestes. Mas, adeus, faz-se tarde, vou ter com El-rei. (Sae pela direita.) SCENA II. D. MANOEL DE PORTUGAL. Este homem! Este homem!... Como se os versos delle, duros e ensôssos... (Vae á porta por onde Caminha saiu e levanta o reposteiro.) Lá vae elle; vae cabisbaixo; rumina talvez alguma cousa. Que não sejam versos! (Ao fundo apparecem D. Antonio de Lima e D. Catharina de Athayde.) SCENA III. D. MANOEL DE PORTUGAL, D. CATHARINA DE ATHAYDE, D. ANTONIO DE LIMA. D. ANTONIO DE LIMA. Que espreitaes ahi, senhor D. Manoel? D. MANOEL. Estava a ver o porte elegante do nosso Caminha. Não vades suppor que era alguma dama. (Levanta o reposteiro.) Olhae, lá vae elle a desapparecer. Vae a El-rei. D. ANTONIO. Tambem eu. Tu, não, minha bôa Catharina. A rainha espera-te. (D. Catharina faz uma reverencia e caminha para a porta da esquerda.) Vae, vae, minha gentil flor... (A D. Manoel.) Gentil, não a achaes? D. MANOEL. Gentilissima. D. ANTONIO. Agradece, Catharina. D. CATHARINA. Agradeço; mas o certo é que o senhor D. Manoel é rico de louvores... D. MANOEL. Eu podia dizer que a natureza é que foi comvosco pródiga de graças; mas, não digo; seria repetir mal aquillo que só poetas podem dizer bem. (D. Antonio fecha o rosto.) Dizem que tambem sou poeta, é verdade; não sei; faço versos. Adeus, senhor D. Antonio... (Corteja-os e sae. D. Catharina vae a entrar, á esquerda, D. Antonio detem-n’a.) SCENA IV. D. ANTONIO DE LIMA, D. CATHARINA DE ATHAYDE. D. ANTONIO. Ouviste aquillo? D. CATHARINA, parando. Aquillo? D. ANTONIO. « Que só poetas podem dizer bem » foram as palavras delle. (D. Catharina aproxima-se) Vês tu, filha? tão divulgadas andam já essas cousas, que até se dizem nas barbas de teu pae! D. CATHARINA. Senhor, um gracejo… D. ANTONIO, enfadando-se. Um gracejo injurioso, que eu não consinto, que não quero, que me dóe... Que só poetas podem dizer bem! E que é poeta! Pergunta ao nosso Caminha o que é esse atrevido, o que vale a sua poesia... Mas, que seja outra e melhor, não a quero para mim, nem para ti. Não te criei para entregar-te ás mãos do primeiro que passa, e lhe dá na cabeça haver-te. D. CATHARINA, procurando moderal-o. Meu pae… D. ANTONIO. Teu pae, e teu senhor! D. CATHARINA. Meu senhor e pae… juro-vos que... juro-vos que vos quero e muito... Por quem sois, não vos irriteis contra mim! D. ANTONIO. Jura que me obedecerás. D. CATHARINA. Não é essa a minha obrigação? D. ANTONIO, Obrigação é, e a mais grave de todas. Olha-me bem, filha; eu amo-te como pae que sou. Agora, anda, vae. SCENA V. D. ANTONIO DE LIMA, D. CATHARINA DE ATHAYDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO. D. ANTONIO. Mas não, não vás sem falar á senhora D. Francisca de Aragão, que ahi nos apparece, fresca como a rosa que desabotoou agora mesmo, ou, como dizia a farça do nosso Gil Vicente, que eu ouvi ha tantos annos, por tempo do nosso serenissimo senhor D. Manoel... Velho estou, minha formosa dama… D. FRANCISCA. E que dizia a farça? D. ANTONIO. A farça dizia: E’ bonita como estrella, Uma rosinha de Abril, Uma frescura de Maio, Tão manhosa, tão subtil! Vede que a farça adivinhava já a nossa D. Francisca de Aragão, uma frescura de Maio, tão manhosa, tão subtil… D. FRANCISCA. Manhosa, eu? D. ANTÔNIO. E subtil. Não vos esqueça a rima, que é de lei. (Vae a sair pela porta da direita; apparece Camões.) SCENA VI. OS MESMOS, CAMÕES. D. CATHARINA, á parte. Elle! D. FRANCISCA, baixo a D. Catharina. Socegae! D. ANTONIO. Vinde cá, senhor poeta das gallinhas. Já me chegou aos ouvidos o vosso lindo epigramma. Lindo, sim; e estou que não vos custaria mais tempo a fazel-o do que eu a dizer-vos que me divertiu muito... E o duque? O duque, ainda não emendou a mão? Ha de emendar, que não é nenhum mesquinho. CAMÕES, alegremente. Pois El-rei deseja o contrario… D. ANTONIO. Ah! Sua Alteza falou-vos d’isso?... Contar-m’o-heis em tempo. (A D. Catharina, com intenção.) Minha filha e senhora, não ides ter com a rainha? eu vou falar a El-rei. (D. Catharina corteja-os e dirige-se para a esquerda; D. Antonio sae pela direita.) SCENA VII. OS MESMOS, menos D. ANTONIO DE LIMA (D. Catharina quer sair, D. Francisca de Aragão detem-n’a.) D. FRANC1SCA. Ficae, ficae... D. CATHARINA. Deixae-me ir! CAMÕES. Fugis de mim? D. CATHARINA. Fujo... Assim o querem todos. CAMÕES. Todos! Todos quem? D. FRANCISCA, indo a Camões. Socegae. Tendes, na verdade, um genio, uns espiritos... Que ha de ser? Corre a mais e mais a noticia dos vossos amores… e o senhor D. Antonio, que é pae, e pae severo... CAMÕES, vivamente a D. Catharina. Ameaça-vos? D. CATHARINA. Não; dá-me conselhos... bons conselhos, meu Luiz. Não vos quer mal, não quer... Vamos lá; eu é que sou desatinada. Mas passou. Dizei-nos lá esses versos de que falaveis ha pouco. Um epigramma, não é? Ha de ser tão bonito como os outros... menos um. CAMÕES. Um? D. CATHARINA. Sim, o que fizestes a D. Guiomar de Blasfé. CAMÕES, com desdem. Que monta? Bem frouxos versos. D. FRANCISCA. Não tanto; mas eram feitos a D. Guiomar, e os peiores versos d'este mundo são os que se fazem a outras damas. (A D. Catharina.) Acertei? (A Camões.) Ora, andae, vou deixar-vos; dizei o caso do vosso epigramma, não a mim, que já o sei de cór, porém a ella que ainda não sabe nada… E que foi que vos disse El-rei? CAMÕES. El-rei viu-me, e dignou-se chamar-me; fitou-me um pouco a sua real vista, e disse com brandura: — « Tomara eu, senhor poeta, que todos os duques vos faltem com gallinhas, por que assim nos alegrareis com versos tão chistosos.» D. FRANCISCA. Disse-vos isto? é um grande espirito El-rei! D. CATHARINA, a D. Francisca. Não é? (A Camões.) E vós que lhe dissestes? CAMÕES. Eu? nada... ou quasi nada. Era tão inopinado o louvor que me tomou a fala. E, comtudo, se eu pudesse responder agora… agora que recobrei os espiritos... dir-lhe-hia que ha aqui (leva a mão á fronte) alguma cousa mais do que simples versos de desenfado... dir-lhe-hia que... (Fica absorto um instante, depois olha alternadamente para as duas damas, entre as quaes se acha.) Um sonho... A’s vezes cuido conter cá dentro mais do que a minha vida e o meu seculo... Sonhos... sonhos! A realidade é' que vós sois as duas mais lindas damas da christandade, e que o amor é a alma do universo! D. FRANCISCA. O amor e a espada, senhor brigão! CAMÕES, alegremente. Porque me não dáes logo as alcunhas que me hão de ter posto os poltrões do Rocio? Vingam-se com isso, que é a desforra da poltroneria... Não sabeis? Naturalmente não; vós gastaes as horas nos lavores e recreios do paço; mora aqui a doce paz do espirito. D. CATHARINA, com intenção. Nem sempre. D. FRANCISCA. Isto é comvosco; e eu, que posso ser indiscreta, não me detenho a ouvir mais nada. (Dá alguns passos para o fundo.) D. CATHARINA. Vinde cá… D. FRANCISCA. Vou-me... vou a consolar o nosso Caminha, que ha de estar um pouco enfadado… Ouviu elle o que El-rei vos disse? CAMÕES. Ouviu; que tem? D. FRANCISCA. Não ouviria de boa sombra. CAMÕES. Póde ser que não... dizem-me que não. (A D. Catharina.) Pareceis inquieta... D. CATHARINA, a D. Francisca. Não, não vades; ficae um instante. CAMÕES, a D. Francisca Irei eu. D. FRANCISCA. Não, senhor; irei eu só. (Sáe pelo fundo.) SCENA VIII. CAMÕES, D. CATHARINA DE ATHAYDE. CAMÕES, com uma reverencia. Irei eu. Adeus, minha senhora D. Catharina de Athayde! (D. Catharina dá um passo para elle.) Mantenha-vos Deus na sua santa guarda. D. CATHARINA. Não… vinde cá… (Camões detem-se.) Enfadei-vos? Vinde um pouco mais perto. (Camões aproxima-se.) Que vos fiz eu? Duvidaes de mim? CAMÕES. Cuido que me quereis ausente. D. CATHARINA. Luiz! (Inquieta.) Vede esta sala, estas paredes... falarmos a sós... Duvidaes de mim? CAMÕES. Não duvido de vós; não duvido da vossa ternura; da vossa firmeza é que eu duvido. D. CATHARINA. Receiaes que fraqueie algum dia? CAMÕES. Receio; chorareis muitas lagrimas, muitas e amargas... mas, cuido que fraqueareis. D. CATHARINA. Luiz! juro-vos… CAMÕES. Perdoae, se vos offende esta palavra. Ella é sincera; subiu-me do coração á boca. Não posso guardara verdade; perder-me-hei algum dia por dizel-a sem rebuço. Assim me fez a natureza; assim irei á sepultura. D. CATHARINA. Não, não fraquearei, juro-vos. Amo-vos muito, bem o sabeis. Posso chegar a affrontar tudo, até a colera de meu pae. Vêde lá, estamos a sós; se nos vira alguem… (Camões dá um passo para sair.) Não, vinde cá. Mas, se nos vira alguem, defronte um do outro, no meio de uma sala deserta, que pensaria? Não sei que pensaria; tinha medo ha pouco; já não tenho medo… amor sim... O que eu tenho é amor, meu Luiz. CAMÕES. Minha boa Catharina! D. CATHARINA. Não me chameis boa, que eu não sei se o sou... Nem boa, nem má. CAMÕES. Divina sois! D. CATHARINA. Não me deis nomes que são sacrilegios. CAMÕES. Que outro vos cabe? D. CATHARINA. Nenhum. CAMÕES. Nenhum? — Simplesmente a minha doce e formosa senhora D. Catharina de Athayde, uma nympha do paço, que se lembrou de amar um triste escudeiro, sem se lembrar que seu pae a guarda para algum solar opulento, algum grande cargo de camareira-mór. Tudo isso havereis, emquanto que o coitado de Camões irá morrer em Africa ou Asia… D. CATHARINA. Teimoso sois! Sempre essas idéas de Africa… CAMÕES. Ou Asia. Que tem isso? Digo-vos que, ás vezes, a dormir, imagino lá estar, longe dos galanteios da corte, armado em guerra, diante do gentio. Imaginae agora… D. CATHARINA. Não imagino nada; vós sois meu, tão só meu, tão somente meu. Que me importa o gentio, ou o Turco, ou que quer que é, que não sei, nem quero? Tinha que ver, se me deixaveis, para ir ás vossas Africas… E os meus sonetos? Quem m’os havia de fazer, meu rico poeta? CAMÕES. Não faltará quem vol-os faça, e da maior perfeição. D. CATHARINA. Póde ser; mas eu quero-os ruins, como os vossos... Como aquelle da Circe, o meu retrato, dissestes vós. CAMÕES, recitando. Um mover de olhos, brando e piedoso, Sem ver de que; um riso brando e honesto, Quasi forçado; um doce e humilde gesto De qualquer alegria duvidoso… D. CATHARINA. Não acabeis, que me obrigareis a fugir de vexada. CAMÕES. De vexada! Quando é que a rosa se vexou, porque o sol a beijou de longe? D. CATHARINA. Bem respondido, meu claro sol. CAMÕES. Deixae-me repetir que sois divina. Nathercia minha, póde a sorte separar-nos, ou a morte de um ou de outro; mas o amor subsiste, longe ou perto, na morte ou na vida, no mais baixo estado, ou no cimo das grandezas humanas, não é assim? Deixae-me crêl-o, ao menos; deixae-me crêr que ha um vinculo secreto e forte, que nem os homens, nem a propria natureza poderia já destruir. Deixae-me crêr… Não me ouvis? D. CATHARINA. Ouço, ouço. CAMÕES. Crer que a ultima palavra de vossos labios será o meu nome. Será ? Tenha eu esta fé, e não se me dará da adversidade; sentir-me-hei afortunado e grande. Grande, ouvis bem? Maior que todos os demais homens. D. CATHARINA. Acabae! CAMÕES. Que mais? D. CATHARINA. Não sei; mas é tão doce ouvir-vos! Acabae, acabae, meu poeta! Ou antes, não, não acabeis; fallae sempre, deixae-me ficar perpetuamente a escutar-vos. CAMÕES. Ai de nós! A perpetuidade é um simples instante, um instante em que nos deixam sós n’esta sala! (D. Catharina afasta-se rapidamente.) Olhae; só a idéa do perigo vos arredou de mim. D. CATHARINA. Na verdade, se nos vissem... Se alguem ahi, por esses reposteiros... Adeus... CAMÕES. Medrosa, eterna medrosa! D. CATHARINA. Póde ser que sim; mas não está isso mesmo no meu retrato? Um encolhido ousar, uma brandura, Um medo sem ter culpa; um ar sereno, Um longo e obdiente sofrimento... CAMÕES. Esta foi a celeste formosura Da minha Circe, e o magico veneno Que pôde transformar meu pensamento. D. CATHARINA, indo a elle. Pois então? A vossa Circe manda-vos que não duvideis della, que lhe perdoeis os medos, tão proprios do lugar e da condição; manda-vos crer e amar. Se ella ás vezes foge, é porque a espreitam; se vos não responde, é porque outros ouvidos poderiam escutal-a. Entendeis? E’ o que vos manda dizer a vossa Circe, meu poeta... e agora... (Estende-lhe a mão.) Adeus! CAMÕES. Ides-vos? D. CATHARINA. A rainha espera-me. Audazes fomos, Luiz. Não desafiemos o paço... que esses reposteiros… CAMÕES. Deixa-me ir ver! D. CATHARINA, detendo-o. Não, não. Separemo-nos. CAMÕES. Adeus! (D. Catharina dirige-se para a porta da esquerda; Camões olha para a porta da direita.) D. CATHARINA. Andae, andae! CAMÕES. Um instante ainda! D. CATHARINA. Imprudente! Por quem sois, ide-vos meu Luiz! CAMÕES. A rainha espera-vos? D. CATHARINA. Espera. CAMÕES. Tão raro é ver-vos! D. CATHARINA. Não affrontemos o céu… podem dar comnosco… CAMÕES. Que venham! Tomara eu que nos vissem! Bradaria a todos o meu amor, e á fé que o faria respeitar! D. CATHARINA, afflicta pegando-lhe na mão. Reparae, meu Luiz, reparae onde estaes, quem eu sou, o que são estas paredes… domae esse genio arrebatado. Peço-vol-o eu. Ide-vos em boa paz, sim? CAMÕES. Viva a minha corça gentil, a minha timida corça! Ora vos juro que me vou, e de corrida. Adeus! D. CATHARINA. Adeus! CAMÕES, com a máo della presa. Adeus! D. CATHARINA. Ide… deixae-me ir! CAMÕES. Hoje ha luar; se virdes um embuçado deante das vossas janellas, quedado a olhar para cima, desconfiae que sou eu; e então, já não é o sol a beijar de longe uma rosa, é o goivo que pede calor a uma estrella. D. CATHARINA. Cautela, não vos reconheçam. CAMÕES. Cautela haverei; mas, que me reconheçam, que tem isso? embargarei a palavra ao importuno. D. CATHARINA. Socegae. Adeus! CAMÕES. Adeus! (D. Catharina dirige-se para a porta da esquerda, e pára deante della, á espera que Camões sáia. Camões corteja-a com um gesto gracioso, e dirige-se para o fundo. — Levanta-se o reposteiro da porta da direita, e apparece Caminha. — D. Catharina dá um pequeno grito, e sáe precipitadamente. —Camões detem-se. Os dois homens olham-se por um instante.) SCENA IX. CAMÕES, CAMINHA. CAMINHA, entrando. Discreteaveis com alguem, ao que parece… CAMÕES. E’ verdade. CAMINHA. Ouvi de longe a vossa fala, e reconheci-a. Vi logo que era o nosso poeta, de quem tratava ha pouco com alguns fidalgos. Sois o bem amado, entre os ultimos de Coimbra. — Com que, discreteaveis... Com alguma dama? CAMÕES. Com uma dama. CAMINHA. Certamente formosa, que não as ha de outra casta nestes reaes paços. Sua Alteza cuido que continuará, e ainda em bem, algumas boas tradições de El-rei seu pae. Damas formosas, e, quanto possivel, lettradas. São estes, dizem, os bom costumes italianos. E’ vós, senhor Camões, porque não ides a Italia? CAMÕES. Irei a Italia, mas passando por Africa. CAMINHA. Ah! Ah! para lá deixar primeiro um braço, uma perna, ou um olho... Não, poupae os olhos, que são o feitiço d’essas damas da côrte; poupae tambem a mão, Com que nos haveis de escrever tão lindos versos; isto vos digo que poupeis… CAMÕES. Uma palavra, senhor Pero de Andrade, uma só palavra, mas sincera. CAMINHA. Dizei. CAMÕES. Dissimulaes algum outro pensamento. Revelae-m’o… intimo-vos que m’o reveleis. CAMINHA. Ide a Italia, senhor Camões, ide a Italia. CAMÕES. Não resistireis muito tempo ao que vos mando. CAMINHA. Ou a Africa, se o quereis… ou a Babylonia… A Babylonia é melhor; levae a harpa do desterro, mas em vez de a pendurar de um salgueiro, como na Escriptura, cantar-nos-heis a linda copla da gallinha, ou comporeís umas outras voltas ao mote, que já vos serviu tão bem: Perdigão perdeu a penna, Não ha mal que lhe não venha. Ide a Babylonia, senhor Perdigão! CAMÕES, pegando-lhe no pulso. Por vida minha, calae-vos! CAMINHA. Vêde o logar em que estaes. CAMÕES, solta-o. Vejo; vejo tambem quem sois; só não vejo o que odiaes em mim. CAMINHA. Nada. CAMÕES. Nada? CAMINHA. Cousa nenhuma. CAMÕES. Mentis pela gorja, senhor camareiro. CAMINHA. Minto? Vêde lá; ia-me deixando arrebatar, ia conspurcando com alguma villania esta sala de El-rei. Retraí-me a tempo. Menti, dizeis vós? — Póde ser que sim, porque eu creio que effectivamente vos odeio, mas só ha um instante, depois que me pagastes com uma injuria o aviso que vos dei. CAMÕES. Um aviso? CAMINHA. Nada menos. Queria eu dizer-vos que as paredes do paço nem são mudas, nem sempre são caladas. CAMÕES. Não serão; mas eu as farei caladas. CAMINHA. Póde ser. Essa dama era…? CAMÕES. Não reparei bem. CAMINHA. Fizestes mal; é prudencia reparar nas damas; prudencia e cortezia. Com quê, ides a Africa? Lá estão os nossos em Mazagão, commettendo façanhas contra essa canalha de Mafamede; imitae-os. Vêde, não deixeis lá esse braço, com que nos haveis de calar as paredes e os reposteiros. E’ conselho de amigo. CAMÕES. Porque serieis meu amigo? CAMINHA. Não digo que o seja; o conselho é que o é. CAMÕES. Credes, então...? CAMINHA. Que poupareis uma grande dôr e um maior escandalo. CAMÕES. Percebo-vos. Imaginais que amo alguma dama? Supponhamos que sim. Qual é o meu delicto? Em que ordenação, em que rescripto, em que bulla, em que escriptura, divina ou humana, foi já dado como delicto amarem-se duas creaturas? CAMINHA. Deixae a côrte. CAMÕES. Digo-vos que não. CAMINHA. Oxalá que não! CAMÕES, á parte. Este homem... que ha neste homem? lealdade ou perfídia? (Alto.) Adeus, senhor Caminha. (Pára no meio da scena.) Porque não tratámos de versos?... Fôra muito melhor… CAMINHA. Adeus, senhor Camões. (Camões sáe.) SCENA X. CAMINHA, logo D. CATHARINA DE ATHAYDE. CAMINHA. Ide ide, magro poeta de camarins… (Desce ao proscenio.) Era ella, de certo, era ella que ahi estava com elle, no meio do paço, esquecidos de El-rei e de todos… Oh temeridade do amor! Do amor?... elle... elle... Mas seria ella devéras?... Que outra podia ser? D. CATHARINA, espreita e entra. Senhor... senhor... CAMINHA. Ella! D. CATHARINA. Ouvi tudo... tudo o que lhe dissestes… e peço-vos que não nos façaes mal. Sois amigo de meu pae, elle é vosso amigo; não lhe digaes nada. Fui imprudente, fui, mas que quereis? (Vendo que Caminha não diz nada.) Então? falae... poderei contar comvosco? CAMINHA. Commigo? (D. Catharina inquieta, afflicta, pega-lhe na mão; elle retira-lh’a com aspereza.) Contar commigo! para que, minha senhora D. Catharina? Amaes um mancebo digno, porque vós o amaes… muito, não? D. CATHARINA. Muito. CAMINHA. Muito! Muito, dizeis... E éreis vós que estaveis aqui, com elle, nesta sala solitaria, juntos um do outro, a falarem naturalmente do céu e da terra… ou só do céu, que é a terra dos namorados. Que dizieis?... D. CATHARINA, baixando os olhos. Senhor… CAMINHA. Galanteios, galanteios, de que se ha de falar lá fóra… (Gesto de D. Catharina.) Ah! cuidaes que estes amores nascem e morrem no paço? — Não; passam além; descem á rua, são o mantimento dos ociosos, e ainda dos que trabalham, porque, ao serão, principalmente nas noites de inverno, em que se ha de occupar a gente, depois de fazer as suas orações? Com que, éreis vós? Pois digo-vos que o não sabia; suspeitava, porque não podia talvez ser outra... E confessaes que lhe quereis muito. Muito? D. CATHARINA. Póde ser fraqueza; mas crime...onde está o crime? CAMINHA. O crime está em deshonrar as cans de um nobre homem, arrastando-lhe o nome por viélas e praças; o crime está em escandalisar a côrte, com essas ternuras, improprias do alto cargo que exerceis, do vosso sexo e estado... esse é o crime. E parece-vos pequeno? D. CATHARINA. Bem; desculpae-me, não direis nada… CAMINHA. Não sei. D. CATHARINA. Peço-vol-o… de joelhos até… ( Faz um gesto para ajoelhar-se, elle impede-lh’o.) CAMINHA. Perderieis o tempo; eu sou amigo de vosso pae. D. CATHARINA. Contar-lhe-heis tudo? CAMINHA. Talvez. D. CATHARINA. Bem m’o diziam sempre; sois inimigo de Camões. CAMINHA. E sou. D. CATHARINA. Que vos fez elle? CAMINHA. Que me fez? (Pausa.) D. Catharina de Athayde, quereis saber o que me fez o vosso Camões? Não é só a sua soberba que me affronta; fosse só isso, e que me importava um frouxo cirzidor de palavras, sem arte nem conceito? D. CATHARINA. Acabae. CAMINHA. Tambem não é porque elle vos ama, que eu o odeio; mas vós, senhora D. Catharina de Athayde, vós o amaes... eis o crime de Camões. Entendeis? D. CATHARINA, depois de um instante de assombro. Não quero entender. CAMINHA. Sim, que tambem eu vos quero, ouvis? — E quero-vos muito... mais do que elle, e melhor do que elle; porque o meu amor tem o impulso do odio, nutre-se do silencio, o desdem o avigora, e não faço alarde nem escândalo; é um amor… D. CATHARINA. Calae-vos! Pela Virgem, calae-vos! CAMINHA. Que me cale? Obedecerei. (Faz uma reverencia.) Mandaes alguma outra cousa? D. CATHARINA. Não, ficae, ficae. Jurae-me que não direis nada… CAMINHA, Depois da confissão que vos fiz, esse pedido chega a ser mofa. Que não diga nada? Direi tudo, revelarei tudo a vosso pae. Não sei se a acção é má ou bôa; sei que vos amo, e que detesto esse rufião, a quem vadios deram fóros de lettrado. D. CATHARINA. Senhor! E’ de mais! CAMINHA. Defendeil-o, não é assim? D. CATHARINA. Odeae-o, se vos apraz; insultal-o, é que não é de cavalleiro… CAMINHA. Que tem? O amor despresado sangra e fere. D. CATHARINA. Deixae que lhe chame um amor villão. CAMINHA. Sois vós agora que me injuriaes. Adeus, senhora.D.Catharina de Athayde! (Dirige-se para o fundo.) D. CATHARINA, tomando-lhe o passo. Não! Agora não vos peço... intimo-vos que vos caleis. CAMINHA. Que recompensa me daes? D. CATHARINA. A vossa consciencia. CAMINHA. Deixae em paz os que dormem. Quereis que vos prometta alguma cousa? Uma só cousa prometto; não contar a vosso pae o que se passou. Mas, se por denuncia ou desconfiança, fôr interrogado por elle, então lhe direi tudo. E duas vezes farei bem: — não faltarei á verdade, que é dever de cavalleiro; e depois... chorareis lagrimas de sangue; e eu prefiro ver-vos chorar a ver-vos sorrir. A vossa angustia será a minha consolação. Onde fallecerdes de pura saudade, ahi me glorificarei eu. Chamae-me agora perverso, se o quereis; eu respondo que vos amo, e que não tenho outra virtude. (Vae a sair, encontra-se com D. Francisca de Aragão; corteja-a e sáe.) SCENA XI. D. CATHARINA DE ATHAYDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO. D. FRANCISCA. Vae affrontado o nosso poeta. Que terá elle? (Reparando em D. Catharina.) Que tendes vós? que foi? D. CATHARINA. Tudo sabe. D. FRANCISCA. Quem? D. CATHARINA. Esse homem. Achou-nos n’esta sala; eu tive medo; disse-lhe tudo. D. FRANCISCA. Imprudente! D. CATHARINA. Duas vezes imprudente; deixei-me estar ao lado do meu Luiz, a ouvir-lhe as palavras tão nobres, tão apaixonadas… e o tempo corria... e podiam espreitarnos… Credes que o Caminha diga alguma cousa a meu pae? D. FRANCISCA. Talvez não. D. CATHARINA. Quem sabe? Elle ama-me. D. FRANCISCA. O Caminha? D. CATHARINA. Disse-m’o agora. Que admira? acha-me formosa, como os outros. Triste dom é esse. Sou formosa para não ser feliz, para ser amada ás occultas, odiada ás escancaras, e, talvez... Se meu pae vier a saber… que fará elle, amiga minha? D. FRANCISCA. O senhor D. Antonio é tão severo! D. CATHARINA. Irá ter com El-rei, pedir-lhe-ha que o castigue, que o encarcére, não? E por minha causa... Não; primeiro irei eu… (Dirige-se para a porta da direita.) D. FRANCISCA. Onde ides? D. CATHARINA. Vou falar a El-rei... Ou, não... (Encaminha-se para a porta da esquerda.) Vou ter com a rainha; contar-lhe-hei tudo; ella me amparará. Credes que não? D. FRANCISCA. Creio que sim. D. CATHARINA. Irei, ajoelhar-me-hei a seus pes. Ella é rainha, mas é tambem mulher... e ama-me. ( Sáe pela esquerda.) SCENA XII. D. FRANCISCA DE ARAGÃO, D. ANTONIO DE LIMA, depois, D. MANOEL DE PORTUGAL. D. FRANCISCA, depois de um momento de reflexão. Talvez chegue cedo de mais. (Dá um passo para a porta da esquerda.) Não; melhor é que lhe fale... mas, se se aventa a noticia? Meu Deus, não sei... não sei… Ouço passos... (Entra D. Antonio de Lima) Ah! D. ANTONIO. Que foi? D. FRANCISCA. Nada, nada... não sabia quem era. Sois vós... (Risonha.) Chegaram galeões da Asia; bôas noticias, dizem… D. ANTONIO. Eu não ouvi dizer nada. (Querendo retirar-se) Permittis?... D. FRANCISCA. Jesus! Que tendes?... que ar é esse? (Vendo entrar D. Manoel de Portugal.) Vinde cá, senhor D. Manoel de Portugal, vinde saber o que tem este meu bom e velho amigo, que me não quer... ( Segurando na mão de D. Antonio.) Então, eu já não sou a vossa frescura de Maio? D. ANTONIO, sorrindo a custo. Sois, sois. Manhosamente subtil, ou subtilmente manhosa, á escolha; eu é que sou uma triste seccura de Dezembro, que me vou e vos deixo. Permittis, não? (Corteja-a e dirige-se para a porta.) D. MANOEL, interpondo-se. Deixae que vos levante o reposteiro. (Levanta o reposteiro.) Ides ter com Sua Alteza, supponho? D. ANTONIO. Vou. D. MANOEL. Ides levar-lhe noticias da India? D. ANTONIO. Sabeis que não é o meu cargo… D. MANOEL, Sei, sei; mas dizem que... Senhor D. Antonio, acho-vos o rosto anuviado, alguma cousa vos penalisa ou turva. Sabeis que sou vosso amigo; perdoae se vos interrogo. Que foi? que ha? D. ANTONIO, gravemente. Senhor D. Manoel, tendes vinte e sete annos, eu conto sessenta; deixae-me passar. (D. Manoel -inclina-se, levantando o reposteiro. D. Antônio desapparece.) SCENA XIII. D. MANOEL DE PORTUGAL, D. FRANCISCA DE ARAGÃO. D. MANOEL. Vae dizer tudo a El-rei. D. FRANCISCA. Crêdes? D. MANOEL. Camões contou-me o encontro que tivera com o Caminha aqui; eu ia falar ao senhor D. Antonio; achei-o agora mesmo, ao pé de uma janella, com o dissimulado Caminha, que lhe dizia: « Não vos nego, senhor D. Antonio, que os achei naquella sala, a sós e que vossa filha fugiu desde que eu lá entrei. » D. FRANCISCA. Ouvistes isso? D. MANOEL. D. Antonio ficou severo e triste. « Querem escandalo?...» foram as suas palavras. E não disse outras; apertou a mão ao Caminha, e seguiu para cá... Penso que foi pedir alguma cousa a El-rei. Talvez o desterro. D. FRANCISCA. O desterro? D. MANOEL. Talvez. Camões ha de voltar agora aqui; disse-me que viria falar ao senhor D. Antonio. Para que? Que outros lhe falem, sim; mas o meu Luiz que não sabe conter-se... D. Catharina? D. FRANCISCA. Foi lançar-se aos pés da rainha, a pedir-lhe protecção. D. MANOEL. Outra imprudencia. Foi ha muito? D. FRANCISCA. Pouco ha. D. MANOEL. Ide ter com ella, se é tempo, dizei-lhe que não, que não convem falar nada. (D. Francisca vae a sair, e pára.) Recusaes? D. FRANCISCA. Vou, vou. Pensava commigo uma cousa. (D. Manoel vae a ella.) Pensava que é preciso querer muito aquelles dois para nos esquecermos assim de nós. D. MANOEL. E’ verdade. E não ha mais nobre motivo da nossa mutua indifferença. Indifferença, não; não o é, nem o podia ser nunca. No meio de toda essa angustia que nos cerca, poderia eu esquecer a minha doce Aragão? Poderieis vós esquecer-me. Ide agora, nós que somos felizes, temos o dever de consolar os desgraçados. (D. Francisca sae pela esquerda.) SCENA XIV. D. MANOEL DE PORTUGAL, D. ANTONIO DE LIMA. D. MANOEL. Se pérco o confidente dos meus amores, da minha mocidade, o meu companheiro de longas horas... Não é impossivel. — El-rei concederá o que lhe pedir D. Antonio. A culpa, — força é confessa-lo — a culpa é delle, do meu Camões, do meu impetuoso poeta; um coração sem freio... (Abrese o reposteiro, apparece D. Antonio) D. Antonio! D. ANTONIO, da porta, jubiloso. Interrogastes-me ha pouco; agora hei tempo de vos responder. D. MANOEL. Talvez não seja preciso. D. ANTONIO, adianta-se. Adivinhaes então? D. MANOEL. Póde ser que sim. D. ANTONIO. Creio que adivinhaes. D. MANOEL. Sua Alteza concedeu-vos o desterro de Camões. D. ANTONIO. Esse é o nome da pena; a realidade é que Sua Alteza restituiu a honra a um vassallo, e a paz a um ancião. D. MANOEL. Senhor D. Antonio… D. ANTONIO. Nem mais uma palavra, senhor D. Manoel de Portugal, nem mais uma palavra. — Mancebo sois; é natural que vos ponhaes do lado do amor; eu sou velho, e a velhice ama o respeito. Até á vista, senhor D. Manoel, e não turveis o meu contentamento. (Dá um passo para sair.) D. MANOEL. Se mataes vossa filha? D. ANTONIO. Não a matarei. Amores faceis de curar são esses que ahi brotam no meio de galanteios e versos. Versos curam tudo. Só não curam a honra os versos; mas para a honra dá Deus um rei austero, e um pae inflexivel... Até á vista, senhor D. Manoel. (Sae pela esquerda.) SCENA XV. D. MANOEL DE PORTUGAL, logo CAMÕES. D. MANOEL. Perdido... está tudo perdido. (Camões entra pelo fundo.) Meu pobre Luiz! Se soubesse?... CAMÕES. Que ha? D. MANOEL. El-rei… El-rei attendeu ás supplicas do senhor D. Antonio. Está tudo perdido. CAMÕES. E que pena me cabe? D. MANOEL. Desterra-vos da côrte. CAMÕES. Desterrado! Mas eu vou ter com Sua Alteza, eu direi… D. MANOEL, aquietando-o. Não direis nada; não tendes mais que cumprir a real ordem; deixae que os vossos amigos façam alguma cousa; talvez logrem abrandar o rigor da pena. Vós não fareis mais do que aggraval-a. CAMÕES. Desterrado! E para onde? D. MANOEL. Nãs sei. Desterrado da corte é o que é certo. Vede... não ha mais demorar no paço. Sáiamos. CAMÕES. Ahi me vou eu, pois, caminho do desterro, e não sei se da miseria! Venceu então o Caminha? Talvez os versos delle fiquem assim melhores. Se nos vae dar uma nova Eneida, o Caminha? Póde ser, tudo póde ser... Desterrado da côrte! Cá me ficam os melhores dias, e as mais fundas saudades. Crêde, senhor D. Manoel, podeis crer que as mais fundas saudades cá me ficam. D. MANOEL. Tornareis, tornareis… CAMÕES. E ella? Já o saberá ella? D. MANOEL. Cuido que o senhor D. Antonio foi dizer-lh’o em pessoa. Deus! Ahi vem elles. SCENA XVI. OS MESMOS, D. ANTONIO DE LIMA, D. CATHARINA DE ATHAYDE. (D. Antonio apparece á porta da esquerda, trazendo D. Catharina pela mão. — D. Catharina vem profundamente abatida.) D. CATHARINA, á parte, vendo Camões. Elle! Dae-me força, meu Deus! (D. Antonio corteja os dois, e segue na direcção ao fundo. Camões dá um passo para falar-lhe, mas D. Manoel contem-n’o. D.Catharina, prestes a sair, volve a cabeça para traz.) SCENA XVII. D. MANOEL DE PORTUGAL, CAMÕES. CAMÕES. Ella ahi vae... talvez para sempre… Credes que para sempre? D. MANOEL. Não. Sáiamos! CAMÕES. Vamos lá; deixemos estas salas que tão funestas me foram. (Indo ao fundo e olhando para dentro.) Ella ahi vae, a minha estrella, ahi vae a resvalar no abysmo, d’onde não sei se a levantarei mais… Nem eu… (voltando-se para D. Manoel.) nem vós, meu amigo, nem vós que me quereis tanto, ninguem. D. MANOEL. Desanimaes depressa, Luiz. Porque ninguem? CAMÕES. Não saberia dizer-vos; mas sinto-o aqui no coração. Essa clara luz, essa doce madrugada da minha vida, apagou-se agora mesmo, e de uma vez. D. MANOEL. Confiae em mim, nos meus amigos, nos vossos amigos. Irei ter com elles; induzilos-hei a.... CAMÕES. A que? A mortificarem um camareiro-mór, afim de servir um triste escudeiro, que já estará caminho de Africa? D. MANOEL. Ides a Africa? CAMÕES. Póde ser; sinto umas tonteiras africanas. Pois que me fecham a porta dos amores, abrirei eu mesmo as da guerra. Irei lá pelejar, ou não sei se morrer… Africa, disse eu? Póde ser que Asia tambem, ou Asia só; o que me der na imaginação. D. MANOEL. Sáiamos. CAMÕES. E agora, adeus, infieis paredes; sêde ao menos compassivas; guardae-m’a, guardae-m’a bem, a minha formosa D. Catharina! (A D. Manoel.) Crêdes que tenho vontade de chorar? D. MANOEL. Sáiamos, Luiz! CAMÕES. E não chóro, não; não chóro… não quero… (Forcejando por ser alegre.) Vedes? até rio! Vou-me para bem longe. Considerando bem, Asia é melhor; lá rematou a audacia luzitana o seu edificio, lá irei escutar o rumor dos passos do nosso Vasco. E este sonho, esta chimera, esta cousa que me flammeja cá dentro, quem sabe se… Um grande sonho, senhor D. Manoel… Vêde lá, ao longe, na immensidade d’esses mares, nunca d’antes navegados, uma figura rútila, que se debruça dos balcões da aurora, coroada de palmas indianas? E’ a nossa gloria, é a nossa gloria que alonga os olhos, como a pedir o seu esposo occidental. E nenhum lhe vae dar o osculo que a fecunde; nenhum filho d’esta terra, nenhum que empunhe a tuba da immortalidade, para dizel-a aos quatro ventos do céu… Nenhum… (Vae amortecendo a voz.) Nenhum… (Pausa, fita D. Manoel, como se acordasse, e dá de hombros.) Uma grande chimera, senhor D. Manoel. Vamos ao nosso desterro. RIO DE JANEIRO IMPRESSO POR LOMBAERTS & C. M DCCC LXXXI como em colchetes