VARIAS HISTORIAS MACHADO DE ASSIS VARIAS HISTORIAS As varias historias que formam este volume foram escolhidas entre outras, e podiam ser accrescentadas, se não conviesse limitar o livro as suas trezentas paginas. E’ a quinta collecção que dou ao publico. As palavras de Diderot que vão por epigraphe no rosto desta collecção servem de desculpa aos que acharem excessivos tantos contos. E’ um modo de passar o tempo. Não pretendem sobreviver como os do philosopho. Não são feitos daquella materia, nem daquelle estylo que dão aos de Merimée o caracter de obras-primas, e collocam os de Poe entre os primeiros escriptos da America. O tamanho não é o que faz mal a este genero de historias, é naturalmente a qualidade; mas ha sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são mediocres: é serem curtos. M. de A. INDICE A Cartomante 9 Entre santos 31 Uns braços 51 Um homem celebre 73 A desejada das gentes 95 A causa secreta 117 Trio em lá menor 139 Adão e Eva 157 O enfermeiro 159 O diplomatico 191 Marianna 213 Conto de escola 233 Um apologo 253 D. Paula 259 Viver! 281 O Conego ou metaphysica do estylo 299 A CARTOMANTE HAMLET observa a Horacio que ha mais cousas no ceu e na terra do que sonha a nossa philosophia. Era a mesma explicação que dava a bella Rita ao moço Camillo, n’uma sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria della, por ter ido na vespera consultar uma cartomante; a differença é que o fazia por outras palavras. — Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ella adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: « A senhora gosta de uma pessoa...» Confessei que sim, e então ella continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade... — Errou! interrompeu Camillo, rindo. — Não diga isso, Camillo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... Camillo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ella sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era elle mesmo. Depois, reprehendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Villela podia sabel-o, e depois... — Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa. — Onde é a casa? — Aqui perto, na rua da Guarda-Velha; não passava ninguém nessa occasião. Descança; eu não sou maluca. Camillo riu outra vez: — Tu crês devéras nessas cousas? perguntou-lhe. Foi então que ella, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa mysteriosa e verdadeira neste mundo. Se elle não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhára tudo. Que mais? A prova é que ella agora estava tranquilla e satisfeita. Cuido que elle ia fallar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as illusões. Também elle, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãi lhe incutiu, e que aos vinte annos desappareceram. No dia em que deixou cahir toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, elle, como tivesse recebido da mãi ambos os ensinos, envolveu-os na mesma duvida, e logo depois em uma só negação total. Camillo não acreditava em nada. Por que? Não poderia dizel-o, não possuia um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda affirmar, e elle não formulava a incredulidade; diante do mysterio, contentou-se em levantar os hombros, e foi andando. Separaram-se contentes, elle ainda mais que ella. Rita estava certa de ser amada; Camillo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por elle, correr ás cartomantes, e, por mais que a reprehendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direcção de Botafogo, onde residia; Camillo desceu pela da Guarda-Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante. Villela, Camillo e Rita, tres nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ella. Os dois primeiros eram amigos de infancia. Villela seguiu a carreira de magistrado. Camillo entrou no funccionalismo, contra a vontade do pai, que queria vel-o medico; mas o pai morreu, e Camillo preferiu não ser nada, até que a mãi lhe arranjou um emprego publico. No principio de 1869, voltou Villela da provincia, onde casára com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veiu abrir banca de advogado. Camillo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebel-o. —E’ o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; fallava sempre do senhor. Camillo e Villela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camillo confessou de si para si que a mulher do Villela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa, viva nos gestos, olhos calidos, bocca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta annos, Villela vinte e nove e Camillo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Villela fazia-o parecer mais velho que a mulher, emquanto Camillo era um ingênuo na vida moral e pratica. Faltava-lhe tanto a acção do tempo, como os oculos de crystal, que a natureza põe no berço de alguns para adeantar os annos. Nem experiencia, nem intuição. Uniram-se os tres. Convivencia trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãi de Camillo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos delle. Villela cuidou do enterro, dos suffragios e do inventario; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. Como dahi chegaram ao amor, não o soube elle nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado della; era a sua enfermeira moral, quasi uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di Femina: eis o que elle aspirava nella, e em volta della, para incorporal-o em si proprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a theatros e passeios. Camillo ensinou-lhe as damas e o xadrez, e jogavam ás noites; — ella mal, — elle, para lhe ser agradavel, pouco menos mal. Até ahi as cousas. Agora a acção da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os delle, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as attitudes insolitas. Um dia, fazendo elle annos, recebeu do Villela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar comprimento a lapis, e foi então que elle pôde lêr no proprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas ha vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apollo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam. Camillo quiz sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando delle, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos n’um espasmo, e pingou-lhe o veneno na bocca. Elle ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a victoria delirante. Adeus, escrupulos! Não tardou que o sapato se accommodasse ao pé, e ahi foram ambos, estrada fóra, braços dados, pisando folgadamente por cima de hervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Villela continuavam a ser as mesmas. Um dia, porém, recebeu Camillo uma carta anonyma, que lhe chamava immoral e perfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camillo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas á casa de Villela. Este notou-lhe as ausências. Camillo respondeu que o motivo era uma paixão frivola de rapaz. Candura gerou astucia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Póde ser que entrasse também nisso um pouco de amor-proprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do acto. Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu á cartomante para consultal-a sobre a verdadeira causa do procedimento de Camillo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz reprehendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camillo recebeu mais duas ou tres cartas anonymas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é activo e prodigo. Nem por isso Camillo ficou mais socegado; temia que o anonymo fosse ter com Villela, e a catastrophe viria então sem remedio. Rita concordou que era possivel. — Bem, disse ella; eu levo os sobrescriptos para comparar a letra com a das cartas que lá apparecerem; se alguma fôr igual guardo-a e rasgo-a... Nenhuma appareceu; mas dahi a algum tempo Villela começou a mostrar-se sombrio, fallando pouco, como desconfiado, Rita deu-se pressa em dizel-o ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião della é que Camillo devia tornar á casa delles, tactear o marido, e póde ser até que lhe ouvisse a confidencia de algum negocio particular. Camillo divergia; apparecer depois de tantos mezes era confirmar a suspeita ou denuncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lagrimas. No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camillo este bilhete de Villela: «Vem já, já, á nossa casa; preciso fallar-te sem demora.» Era mais de meio-dia. Camillo sahiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamal-o ao escriptorio; porque em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou illusão, afigurou-se-lhe tremula. Elle combinou todas essas cousas com a noticia da vespera. — Vem já, já, á nossa casa; preciso fallar-te sem demora, — repetia elle com os olhos no papel. Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Villela indignado, pegando da penna e escrevendo o bilhete, certo de que elle acudiria, e esperando-o para matal-o. Camillo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarello, e em todo caso repugnava-lhe a idéa de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou á rua, e a idéa de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verosimil; era natural uma denuncia anonyma até da própria pessoa que o ameaçára antes; podia ser que Villela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo apparente, apenas com um pretexto futil, viria confirmar o resto. Camillo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a propria voz de Villela. «Vèm já, já, á nossa casa; preciso fallar-te sem demora.. Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mysterio e ameaça. Vêm, já, já, para que? Era perto de uma hora da tarde. A commoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crel-o e vel-o. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era util. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direcção do largo da Carioca, para entrar n’um tilbury. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo. — Quanto antes, melhor, pensou elle; não posso estar assim... Mas o mesmo trote do cavallo veiu aggravar-lhe a commoção. O tempo voava, e elle não tardaria a entestar com o perigo. Quasi no fim da rua da Guarda Velha, o tilbury teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que cahira. Camillo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, á esquerda, ao pé do tilbury, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultára uma vez, e nunca elle desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janellas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-hia a morada do indifferente Destino. Camillo reclinou-se no tilbury, para não ver nada. A agitação delle era grande, extraordinaria, e do fundo das camadas moraes emergiam alguns phantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propoz-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; elle respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois, fez um gesto incrédulo: era a idéa de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas azas cinzentas; desappareceu, reappareceu, e tornou a esvair-se no cerebro; mas dahi a pouco moveu outra vez as azas, mais perto, fazendo uns giros concentricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça: — Anda! agora! empurra! vá! vá! D’ahi a pouco estaria removido o obstáculo. Camillo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe ás orelhas as palavras da carta: «Vem, já, já...» E elle via as contorsões do drama, e tremia. A casa olhava para elle. As pernas queriam descer e entrar... Camillo achou-se diante de um longo véo opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãi repetia-lhe uma porção de casos extraordinarios; e a mesma phrase do principe de Dinamarca reboava-lhe dentro: « Ha mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa philosophia... » Que perdia elle, se...? Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degráos comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas elle não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não apparecendo ninguém, teve idéa de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; elle tornou a bater uma, duas, tres pancadas. Veiu uma mulher; era a cartomante. Camillo disse que ia consultal-a, ella fel-o entrar. Dalli subiram ao sotão, por uma escada ainda peior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janella, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes augmentava do que destruia o prestigio. A cartomante fel-o sentar diante da mesa, e sentou-se do lado opposto, com as costas para a janella, de maneira que a pouca luz de fóra batia em cheio no rosto de Camillo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Emquanto as baralhava, rapidamente, olhava para elle, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta annos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou tres cartas sobre a mesa, e disse-lhe: — Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto… Camillo maravilhado, fez um gesto affirmativo. — E quer saber, continuou ella, se lhe acontecerá alguma cousa ou não... — A mim e a ella, explicou vivamente elle. A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpoz os maços, uma, duas, tres vezes; depois começou a estendel-as. Camillo tinha os olhos nella, curioso e ancioso. — As cartas dizem-me... Camillo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ella declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; elle, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam invejas e despeitos. Fallou-lhe do amor que os ligava, da belleza de Rita... Camillo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta. — A senhora restituiu-me a paz ao espirito, disse elle estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante. Esta levantou-se, rindo. — Vá, disse ella; vá, ragazzo innamorato... E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camillo estremeceu, como se fosse a mão da propria sibylla, e levantou-se também. A cartomante foi á commoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencal-as e comel-as, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam das unhas. Nessa mesma acção commum, a mulher tinha um ar particular. Camillo, ancioso por sahir, não sabia como pagasse; ignorava o preço. — Passas custam dinheiro, disse elle afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar. — Pergunte ao seu coração, respondeu ella. Camillo tirou uma nota de dez mil réis, e deu-lh’a. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil réis. — Vejo bem que o senhor gosta muito della... E faz bem; ella gosta muito do senhor. Vá, vá tranquillo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéo... A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com elle, fallando, com um leve sotaque. Camillo despediu-se della embaixo, e desceu a escada que levava a rua, emquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola, Camillo achou o tilbury esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava limpido e as caras joviaes. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Villela e reconheceu que eram intimos e familiares. Onde é que elle lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negocio grave e gravissimo. — Vamos, vamos depressa, repetia elle ao cocheiro. E comsigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar á antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ella adivinhára o objecto da consulta, o estado delle, a existência de um terceiro; porque não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e continuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mysterio empolgava-o com as unhas de ferro. A’s vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras seccas e affirmativas, a exhortação:—Vá, vá, ragazzo innamorato; fim, ao longe, a barcarola da despedida, viva e graciosa, taes eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz. A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outr’ora, e nas que haviam de vir. Ao passar pela Gloria, Camillo olhou para o mar, estendeu os olhos para fóra, até onde a agua e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável. Dahi a pouco chegou á casa de Villela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degráos de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e appareceu-lhe Villela. — Desculpa, não pude vir mais cedo; que ha? Villela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe signal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camillo não pôde suffocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Villela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão. ENTRE SANTOS QUANDO eu era capellão de S. Francisco de Paula (contava um padre velho) aconteceu-me uma aventura extraordinária. Morava ao pé da egreja, e recolhi-me tarde, uma noite. Nunca me recolhi tarde que não fosse vêr primeiro se as portas do templo estavam bem fechadas. Achei-as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo dellas. Corri assustado á procura da ronda; não a achei, tornei atraz e fiquei no adro, sem saber que fizesse. A luz, sem ser muito intensa, era-o demais para ladrões ; além disso notei que era fixa e egual, não andava de um lado para outro, como seria a das velas ou lanternas de pessoas que estivessem roubando. O mysterio arrastou-me; fui a casa buscar as chaves da sacristia, (o sacristão tinha ido passar a noite em Nitherohy), benzi-me primeiro, abri a porta e entrei. O corredor estava escuro. Levava commigo uma lanterna e caminhava devagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos. A primeira e a segunda porta que communicam com a egreja estavam fechadas; mas via-se a mesma luz e, por ventura, mais intensa que do lado da rua. Fui andando, até que dei com a terceira porta aberta. Puz a um canto a lanterna, com o meu lenço por cima, para que me não vissem de dentro, e approximei-me a espiar o que era. Detive-me logo. Com effeito, só então adverti que viera inteiramente desarmado e que ia correr grande risco apparecendo na egreja sem mais defesa que as duas mãos. Correram ainda alguns minutos. Na egreja a luz era a mesma, egual e geral, e de uma côr de leite que não tinha a luz das velas. Ouvi também vozes, que ainda mais me atrapalharam, não cochichadas nem confusas, mas regulares, claras e tranquillas, á maneira de conversação. Não pude entender logo o que diziam. No meio disto, assaltou-me uma ideia que me fez recuar. Como naquelle tempo os cadáveres eram sepultados nas egrejas, imaginei que a conversação podia ser de defuntos. Recuei espavorido, e só passado algum tempo, é que pude reagir e chegar outra vez á porta, dizendo a mim mesmo que semelhante ideia era um disparate. A realidade ia dar-me cousa mais assombrosa que um dialogo de mortos. Encommendei-me a Deus, benzi-me outra vez e fui andando, sorrateiramente, encostadinho á parede, até entrar. Vi então uma cousa extraordinária. Dois dos tres santos do outro lado, S. José e S. Miguel (á direita de quem entra na egreja pela porta da frente), tinham descido dos nichos e estavam sentados nos seus altares. As dimensões não eram as das proprias imagens, mas de homens. Fallavam para o lado de cá, onde estão os altares de S. João Baptista e S. Francisco de Salles. Não posso descrever o que senti. Durante algum tempo, que não chego a calcular, fiquei sem ir para diante nem para traz, arrepiado e tremulo. Com certeza, andei beirando o abysmo da loucura, e não cahi nelle por misericórdia divina. Que perdi a consciência de mim mesmo e de toda outra realidade que não fosse aquella, tão nova e tão unica, isso posso affirmal-o; só assim se explica a temeridade com que, dalli a algum tempo, entrei mais pela egreja, afim de olhar também para o lado opposto. Vi ahi a mesma cousa: S. Francisco de Salles e S. João, descidos dos nichos, sentados nos altares e fallando com os outros santos. Tinha sido tal a minha estupefacção que elles continuaram a fallar, creio eu, sem que eu sequer ouvisse o rumor das vozes. Pouco a pouco, adquiri a percepção dellas e pude comprehender que não tinham interrompido a conversação; distingui-as, ouvi claramente as palavras, mas não pude colher desde logo o sentido. Um dos santos, fallando para o lado do altar-mór, fez-me voltar a cabeça, e vi então que S. Francisco de Paula, o orago da egreja, fizera a mesma cousa que os outros e fallava para elles, como elles fallavam entre si. As vozes não subiam do tom médio e, comtudo, ouviam-se bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão. Mas, se tudo isso era espantoso, não menos o era a luz, que não vinha de parte nenhuma, porque os lustres e castiçaes estavam todos apagados; era como um luar, que alli penetrasse, sem que os olhos pudessem ver a lua; comparação tanto mais exacta quanto que, se fosse realmente luar, teria deixado alguns logares escuros, como alli acontecia, e foi n’um desses recantos que me refugiei. Já então procedia automaticamente. A vida que vivi durante esse tempo todo, não se pareceu com a outra vida anterior e posterior. Basta considerar que, diante de tão extranho expectaculo, fiquei absolutamente sem medo; perdi a reflexão, apenas sabia ouvir e contemplar. Comprehendi, no fim de alguns instantes que elles inventariavam e commentavam as orações e implorações daquelle dia. Cada um notava alguma cousa. Todos elles, terríveis psychologos, tinham penetrado a alma e a vida dos fieis, e desfibravam os sentimentos de cada um, como os anatomistas escalpellam um cadaver. S. João Baptista e S. Francisco de Paula, duros ascetas, mostravam-se ás vezes enfadados e absolutos. Não era assim S. Francisco de Salles; esse ouvia ou contava as cousas com a mesma indulgência que presidira ao seu famoso livro da Introducção á vida devota. Era assim, segundo o temperamento de cada um, que elles iam narrando e commentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça, outros de indifferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas estavam a mais e mais anojados, mas S. Francisco de Salles recordava-lhes o texto da Escriptura: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim que nem todos os que alli iam á egreja levavam o coração puro. S. João abanava a cabeça. — Francisco de Salles, digo-te que vou creando um sentimento singular em santo: começo a descrer dos homens. — Exageras tudo, João Baptista, atalhou o santo bispo, não exageremos nada. Olha — ainda hoje aconteceu aqui uma cousa que me fez sorrir, e póde ser, entretanto, que te indignasse. Os homens não são peiores do que eram em outros séculos; descontemos o que ha nelles ruim, e ficará muita cousa boa. Crê isto e has de sorrir ouvindo o meu caso. — Eu? — Tu, João Baptista, e tu tambem, Francisco de Paula, e todos vós haveis de sorrir commigo; e, pela minha parte, posso fazel-o, pois já intercedi e alcancei do Senhor aquillo mesmo que me veiu pedir esta pessoa. — Que pessoa? — Uma pessoa mais interessante que o teu escrivão, José, e o que teu logista Miguel... — Póde ser, atalhou S. José, mas não ha de ser mais interessante que a adultera que aqui veiu hoje prostrar-se a meus pés. Vinha pedir-me que lhe limpasse o coração da lepra da luxuria. Brigára hontem mesmo com o namorado, que a injuriou torpemente, e passou a noite em lagrimas. De manhã, determinou abandonal-o e veiu buscar aqui a força precisa para sahir das garras do demonio. Começou resando bem, cordialmente; mas pouco a pouco vi que o pensamento a ia deixando para remontar aos primeiros deleites. As palavras, parallelamente, iam ficando sem vida. Já a oração era morna, depois fria, depois inconsciente; os lábios, affeitos á resa, iam resando; mas a alma, que eu espiava cá de cima, essa já não estava aqui, estava com o outro. Afinal persignou-se, levantou-se e sahiu sem pedir nada. — Melhor é o meu caso. — Melhor que isto? perguntou S. José, curioso. — Muito melhor, respondeu S. Francisco de Salles, e não é triste como o dessa pobre alma ferida do mal da terra, que a graça do Senhor ainda póde salvar, E porque não salvará também a esta outra? Lá vae o que é. Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos, attentos, esperando. Aqui fiquei com medo; lembrou-me que elles, que vêem tudo o que se passa no interior da gente, como se fossemos de vidro, pensamentos recônditos, intenções torcidas, odios secretos, bem podiam ter-me lido já algum peccado ou germen de peccado. Mas não tive tempo de reflectir muito; S. Francisco de Salles começou a fallar. — Tem cincoenta annos o meu homem, disse elle; a mulher está de cama, doente de uma erysipela na perna esquerda. Ha cinco dias vive afflicto por que o mal aggrava-se e a sciencia não responde pela cura. Vede, porém, até onde póde ir um preconceito publico. Ninguém acredita na dôr do Salles (elle tem o meu nome), ninguém acredita que elle ame outra cousa que não seja dinheiro, e logo que houve noticia da sua afflicção, desabou em todo o bairro um aguaceiro de motes e dichotes; nem faltou quem acreditasse que elle gemia antecipadamente pelos gastos da sepultura. — Bem podia ser que sim, ponderou S. João. — Mas não era. Que elle é usurario e avaro não o nego; usurario, como a vida, e avaro, como a morte. Ninguém extrahiu nunca tão implacavelmente da algibeira dos outros o ouro, a prata, o papel e o cobre; ninguém os amuou com mais zelo e promptidão. Moeda que lhe cae na mão difficilmente torna a sahir; e tudo o que lhe sobra das casas mora dentro de um armario de ferro, fechado a sete chaves. Abre-o ás vezes, por horas mortas, contempla o dinheiro alguns minutos, e fecha-o outra vez depressa; mas nessas noites não dorme, ou dorme mal. Não tem filhos. A vida que leva é sórdida; come para não morrer, pouco e ruim. A familia compõe-se da mulher e de uma preta escrava, comprada com outra, ha muitos annos, e ás escondidas, por serem de contrabando. Dizem até que nem as pagou, porque o vendedor falleceu logo sem deixar nada escripto. A outra preta morreu ha pouco tempo; e aqui vereis se este homem tem ou não o genio da economia; Salles libertou o cadaver... E o santo bispo calou-se para saborear o espanto dos outros. — O cadaver? — Sim, o cadaver. Fez enterrar a escrava como pessoa livre e miserável, para não acudir ás despezas da sepultura. Pouco embora, era alguma cousa. E para elle não ha pouco; com pingos d’agua é que se alagam as ruas. Nenhum desejo de representação, nenhum gosto nobiliario; tudo isso custa dinheiro, e elle diz que o dinheiro não lhe cahe do céu. Pouca sociedade, nenhuma recreação de familia. Ouve e conta anecdotas da vida alheia, que é regalo gratuito. — Comprehende-se a incredulidade publica, ponderou S. Miguel. — Não digo que não, porque o mundo não vai além da superficie das cousas. O mundo não vê que, além de caseira eminente, educada por elle, e sua confidente de mais de vinte annos, a mulher deste Salles é amada devéras pelo marido. Não te espantes, Miguel; naquelle muro asperrimo brotou uma flor descorada e sem cheiro, mas flor. A botanica sentimental tem dessas anomalias. Salles ama a esposa; está abatido e desvairado com a ideia de a perder. Hoje de manhã, muito cedo, não tendo dormido mais de duas horas, entrou a cogitar no desastre proximo. Desesperando da terra, voltou-se para Deus; pensou em nós, e especialmente em mim, que sou o santo do seu nome. Só um milagre podia salval-a; determinou vir aqui. Mora perto, e veiu correndo. Quando entrou trazia o olhar brilhante e esperançado; podia ser a luz da fé, mas era outra cousa muito particular, que vou dizer. Aqui peço-vos que redobreis de attenção. Vi os bustos inclinarem-se ainda mais; eu proprio não pude esquivar-me ao movimento e dei um passo para diante. A narração do santo foi tão longa e miuda, a analyse tão complicada, que não as ponho aqui integralmente, mas em substancia, — Quando pensou em vir pedir-me que intercedesse pela vida da esposa, Salles teve uma idéia especifica de usurario, a de prometter-me uma perna de cêra. Não foi o crente, que symbolisa desta maneira a lembrança do beneficio; foi o usurario que pensou em forçar a graça divina pela expectação do lucro. E não foi só a usura que fallou, mas também a avareza; porque em verdade, dispondo-se á promessa, mostrava elle querer devéras a vida da mulher — intuição de avaro; — despender é documentar: só se quer de coração aquillo que se paga a dinheiro, disse-lh’o a consciência pela mesma bocca escura. Sabeis que pensamentos taes não se formulam como outros, nascem das entranhas do caracter e ficam na penumbra da consciência. Mas eu li tudo nelle, logo que aqui entrou alvoroçado, com o olhar fulgido de esperança; li tudo e esperei que acabasse de benzer-se e rezar. — Ao menos, tem alguma religião, ponderou S. José. — Alguma tem, mas vaga e economica. Não entrou nunca em irmandades e ordens terceiras, porque nellas se rouba o que pertence ao Senhor; é o que elle diz para conciliar a devoção com a algibeira. Mas não se póde ter tudo; é certo que elle teme a Deus e crê na doutrina. — Bem, ajoelhou-se e rezou. — Rezou. Emquanto rezava, via eu a pobre alma, que padecia deveras, comquanto a esperança começasse a trocar-se em certeza intuitiva. Deus tinha de salvar a doente, por força, graças á minha intervenção, e eu ia interceder; é o que elle pensava, emquanto os lábios repetiam as palavras da oração. Acabando a oração, ficou Salles algum tempo olhando, com as mãos postas; afinal fallou a bocca do homem, fallou para confessar a dor, para jurar que nenhuma outra mão, além da do Senhor, podia atalhar o golpe. A mulher ia morrer... ia morrer... ia morrer... E repetia a palavra, sem sahir della. A mulher ia morrer. Não passava adiante. Prestes a formular o pedido e a promessa não achava palavras idôneas, nem approximativas, nem sequer dúbias, não achava nada, tão longo era o descostume de dar alguma cousa. Afinal saiu o pedido; a mulher ia morrer, elle rogava-me que a salvasse, que pedisse por ella ao Senhor. A promessa, porém, é que não acabava de sahir. No momento em que a bocca ia articular a primeira palavra, a garra da avareza mordia-lhe as entranhas e não deixava sahir nada. Que a salvasse… que intercedesse por ella... No ar, diante dos olhos, recortava-se-lhe a perna de cêra, e logo a moeda que ella havia de custar. A perna desappareceu, mas ficou a moeda, redonda, luzidia, amarella, ouro puro, completamente ouro, melhor que o dos castiçaes do meu altar, apenas dourados. Para onde quer que virasse os olhos, via a moeda, girando, girando, girando. E os olhos a apalpavam, de longe, e transmittiam-lhe a sensação fria do metal e até a do relevo do cunho. Era ella mesma, velha amiga de longos annos, companheira do dia e da noite, era ella que alli estava no ar, girando, ás tontas; era ella que descia do tecto, ou subia do chão, ou rolava no altar, indo da Epistola ao Evangelho, ou tilintava nos pingentes do lustre. Agora, a supplica dos olhos e a melancolia delles eram mais intensas e puramente voluntárias. Vi-os alongarem-se para mim, cheios de contricção, de humilhação, de desamparo; e a bocca ia dizendo algumas cousas soltas,— Deus,—os anjos do Senhor,—as bentas chagas, — palavras lacrimosas e tremulas, como para pintar por ellas a sinceridade da fé e a immensidade da dor. Só a promessa da perna é que não saía. A’s vezes, a alma, como pessoa que recolhe as forças, afim de saltar um vallo, fitava longamente a morte da mulher e rebolcava-se no desespero que ella lhe havia de trazer; mas, á beira do vallo, quando ia a dar o salto, recuava. A moeda emergia delle e a promessa ficava no coração do homem. O tempo ia passando. A allucinação crescia, porque a moeda, accelerando e multiplicando os saltos, multiplicava-se a si mesma e parecia uma infinidade dellas; e o conflicto era cada vez mais trágico. De repente, o receio de que a mulher podia estar expirando, gelou o sangue ao pobre homem e elle quiz precipitar-se. Podia estar expirando... Pedia-me que intercedesse por ella, que a salvasse... Aqui o demonio da avareza suggeriu-lhe uma transacção nova, uma troca de especie, dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e muito mais excelso que o das obras terrenas. E o Salles, curvo, contricto, com as mãos postas, o olhar submisso, desamparado, resignado, pedia-me que lhe salvasse a mulher. Que lhe salvasse a mulher, e promettia-me trezentos, — não menos, —, trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias. E repetia, emphatico; trezentos, trezentas, trezentos... Foi subindo, chegou a quinhentos, a mil padre-nossos e mil ave-marias. Não via esta somma escripta por lettras do alphabeto, mas em algarismos, como se ficasse assim mais viva, mais exacta, e a obrigação maior, e maior também a seducção. Mil padre-nossos, mil ave-marias. E voltaram as palavras lacrimosas e tremulas, as bentas chagas, os anjos do Senhor... 1,000—1,000—1,000. Os quatro algarismos foram crescendo tanto, que encheram a egreja de alto a baixo, e com elles, crescia o esforço do homem, e a confiança também; a palavra saía-lhe mais rapida, impetuosa, já fallada, mil, mil, mil mil… Vamos lá, podeis rir á vontade, concluiu S. Francisco de Salles. E os outros santos riram effectivamente, não daquelle grande riso descomposto dos deuses de Homero, quando viram o côxo Vulcano servir á mesa, mas de um riso modesto, tranquillo, beato e catholico. Depois, não pude ouvir mais nada. Caí redondamente no chão. Quando dei por; mim era dia claro... Corri a abrir todas as portas e janellas da egreja e da sacristia, para deixar entrar o sol, inimigo dos maus sonhos. UNS BRAÇOS IGNACIO estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco. — Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmello, ou um páo; sim, ainda póde apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco! — Olhe que lá fóra é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com elle maritalmente, ha annos. Confunde-me os papeis todos, erra as casas, vae a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! E’ o tal somno pesado e continuo. De manhã é o que se vê; primeiro que accorde é preciso quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei de accordal-o a páo de vassoura! D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges expeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens. Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Ignacio não era propriamente menino. Tinha quinze annos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bella, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituido de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade-Nova, e pol-o de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vel-o no fôro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na rua da Lapa, em 1870. Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruido da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vacca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo, calado. Ignacio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para collocal-os onde elles estavam no momento em que o terrível Borges o descompoz. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca elle poz os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo. Também a culpa era antes de D. Severina em trazel-os assim nús, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do hombro; dalli em diante ficavam-lhe os braços á mostra. Na verdade, eram bellos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ella os não trazia assim por faceira, senão porque já gastára todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; elle, entretanto, quasi que só a via á mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se póde dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o proprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabellos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãi lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro; nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete annos floridos e solidos. Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Acceso o charuto, fincou os cotovellos na mesa e fallou a D. Severina de trinta mil cousas que não interessavam nada ao nosso Ignacio; mas, emquanto fallava, não o descompunha e elle podia devanear á larga. Ignacio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole, alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pelle imaginários, ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas e encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações, catholicas; mas com o austero S. Pedro era de mais. A unica defesa do moço Ignacio é que elle não via nem um nem outro; passava os olhos por alli como por nada. Via só os braços de D. Severina, — ou porque sorrateiramente olhasse para elles, ou porque andasse com elles impressos na memória. — Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador. Não havia remedio; Ignacio bebeu a ultima gotta, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janellas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das aguas próximas e das montanhas ao longe restituia-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma cousa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que alli morava, e a vida era sempre a mesma, sahir de manhã com o Borges, andar por audiências e cartorios, correndo, levando papéis ao sello, ao distribuidor, aos escrivães, aos officiaes de justiça. Voltava á tarde, jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceiava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na familia, que se compunha apenas de D. Severina, nem Ignacio a via mais de tres vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãi e das irmãs; cinco semanas de silencio, porque elle só fallava uma ou outra vez na rua; em casa, nada. — Deixe estar, — pensou elle um dia — fujo daqui e não volto mais. Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permittia encaral-os logo abertamente, parece até que a principio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao vêr que elles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de tres semanas eram elles, moralmente fallando, as suas tendas de repouso. Aguentava toda a trabalheira de fóra, toda a melancolia da solidão e do silencio, toda a grosseria do patrão, pela unica paga de vêr, tres vezes por dia, o famoso par de braços. Naquelle dia, emquanto a noite ia cahindo e Ignacio estirava-se na rede (não tinha alli outra cama). D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episodio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma cousa. Rejeitou a ideia logo, uma criança! Mas ha idéias que são da familia das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, ellas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze annos; e ella advertiu que entre o nariz e a bocca do rapaz havia um principio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ella bonita? Esta outra ideia não foi rejeitada, antes affagada e beijada. E recordou então os modos delle, os esquecimentos, as distracções, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram symptomas, e concluiu que sim. — Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa. — Não tenho nada. — Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remedio para tirar o somno aos dorminhocos... E foi por alli, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; porque não iriam lá uma daquellas noites? Borges redarguia que andava cançado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola; e descompoz a comadre, descompoz o compadre, descompoz o afilhado, que não ia ao collegio, com dez annos! Elle, Borges, com dez annos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez annos! Havia de ter um bonito fim: — vadio, e o covado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensinal-o. D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que elles podiam irrital-o mais. A noite caíra de todo; ella ouviu o tlic do lampeão do gaz da rua, que acabavam de accender, e viu o clarão delle nas janellas da casa fronteira. Borges, cançado do dia, pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no somno, e deixou-a só na sala, ás escuras, comsigo e com a descoberta que acabava de fazer. Tudo parecia dizer á dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral, que ella só conheceu pelos effeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e elle que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que supposição, coincidência e possivelmente illusão. Não, não, illusão não era. E logo recolhia os indicios vagos, as attitudes do mocinho, o acanhamento, as distracções, para rejeitar a ideia de estar enganada. Dahi a pouco, (capciosa natureza!) reflectindo que seria mau accusal-o sem fundamento, admittiu que se illudisse, para o unico fim de observal-o melhor e averiguar bem a realidade das cousas. Já nessa noite D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Ignacio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da chicara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros optimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociaes e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina comprehendeu que não havia receiar nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro á pobre criança. Já se persuadia bem que elle era criança, e assentou de o tratar tão seccamente como até alli, ou ainda mais. E assim fez; Ignacio começou a sentir que ella fugia-lhe com os olhos, ou fallava-lhe áspero, quasi tanto como o proprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar, geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça delle; mas tudo isso era curto. — Vou-me embora, repetia elle na rua como nos primeiros dias. Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam-lhe um parenthesis no meio do longo e fastidioso periodo da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma ideia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para elle. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sahir, e para nunca mais; eis aqui como e porquê. D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvello e carinho. Um dia recommendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse agua fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãi, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Ignacio chegou ao extremo de confiança de rir um dia á mesa, cousa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era elle que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo applauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a bocca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria. A agitação de Ignacio ia crescendo, sem que elle pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Accordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lh’a não trouxesse á memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, ás vezes grande, quando dava com ella no topo da escada, olhando através das grades de pau da cancella, como tendo acudido a ver quem era. Um domingo, — nunca elle esqueceu esse domingo,—estava só no quarto, á janella, virado para o mar, que lhe fallava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d’agua, ou avoaçavam sómente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo christão; era um immense domingo universal. Ignacio passava-os todos alli no quarto ou á janella, ou relendo um dos tres folhetos que trouxera comsigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cançado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na vespera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princeza Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender porque é que todas as heroinas dessas velhas historias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e poz os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sahir a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as palpebras cerradas, viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ella mesma; eram os seus mesmos braços. E’ certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sahir da parede, dado que houvesse alli porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi á janella vêl-o sahir e só se recolheu quando elle se perdeu ao longe, no caminho da rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fóra do natural, inquieta, quasi maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo logar; depois caminhou até á porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez, cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Ignacio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal. Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com elle na rêde, dormindo, com o braço para fóra e o folheto cahido no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando vêr os olhos fechados, os cabellos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude. D. Severina sentiu bater-lhe o coração com vehemencia e recuou. Sonhára de noite com elle; póde ser que elle estivesse sonhando com ella. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos, como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dois, tres, cinco minutos, ou mais. Parece que o somno dava á adolescência de Ignacio uma expressão mais accentuada, quasi feminina, quasi pueril. Uma criança! disse ella a si mesma, n’aquella lingua sem palavras que todos trazemos comnosco. E esta ideia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos. — Uma criança! E mirou-o lentamente, fartou-se de vêl-o, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que accordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. De repente, estremeceu e recuou assustada; ouvira um ruido ao pé, na saleta do engommado; foi ver, era um gato que deitára uma tijela ao chão. Voltando devagarinho a espial-o, viu que dormia profundamente. Tinha o somno duro a criança! O rumor que a abalára tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ella continuou a vêl-o dormir, — dormir e talvez sonhar. Que não possamos vêr os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-hia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-hia visto diante da rêde, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, leval-as ao peito, cruzando alli os braços, OS famosos braços. Ignacio, namorado delles, ainda assim ouvia as palavras della, que eram lindas, callidas, principalmente novas, — ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que elle não conhecia, posto que o entendesse. Duas, tres e quatro vezes a figura esvaia-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor, com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que, inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca. Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fóra della. A differença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até á porta, vexada e medrosa. Dalli passou á sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a vêr se escutava algum rumor que lhe dissesse que elle accordára: e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o somno duro: nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contiguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crêr que fizesse aquillo; parece que embrulhára os seus desejos na ideia de que era uma criança namorada que alli estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinára-se e beijára-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida, mal comsigo e mal com elle. O medo de que elle podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calefrio. Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só accordou para jantar. Sentou-se á mesa lépido. Comquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão rispido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia comsigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um chale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sabbado, que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com elle; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse á saída; — Quando precisar de mim para alguma cousa, procure-me. — Sim, senhor. A Sra. D. Severina... — Está lá para o quarto, com muita dôr de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se della. Ignacio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a elle, nem o chale, nem nada. Estava tão bem! fallava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente... Tanta pensou que acabou suppondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distracção que a offendera; não era outra cousa; e d’aqui a cara fechada e o chale que cobria os braços tão bonitos... Não importa; levava comsigo o sabor do sonho. E através dos annos, por meio de outros amores, mais effectivos e longos, nenhuma sensação achou nunca egual á d’aquelle domingo, na rua da Lapa, quando elle tinha quinze annos. Elle mesmo exclama ás vezes, sem saber que se engana: — E foi um sonho! um simples sonho! UM HOMEM CELEBRE AH! O senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhásinha Motta, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: — Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor? Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era elle. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar á janella, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um saráu intimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viuva Camargo, rua do Areal, naquelle dia dos annos della, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viuva! Amava o riso e a folga, apezar dos sessenta annos em que entrava, e foi a ultima vez que folgou e riu, pois falleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viuva! Com que alma e diligencia arranjou alli umas dansas, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano.Finda a quadrilha, mal teriam descançado uns dez minutos, a viuva recorreu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular. —Diga, minha senhora. —E’ que nos toque agora aquella sua polka Não bula commigo, nhônhô. Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem enthusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram ás damas, e os pares entraram a saracotear a polka da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade, em que não fosse conhecida. Ia chegando á consagração do assobio e da cantarola nocturna. Sinhásinha Motta estava longe de suppor que aquelle Pestana que ella vira á mesa de jantar e depois ao piano, mettido n’uma sobrecasaca côr de rapé, cabello negro, longo c cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lh’o disse quando o viu vir do piano, acabada a polka. Dahi a pergunta admirativa. Vimos que elle respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, taes e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; elle recebeu-as cada vez mais enfadado, até que, allegando dor de cabeça, pediu licença para sahir. Nem ellas, nem a dona da casa, ninguém logrou retel-o. Offereceram-lhe remedios caseiros, algum repouso, não acceitou nada, teimou em sair e saiu. Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só affrouxou, depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas ahi mesmo esperava-o a sua grande polka festiva. De uma casa modesta, á direita, a poucos metros de distancia, sahiam as notas da composição do dia, sopradas em clarineta. Dansava-se. Pestana parou alguns instantes,pensou em arrepiar caminho, mas dispoz-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado opposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens; um delles, passando rentesinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polka, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na musica, e ahi foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, emquanto o autor da peça, desesperado, corria a metter-se em casa. Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veiu saber se elle queria cear. —Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir. Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto accendeu o gaz da sala. Pestana sorriu e, dentro d’alma, comprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a oleo, o de um padre, que o educára, que lhe ensinára latim e musica, e que, segundo os ociosos, era o proprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquella casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compuzera alguns motetes o padre, era doudo por musica, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmittiu no sangue, se é que tinham razão as boccas vadias, cousa de que se não occupa a minha historia, como ides ver. Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns tres, alguns gravados, outros lithographados, todos mal encaixilhados e de differente tamanho, mas postos alli como santos de uma egreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven. Veiu o café; Pestana engoliu a primeira chicara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janellas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o á meia noite e á segunda chicara de café. Entre meia noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar á janella e olhar para as estrellas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não apparecia e elle voltava a encostar-se á janella. As estrellas pareciam-lhe outras tantas notas musicaes fixadas no céu á espera de alguém que as fosse descollar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vasio, mas então a terra seria uma constellação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhásinha Motta, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nelle, famoso autor de tantas polkas amadas. Talvez a ideia conjugal tirou á moça alguns momentos de somno. Que tinha? Ella ia em vinte annos, elle em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polka, ouvida de cór, emquanto o autor desta não cuidava nem da polka nem da moça, mas das velhas obras classicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em ultimo caso ao diabo. Por que não faria elle uma só que fosse daquellas paginas immortaes. A’s vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de ideia; elle corria ao piano, para avental-a inteira, traduzil-a, em sons, mas era em vão; a ideia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos correrem, á ventura, a ver se as phantasias brotavam delles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma ideia apparecia, definida e bella, era echo apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que elle suppunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas dahi a dez minutos, eil-o outra vez, com os olhos em Mozart, a imital-o ao piano. Duas, tres, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cançado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; accordou ás sete horas. Vestiu-se e almoçou. — Meu senhor quer a bengala ou o chapéo de sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distracções do senhor eram frequentes. — A bengala. — Mas parece que hoje chove. — Chove, repetiu Pestana machinalmente. — Parece, que sim, senhor, o céu está meio escuro. Pestana olhava para o preto, vago, preoccupado. De repente: — Espera ahi. Correu á sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma cousa propria, uma inspiração real e prompta, uma polka, uma polka, buliçosa como dizem os annuncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneiando-as; dir-se-hia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discipulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da vespera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tedio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma, como de uma fonte perenne. Em pouco tempo estava a polka feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar: mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou della; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi leval-a ao editor das outras polkas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda. — Vai fazer grande effeito. Veiu a questão do titulo. Pestana, quando compoz a primeira polka, em 1871, quiz dar-lhe um titulo poético, escolheu este: Pingos de sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os titulos deviam ser, já de si, destinados á popularidade, — ou por allusão a algum successo do dia, — ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois A lei de 28 de Setembro, ou Candongas não fazem festa. — Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor. — Não quer dizer nada, mas popularisa-se logo. Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polka; mas não tardou que compuzesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os titulos que ao editor parecessem mais attrahentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante. Agora, quando Pestana entregou a nova polka, e passaram ao titulo, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que elle lhe apresentasse, titulo de espavento, longo e meneiado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio. — E para a vez seguinte, accrescentou, já trago outro de cór. Exposta á venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava á procura; mas a obra em si mesma era adequada ao genero original, convidava a dansal-a e decorava-se depressa. Em oito dias, estava celebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvil-a tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orchestras de theatro a executaram, e elle lá foi a um delles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado. Essa lua de mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremetteu contra aquella que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil, graciosa, «saltadeira de riacho», como diz a cantiga cearense. E ahi voltaram as nauseas de si mesmo, o odio a quem lhe pedia a nova polka da moda, e juntamente o esforço de compor alguma cousa ao sabor clássico, uma pagina que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquelle Jordão sem sahir baptisado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da musica facil... — As polkas que vão para o inferno fazer dansar o diabo, disse elle um dia, de madrugada, ao deitar-se. Mas as polkas não quizeram ir tão fundo. Vinham á casa de Pestana, á própria sala dos retratos, irrompiam tão promptas, que elle não tinha mais que o tempo de as compor, imprimil-as depois, gostal-as alguns dias, aborrecel-as, e tornar ás velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar. — Casar com quem? perguntou Sinhásinha Motta ao tio escrivão que lhe deu aquella noticia. — Vai casar com uma viuva. — Velha? — Vinte e sete annos. — Bonita? — Não, nem feia, assim,assim. Ouvi dizer que elle se enamorou della, porque a ouviu cantar na ultima festa de S. Francisco de Paula. Mas ouvi também que ella possue outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tisica. Os escrivães não deviam ter espirito, — mau espirito, quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de balsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou d’ahi a dias com uma viuva de vinte e sete annos, boa cantora e tisica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu genio. O celibato era, sem duvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia elle comsigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polkas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma familia de obras serias, profundas, inspiradas e trabalhadas. Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou á primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma delle, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias. Desde logo, para commemorar o consorcio, teve idéia de compor um nocturno. Chamar-lhe-hia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um principio de inspiração; não querendo dizer nada á mulher, antes de prompto, trabalhava ás escondidas; cousa difficil, porque Maria, que amava egualmente a arte, vinha tocar com elle, ou ouvil-o sómente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanaes, com tres artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se poude ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do nocturno; não lhe disse o que era, nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos. — Acaba, disse Maria; não é Chopin? Pestana empallideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos, e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A ideia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daquelles beccos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de S. Christovão. — Para que lutar? dizia elle. Vou com as polkas... Viva a polka! Homens que passavam por elle, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doudo. E elle ia andando, allucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a-vocação… Passou o velho matadouro; ao chegar á porteira da estrada de ferro, teve ideia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fel-o recuar. Voltou a si e tornou a casa. Poucos dias depois, — uma clara e fresca manhã de maio de 1876, — eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido.Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que poude, extrahiu uma polka. Fel-a publicar com um pseudonymo; nos dois mezes seguintes compoz e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado. Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um accrescimo, porque na visinhança havia um baile, em que se tocaram varias de suas melhores polkas. Já o baile era duro de soffrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Elle sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lubricos, a que obrigava alguma daquellas composições; tudo isso ao pé do cadaver pallido, um mólho de ossos, estendido na cama… Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ourapidas, húmidas de lagrimas e de suor, de aguas da Colonia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polka de um grande Pestana invisivel. Enterrada a mulher, o viuvo teve uma unica preoccupação: deixar a musica, depois de compor um Requiem, que faria executar no primeiro anniversario da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer cousa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda. Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Requiem deste auctor. Passaram-se semanas e mezes. A obra, célere a principio, affrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a? incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem ideia, nem inspiração, nem methodo; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito mezes, nove, dez, onze, e o Requiem não estava concluido. Redobrou de esforços; esqueceu lições e amisades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluil-a, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do anniversario veiu achal-o trabalhando. Contentou-se da missa resada e simples para elle só. Não se póde dizer se todas as lagrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos, foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Requiem. — Para que? dizia elle a si mesmo. Correu ainda um anno. No principio de 1878, appareceu-lhe o editor. — Lá vão dois annos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito? — Nada. — Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois annos. Venho propor-lhe um contracto; vinte polkas durante doze mezes; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o anno, podemos renovar. Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dividas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Acceitou o contracto. — Mas a primeira polka ha de ser já, explicou o editor. E’ urgente. Viu a carta do Imperador ao Caxias? Os liberaes foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polka ha de chamar-se; Bravos a eleição directa! Não é politica; é um bom titulo de occasião. Pestana compoz a primeira obra do contracto. Apezar do longo tempo de silencio, não perdera a originalidade nem a Inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polkas vieram vindo, regularmente. Conservára os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cahir em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa opera ou concerto de artista; ia, mettia-se a um canto, gozando aquella porção de cousas que nunca lhe haviam de brotar do cerebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de musica, despertava nelle o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem ideia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois. Assim foram passando os annos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polkas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este Cesar, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centesimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, ácerca de suas composições; a differença é que eram menos violentas. Nem enthusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio. Naquelle anno, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe appareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe noticia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polka de occasião. O enfermeiro, pobre clarineta de theatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu. — Mas ha de ser quando estiver bom de todo, concluiu. — Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana. Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarineta foi pé ante pé preparar o remedio; oeditor levantou-se e despediu-se. — Adeus. — Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polkas; a outra servirá para quando subirem os liberaes. Foi a unica pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, ás quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal comsigo mesmo. A DESEJADA DAS GENTES AH! conselheiro, ahi começa a fallar em verso. — Todos os homens devem ter uma lyra no coração, — ou não sejam homens. Que a lyra resoa toda a hora, nem por qualquer motivo, não o digo eu; mas de longe em longe, e por algumas reminiscências particulares... Sabe por que é que lhe pareço poeta, apezar das Ordenações do Reino e dos cabellos grisalhos? é porque vamos por esta Gloria adiante, costeando aqui a Secretaria de Estrangeiros... Lá está outeiro celebre... Adiante ha uma casa... — Vamos andando. — Vamos... Divina Quintilia! Todas essas caras que ahi passam são outras, mas fallam-me d'aquelle tempo, como se fossem as mesmas de outrora; é a lyra que resoa, e a imaginação faz o resto. Divina Quintilia! — Chamava-se Quintilia? Conheci de vista, quando andava na Escola de Medicina, uma linda moça com esse nome. Diziam que era a mais bella da cidade. — Ha de ser a mesma, porque tinha essa fama. Magra e alta? — Isso. Que fim levou? — Morreu em 1859. Vinte de Abril. Nunca me ha de esquecer esse dia. Vou contar-lhe um caso interessante para mim, e creio que também para o senhor. Olhe, a casa era aquella… Morava com um tio, chefe de esquadra reformado; tinha outra casa no Cosme Velho. Quando conheci Quintilia… Que edade pensa que teria, quando a conheci? — Se foi em 1855... — Em 1855. — Devia ter vinte annos. — Tinha trinta. — Trinta? — Trinta annos. Não os parecia, nem era nenhuma inimiga que lhe dava essa edade. Ella propria a confessava, e até com affectação. Ao contrario, uma de suas amigas affirmava que Quintilia não passava dos vinte e sete; mas como ambas tinham nascido no mesmo dia, dizia isso para diminuir-se a si propria. — Máo, nada de ironias; olhe que a ironia não faz boa cama com a saudade. — Que é a saudade senão uma ironia do tempo e da fortuna? Veja lá; começo a ficar sentencioso. Trinta annos; mas em verdade, não os parecia. Lembra-se bem que era magra e alta; tinha os olhos, como eu então dizia, que pareciam cortados da capa da ultima noite, mas apezar de nocturnos, sem mysteriös nem abysmos. A voz era brandissima, um tanto apaulistada, a bocca larga, e os dentes, quando ella simplesmente fallava, davam-lhe á bocca um ar de riso. Ria também, e foram os risos della, de parceria com os olhos, que me doeram multo durante certo tempo. — Mas se os olhos não tinham mysterios.. — Tanto não os tinham que cheguei ao ponto de suppor que eram as portas abertas do castello, e o riso o clarim que chamava os cavalleiros. Já a conhecíamos, eu e o meu companheiro de escriptorio, o João Nobrega, ambos principiantes na advocacia, e Íntimos como ninguém mais; mas nunca nos lembrou namoral-a. Ella andava então nogalarim; era bella, rica, elegante, e da primeira roda. Mas um dia, no antigo theatro Provisorio, entre dois actos dos Puritanos, estando eu n’um corredor, ouvi um grupo de moços que fallavam della, como de uma fortaleza inexpugnável. Dous confessaram haver tentado alguma cousa, mas sem fructo; e todos pasmavam do celibato da moça que lhes parecia sem explicação. E chalaceavam: um dizia que era promessa até ver se engordava primeiro; outro que estava esperando a segunda mocidade do tio para casar com elle; outro que provavelmente encommendára algum anjo ao porteiro do céu; trivialidades que me aborreceram muito, e da parte dos que confessavam tel-a cortejado ou amado, achei que era uma grosseria sem nome. No que elles estavam todos de accordo é que ella era extraordinariamente bella; ahi foram enthusiastas e sinceros. — Oh! ainda me lembro!... era muito bonita. — No dia seguinte, ao chegar ao escriptorio, entre duas causas que não vinham, contei ao Nobrega a conversação da vespera. Nobrega riu-se do caso, reflectiu, e depois de dar alguns passos, parou diante de mim, olhando, calado. — Aposto que a namoras? perguntei-lhe. — Não, disse elle; nem tu? Pois lembrou-me uma cousa: vamos tentar o assalto á fortaleza? Que perdemos com isso? Nada; ou ella nos põe na rua, e já podemos esperal-o, ou acceita um de nós, e tanto melhor para o outro que verá o seu amigo feliz. — Estás fallando sério? — Muito sério. — Nobrega accrescentou que não era só a belleza della que a fazia attrahente. Note que elle tinha a presumpção de ser espirito pratico, mas era principalmente um sonhador que vivia lendo e construindo apparelhos sociaes e politicos. Segundo elle, os taes rapazes do theatro evitavam fallar dos bens da moça, que eram um dos feitiços delia, e uma das causas prováveis da desconsolação de uns e dos sarcasmos de todos. E dizia-me: — Escuta, nem divinisar o dinheiro, nem também banil-o; não vamos crêr que elle dá tudo, mas reconheçamos que dá alguma cousa e até muita cousa, — este relogio, por exemplo. Combatamos pela nossa Quintilia, minha ou tua, mas provavelmente minha, porque sou mais bonito que tu. — Conselheiro, a confissão é grave; foi assim brincando...? — Foi assim brincando, cheirando ainda aos bancos da academia, que nos mettemos em negocio de tanta ponderação, que podia acabar em nada, mas deu muito de si. Era um começo estouvado, quasi um passatempo de crianças, sem a nota da sinceridade; mas o homem põe e a especie dispõe. Conheciamol-a, posto não tivéssemos encontros frequentes; uma vez que nos dispuzemos a uma acção commum, entrou um elemento novo na nossa vida, e dentro de um mez estavamos brigados. — Brigados? — Ou quasi. Não tínhamos contado com ella, que nos enfeitiçou a ambos, violentamente. Em algumas semanas já pouco fallavamos de Quintilia, e com indifferença; tratavamos de enganar um ao outro e dissimular o que sentiamos. Foi assim que as nossas relações se dissolveram, no fim de seis mezes, sem odio, nem luta, nem demonstração externa, porque ainda nos fallavamos, onde o acaso nos reunia; mas já então tinhamos banca separada. — Começo a ver uma pontinha do drama... —Tragédia, diga tragédia; porque dahi a pouco tempo, ou por desengano verbal que ella lhe désse, ou por desespero de vencer, Nobrega deixou-me só em campo. Arranjou uma nomeação de juiz municipal lá para os sertões da Bahia, onde definhou e morreu antes de acabar o quatriennio. E juro-lhe que não foi o inculcado espirito pratico de Nobrega que o separou de mim; elle, que tanto fallára das vantagens do dinheiro, morreu apaixonado como um simples Werther. — Menos a pistola. — Também o veneno mata; e o amor de Quintilia podia dizer-se alguma cousa parecido com isso; foi o que o matou, e o que ainda hoje me doe... Mas, vejo pelo seu dito que o estou aborrecendo... — Pelo amor de Deus. Juro-lhe que não; foi uma graçola que me escapou. Vamos adiante, conselheiro; ficou só em campo. — Quintilia não deixava ninguem estar só em campo, — não digo por ella, mas pelos outros. Muitos vinham alli tomar um calix de esperanças, e iam cear a outra parte. Ella não favorecia a um mais que a outro; mas era lhana, graciosa, e tinha essa especie de olhos derramados que não foram feitos para homens ciumentos. Tive ciúmes amargos e, ás vezes, terríveis. Todo argueiro me parecia um cavalleiro, e todo cavalleiro um diabo. Afinal acostumei-me a vêr que eram passageiros de um dia. Outros me mettiam mais medo, eram os que vinham dentro da luva das amigas. Creio que houve duas ou tres negociações dessas, mas sem resultado. Quintilia declarou que nada faria sem consultar o tio, e o tio aconselhou a recusa, — cousa que ella sabia de antemão. O bom velho não gostava nunca da visita de homens, com receio de que a sobrinha escolhesse algum e casasse. Estava tão acostumado a trazel-a ao pé de si, como uma muleta da velha alma aleijada, que temia perdel-a inteiramente. — Não seria essa a causa da isenção systematica da moça? — Vai vêr que não. — O que noto é que o senhor era mais teimoso que os outros... — ...Illudido, a principio, porque no meio de tantas candidaturas mallogradas, Quintilia preferia-me a todos os outros homens, e conversava commigo mais largamente e mais intimamente, a tal ponto que chegou a correr que nos casavamos. — Mas conversavam de que? — De tudo o que ella não conversava com os outros; e era de fazer pasmar que uma pessoa tão amiga de bailes e passeios, de valsar e rir, fosse commigo tão severa e grave, tão differente do que costumava ou parecia ser. — A razão é clara: achava a sua conversação menos ensossa que a dos outros homens. — Obrigado; era mais profunda a causa da differença, e a differença ia-se accentuando com os tempos. Quando a vida cá em baixo a aborrecia muito, ia para o Cosme Velho, e alli as nossas conversações eram mais frequentes e compridas. Não lhe posso dizer, nem o senhor comprehenderia nada, o que foram as horas que alli passei, incorporando na minha vida toda a vida que jorrava della. Muitas vezes quiz dizer-lhe o que sentia, mas as palavras tinham medo e ficavam no coração. Escrevi cartas sobre cartas; todas me pareciam frias, diffusas, ou inchadas de estylo. Demais, ella não dava ensejo a nada; tinha um ar de velha amiga. No principio de 1857 adoeceu meu pai em Itaborahy; corri a vel-o, achei-o moribundo. Este facto reteve-me fóra da Côrte uns quatro mezes. Voltei pelos fms de maio. Quintilia recebeu-me triste da minha tristeza, e vi claramente que o meu luto passara aos olhos della... — Mas que era isso senão amor? — Assim o cri, e dispuz a minha vida para desposal-a. Nisto, adoeceu o tio gravemente. Quintilia não ficava só, se elle morresse, porque, além dos muitos parentes espalhados que tinha, morava com ella agora, na casa da rua do Cattete, uma prima, D. Anna, viuva; mas, é certo que a affeição principal ia-se embora e nessa transição da vida presente á vida ulterior podia eu alcançar o que desejava. A moléstia do tio foi breve; ajudada da velhice, levou-o em duas semanas. Digo-lhe aqui que a morte delle lembrou-me a de meu pai, e a dôr que então senti foi quasi a mesma. Quintilia viu-me padecer, comprehendeu o duplo motivo, e, segundo me disse depois, estimou a coincidência do golpe, uma vez que tinhamos de o receber sem falta e tão breve. A palavra pareceu-me um convite matrimonial; dois mezes depois cuidei de pedil-a em casamento. D. Anna ficára morando com ella e estavam no Cosme Velho. Fui alli, achei-as juntas no terraço, que ficava perto da montanha. Eram quatro horas da tarde de um domingo. D. Anna, que nos presumia namorados, deixou-nos o campo livre. — Emfim! — No terraço, logar solitário, e posso dizer agreste, proferi a primeira palavra. O meu plano era justamente precipitar tudo, com medo de que, cinco minutos de conversa, me tirassem as forças. Ainda assim, não sabe o que me custou; custaria menos uma batalha, e juro-lhe que não nasci para guerras. Mas aquella mulher magrinha e delicada, impunha-se-me, como nenhuma outra, antes e depois... — E então? — Quintilia adivinhára, pelo transtorno do meu rosto, o que lhe ia pedir, e deixou-me fallar para preparar a resposta. A resposta foi interrogativa e negativa. Casar para que? Era melhor que ficássemos amigos como dantes. Respondi-lhe que a amisade era, em mim, desde muito, a simples sentinella do amor; não podendo mais contel-o, deixou que elle sahisse. Quintilia sorriu da metaphora, o que me doeu, e sem razão; ella, vendo o effeito, fez-se outra vez séria e tratou de persuadir-me de que era melhor não casar. — Estou velha, disse ella; vou em trinta e tres annos. Mas se eu a amo assim mesmo, repliquei, e disse-lhe uma porção de cousas, que não poderia repetir agora. Quintilia reflectiu um instante; depois insistiu nas relações de amisade; disse que, posto que mais moço que ella, tinha a gravidade de um homem mais velho, e inspirava-lhe confiança como nenhum outro. Desesperançado, dei algumas passadas, depois sentei-me outra vez e narrei-lhe tudo. Ao saber da minha briga com o amigo e companheiro da academia, e a separação em que ficámos, sentiu-se, não sei se diga, magoada ou irritada. Censurou-nos a ambos; não valia a pena que chegássemos a tal ponto. — A senhora, diz isso, porque não sente a mesma cousa. —Mas então é um delirio? — Creio que sim; o que lhe afianço é que ainda agora, se fosse necessário, separar-me-hia delle uma e cem vezes; e creio poder affirmar-lhe que elle faria a mesma cousa. Aqui olhou ella espantada para mim, como se olha para uma pessoa cujas faculdades parecem transtornadas; depois abanou a cabeça, e repetiu que fôra um erro; não valia a pena. — Fiquemos amigos, disse-me, estendendo a mão. — E’ impossível; pede-me cousa superior ás minhas forças, nunca poderei vêr na senhora uma simples amiga; não desejo impor-lhe nada; dir-lhe-lhei até que nem mais insisto, porque não acceitaria outra resposta agora. Trocámos ainda algumas palavras, e retirei-me... Veja a minha mão. — Treme-lhe ainda... — E não lhe contei tudo. Não lhe digo aqui os aborrecimentos que tive, nem a dôr e o despeito que me ficaram. Estava arrependido, zangado, devia ter provocado aquelle desengano desde as primeiras semanas; mas a culpa foi da esperança que é uma planta damninha, que me comeu o logar de outras plantas melhores. No fim de cinco dias saí para Itaborahy, onde me chamaram alguns interesses do inventario de meu pai. Quando voltei, tres semanas depois, achei em casa uma carta de Quintilia. — Oh! — Abri-a alvoroçadamente: datava de quatro dias. Era longa; alludia aos últimos successos, e dizia cousas meigas e graves. Quintilia affirmava ter esperado por mim todos os dias, não cuidando que eu levasse o egoismo até não voltar lá mais, por isso escrevia-me, pedindo que fizesse dos meus sentimentos pessoaes e sem echo uma pagina de historia acabada; que ficasse só o amigo, e lá fosse ver a sua amiga. E concluía com estas singulares palavras: «Quer uma garantia? Juro-lhe que não casarei nunca.» Comprehendi que um vinculo de sympathia moral nos ligava um ao outro; com a differença que o que era em mim paixão especifica, era nella uma simples eleição de caracter. Éramos dois socios, que entravam no commercio da vida com differente capital: eu, tudo o que possuia; ella, quasi um obulo. Respondí á carta della nesse sentido; e declarei que era tal a minha obediência e o meu amor, que cedia, mas de má vontade, porque, depois do que se passara entre nós, ia sentir-me humilhado. Risquei a palavra ridículo, já escripta, para poder ir vel-a sem este vexame; bastava o outro. — Aposto que seguiu atraz da carta? E’ o que eu faria, porque essa moça, ou eu me engano ou estava morta por casar com o senhor. — Deixe a sua physiologia usual; este caso é particularíssimo. — Deixe-me adivinhar o resto; o juramento era um anzol mystico; depois, o senhor, que o recebera, podia desobrigal-a delle, uma vez que aproveitasse com a absolvição. Mas, emfim, correu á casa della. — Não corri; fui dois dias depois. No intervallo, respondeu ella á minha carta com um bilhete carinhoso, que rematava com esta idéa: « não falle de humilhação, onde não houve publico.» Fui, voltei uma e mais vezes e restabeleceram-se as nossas relações. Não se fallou em nada; ao principio, custou-me muito parecer o que era dantes; depois, o demonio da esperança veiu pousar outra vez no meu coração; e, sem nada exprimir, cuidei que um dia, um dia tarde, ella viesse a casar commigo. E foi essa esperança que me rectificou aos meus proprios olhos, na situação em que me achava. Os boatos do nosso casamento correram mundo. Chegaram aos nossos ouvidos; eu negava formalmente e sério; ella dava de hombros e ria. Foi essa phase da nossa vida a mais serena para mim, salvo um incidente curto, um diplomata austriaco ou não sei quê,rapagão, elegante, ruivo, olhos grandes e attractivos, e fidalgo ainda por cima. Quintilia mostrou-se-lhe tão graciosa, que elle cuidou-se acceito, e tratou de ir adiante. Creio que algum gesto meu, insconsciente, ou então um pouco da percepção fina que o céu lhe déra, levou depressa o desengano á legação austríaca. Pouco depois ella adoeceu; e foi então que a nossa intimidade cresceu de vulto. Ella, emquanto se tratava, resolveu não sahir, e isso mesmo lhe disseram os médicos. Lá passava eu muitas horas diariamente. Ou ellas tocavam, ou jogavamos os tres, ou então lia-se alguma cousa; a maior parte das vezes conversavamos sómente. Foi então que a estudei muito; escutando as suas leituras vi que os livros puramente amorosos achava-os incomprehensiveis, e, se as paixões ahi eram violentas, largava-os com tédio. Não fallava assim por ignorante; tinha noticia vaga das paixões, e assistira a algumas alheias. — De que moléstia padecia? — Da espinha. Os médicos diziam que a moléstia não era talvez recente, e ia tocando o ponto melindroso. Chegámos assim a 1859. Desde março desse anno a moléstia aggravou-se muito; teve uma pequena parada, mas para os fins do mez chegou ao estado desesperador. Nunca vi depois creatura mais energica diante da imminente catastrophe; estava então de uma magreza transparente, quasi fluida; ria, ou antes, sorria apenas, e vendo que eu escondia as minhas lagrimas, apertava-me as mãos agradecida. Um dia, estando só com o medico, perguntou-lhe a verdade; elle ia mentir; ella disse-lhe que era inútil, que estava perdida. — Perdida, não, murmurou o medico. — Jura que não estou perdida? — Elle hesitou, ella agradeceu-lh’o. Uma vez certa que morria, ordenou o que promettera a si mesma. — Casou com o senhor, aposto? — Não me relembre essa triste ceremonia; ou antes, deixe-me relembral-a, porque me traz algum alento do passado. Não acceitou recusas nem pedidos meus; casou commigo á beira da morte. Foi no dia 18 de Abril de 1859. Passei os últimos dois dias, até 20 de Abril, ao pé da minha noiva moribunda, e abracei-a pela primeira vez, feita cadaver. — Tudo isso é bem exquisito. — Não sei o que dirá a sua physiologia. A minha, que é de profano, crê que aquella moça tinha ao casamento uma aversão puramente physica. Casou meio defunta, ás portas do nada. Chame-lhe monstro, se quer, mas accrescente divino. A CAUSA SECRETA GARCIA, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o tecto; Maria Luiza, perto da janella, concluia um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum d’elles dizia nada. Tinham fallado do dia, que estivera excellente, — de Catumby, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saude, que adiante se explicará. Como os tres personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a historia sem rebuço. Tinham fallado também de outra cousa, além d’aquellas tres, cousa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saude. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luiza parecem ainda trêmulos, ao passo que ha no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazel-o entender, é preciso remontar á origem da situação. Garcia tinha-se formado em medicina, no anno anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, á porta da Santa Casa; entrava, quando o outro sahia. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tel-a-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distracções era ir ao theatro de S. Januario, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mez, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquelle recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, appareceu alli Fortunato, e sentou-se ao pé d’elle. A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouviu-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a attenção d’elle redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoaes do visinho. No fim do drama, veiu uma farça; mas Fortunato não esperou por ella e sahiu; Garcia sahiu atraz d’elle. Fortunato foi pelo becco do Cotovello, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando ás vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e elle ia andando. No largo da Carioca entrou n’um tilbury, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada. Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sotão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este, que alguns homens conduziam, escada acima, ensanguentado. O preto que o servia, acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um medico. — Já ahi vem um, acudiu alguém. Garcia olhou: era o proprio homem da Santa Casa e do theatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a supposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha familia ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e elle assumiu a direcção do serviço, pediu ás pessoas extranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era visinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o medico. Em seguida contou o que se passara. — Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que elles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um d’aquelles beccos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por elle, metteu-lheo punhal. Não cahiu logo; disse onde morava, e, como era a dous passos, achei melhor trazel-o. — Conhecia-o antes? perguntou Garcia. — Não, nunca o vi. Quem é ? — E’ um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa. — Não sei quem é. Medico e subdelegado vieram d’ahi a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumby. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo, ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os pannos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o medico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar prompto a auxiliar as pesquizas da policia. Os dous sahiram, elle e o estudante ficaram no quarto. Garcia estava attonito. Olhou para elle, viu-o sentar-se tranquillamente, estirar as pernas, metter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, côr de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, secca e fria. Cara magra e pallida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta annos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma cousa ácerca do ferido; mas tornava logo a olhar para elle, emquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um acto de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que acceitar o coração humano como um poço de mysterios. Fortunato sahiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluida, desappareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e numero. — Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sahir, disse o convalescente. Correu a Catumby dahi a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte d’elle, sentado e calado, alisava o chapéo com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sahir, e sahiu. — Cuidado com os capoeiras! disse-lhe á porta o dono da casa, rindo-se. O pobre diabo sahiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdem, forcejando por esquecel-o, explical-o ou perdoal-o, para que no coração só ficasse a memória do beneficio; mas o esforço era vão. O resentimento, hospede novo e exclusivo, entrou e pôz fóra o beneficio, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar á cabeça e refugiar-se alli como uma simples idéa. Foi assim que o proprio bem-feitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão. Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuia, em germen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da analyse, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas moraes, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumby, mas advertiu que nem recebera d’elle o offerecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum. Tempos depois, estando já formado, e morando na rua de Mata-Cavallos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gondola, encontrou-o ainda outras vezes, e a frequência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visital-o ali perto, em Catumby. — Sabe que estou casado? — Não sabia. — Casei-me ha quatro mezes, podia dizer quatro dias. Vá jantar comnosco domingo. — Domingo? — Não esteja forjando desculpas; não admitto desculpas. Vá domingo. Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura d’elle não mudara; OS olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não; eram mais attrahentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgratavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luiza é que possuia ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anno se parecia não passar de dezenove. Garcia, á segunda vez que lá foi, percebeu que entre elles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma affinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os tres juntos, perguntou Garcia a Maria Luiz se tivera noticia das circumstancias em que elle conhecera o marido. — Não, respondeu a moça. — Vai ouvir uma acção bonita. — Não vale a pena, interrompeu Fortunato. — A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o medico. Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os hombros, mas não ouvia com indifferença. No fim contou elle proprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em summa, um estúrdio. E ria muito ao contal-a. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e obliqua; o riso d’elle era jovial e franco. — Singular homem! pensou Garcia. Maria Luiza ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o medico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação d’este e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu elle, que, se algum dia fundar uma casa de saude, irei convidal-o. — Valeu? perguntou Fortunato. — Valeu o que? — Vamos fundar uma casa de saude? — Não valeu nada; estou brincando. — Podia-se fazer alguma cousa; e para o senhor, que começa a clinica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve. Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéa tinha-se mettido na cabeça ao outro, e não foi possivel recuar mais. Na verdade, era uma boa estréa para elle, e podia vir a ser um bom negocio para ambos. Acceitou finalmente, dahi a dias, e foi uma desillusão para Maria Luiza. Creatura nervosa e frágil, padecia só com a idéa de que o marido tivesse de viver em contacto com enfermidades humanas; mas não ousou oppor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi elle o proprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas. Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua de D. Manoel não; era um caso fortuito, mas assentava na propria natureza d’este homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia afflictiva ou repellente, e estava sempre prompto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e applaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos. Tenho muita fé nos cáusticos, dizia elle. A communhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; alli jantava quasi todos os dias, alli observava a pessoa e a vida de Maria Luiza, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma cousa o agitava, quando ella apparecia, quando fallava, quando trabalhava, calada, ao canto da janella, ou tocava ao piano umas musicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por elle, quiz expellil-o, para que entre elle e Fortunato não houvesse outro laço que o da amisade; mas não pôde. Pôde apenas trancal-o; Maria Luiza comprehendeu ambas as cousas, a affeição e o silencio, mas não se deu por achada. No começo de Outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do medico a situação da moça. Fortunato mettera-se a estudar anatomia e physiologia, e occupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animaes atordoavam os doentes, mudou o laboratorio para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os soffrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o medico e pediu-lhe que, como cousa sua, alcançasse do marido a cessação de taes experiencias. — Mas a senhora mesma... Maria Luiza acudiu, sorrindo; — Elle naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como medico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz... Garcia alcançou promptamente que o outro acabasse com taes estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas póde ser que sim. Maria Luiza agradeceu ao medico, tanto por ella como pelos animaes, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma cousa, ella respondeu que nada. — Deixe ver o pulso. — Não tenho nada. Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apprehensivo. Cuidava, ao contrario, que ella podia ter alguma cousa que era preciso observal-a, e avisar o marido em tempo. Dous dias depois,—exactamente o dia em que os vemos agora,— Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e elle caminhou para alli; ia chegando á porta, no momento em que Maria Luiza sahia afflicta. — Que é? perguntou-lhe. — O rato! o rato! exclamou a moça suffocada e afastando-se. Garcia lembrou-se que, na vespera ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levára um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado á mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual puzera um prato com espirito de vinho. O liquido flammejava. Entre o pollegar e o indice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até á chamma, rápido, para não matal-o, e dispoz-se a fazer o mesmo á terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorisado. — Mate-o logo! disse-lhe. — Já vai. E com um sorriso unico, reflexo de alma satisfeita, alguma cousa que traduzia a delicia intima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até á chamma. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o supplicio continuasse, mas não chegou a fazel-o, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquella serenidade radiosa da physionomia. Faltava cortar a ultima pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata cahiu, e elle ficou olhando para o rato meio cadaver. Ao descel-o pela quarta vez, até a chamma, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida. Garcia, defronte, conseguira dominar a repugnância do expectaculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem odio; tão sómente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bella sonata ou a vista de uma estatua divina, alguma cousa parecida com a pura sensação esthetica. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquillo mesmo. A chamma ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um residue de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho, e pela ultima vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cahir o cadaver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue. Ao levantar-se, deu com o medico e teve um sobresalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida. — Castiga sem raiva, pensou o medico, pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dôr alheia lhe póde dar: é o segredo d’este homem. Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar credito. Relembrava os actos d’elle, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um dilettantismo sui generis uma reducção de Caligula. Quando,Maria Luiza voltou ao gabinete, d’ahi a pouco, o marido foi ter com ella, rindo, pegou-lhe nas mãos e fallou-lhe mansamente: — Fracalhona! E voltando-se para o medico: — Ha de crer que quasi desmaiou? Maria Luiza defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se á janella com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo d’esta historia. Hão de lembrar-se que, depois de terem fallado de outras cousas, ficaram calados os tres, o marido sentado e olhando para o tecto, o medico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luiza scismava e tossia; o medico indagava de si mesmo se ella não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ella e cuidou de os vigiar. Ella tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a mascara. Era a tisica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a noticia como um golpe; amava devéras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ella, custava-lhe perdel-a. Não poupou esforços, medicos, remedios, ares, todos os recursos e todos os palliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal. Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a indole do marido subjugou qualquer outra affeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio n’aquella decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as afflicções da bella creatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoismo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lh’os pagou com uma só lagrima, publica ou intima. Só quando ella expirou, é que elle ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só. De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luiza, que a ajudára a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadaver, ambos pensativos; mas o proprio marido estava fatigado, o medico disse-lhe que repousasse um pouco. - Vá descançar, passe pelo somno uma hora ou duas: eu irei depois. Fortunato sahiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quiz dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou á sala. Caminhava na ponta dos pés para não acordar aparenta, que dormia perto. Chegando á porta, estacou assombrado. Garcia tinha-se chegado ao cadaver, levantára o lenço e contemplára por alguns instantes as feições defunctas. Depois, como se a morte espiritualisasse tudo, inclinou-se e beijou-o na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou á porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amisade, podia ser o epilogo de um livro adultero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compol-o de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos captiva ao resentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços. Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadaver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lagrimas, que vieram em borbotões, lagrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, da porta onde ficára, saboreou tranquillo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa. TRIO EM LÁ MENOR I ADAGIO CANTABILE MARIA Regina acompanhou a avó até o quarto, despediu-se e recolheu-se ao seu. A mucama que a servia, apesar da familiaridade que existia entre ellas, não pôde arrancar-lhe uma palavra, e sahiu, meia hora depois, dizendo que Nhanhã estava muito séria. Logo que ficou só, Maria Regina sentou-se ao pé da cama, com as pernas estendidas, os pés cruzados, pensando. A verdade pede que diga que esta moça pensava amorosamente em dous homens ao mesmo tempo, um de vinte e sete annos, Maciel, — outro de cincoenta, Miranda. Convenho que é abominável, mas não posso alterar a feição das cousas, não posso negar que se os dous homens estão namorados d’ella, ella não o está menos de ambos. Uma exquisita, em summa; ou, para fallar como as suas amigas de collegio, uma desmiolada. Ninguém lhe nega coração excellente e claro espirito; mas a imaginação é que é o mal, uma imaginação adusta e cobiçosa, insaciável principalmente, avessa á realidade, sobrepondo ás cousas da vida outras de si mesma; dahi curiosidades irremediáveis. A visita dos dous homens (que a namoravam de pouco) durou cerca de uma hora. Maria Regina conversou alegremente com elles, e tocou ao piano uma peça classica, uma sonata, que fez a avó cochilar um pouco. No fim discutiram musica. Miranda disse cousas pertinentes ácerca da musica moderna e antiga; a avó tinha a religião de Bellini e da Norma, e fallou das toadas do seu tempo, agradaveis, saudosas e principalmente claras. A neta ia com as opiniões do Miranda; Maciel concordou polidamente com todos. Ao pé da cama, Maria Regina reconstruia agora tudo isso, a visita, a conversação, a musica, o debate, os modos de ser de um e de outro, as palavras do Miranda e os bellos olhos do Maciel. Eram onze horas, a unica luz do quarto era a lamparina, tudo convidava ao sonho e ao devaneio. Maria Regina, á força de recompor a noite, viu alli dous homens ao pé d’ella, ouviu-os, e conversou com elles durante uma porção de minutos, trinta ou quarenta, ao som da mesma sonata tocada por ella: 1a, la, la… II ALLEGRO MA NON TROPPO No dia seguinte a avó e a neta foram visitar uma amiga na Tijuca. Na volta a carruagem derribou um menino, que atravessava a rua, correndo. Uma pessoa que viu isto, atirou-se aos cavallos, e com perigo de si propria, conseguiu detel-os e salvar a criança, que apenas ficou ferida e desmaiada. Gente, tumulto, a mãe do pequeno acudiu em lagrimas, Maria Regina desceu do carro e acompanhou o ferido até á casa da mãe, que era alli ao pé. Quem conhece a technica do destino adivinha logo que a pessoa que salvou o pequeno foi um dos dous homens da outra noite; foi o Maciel. Feito o primeiro curativo, o Maciel acompanhou a moça até á carruagem e acceitou o logar que a avó lhe offereceu até á cidade. Estavam no Engenho Velho. Na carruagem é que Maria Regina viu que o rapaz trazia a mão ensanguentada. A avó inqueria a miudo se o pequeno estava muito mal, se escaparia; Maciel disse-lhe que os ferimentos eram leves. Depois contou o accidente: estava parado, na calçada, esperando que passasse um tilbury, quando viu o pequeno atravessar a rua, por diante dos cavallos; comprehendeu o perigo, e tratou de conjural-o, ou diminuil-o. — Mas está ferido, disse a velha. — Cousa de nada. — Está, está, acudiu a moça; podia ter-se curado também. — Não é nada, teimou elle; foi um arranhão: enxugo isto com o lenço. Não teve tempo de tirar o lenço; Maria Regina offereceu-lhe o seu. Maciel, commovido, pegou n’elle, mas hesitou em maculal-o. Vá, vá, dizia-lhe ella; e, vendo-o acanhado, tirou-lh’o e enxugou-lhe, ella mesma, o sangue da mão. A mão era bonita, tão bonita como o dono; mas parece que elle estava menos preoccupado com a ferida da mão que com o amarrotado dos punhos. Conversando, olhava para elles, disfarçadamente, e escondia-os. Maria Regina não via nada, via-o a elle, via-lhe principalmente a acção que acabava de praticar, e que lhe punha uma auréola. Comprehendeu que a natureza generosa saltara por cima dos hábitos pausados e elegantes do moço, para arrancar á morte uma criança que elle nem conhecia. Fallaram do assumpto até á porta da casa d’ellas: Maciel recusou, agradecendo, a carruagem que ellas lhe offereciam, e despediu-se até á noite. — Até á noite! repetiu Maria Regina. Esperou-o anciosa. Elle chegou, por volta de oito horas, trazendo uma fita preta enrolada na mão, e pediu desculpa de vir assim; mas disseram-lhe que era bom pôr alguma cousa e obedeceu. — Mas está melhor! — Estou bom, não foi nada. — Venha, venha, disse-lhe a avó, do outro lado da sala. Sente-se aqui ao pé de mim: o senhor é um heroe. Maciel ouvia sorrindo. Tinha passado o ímpeto generoso, começava a receber os dividendos do sacrificio. O maior d’elles era a admiração de Maria Regina, tão ingênua e tamanha, que esquecia a avó e a saia. Maciel sentara-se ao lado da velha, Maria Regina defronte de ambos. Emquanto a avó, restabelecida do susto, contava as commoções que padecera, a principio sem saber de nada, depois imaginando que a criança teria morrido, os dous olhavam um para o outro, discretamente, e afinal esquecidamente. Maria Regina perguntava a si mesma onde acharia melhor noivo. A avó, que não era myope, achou a contemplação excessiva, e fallou de outra cousa; pediu ao Maciel algumas noticias de sociedade. III ALLEGRO APPASSIONATO Maciel era homem, como elle mesmo dizia em francez, très rèpandu; sacou da algibeira uma porção de novidades miúdas e interessantes. A maior de todas foi a de estar desfeito o casamento de certa viuva. — Não me diga isso! exclamou a avó. E ella? — Parece que foi ella mesma que o desfez: o certo é que esteve ante-hontem no baile, dançou e conversou com muita animação. Oh! abaixo da noticia, o que fez mais sensação em mim foi o collar que ella levava, magnifico... — Com uma cruz de brilhantes? perguntou a velha. Conheço; é muito bonito. — Não, não é esse. Maciel conhecia o da cruz, que ella levara á casa de um Mascarenhas; não era esse. Este outro ainda ha poucos dias estava na loja do Rezende, uma cousa linda. E descreveu-o todo, numero, disposição e facetado das pedras; concluiu dizendo que foi a joia da noite. — Para tanto luxo era melhor casar, ponderou maliciosamente a avó. — Concordo que a fortuna d’ella não dá para isso. Ora, espere! Vou amanhã, ao Rezende, por curiosidade, saber o preço por que o vendeu. Não foi barato, não podia ser barato. — Mas por que é que se desfez o casamento? — Não pude saber; mas tenho de jantar sabbado com o Venancinho Corrêa, e elle conta-me tudo. Sabe que ainda é parente d’ella? Bom rapaz; está inteiramente brigado com o barão... A avó não sabia da briga; Maciel contou-lh’a de principio a fim, com todas as suas causas e aggravantes. A ultima gotta no calix foi um dito, á mesa de jogo, uma allusão ao defeito do Venancinho, que era canhoto. Contaram-lhe isto, e elle rompeu inteiramente as relações com o barão. O bonito é que os parceiros do barão accusaram-se uns aos outros de terem ido contar as palavras d’este. Maciel declarou que era regra sua não repetir o que ouvia á mesa do jogo, por que é logar em que ha certa franqueza. Depois fez a estatística da rua do Ouvidor, na vespera, entre uma e quatro horas da tarde. Conhecia os nomes das fazendas e todas as côres modernas. Citou as principaes toilettes do dia. A primeira foi a de Mme. Penna Maia, bahiana distincta, trés-pschutt. A segunda foi a de Mlle. Pedrosa, filha de um desembargador de S. Paulo, adorable, e apontou mais tres, comparou depois as cinco, deduziu e concluiu. A’s vezes esquecia-se e fallava francez; póde mesmo ser que nâo fosse esquecimento, mas proposito; conhecia bem a lingua, exprimia-se com facilidade e formulara um dia este axioma ethnologico — que ha parizienses em toda a parte. De caminho, explicou um problema de voltarete. — A senhora tem cinco trunfos de espadilha e manilha, tem rei e dama de copas... Maria Regina ia descambando da admiração no fastio; agarrava-se aqui e alli, contemplava a figura moça do Maciel, recordava a bella acção daquelle dia, mas ia sempre escorregando; o fastio não tardava a absorvel-a. Não havia remedio. Então recorreu a um singular expediente. Tratou de combinar os dous homens, o presente com o ausente, olhando para um, e escutando o outro de memória; recurso violento e doloroso, mas tão efficaz, que ella pôde contemplar por algum tempo uma creatura perfeita e unica. N’isto appareceu o outro, o proprio Miranda. Os dous homens comprimentaram-se friamente; Maciel demorou-se ainda uns dez minutos e sahiu. Miranda ficou. Era alto e secco, physionomia dura e gelada. Tinha o rosto cançado, os cincoenta annos confessavam-se taes, nos cabellos grisalhos, nas rugas e na pelle. Só os olhos continham alguma cousa menos caduca. Eram pequenos, e escondiam-se por baixo da vasta arcada do sobr’olho; mas lá, ao fundo, quando não estavam pensativos, centelhavam de mocidade. A avó perguntou-lhe, logo que Maciel sahiu, se já tinha noticia do accidente do Engenho-Velho, e contou-lh’o com grandes encarecimentos; mas o outro ouvia tudo sem admiração nem inveja. — Não acha sublime? perguntou ella, no fim. — Acho que elle salvou talvez a vida a um desalmado que algum dia, sem o conhecer, póde metter-lhe uma faca na barriga. — Oh! protestou a avó. — Ou mesmo conhecendo, emendou elle. — Não seja máo, acudiu Maria Regina; o senhor era bem capaz de fazer o mesmo, se alli estivesse. Miranda sorriu de um modo sardonico. O riso accentuou-lhe a dureza da physionomia. Egoista e máo, este Miranda primava por um lado unico: espiritualmente, era completo. Maria Regina achava nelle o traductor maravilhoso e fiel de uma porção de idéas que luctavam dentro d’ella, vagamente, sem fórma ou expressão. Era engenhoso e fino e até profundo, tudo sem pedantice, e sem metter-se por mattos cerrados, antes quasi sempre na planície das conversações ordinárias; tão certo é que as cousas valem pelas idéas que nos suggerem. Tinham ambos os mesmos gostos artisticos; Miranda estudara direito para obedecer ao pae; a sua vocação era a musica. A avó, prevendo a sonata, apparelhou a alma para alguns cochilos. Demais, não podia admittir tal homem no coração; achava-o aborrecido e antipathico. Calou-se no fim de alguns minutos. A sonata veiu, no meio de uma conversação que Maria Regina achou deleitosa, e não veiu senão porque elle lhe pediu que tocasse; elle ficaria de bom grado a ouvil-a. — Vovó, disse ella, agora ha de ter paciência... Miranda approximou-se do piano. Ao pé das arandelas, a cabeça d’elle mostrava toda a fadiga dos annos, ao passo que a expressão da physionomia era muito mais de pedra e fel. Maria Regina notou a graduação, e tocava sem olhar para elle; difficil cousa, porque, se elle fallava, as palavras entravam-lhe tanto pela alma, que a moça insensivelmente levantava os olhos, e dava logo com um velho ruim. Então é que se lembrava do Maciel, dos seus annos em flôr, da physionomia franca, meiga e boa, e afinal da acção daquelle dia. Comparação tão cruel para o Miranda, como fôra para o Maciel o cotejo dos seus espiritos. E a moça recorreu ao mesmo expediente. Completou um pelo outro; escutava a este com o pensamento naquelle; e a musica ia ajudando a ficção, indecisa a principio, mas logo viva e acabada. Assim Titania, ouvindo namorada a cantiga do tecelão, admirava-lhe as bellas fôrmas, sem advertir que a cabeça era de burro. IV MENUETTO Dez, vinte, trinta dias passaram depois daquella noite, e ainda mais vinte, e depois mais trinta. Não ha chronologia certa; melhor é ficar no vago. A situação era a mesma. Era a mesma insufficiencia individual dos dous homens, e o mesmo complemento ideial por parte d’ella; dahi um terceiro homem, que ella não conhecia. Maciel e Miranda desconfiavam um do outro, detestavam-se a mais e mais, e padeciam muito, Miranda principalmente, que era paixão da ultima hora. Afinal acabaram aborrecendo a moça. Esta viu-os ir pouco a pouco. A esperança ainda os fez relapsos, mas tudo morre, até a esperança, e elles sahiram para nunca mais. As noites foram passando, passando... Maria Regina comprehendeu que estava acabado. A noite em que se persuadiu bem disto foi uma das mais bellas daquelle anno, clara, fresca, luminosa. Não havia lua; mas a nossa amiga aborrecia a lua, — não se sabe bem por que, — ou porque brilha de empréstimo, ou porque toda a gente a admira, e póde ser que por ambas as razões. Era uma das suas exquisitices. Agora outra. Tinha lido de manhã, em uma noticia de jornal, que ha estrellas duplas, que nos parecem um só astro. Em vez de ir dormir, encostou-se á janella do quarto, olhando para o céo, a ver se descobria alguma d’ellas; baldado esforço. Não a descobrindo no céo, procurou-a em si mesma, fechou os olhos para imaginar o phenomeno; astronomia facil e barata, mas não sem risco. O peior que ella tem é pôr os astros ao alcance da mão; por modo que, se a pessoa abre os olhos e elles continuam a fulgurar lá em cima, grande é o desconsolo e certa a blasphemia. Foi o que succedeu aqui. Maria Regina viu dentro de si a estrella dupla e unica. Separadas, valiam bastante; juntas, davam um astro esplendido. E ella queria o astro esplendido. Quando abriu os olhos e viu que o firmamento ficava tão alto, concluiu que a creação era um livro falho e incorrecto, e desesperou. No muro da chacara viu então uma cousa parecida com dous olhos de gato. A principio teve medo, mas advertiu logo que não era mais que a reproducção externa dos dous astros que ella vira em si mesma e que tinham ficado impressos na retina. A retina d’esta moça fazia reflectir cá fóra todas as suas imaginações. Refrescando o vento recolheu-se, fechou a janella e metteu-se na cama. Não dormiu logo, por causa de duas rodelas de opala que estavam incrustadas na parede; percebendo que era ainda uma illusão, fechou os olhos e dormiu. Sonhou que morria, que a alma della, levada aos ares, voava na direcção de uma bella estrella dupla. O astro desdobrou-se, e ella voou para uma das duas porções; não achou alli a sensação primitiva e despenhou-se para outra; egual resultado, egual regresso, e eil-a a andar de uma para outra das duas estrellas separadas. Então uma voz surgiu do abysmo, com palavras que ella não entendeu: — E’ a tua pena, alma curiosa de perfeição; a tua pena é oscillar por toda a eternidade entre dous astros incompletos, ao som d’esta velha sonata do absoluto: la, la, la... ADÃO E EVA UMA senhora de engenho, na Bahia, pelos annos de mil setecentos e tantos, tendo algumas pessoas intimas á mesa, annunciou a um dos convivas, grande lambareiro, um certo doce particular. Elle quiz logo saber o que era; a dona da casa chamou-lhe curioso. Não foi preciso mais; dahi a pouco estavam todos discutindo a curiosidade, se era masculina ou feminina, e se a responsabilidade da perda do paraiso devia caber a Eva ou a Adão. As senhoras diziam que a Adão, os homens que a Eva, menos o juiz de fora, que não dizia nada e frei Bento, carmelita, que interrogado pela dona da casa, D. Leonor: — Eu, senhora minha, toco viola, respondeu sorrindo; e não mentia, porque era insigne na viola e na harpa, não menos que na theologia. Consultado, o juiz de fóra respondeu que não havia materia para opinião, porque as cousas no paraiso terrestre passaram-se de modo differente do que está contado no primeiro livro do Pentateuco, que é apocrypho. Espanto geral, riso do carmelita, que conhecia o juiz de fóra como um dos mais piedosos sujeitos da cidade, e sabia que era também jovial e inventivo, e até amigo da pulha, uma vez que fosse curial e delicada; nas cousas graves, era gravissimo. — Frei Bento, disse-lhe D. Leonor, faça calar o Sr. Velloso. — Não o faço calar, acudiu o frade, porque sei que de sua bocca ha de sahir tudo com boa significação. — Mas a Escriptura... ia dizendo o mestre de campo João Barbosa. — Deixemos em paz a Escriptura, interrompeu o carmelita. Naturalmente, o Sr. Velloso conhece outros livros... — Conheço o authentico, insistiu o juiz de fóra, recebendo o prato de doce que D. Leonor lhe offerecia e estou prompto a dizer o que sei, se não mandam o contrario. — Vá lá, diga. — Aqui está como as cousas se passaram. Em primeiro logar, não foi Deus que creou o mundo, foi o Diabo... — Cruz! exclamaram as senhoras. — Não diga esse nome, pediu D. Leonor. — Sim, parece que... ia intervindo Frei Bento. — Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que creou o mundo; mas Deus, que lhe leu no pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando sómente de corrigir ou attenuar a obra, afim de que ao proprio mal não ficasse a desesperança da salvação ou do beneficio. E a acção divina mostrou-se logo porque, tendo o Tinhoso creado as trevas, Deus creou a luz, e assim se fez o primeiro dia. No segundo dia, em que foram creadas as aguas, nasceram as tempestades e os furacões; mas as brisas da tarde baixaram do pensamento divino. No terceiro dia foi feita a terra, e brotaram d’ella os vegetaes, mas só os vegetaes sem fructo nem flôr, os espinhosos, as hervas que matam como a cicuta; Deus, porém, creou as arvores fructiferas e os vegetaes que nutrem ou encantam. E tendo o Tinhoso cavado abysmos e cavernas na terra. Deus fez o sol, a lua e as estrellas; tal foi a obra do quarto dia. No quinto foram creados os animaes da terra, da agua e do ar. Chegamos ao sexto dia, e aqui peço que redobrem de attenção. Não era preciso pedil-o; toda a mesa olhava para elle, curiosa. Velloso continuou dizendo que no sexto dia foi creado o homem, e logo depois a mulher, ambos bellos, mas sem alma, que o Tinhoso não podia dar, e só com ruins instinctos. Deus infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com outro os sentimentos nobres, puros e grandes. Nem parou nisso a misericórdia divina; fez brotar um jardim de delicias, e para alli os conduziu, investindo-os na posse de tudo. Um e outro cahiram aos pés do Senhor, derramando lagrimas de gratidão. «Vivereis aqui, disse-lhes o Senhor, e comereis de todos os fructos, menos o d’esta arvore, que é a da sciencia do bem e do mal.» Adão e Eva ouviram submissos; e ficando sós, olharam um para o outro, admirados; não pareciam os mesmos. Eva, antes que Deus lhe infundisse os bons sentimentos, cogitava de armar um laço a Adão, e Adão tinha impetos de espancal-a. Agora, porém, embebiam-se na contemplação um do outro, ou na vista da natureza, que era explendida. Nunca até então viram ares tão puros, nem aguas tão frescas, nem flôres tão lindas e cheirosas, nem o sol tinha para nenhuma outra parte as mesmas torrentes de claridade. E dando as mãos percorreram tudo, a rir muito, nos primeiros dias, porque até então não sabiam rir. Não tinham a sensação do tempo. Não sentiam o peso da ociosidade; viviam da contemplação. De tarde iam ver morrer o sol e nascer a lua, e contar as estrellas, e raramente chegavam a mil, dava-lhes o somno e dormiam como dous anjos. Naturalmente, o Tinhoso ficou damnado quando soube do caso. Não podia ir ao paraiso, onde tudo lhe era avesso, nem chegaria a luctar com o Senhor; mas, ouvindo um rumor no chão, entre folhas seccas, olhou e viu que era a serpente. Chamou-a alvoroçado. — Vem cá, serpe, fel rasteiro, peçonha das peçonhas, queres tu ser a embaixatriz de teu pae, para rehaver as obras de teu pae? A serpente fez com a cauda um gesto vago, que parecia affirmativo; mas o Tinhoso deu-lhe a falia, e ella respondeu que sim, que iria onde elle a mandasse,—ás estrellas, se lhe désse as azas da aguia — ao mar, se lhe confiasse o segredo de respirar na agua — ao fundo da terra, se lhe ensinasse o talento da formiga. E fallava a maligna, fallava á tôa, sem parar, contente e pródiga da lingua; mas o diabo interrompeu-a: — Nada d’isso, nem ao ar, nem ao mar, nem á terra, mas tão sómente ao jardim de delicias, onde estão vivendo Adão e Eva. — Adão e Eva? — Sim, Adão e Eva. — Duas bellas creaturas que vimos andar ha tempos, altas e direitas como palmeiras? — Justamente. — Oh! detesto-os. Adão e Eva? Não, não, manda-me a outro logar. Detesto-os! Só a vista d’elles faz-me padecer muito. Não has de querer que lhes faça mal... — E’ justamente para isso. — Devéras? Então vou; farei tudo o que quizeres, meu senhor e pae. Anda, dize depressa o que queres que faça. Que morda o calcanhar de Eva? Morderei... — Não, interrompeu o Tinhoso. Quero justamente o contrario. Ha no jardim uma arvore, que é a da sciencia do bem e do mal; elles não devem tocar nella, nem comer-lhe os fructos. Vai, entra, enrosca-te na arvore, e quando um d’elles alli passar, chama-o de mansinho, tira uma fruta e offercce-lhe, dizendo que é a mais saborosa fruta do mundo; se te responder que não, tu insistirás, dizendo que é bastante comel-a para conhecer o proprio segredo da vida. Vae, vae... — Vou; mas não fallarei a Adão, fallarei a Eva. Vou, vou. Que é o proprio segredo da vida, não? — Sim, o proprio segredo da vida. Vae, serpe das minhas entranhas, flôr do mal, e se te sahires bem, juro que terás a melhor parte na creação, que é a parte humana, porque terás muito calcanhar de Eva que morder, muito sangue de Adão em que deitar o virus do mal... Vae, vae, não te esqueças... Esquecer? Já levava tudo de cór. Foi, penetrou no paraiso, rastejou até a arvore do bem e do mal, enroscou-se e esperou. Eva appareceu dahi a pouco, caminhando sósinha, esbelta, com a segurança de uma rainha que sabe que ninguém lhe arrancará a corôa. A serpente, mordida de inveja, ia chamar a peçonha á lingua, mas advertiu que estava alli ás ordens do Tinhoso, e, com a voz de mel, chamou-a. Eva estremeceu. — Quem me chama? — Sou eu, estou comendo desta fruta... — Desgraçada, é a arvore do bem e do mal! — Justamente. Conheço agora tudo, a origem das cousas e o enigma da vida. Anda, come e terás um grande poder na terra. — Não, pérfida! — Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? Escuta-me,faze o que te digo, e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-has Cleopatra, Dido, Semiramis; darás heróes do teu ventre, e serás Cornelia; ouvirás a voz do céo, e serás Débora; cantarás e serás Sapho. E um dia, se Deus quizer descer á terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-has Maria de Nazareth. Que mais queres tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma estulta obediência. Nem será só isso. Toda a natureza te fará bella e mais bella. Cores das folhas verdes, cores do céo azul, vivas ou pallidas, cores da noite, hão de reflectir nos teus olhos. A mesma noite, de porfia com o sol, virá brincar nos teus cabellos. Os filhos do teu seio tecerão para ti as melhores vestiduras, comporão os mais finos aromas, e as aves te darão as suas plumas, e a terra as suas flores, tudo, tudo, tudo... Eva escutava impassivel; Adão chegou, ouviu-os e confirmou a resposta de Eva; nada valia a perda do paraiso, nem a sciencia, nem o poder, nenhuma outra illusão da terra. Dizendo isto, deram as mãos um ao outro, e deixaram a serpente, que sahiu pressurosa para dar conta ao Tinhoso. Deus, que ouvira tudo, disse a Gabriel: — Vae, archanjo meu, desce ao paraiso terrestre, onde vivem Adão e Eva, e traze-os para a eterna bemaventurança, que mereceram pela repulsa ás instigações do Tinhoso. E logo o archanjo, pondo na cabeça o elmo de diamante, que rutilla como um milhar de sóes, rasgou instantaneamente os ares, chegou a Adão e Eva, e disse-lhes; — Salve, Adão e Eva. Vinde commigo para o paraiso, que merecestes pela repulsa ás instigações do Tinhoso. Um e outro, attonitos e confusos, curvaram o collo em signal de obediência; então Gabriel deu as mãos a ambos, e os tres subiram até á estancia eterna, onde myriades de anjos os esperavam, cantando: — Entrae, entrae. A terra que deixastes, fica entregue ás obras do Tinhoso, aos animaes ferozes e maléficos, ás plantas damninhas e peçonhentas, ao ar impuro, á vida dos pantanos. Reinará nella a serpente que rasteja, babuja e morde, nenhuma creatura egual a vós porá entre tanta abominação a nota da esperança e da piedade. E foi assim que Adão e Eva entraram no céo, ao som de todas as cytharas, que uniam as suas notas em um hymno aos dous egressos da creação... ... Tendo acabado de fallar, o juiz de fóra estendeu o prato a D. Leonor para que lhe désse mais doce, emquanto os outros convivas olhavam uns para os outros, embasbacados; em vez de explicação, ouviam uma narração enigmática, ou, pelo menos, sem sentido apparente. D. Leonor foi a primeira que fallou: — Bem dizia eu que o Sr. Velloso estava logrando a gente. Não foi isso que lhe pedimos, nem nada d’isso aconteceu, não é, Fr. Bento? — Lá o saberá o Sr. juiz, respondeu o carmelita sorrindo. E o juiz de fóra, levando á bocca uma colher de doce: — Pensando bem, creio que nada d’isso aconteceu; mas também, D. Leonor, se tivesse acontecido, não estariamos aqui saboreando este doce, que está, na verdade, uma cousa primorosa. E’ ainda aquella sua antiga doceira de Itapagipe? O ENFERMEIRO PARECE-LHE então que o que se deu commigo em 1860, póde entrar n’uma pagina de livro? Vá que seja, com a condição unica de que não ha de divulgar nada, antes da minha morte. Não esperará muito, póde ser que oito dias, se não fôr menos; estou desenganado. Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que ha outras cousas interessantes, mas para isso era preciso tempo, animo e papel, e eu só tenho papel; o animo é frouxo, e o tempo assemelha-se á lamparina de madrugada. Não tarda o sol do outro dia,um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer máo, e não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu-me um documento humano, eil-o aqui. Não me peça também o império do Grão-Mogol, nem a photographia dos Macchabeus; peça, porém, os meus sapatos de defuncto e não os dou a ninguém mais. Já sabe que foi em 1860. No anno anterior, alli pelo mez de agosto, tendo eu quarenta e dois annos, fiz-me theologo, — quero dizer, copiava os estudos de theologia de um padre de Nitheroy, antigo companheiro de collegio, que assim me dava, delicadamente, casa, cama e mesa. Naquelle mez de agosto de 1859, recebeu elle uma carta de um vigário de certa villa do interior perguntando se conhecia pessoa entendida, discreta e paciente, que quizesse ir servir de enfermeiro ao coronel Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre fallou-me, aceitei com ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações latinas e formulas ecclesiasticas. Vim à Côrte despedir-me de um irmão, e segui para a villa. Chegando á villa, tive más noticias do coronel. Era homem insupportavel, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os proprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remedios. A dous d’elles quebrou a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entender-me com o vigário, que me confirmou as noticias recebidas, e me recommendou mansidão e caridade, segui para a residência do coronel. Achei-o na varanda da casa estirado n’uma cadeira, bufando muito. Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; poz em mim dous olhos de gato que observa; depois, uma especie de riso maligno alumiou-lhe as feições, que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que tivera, prestava para nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao faro das escravas; dous eram até gatunos! — Você é gatuno? — Não, senhor. Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lh’o e elle fez um gesto de espanto. Colombo? Não, senhor: Procopio José Gomes Vallongo. Vallongo? achou que não era nome de gente, e propoz chamar-me tão sómente Procopio, ao que respondi que estaria pelo que fosse de seu agrado. Conto-lhe esta particularidade, não só porque me parece pintal-o bem, como porque a minha resposta deu de mim a melhor idéa ao coronel. Elle mesmo o declarou ao vigário, accrescentando que eu era o mais sympathico dos enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua de mel de sete dias. No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão, não dormir, não pensar em mais nada, recolher injurias, e, ás vezes, rir dellas, com um ar de resignação e conformidade; reparei que era um modo de lhe fazer côrte. Tudo impertinências de moléstia do temperamento. A moléstia era um rosário d’ellas, padecia de aneurisma, de rheumatismo e de tres ou quatro affecções menores. Tinha perto de sessenta annos, e desde os cinco toda a gente lhe fazia a vontade. Se fosse só rabugento, vá; mas elle era também máo, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros. No fim de tres mezes estava farto de o aturar; determinei vir embora; só esperei occasião. Não tardou a occasião. Um dia, como lhe não désse a tempo uma fomentação, pegou da bengala e atirou-me dous ou tres golpes. Não era preciso mais; despedi-me immediatamente, e fui apromptar a mala. Elle foi ter commigo, ao quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a pena zangar por uma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei. — Estou na dependura, Procopio, dizia-me elle á noute; não posso viver muito tempo. Estou aqui, estou na cóva. Você ha de ir ao meu enterro, Procopio; não o dispenso por nada. Ha de ir, ha de resar ao pé da minha sepultura. Se não fôr, accrescentou rindo, eu voltarei de noite para lhe puxar as pernas. Você crê em almas de outro mundo, Procopio? — Qual o quê! — E porque é que não ha de crer, seu burro? redarguiu vivamente, arregalando os olhos. Eram assim as pazes; imagine a guerra. Cohibiu-se das bengaladas; mas as injurias ficaram as mesmas, se não peiores. Eu, com o tempo, fui callejando, e não dava mais por nada; era burro, camello, pedaço d’asno, idiota, moleirão, era tudo. Nem, ao menos, havia mais gente que recolhesse uma parte desses nomes. Não tinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tisico, em fins de maio ou principios de julho, em Minas. Os amigos iam por lá ás vezes approval-o, applaudil-o, e nada mais; cinco, dez minutos de visita. Restava eu; era eu sósinho para um diccionario inteiro. Mais de uma vez resolvi sahir; mas, instado pelo vigário, ia ficando. Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu estava ancioso por tornar á Côrte. Aos quarenta e dous annos não é que havia de acostumar-me á reclusão constante, ao pé de um doente bravio, no interior. Para avaliar o meu isolamento, basta saber que eu nem lia os jornaes; salvo alguma noticia mais importante que levavam ao coronel, eu nada sabia do resto do mundo. Entendi, portanto, voltar para a Côrte, na primeira occasião, ainda que tivesse de brigar com o vigário. Bom é dizer (visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e tendo guardado integralmente os ordenados, estava ancioso por vir dissipal-os aqui. Era provável que a occasião apparecesse. O coronel estava peior, fez testamento, descompondo o tabellião, quasi tanto como a mim. O trato era mais duro, os breves lapsos de socego e brandura faziam-se raros. Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dóse de piedade que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de odio e aversão. No principio de agosto resolvi definitivamente sahir; o vigário e o medico, aceitando-me as razões, pediram-me que ficasse algum tempo mais. Concedi-lhes um mez; no fim de um mez viria embora, qualquer que fosse o estado do doente. O vigário tratou de procurar-me substituto. Vai ver o que aconteceu. Na noite de vinte e quatro de Agosto, o coronel teve um accesso de raiva, atropellou-me, disse-me muito nome crú, ameaçou-me de um tiro, e acabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio, o prato foi cahir na parede onde se fez em pedaços. — Has de pagal-o, ladrão! bradou elle. Resmungou ainda muito tempo. A’s onze horas passou pelo somno. Emquanto elle dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance de d’Arlincourt, traduzido, que lá achei, e puz-me a lel-o, no mesmo quarto, a pequena distancia da cama; tinha de acordal-o á meia noite para lhe dar o remedio. Ou fosse de cansaço, ou do livro, antes de chegar ao fim da segunda pagina adormeci também. Acordei aos gritos do coronel, e levantei-me estremunhado. Elle, que parecia delirar, continuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessal-a contra mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, puz-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e esganei-o. Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei á cama, agitei-o para chamal-o á vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei á sala contigua, e durante duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que passei, durante esse tempo. Era um atordoamento, um delirio vago e estúpido. Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas. Os gritos da victima, antes da lucta e durante a lucta, continuavam a repercutir dentro de mim, e o ar, para onde quer que me voltasse, apparecia recortado de convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estylo; digo-lhe que eu ouvia distinctamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino! Tudo o mais estava calado. O mesmo som do relogio, lento, egual e secco, sublinhava o silencio e a solidão. Collava a orelha á porta do quarto na esperança de ouvir um gemido, uma palavra, uma injuria, qualquer cousa que significasse a vida, e me restituisse a paz á consciência. Estaria prompto a apanhar das mãos do coronel, dez, vinte, cem vezes. Mas nada, nada; tudo calado. Voltava a andar á tôa, na sala, sentava-me, punha as mãos na cabeça; arrependia-me de ter vindo. — «Maldita a hora em que aceitei semelhante cousa!» exclamava. E descompunha o padre de Nictheroy, o medico, o vigário, os que me arranjaram um logar, e os que me pediram para ficar mais algum tempo. Agarrava-me á cumplicidade dos outros homens. Como o silencio acabasse por aterrar-me, abri uma das janellas, para escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia tranquilla, as estrellas fulguravam, com a indifferença de pessoas que tiram o chapéu a um enterro que passa, e continuam a fallar de outra cousa. Encostei-me alli por algum tempo, fitando a noite, deixando-me ir a uma recapitulação da vida, a ver se descansava da dor presente. Só então posso dizer que pensei claramente no castigo. Achei-me com um crime ás costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso. Senti que os cabellos me ficavam de pé. Minutos depois, vi tres ou quatro vultos de pessoas, no terreiro espiando, com um ar de emboscada; recuei, os vultos esvairam-se no ar; era uma allucinação. Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei voltar ao quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, não cheguei logo á cama. Tremiam-me as pernas, o coração batia-me; cheguei a pensar na fuga; mas era confessar o crime, e, ao contrario, urgia fazer desapparecer os vestigios delle. Fui até á cama; vi o cadaver, com os olhos arregalados e a boca aberta, como deixando passara eterna palavra dos séculos: « Caim, que fizeste de teu irmão?» Vi no pescoço o signal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei ao queixo a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe que o coronel amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao medico. A primeira idéa foi retirar-me logo cedo, a pretexto de ter meu irmão doente, e, na verdade, recebera carta delle, alguns dias antes, dizendo-me que se sentia mal. Mas adverti que a retirada immediata poderia fazer despertar suspeitas, e fiquei. Eu mesmo amortalhei o cadaver, com o auxilio de um preto velho e myope. Não sahi da sala mortuaria; tinha medo de que descobrissem alguma cousa. Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava impaciências: os passos de ladrão com que entravam na sala, os cochichos, as ceremonias e as rezas do vigário. Vindo a hora, fechei o caixão, com as mãos tremulas, tão tremulas que uma pessoa, que reparou nellas, disse a outra com piedade: — Coitado do Procopio! apezar do que padeceu, está muito sentido. Pareceu-me ironia; estava ancioso por ver tudo acabado. Sahimos á rua. A passagem da meia escuridão da casa para a claridade da rua deu-me grande abalo; receei que fosse então impossivel occultar o crime. Metti os olhos no chão, e fui andando. Quando tudo acabou, respirei. Estava em paz com os homens. Não o estava com a consciência, e as primeiras noites foram naturalmente de desassocego e afflicção. Não é preciso dizer que vim logo para o Rio de Janeiro, nem que vivi aqui aterrado, embora longe do crime; não ria, fallava pouco, mal comia, tinha allucinações, pesadelos... —Deixa lá o outro que morreu, diziam-me. Não é caso para tanta melancolia. E eu aproveitava a illusão, fazendo muitos elogios ao morto, chamando-lhe boa creatura, impertinente, é verdade, mas um coração de ouro. E, elogiando, convencia-me também, ao menos por alguns instantes. Outro phenomeno interessante, e que talvez lhe possa aproveitar, é que, não sendo religioso, mandei dizer uma missa pelo eterno descanço do coronel, na egreja do Sacramento. Não fiz convites, não disse nada a ninguém; fui ouvil-a, sósinho, e estive de joelhos todo o tempo, persignando-me a miudo. Dobrei a espórtula do padre, e distribui esmolas á porta, tudo por intenção do finado. Não queria embair os homens; a prova é que fui só. Para completar este ponto, accrescentarei que nunca alludia ao coronel, que não dissesse: « Deus lhe falle n’alma! » E contava d’elle algumas anecdotas alegres, rompantes engraçados... Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta do vigário, que lhe mostrei, dizendo-me que fôra achado o testamento do coronel, e que eu era o herdeiro universal. Imagine o meu pasmo. Pareceu-me que lia mal, fui a meu irmão, fui aos amigos; todos leram a mesma cousa. Estava escripto; era eu o herdeiro universal do coronel. Cheguei a suppor que fosse uma cilada; mas adverti logo que havia outros meios de capturar-me, se o crime estivesse descoberto. Demais, eu conhecia a probidade do vigário, que não se prestaria a ser instrumento. Reli a carta, cinco, dez, muitas vezes; lá estava a noticia. — Quanto tinha elle? perguntava-me meu irmão. — Não sei; mas era rico. — Realmente, provou que era teu amigo. — Era... era... Assim, por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar ás minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso receber um vintém do tal espolio; era peior do que fazer-me esbirro alugado. Pensei n’isso tres dias, e esbarrava sempre na consideração de que a recusa podia fazer desconfiar alguma cousa. No fim dos tres dias, assentei num meio termo; receberia a herança e dal-a-hia toda, aos bocados e ás escondidas. Não eram só escrúpulos; era também o modo de resgatar o crime por um acto de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas saldas. Preparei-me e segui para a villa. Em caminho, á proporção que me ia approximando, recordava o triste successo as cercanias da villa tinham um aspecto de tragédia, e a sombra do coronel parecia-me surgir de cada lado. A imaginação ia reproduzindo as palavras, os gestos, toda a noite horrenda do crime... Crime ou lucta? Realmente, foi uma lucta em que eu, atacado, defendi-me, e na defesa... Foi uma lucta, uma lucta desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me nessa idéa. E balanceava os aggravos, punha no activo as pancadas, as injurias... Não era culpa do coronel, bem o sabia, era da moléstia, que o tornava assim rabujento e até máo... Mas eu perdoava tudo, tudo... O peior foi a fatalidade daquella noite... Considerei também que o coronel não podia viver muito mais; estava por pouco; elle mesmo o sentia e dizia. Viveria quanto? Duas semanas, ou uma; póde ser até que menos. Já não era vida, era um molambo de vida, se isto mesmo se podia chamar ao padecer continuo do pobre homem... E quem sabe mesmo se a lucta e a morte não foram apenas coincidentes? Podia ser, era até o mais provável; não foi outra cousa. Fixei-me também nessa idéa... Perto da villa apertou-se-me o coração, e quiz recuar; mas dominei-me e fui. Receberam-me com parabéns. O vigário disse-me as disposições do testamento, os legados pios, e, de caminho, ia louvando a mansidão christã e o zelo com que eu servira ao coronel, que, apezar de áspero e duro, soube ser grato. — Sem duvida, dizia eu olhando para outra parte. Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a paciência. As primeiras necessidades do inventario detiveram-me algum tempo na villa. Constitui advogado; as cousas correram placidamente. Durante esse tempo, fallava muita vez do coronel. Vinham contar-me cousas d’elle, mas sem a moderação do padre; eu defendia-o, apontava algumas virtudes, era austero... — Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o diabo. E referiam-me casos duros, acções perversas, algumas extraordinárias. Quer que lhe diga? Eu, a principio, ia ouvindo cheio de curiosidade; depois, entrou-me no coração um singular prazer, que eu, sinceramente buscava expellir. E defendia o coronel, explicava-0, attribuia alguma cousa ás rivalidades locaes; confessava, sim, que era um pouco violento... Um pouco? Era uma cobra assanhada, interrompia-me o barbeiro; e todos, o collector, o boticário, o escrivão, todos diziam a mesma cousa; e vinham outras anecdotas, vinha toda a vida do defuncto. Os velhos lembravam-se das crueldades d’elle, em menino. E o prazer intimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, especie de tenia moral, que por mais que a arrancasse aos pedaços, recompunha-se logo e ia ficando. As obrigações do inventario distrahiram-me; e por outro lado a opinião da villa era tão contraria ao coronel, que a vista dos logares foi perdendo para mim a feição tenebrosa que a principio achei nelles. Entrando na posse da herança, converti-a em titulos e dinheiro. Eram então passados muitos mezes, e a idéa de distribuil-a toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo que era affectação. Restringi o plano primitivo: distribui alguma cousa aos pobres, dei á matriz da villa uns paramentos novos, fiz uma esmola á Santa Casa da Misericórdia, etc.: ao todo trinta e dous contos. Mandei também levantar um tumulo ao coronel, todo de mármore, obra de um napolitano, que aqui esteve até 1860, e foi morrer, creio eu, no Paraguay. Os annos foram andando, a memória tornou-se cinzenta e desmaiada. Penso ás vezes no coronel, mas sem os terrores dos primeiros dias. Todos os medicos a quem contei as moléstias d’elle, foram accórdes em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo. Póde ser que eu, involuntariamente, exagerasse a descripção que então lhes fiz; mas a verdade é que elle devia morrer, ainda que não fosse aquella fatalidade... Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma cousa, pague-me também com um tumulo de mármore, ao qual dará por epitaphio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: « Bemaventurados os que possuem, porque elles serão consolados. » O DIPLOMÁTICO A PRETA entrou na sala de jantar, chegou-se á mesa rodeada de gente, e fallou baixinho á senhora. Parece que lhe pedia alguma cousa urgente, porque a senhora levantou-se logo. — Ficamos esperando, D. Adelaide? — Não espere, não, Sr. Rangel; vá continuando, eu entro depois. Rangel era o leitor do livro de sortes. Voltou a pagina, e recitou um titulo: « Se alguém lhe ama em segredo.« Movimento geral; moços e rapazes sorriram uns para os outros. Estamos na noite de S. João de 1854, e a casa é na rua das Mangueiras. Chama-se João 0 dono da casa, João Viegas, e tem uma filha, Joanninha. Usa-se todos os annos a mesma reunião de parentes e amigos, arde uma fogueira no quintal, assam-se as batatas do costume, e tiram-se sortes. Também ha ceia, ás vezes dansa, e algum jogo de prendas, tudo familiar. João Viegas é escrivão de uma vara civel da côrte. — Vamos. Quem começa agora? disse elle. Ha de ser D. Felismina. Vamos ver se alguém lhe ama em segredo. D. Felismina sorriu amarello. Era uma boa quarentona, sem prendas nem rendas, que vivia espiando um marido por baixo das palpebras devotas. Em verdade, o gracejo era duro, mas natural. D. Felismina era o modelo acabado daquellas creaturas indulgentes e mansas, que parecem ter nascido para divertir os outros. Pegou e lançou os dados com um ar de complacência incrédula. Numero dez, bradaram duas vozes. Rangel desceu os olhos ao baixo da pagina, viu a quadra correspondente ao numero, e leu-a : dizia que sim, que havia uma pessoa, que ella devia procurar domingo, na egreja, quando fosse á missa. Toda a mesa deu parabéns a D. Felismina, que sorriu com desdem, mas interiormente esperançada. Outros pegaram nos dados, e Rangel continuou a ler a sorte de cada um. Lia espevitadamente. De quando em quando, tirava os oculos e limpava-os com muito vagar na ponta do lenço de cambraia, —ou por ser cambraia,— ou por exhalar um fino cheiro de bogari. Presumia de grande maneira, e alli chamavam-lhe «o diplomático.» — Ande, seu diplomático, continue. Rangel estremeceu; esquecera-se de ler uma sorte, embebido em percorrer a fila de moças que ficava do outro lado da mesa. Namorava alguma? Vamos por partes. Era solteiro, por obra das circumstancias, não de vocação. Em rapaz teve alguns namoricos de esquina, mas com o tempo appareceu-lhe a comichão das grandezas, e foi isto que lhe prolongou o celibato até os quarenta e um annos, em que o vemos. Cobiçava alguma noiva superior a elle e á roda em que vivia, e gastou o tempo em esperal-a. Chegou a frequentar os bailes de um advogado celebre e rico, para quem copiava papeis, e que o protegia muito. Tinha nos bailes a mesma posição subalterna do escriptorio; passava a noite vagando pelos corredores, espiando o salão, vendo passar as senhoras, devorando com os olhos uma multidão de espaduas magnificas e talhes graciosos. Invejava os homens, e copiava-os. Sahia dalli excitado e resoluto. Em falta de bailes, ia ás festas de egreja, onde poderia ver algumas das primeiras moças da cidade. Também era certo no saguão do paço imperial, em dia de cortejo, para ver entrar as grandes damas e as pessoas da côrte, ministros, generaes, diplomatas, desembargadores, e conhecia tudo e todos, pessoas e carruagens. Voltava da festa e do cortejo, como voltava do baile. Impetuoso, ardente, capaz de arrebatar de um lance a palma da fortuna. O peior é que entre a espiga e a mão, ha o tal muro do poeta, e o Rangel não era homem de saltar muros. De imaginação fazia tudo, raptava mulheres e destruia cidades. Mais de uma vez foi, comsigo mesmo, ministro de Estado, e fartou-se de cortezias e decretos. Chegou ao extremo de acclamar-se imperador, um dia, 2 de dezembro, ao voltar da parada no largo do Paço; imaginou para isso uma revolução, em que derramou algum sangue, pouco, e uma dictadura benefica, em que apenas vingou alguns pequenos desgostos de escrevente. Cá fóra, porém, todas as suas proezas eram fabulas. Na realidade, era pacato e discreto. Aos quarenta annos desenganou-se das ambições; mas a indole ficou a mesma, e, não obstante a vocação conjugal, não achou noiva. Mais de uma o acceitaria com muito prazer; elle perdi-as todas á força de circumspecção. Um dia, reparou em Joanninha, que chegava aos dezenove annos e possuia um par de olhos lindos e socegados, — virgens de toda a conversação masculina. Rangel conhecia-a desde criança, andara com ella ao collo, no Passeio Publico, ou nas noites de fogo da Lapa; como fallar-lhe de amor? Mas, por outro lado, as relações d’elle na casa eram taes, que podiam facilitar-lhe o casamento; e, ou este ou nenhum outro. D’esta vez, o muro não era alto, e a espiga era baixinha; bastava esticar o braço com algum esforço, para arrancal-a do pé. Rangel andava n’este trabalho desde alguns mezes. Não esticava o braço, sem espiar primeiro para todos os lados, a ver se vinha alguém, e, se vinha alguém, disfarçava e ia-se embora. Quando chegava a estical-o, acontecia que uma lufada de vento meneava a espiga ou algum passarinho andava alli nas folhas seccas, e não era preciso mais para que elle recolhesse a mão. Ia-se assim o tempo, e a paixão entranhava-se-lhe, causa de muitas horas de angustia, a que seguiam sempre melhores esperanças. Agora mesmo traz elle a primeira carta de amor, disposto a entregal-a. Já teve duas ou tres occasiões boas, mas vae sempre espaçando; a noite é tão comprida! Entretanto, continúa a ler as sortes, com a solemnidade de um augur. Tudo, em volta, é alegre. Cochicham ou riem, ou fallam ao mesmo tempo. O tio Rufino, que é o gaiato da família, anda á roda da mesa com uma penna, fazendo cócegas nas orelhas das moças. João Viegas está ancioso por um amigo que se demora, o Calixto. Onde se metteria o Calixto? — Rua, rua, preciso da mesa; vamos para a sala de visitas. Era D. Adelaide que tornava; ia pôr-se a mesa para a ceia. Toda a gente emigrou, e andando é que se podia ver bem como era graciosa a filha do escrivão. Rangel acompanhou-a com grandes olhos namorados. Ella foi á janella, por alguns instantes, emquanto se preparava um jogo de prendas, e elle foi também; era a occasião de entregar-lhe a carta. Defronte, n’uma casa grande, havia um baile, e dansava-se. Ella olhava, elle olhou também. Pelas janellas viam passar os pares, cadenciados, as senhoras com as suas sedas e rendas, os cavalheiros finos e elegantes, alguns condecorados. De quando em quando, uma faisca de diamantes, rapida, fugitiva, no gyro da dança. Pares que conversavam, dragonas que reluziam, bustos de homem inclinados, gestos de leque, tudo isso em pedaços, através das janellas, que não podiam mostrar todo o salão, mas adivinhava-se o resto. Elle ao menos, conhecia tudo, e dizia tudo á filha do escrivão. O demonio das grandezas, que parecia dormir, entrou a fazer as suas arlequinadas no coração do nosso homem, e eil-o que tenta seduzir também o coração da outra. — Conheço uma pessoa que estaria alli muito bem, murmurou o Rangel. E Joanninha, com ingenuidade: — Era o senhor. Rangel sorriu lisonjeado, e não achou que dizer. Olhou para os lacaios e cocheiros, de libré, na rua, conversando em grupos ou reclinados no tejadilho dos carros. Começou a designar carros: este é do Olinda, aquelle é do Maranguape; mas ahi vem outro, rodando, do lado da rua da Lapa, e entra na rua das Mangueiras. Parou defronte; salta o lacaio, abre a portinhola, tira o chapéu e perfila-se. Sahe de dentro uma calva, uma cabeça, um homem, duas commendas, depois uma senhora ricamente vestida; entram no saguão, e sobem a escadaria, forrada de tapete e ornada em baixo com dous grandes vasos. — Joanninha, sr. Rangel... Maldito jogo de prendas! Justamente quando elle formulava, na cabeça, uma insinuação a proposito do casal que subia, e ia assim passar naturalmente á entrega da carta... Rangel obedeceu, e sentou-se defronte da moça. D. Adelaide, que dirigia o jogo de prendas, recolhia os nomes; cada pessoa devia ser uma flôr. Está claro que o tio Rufino, sempre gaiato, escolheu para si a flôr da abobora. Quanto ao Rangel, querendo fugir ao trivial, comparou mentalmente as flôres, e quando a dona da casa lhe perguntou pela d’elle, respondeu com doçura e pausa: — Maravilha, minha senhora. — O peior é não estar cá o Calixto! suspirou o escrivão. — Elle disse mesmo que vinha? — Disse; ainda hontem foi ao cartorio, de proposito, avisar-me de que viria tarde, mas que contasse com elle; tinha de ir a uma brincadeira na rua da Carioca... — Licença para dous! bradou uma voz no corredor. — Ora graças! está ahi o homem! João Viegas foi abrir a porta; era o Calixto, acompanhado de um rapaz extranho, que elle apresentou a todos em geral: — «Queiroz, empregado na Santa Casa; não é meu parente, apezar de se parecer muito commigo; quem vê um, vê outro...». Toda a gente riu; era uma pilhéria do Calixto, feio como o diabo, — ao passo que o Queiroz era um bonito rapaz de vinte e seis a vinte e sete annos, cabello negro, olhos negros, e singularmente esbelto. As moças retrahiram-se um pouco; D. Felismina abriu todas as velas. — Estavamos jogando prendas, os senhores podem entrar também, disse a dona da casa. Joga, Sr. Queiroz? Queiroz respondeu affirmativamente, e passou a examinar as outras pessoas. Conhecia algumas, e trocou duas ou tres palavras com ellas. Ao João Viegas disse que desde muito tempo desejava conhecel-o, por causa de um favor que o pae lhe deveu outr’ora, negocio de fôro. João Viegas não se lembrava de nada, nem ainda depois que elle lhe disse o que era; mas gostou de ouvir a noticia, em publico, olhou para todos, e durante alguns minutos regalou-se calado. Queiroz entrou em cheio no jogo. No fim de meia hora, estava familiar da casa. Todo elle era acção, fallava com desembaraço, tinha os gestos naturaes e espontâneos. Possuia um vasto repertório de castigos para jogo de prendas, cousa que encantou a toda a sociedade, e ninguém os dirigia melhor, com tanto movimento e animação, indo de um lado para outro, concertando os grupos, puxando cadeiras, fallando ás moças, como se tivesse brincado com ellas em criança. — D. Joanninha aqui, n’esta cadeira; D. Cesaria, d’este lado, em pé, e o Sr. Camillo entra por aquella porta... Assim, não olhe, assim de maneira que... Teso na cadeira,o Rangel estava attonito. D’onde vinha esse furacão? E o furacão ia soprando, levando os chapéus dos homens, e despenteando as moças, que riam de contentes. Queiroz d’aqui, Queiroz d’alli, Queiroz de todos os lados. Rangel passou da estupefacção á mortificação. Era o sceptro que lhe cahia das mãos. Não olhava para o outro, não se ria do que elle dizia, e respondia-lhe secco. Interiormente, mordia-se, e mandava-o ao diabo, chamava-o bobo alegre, que fazia rir e agradava, porque nas noites de festa tudo é festa. Mas, repetindo essas e peiores cousas, não chegava a rehaver a liberdade de espirito. Padecia devéras, no mais intimo do amor proprio; e o peior é que o outro percebeu toda essa agitação, e o péssimo é que elle percebeu que era percebido. Rangel, assim como sonhava os bens, assim também as vinganças. De cabeça, espatifou o Queiroz; depois cogitou a possibilidade de um desastre qualquer, uma dor bastava, mas cousa forte, que levasse d’alli aquelle intruso. Nenhuma dor; nada; o diabo parecia cada vez mais lépido, e toda a sala fascinada por elle. A própria Joanninha, tão acanhada, vibrava nas mãos de Queiroz, como as outras moças; e todos, homens e mulheres, pareciam empenhados em servil-o. Tendo elle fallado em dansar, as moças foram ter com o tio Rufino, e pediram-lhe que tocasse uma quadrilha na flauta, uma só,não se lhe pedia mais. — Não posso, doe-me um calo. — Flauta? bradou o Calixto. Peçam ao Queiroz que nos toque alguma cousa, e verão O que é flauta... Vai buscar a flauta, Rufino. Ouçam o Queiroz. Não imaginam como elle é saudoso na flauta! Queiroz tocou a Casta Diva. Que cousa ridicula! dizia comsigo o Rangel; — uma musica que até os moleques assobiam na rua. Olhava para elle, de frevez, para considerar se aquillo era posição de homem sério; e concluia que a flauta era um instrumento grotesco. Olhou também para Joanninha, e viu que, como todas as outras pessoas, tinha a attenção no Queiroz, embebida, namorada dos sons da musica, e estremeceu, sem saber porque. Os demais semblantes mostravam a mesma expressão d’ella, e, comtudo, sentiu alguma cousa que lhe complicou a aversão ao intruso. Quando a flauta acabou, Joanninha applaudiu menos que os outros, e Rangel entrou em duvida se era o habitual acanhamento, se alguma especial commoção... Urgia entregar-lhe a carta. Chegou a ceia. Toda a gente entrou confusamente na sala, e felizmente para o Rangel, coube-lhe ficar defronte de Joanninha, cujos olhos estavam mais bellos que nunca e tão derramados, que não pareciam os do costume. Rangel saboreou-os caladamente, e reconstruiu todo o seu sonho que o diabo do Queiroz abalara com um piparote. Foi assim que tornou a ver-se, ao lado d’ella, na casa que ia alugar, berço de noivos, que elle enfeitou com os ouros da imaginação. Chegou a tirar um prêmio na loteria, e a empregal-o todo em sedas e joias para a mulher, a linda Joanninha, — Joanninha Rangel, — D. Joanninha Rangel, — D. Joanna Viegas Rangel, — ou D. Joanna Candida Viegas Rangel... Não podia tirar o Candida… — Vamos, uma saude, seu diplomático… faça uma saude daquellas... Rangel acordou a mesa inteira repetia a lembrança do tio Rufino; a propria Joanninha pedia-lhe uma saude, como a do anno passado. Rangel respondeu que ia obedecer; era só acabar aquella aza de gallinha. Movimento, cochichos de louvor; D. Adelaide, dizendo-lhe uma moça que nunca ouvira fallar o Rangel: — Não? perguntou com pasmo. Não imagina; falla muito bem, muito explicado, palavras escolhidas, e uns bonitos modos... Comendo, ia elle dando rebate a algumas reminiscências, frangalhos de idéas, que lhe serviam para o arranjo das phrases e metaphoras. Acabou e poz-se de pé. Tinha o ar satisfeito e cheio de si. Afinal, vinham bater-lhe á porta. Cessara a farandulagem das anecdotas, das pilhérias sem alma, e vinham ter com elle para ouvir alguma cousa correcta e grave. Olhou em derredor, viu todos os olhos levantados, esperando. Todos não; os de Joanninha enviezavam-se na direcção do Queiroz, e os d’este vinham esperal-os a meio caminho, numa cavalgada de promessas. Rangel empallideceu. A palavra morreu-lhe na garganta; mas era preciso fallar, esperavam por elle, com sympathia, em silencio. Obedeceu mal. Era justamente um brinde ao dono da casa e á filha. Chamava a esta um pensameuto de Deos, transportado da immortalidade á realidade, phrase que empregára tres annos antes, e devia estar esquecida. Fallava também do sanctuario da familia, do altar da amizade, e da gratidão, que é a flor dos corações puros. Onde não havia sentido, a phrase era mais especiosa ou retumbante. Ao todo, um brinde de dez minutos bem puxados, que elle despachou em cinco, e sentou-se. Não era tudo. Queiroz levantou-se logo, dous ou tres minutos depois, para outro brinde, e o silencio foi ainda mais prompto e completo. Joanninha metteu os olhos no regaço, vexada do que elle iria dizer; Rangel teve um arrepio. — O illustre amigo d’esta casa, o Sr. Rangel, — disse Queiroz, — bebeu ás duas pessoas cujo nome é o do santo de hoje; eu bebo áquella que é a santa de todos os dias, a D. Adelaide. Grandes applausos acclamaram esta lembrança, e D. Adelaide, lisonjeada, recebeu os cumprimentos de cada conviva. A filha não ficou em cumprimentos. — Mamãe! mamãe! exclamou, levantando-se; e foi abraçal-a e beijal-a tres e quatro vezes; — especie de carta para ser lida por duas pessoas. Rangel passou da cólera ao desanimo, e, acabada a ceia, pensou em retirar-se. Mas a esperança, demonio de olhos verdes, pediu-lhe que ficasse, e ficou. Quem sabe? Era tudo passageiro, cousas de uma noite, namoro de S. João; afinal, elle era amigo da casa, e tinha a estima da familia; bastava que pedisse a moça, para obtel-a. E depois esse Queiroz podia não ter meios de casar. Que emprego era o d’elle na Santa Casa? Talvez alguma cousa réles... Nisto, olhou obliquamente para a roupa de Queiroz, enfiou-se-lhe pelas costuras, escrutou o bordadinho da camisa, apalpou os joelhos das calças, a ver-lhe o uso, e os sapatos, e concluiu que era um rapaz caprichoso, mas provavelmente gastava tudo comsigo, e casar era negocio sério. Podia ser também que tivesse mãe viuva, irmãs solteiras... Rangel era só. — Tio Rufino, toque uma quadrilha. — Não posso; flauta depois de comer faz indigestão. Vamos a um vispora. Rangel declarou que não podia jogar, estava com dôr de cabeça: mas Joanninha veiu a elle e pediu-lhe que jogasse com ella, de sociedade. — « Meia collecção para o senhor, e meia para mim », disse ella, sorrindo; elle sorriu também e aceitou. Sentaram-se ao pé um do outro. Joanninha fallava-lhe, ria, levantava para elle os bellos olhos, inquieta, mexendo muito a cabeça para todos os lados. Rangel sentiu-se melhor, e não tardou que se sentisse inteiramente bem. la marcando á tôa, esquecendo alguns números, que ella lhe apontava com o dedo, — um dedo de nympha, dizia elle, comsigo; e os descuidos passaram a ser de proposito, para vêr o dedo da moça, e ouvil-a ralhar: « O senhor é muito esquecido; olhe que assim perdemos o nosso dinheiro... » Rangel pensou em entregar-lhe a carta por baixo da mesa; mas não estando declarados, era natural que ella a recebesse com espanto e estragasse tudo; cumpria avisal-a. Olhou em volta da mesa: todos os rostos estavam inclinados sobre os cartões, seguindo attentamente os números. Então, elle inclinou-se á direita, e baixou os olhos aos cartões de Joanninha, como para verificar alguma cousa. — Já tem duas quadras, cochichou elle. — Duas, não; tenho tres. — Tres, é verdade tres. Escute... — E o senhor? — Eu duas. — Que duas o que? São quatro. Eram quatro; ella mostrou-lh’as inclinada, roçando quasi a orelha pelos lábios delle; depois, fitou-o rindo e abanando a cabeça: « O senhor! o senhor! » Rangel ouviu isto com singular deleite; a voz era tão doce, e a expressão tão amiga, que elle esqueceu tudo, agarrou-a pela cintura, e lançou-se com ella na eterna valsa das chimeras. Casa, mesa, convivas, tudo desappareceu, como obra vã da imaginação, para só ficar a realidade unica, elle e ella, gyrando no espaço, debaixo de um milhão de estrellas, accesas de proposito para alumial-os. Nem carta, nem nada. Perto da manhã foram todos para a janella ver sahir os convidados do baile fronteiro. Rangel recuou espantado. Viu um aperto de dedos entre o Queiroz e a bella Joanninha. Quiz explical-o, eram apparencias, mas tão depressa destruia umas como vinham outras e outras, á maneira das ondas, que não acabam mais. Custava-lhe entender que uma só noite, algumas horas bastassem a ligar assim duas creaturas; mas era a verdade clara e viva dos modos de ambos, dos olhos, das palavras, dos risos, e até da saudade com que se despediram de manhã. Sahiu tonto. Uma só noite, algumas horas apenas! Em casa, aonde chegou tarde, deitou-se na cama, não para dormir, mas para romper em soluços. Só comsigo, foi-se-lhe, o apparelho da affectação, e já não era o diplomático, era o energúmeno que rolava na cama, bradando, chorando como uma criança, infeliz deveras, por esse triste arpor do outono. O pobre diabo, feito de devaneio, indolência e affectação, era, em substancia, tão desgraçado como Othello, e teve um desfecho mais cruel. Othello mata Desdemona; o nosso namorado, em quem ninguém presentira nunca a paixão encoberta, serviu de testemunha ao Queiroz, quando este se casou com Joanninha, seis mezes depois. Nem os acontecimentos, nem os annos lhe mudaram a indole, Quando rompeu a guerra do Paraguay, teve idéa muitas vezes de alistar-se como official de voluntários; não o fez nunca; mas é certo que ganhou algumas batalhas e acabou brigadeiro. MARIANNA I QUE será feito de Marianna? perguntou Evaristo a si mesmo, no largo da Carioca, ao despedir-se de um velho amigo, que lhe fez lembrar aquella velha amiga. Era em 1890. Evaristo voltára da Europa, dias antes, após dezoito annos de ausência. Tinha sahido do Rio de Janeiro em 1872, e contava demorar-se até 1874 ou 1875, depois de vêr algumas cidades celebres ou curiosas; mas o viajante põe e Pariz dispõe. Uma vez entrado n’aquelle mundo, Em 1873, Evaristo deixou-se ir ficando, além do prazo determinado; adiou a viagem um anno, outro anno, e afinal não pensou mais na volta. Desinteressára-se das nossas cousas; ultimamente nem lia os jornaes d’aqui; era um estudante pobre da Bahia, que os ia buscar emprestados, e lhe referia depois uma ou outra noticia de vulto. Senão quando, em novembro de 1889, entra-lhe em casa um reporter parisiense, que lhe falia de revolução no Rio de Janeiro, pede informações politicas, sociaes, biographicas. Evaristo reflectiu. — Meu caro senhor, disse ao reporter, acho melhor ir eu mesmo buscal-as. Não tendo partido, nem opiniões, nem parentes proximos, nem interesses (todos os seus haveres estavam na Europa), mal se explica a resolução súbita de Evaristo pela simples curiosidade, e comtudo não houve outro motivo. Quiz ver o novo aspecto das cousas. Indagou da data de uma primeira representação no Odéon, comedia de um amigo, calculou que, sahindo no primeiro paquete e voltando tres paquetes! depois, chegraria a tempo de comprar bilhete e entrar no theatro; fez as malas, correu a Bordéos, e embarcou. — Que será feito de Marianna? repetia agora, descendo a rua da Assembléa. Talvez morta... Se ainda viver, deve estar outra; ha de andar pelos seus quarenta e cinco... Upa! quarenta e oito; era mais moça que eu uns cinco annos. Quarenta e oito... Bella mulher! grande mulher! bellos e grandes amores! Teve desejo de vêl-a. Indagou discretamente, soube que vivia e morava na mesma casa em que a deixou, rua do Engenho Velho; mas não apparecia desde alguns mezes, por causa do marido, que estava mal, parece que á morte. — Ella também deve estar escangalhada, disse Evaristo ao conhecido que lhe dava aquellas informações. — Homem, não. A ultima vez que a vi, achei-a frescalhona. Não se lhe dá mais de quarenta annos. Você quer saber uma cousa? Ha por ahi roseiras magnificas, mas os nossos cedros de 1860 a 1865 parece que não nascem mais. — Nascem; você não os vê, porque já não sóbe ao Líbano, retorquiu Evaristo. Crescera-lhe o desejo de vêr Marianna. Que olhos teriam um para o outro? Que visões antigas viriam transformar a realidade presente? A viagem de Evaristo, cumpre sabel-o, não foi de recreio, senão de cura. Agora que a lei do tempo fizera a sua obra, que effeito produziría n’elles quando se encontrassem, o espectro de 1872, aquelle triste anno da separação que quasi o poz doudo, e quasi a deixou morta? II Dias depois apeava-se elle de um tilbury á porta de Marianna, e dava um cartão ao criado, que lhe abriu a sala. Emquanto esperava circulou os olhos e ficou impressionado. Os moveis eram os mesmos de dezoito annos antes. A memória, incapaz de os recompor na ausência, reconheceu-os a todos, assim como a disposição d’elles, que não mudára. Tinham o aspecto vetusto. As proprias flôres artificiaes de uma grande jarra, que estava sobre um aparador, haviam desbotado com o tempo. Tudo ossos dispersos, que a imaginação podia enfeixar para restaurar uma figura, a que só faltasse a alma. Mas não faltava a alma. Pendente da parede, por cima do canapé, estava o retrato de Marianna. Tinha sido pintado quando ella contava vinte e cinco annos; a moldura, dourada uma só vez, descascando em alguns logares, contrastava com a figura ridente e fresca. O tempo não descollára a formosura. Marianna estava alli, trajada á moda de 1865, com os seus lindos olhos redondos e namorados. Era o unico alento vivo da sala; mas só elle bastava a dar á decrepitude ambiente a fugidia mocidade. Grande foi a commoção de Evaristo. Havia uma cadeira defronte do retrato, die sentou-se nella, e ficou a mirar a moça de outro tempo. Os olhos pintados fitavam tambem os naturaes, por ventura admirados do encontro e da mudança, porque os naturaes não tinham o calor e a graça da pintura. Mas pouco durou a differença; a vida anterior do homem restituiu-lhe a verdura exterior, e os olhos embeberam-se uns nos outros, e todos nos seus velhos peccados. Depois, vagarosamente, Marianna deceu da téla e da moldura, e veiu sentar-se defronte de Evaristo, inclinou-se, estendeu os braços sobre os joelhos e abriu as mãos. Evaristo entregou-lhes as suas, e as quatro apertaram-se cordialmente. Nenhum perguntou nada que se referisse ao passado, porque ainda não havia passado; ambos estavam no presente, as horas tinham parado, tão instantaneas e tão fixas, que pareciam haver sido ensaiadas na vespera para esta representação unica e interminável. Todos os relogios da cidade e do mundo quebraram discretamente as cordas, e todos os relojoeiros trocaram de officio. Adeus, velho lago de Lamartine! Evaristo e Marianna tinham ancorado no oceano dos tempos. E ahi vieram as palavras mais doces que jamais disseram lábios de homem nem de mulher,e as mais ardentes também, e as mudas, e as tresloucadas, e as expirantes, e as de ciume, e as de perdão. — Estás bom? — Bom; e tu? — Morria por ti. Ha uma hora que te espero, anciosa, quasi chorando; mas bem vês que estou risonha e alegre, tudo porque o melhor dos homens entrou n’esta sala. Por que te demoraste tanto? — Tive duas interrupções em caminho; e a segunda muito maior que a primeira. — Se tu me amasses devéras, gastarias dous minutos com as duas, e estarias aqui ha tres quartos de hora. Que riso é esse? — A segunda interrupção foi teu marido. Marianna estremeceu. — Foi aqui perto, continuou Evaristo; fallamos de ti, elle primeiro, a proposito não sei de que, e fallou com bondade, quasi que com ternura. Cheguei a crêr que era um laço, um modo de captar a minha confiança. Afinal despedimo-nos; mas eu ainda fiquei espiando, a ver se elle voltava; não vi ninguém. Ahi está a causa da minha demora; ahi tens também a causa dos meus tormentos. — Não venhas outra vez com essa eterna desconfiança, atalhou Marianna sorrindo, como na téla, ha pouco. Que quer você que eu faça? Xavier é meu marido; não heide mandal-o embora, nem castigal-o, nem matal-o, só porque eu e você nos amamos. — Não digo que o mates; mas tu o amas, Marianna. — Amo-te e a ninguém mais, respondeu ella, evitando assim a resposta negativa, que lhe pareceu demasiado crua. Foi o que pensou Evaristo; mas não acceitou a delicadeza da forma indirecta. Só a negativa rude e simples poderia contental-o. — Tu o amas, insistiu elle. Marianna reflectiu um instante. — Para que has de revolver a minha alma e o meu passado? disse ella. Para nós, o mundo começou ha quatro mezes, e não acabará mais, — ou acabará quando você se aborrecer de mim, porque eu não mudarei nunca... Evaristo ajoelhou-se, puxou-lhe os braços, beijou-lhe as mãos, e fechou nellas o rosto; finalmente, deixou cahir a cabeça nos joelhos de Marianna. Ficaram assim alguns instantes, até que ella sentiu os dedos húmidos, ergueu-lhe a cabeça e viu-lhe os olhos rasos de agua. Que era? — Nada, disse elle; adeus. — Mas que foi?! — Tu o amas, tornou Evaristo, e esta idéa apavora-me, ao mesmo tempo que me afflige, porque eu sou capaz de matal-o, se tiver certeza de que ainda o amas. — Você é um homem singular, retorquiu Marianna, depois de enxugar os olhos de Evaristo com os cabellos, que despenteára ás pressas, para servil-o com o melhor lenço do mundo. Que o amo? Não, já não o amo, ahi tens a resposta. Mas já agora has de consentir que te diga tudo, porque a minha indole não admitte meias confidencias. Desta vez foi Evaristo que estremeceu; mas a curiosidade mordia-lhe a elle o coração, em tal maneira, que não houve mais temer, senão aguardar e escutar. Apoiado nos joelhos d’ella, ouviu a narração, que foi curta. Marianna referiu o casamento, a resistência do pae, a dôr da mãe, e a perseverança d’ella e de Xavier. Esperaram dez mezes, firmes, ella já menos paciente que elle, porque, a paixão que a tomou, tinha toda a força necessária para as decisões violentas. Que de lagrimas verteu por elle! Que de maldições lhe sahiram do coração contra os paes, e foram suffocadas por ella, que temia a Deus, e não quizera que essas palavras, como armas de parricidio, a condemnassem, peior que ao inferno, á eterna separação do homem a quem amava. Venceu a constância, o tempo desarmou os velhos, e o casamento se fez, lá se iam sete annos. A paixão dos noivos prolongou-se na vida conjugal. Quando o tempo trouxe o socego, trouxe também a estima. Os corações eram harmônicos, as recordações da lucta pungentes e doces. A felicidade serena veiu sentar-se á porta d’elles, como uma sentinella. Mas bem depressa se foi a sentinella; não deixou a desgraça, nem ainda o tedio, mas a apathia, uma figura pallida, sem movimento, que mal sorria e não lembrava nada. Foi por esse tempo que Evaristo appareceu aos seus olhos e a arrebatou. Não a arrebatou ao amor de ninguém; mas por isso mesmo nada tinha que ver com o passado, que era um mysterio, e podia trazer remorsos... — Remorsos? interrompeu elle. — Podias suppor que eu os tinha; mas não os tenho, nem os terei jamais. — Obrigado! disse Evaristo após alguns momentos; agradeço-te a confissão. Não fallarei mais de tal assumpto. Não o amas, é O essencial. Que linda és tu, quando juras assim, e me fallas do nosso futuro! Sim, acabou; agora aqui estou, ama-me! — Só a ti, querido. — Só a mim? Ainda uma vez, jura! — Por estes olhos, respondeu ella, beijando-lhe os olhos; por estes lábios, continuou, impondo-lhe um beijo nos lábios. Pela minha vida e pela tua! Evaristo repetiu as mesmas formulas, com eguaes cerimônias. Depois sentou-se defronte de Marianna, como estava a principio. Ella ergueu-se então, por sua vez, e foi ajoelhar-se-lhe aos pés, com os braços nos joelhos d’elle. Os cabellos caidos emquadravam tão bem o rosto, que elle sentiu não ser um genio para copial-a e legal-a ao mundo. Disse-lhe isso, mas a moça não respondeu palavra; tinha os olhos fitos nelle, supplicantes. Evaristo inclinou-se, cravando nella os seus, e assim ficaram, rosto a rosto, uma, duas, très horas, até que alguém veiu acordal-os: — Faz favor de entrar. III Evaristo teve um sobresalto. Deu com um homem, o mesmo criado que recebera o seu cartão de visita. Levantou-se depressa; Marianna recolheu-se á tela, que pendia da parede, onde elle a viu outra vez, trajada á moda de 1865, penteada e tranquilla. Como nos sonhos, os pensamentos, gestos e actos mediram-se por outro tempo, que não o tempo, fez-se tudo em cinco ou seis minutos, que tantos foram os que o criado despendeu em levar o cartão e trazer o convite. Entretanto, e certo que Evaristo sentia ainda a impressão das caricias da moça, vivera realmente entre 1869 e 1872, porque as tres horas da visão foram ainda uma concessão ao tempo. Toda a historia resurgira com os ciúmes que elle tinha de Xavier, os seus perdões e as ternuras reciprocas. Só faltou a crise final,quando a mãe de Marianna, sabendo de tudo, corajosamente se interpoz e os separou. Marianna resolveu morrer, chegou a ingerir veneno, e foi preciso o desespero da mãe para restituil-a á vida. Xavier que então estava na provincia do Rio, nada soube d’aquella tragédia, senão que a mulher escapara da morte, por causa de uma troca de medicamentos. Evaristo quiz ainda vel-a antes de embarcar, mas foi impossivel. — Vamos, disse elle agora ao criado que o esperava. Xavier estava no gabinete proximo, estirado em um canapé, com a mulher ao lado e algumas visitas. Evaristo penetrou alli cheio de commoção. A luz era pouca, o silencio grande; Marianna tinha presa uma das mãos do enfermo, a observal-o, a temer a morte ou uma crise. Mal pôde levantar os olhos para Evaristo e estender-lhe a mão; voltou a fitar o marido, em cujo rosto havia a marca do longo padecimento, e cujo respirar parecia o preludio da grande opera infinita. Evaristo, que apenas vira o rosto de Marianna, retirou-se a um canto, sem ousar mirar-lhe a figura, nem acompanhar-lhe os movimentos. Chegou o medico, examinou o enfermo, recommendou as prescripções dadas, e retirou-se para voltar de noite. Marianna foi com elle até á porta, interrogando baixo, e procurando ler no rosto a verdade que a boca não queria dizer. Foi então que Evaristo a viu bem; a dor parecia alquebral-a mais que os annos. Conheceu-lhe o geito particular do corpo. Não descia da téla, como a outra, mas do tempo. Antes que ella tornasse ao leito do marido, Evaristo entendeu retirar-se também, e foi até á porta. — Peço-lhe licença... Sinto não poder fallar agora a seu marido. — Agora não póde ser; o medico recommenda repouso e silencio. Será n’outra occasião... — Não vim ha mais tempo vel-o, porque só ha pouco é que soube... E não cheguei ha muito. — Obrigada. Evaristo estendeu-lhe a mão e saiu a passo abafado, emquanto ella voltava a sentar-se ao pé do doente. Nem os olhos nem a mão de Marianna revelaram em relação a elle uma impressão qualquer, e a despedida fez-se como entre pessoas indifferentes. Certo, o amor acabara, a data era remota, o coração envelhecera com o tempo, e o marido estava a expirar; mas, reflectia elle, como explicar que, ao cabo de dezoito annos de separação, Marianna visse diante de si um homem que tanta parte tivera em sua vida, sem o menor abalo, espanto, constrangimento que fosse? Eis ahi um mysterio. Chamava-lhe mysterio. Ainda agora, á despedida, sentira elle um aperto, uma cousa, que lhe fez a palavra trôpega, que lhe tirou as ideas e até as simples formulas banaes de pezar e de esperança. Ella, entretanto, não recebeu d’elle a menor commoção. E lembrando-se do retrato da sala, Evaristo concluiu que a arte era superior á natureza; a tela guardára o corpo e a alma... Tudo isso borrifado de um despeitosinho acre. Xavier durou ainda uma semana. Indo fazer-lhe segunda visita, Evaristo assistiu á morte do enfermo, e não pôde furtar-se á commoção natural do momento, do logar e das circumstancias. Marianna, desgrenhada ao pé do leito, tinha os olhos mortos de vigilia e de lagrimas. Quando Xavier, depois de longa agonia, expirou, mal se ouviu o choro de alguns parentes e amigos; um grito agudissimo de Marianna chamou a attenção de todos; depois o desmaio e a quéda da viuva. Durou alguns minutos a perda dos sentidos; tornada a si, Marianna correu ao cadaver, abraçou-se a elle, soluçando desesperadamente, dizendo-lhe os nomes mais queridos e ternos. Tinham esquecido de fechar os olhos ao cadaver; d’ahi um lance pavoroso e melancólico, porque ella, depois de os beijar muito foi tomada de allucinação e bradou que elle ainda vivia, que estava salvo; e, por mais que quizessem arrancal-a d’alli, não cedia, empurrava a todos, clamava que queriam tirar-lhe o marido. Nova crise a prostrou; foi levada ás carreiras para outro quarto. Quando o enterro sahiu no dia seguinte, Marianna não estava presente, por mais que insistisse em despedir-se; já não tinha forças para acudir á vontade. Evaristo acompanhou o enterro. Seguindo o carro fúnebre, mal chegava a crer onde estava e o que fazia. No cemiterio, fallou a um dos parentes de Xavier, confiando-lhe a pena que tivera de Marianna. — Vê-se que se amavam muito, concluiu. — Ah! muito! disse o parente. Casaram-se por paixão; não assisti ao casamento, porque só cheguei ao Rio de Janeiro muitos annos depois, em 1874; achei-os, porém, tão unidos como se fossem noivos, e assisti até agora á vida de ambos. Viviam um para o outro; não sei se ella ficará muito tempo neste mundo. — 1874, pensou Evaristo; dous annos depois. Marianna não assistiu á missa do sétimo dia; um parente, — o mesmo do cemitério, — representava-a n’aquella triste occasião. Evaristo soube por elle que o estado da viuva não lhe permittia arriscar-se á commemoração da catastrophe. Deixou passar alguns dias, e foi fazer a sua visita de pezames; mas, tendo dado o cartão, ouviu que ella não recebia ninguém. Foi então a S. Paulo, voltou cinco ou seis semanas depois, preparou-se para embarcar; antes de partir, pensou ainda em visitar Marianna,— não tanto por simples cortezia, como para levar comsigo a imagem,— deteriorada embora,— d’aquella paixão de quatro annos. Não a encontrou em casa. Voltava zangado, mal comsigo, achava-se impertinente e de máu gosto. A pouca distancia viu sair da egreja do Espirito Santo uma senhora de luto, que lhe pareceu Marianna. Era Marianna; vinha a pé; ao passar pela carruagem olhou para elle, fez que o não conhecia, e foi andando, de modo que o cumprimento de Evaristo ficou sem resposta. Este ainda quiz mandar parar o carro e despedir-se d’ella, alli mesmo, na rua, um minuto, tres palavras; como, porém, hesitasse na resolução, só parou quando já havia passado a egreja, e Marianna ia um grande pedaço adiante. Apeou-se, não obstante, e desandou o caminho; mas, fosse respeito ou despeito, trocou de resolução, metteu-se no carro e partiu. — Tres vezes sincera, concluiu, passados alguns minutos de reflexão. Antes de um mez estava em Pariz. Não esquecera a comedia do amigo, a cuja primeira representação no Odéon ficára de assistir. Correu a saber d’ella; tinha cahido redondamente. — Cousas de theatro, disse Evaristo ao auctor, para consolal-o. Ha peças que caem. Ha outras que ficam no repertório. CONTO DE ESCOLA A ESCOLA era na rua do Costa, um sobradinho de grade de páu. O anno era de 1840. Naquelle dia — uma segunda feira, do mez de maio — deixei-me estar alguns instantes na rua da Princeza a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o campo de Sant’Anna, que não era então esse parque actual, construcção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse commigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão. Na semana anterior tinha feito dous suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pae, que me deu uma sova de vara de marmelleiro. As sovas de meu pai doiam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, rispido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição commercial, e tinha ancia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me metter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do ultimo castigo que me levou naquella manhã para o collegio. Não era um menino de virtudes. Subi as escadas com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; elle entrou na sala tres ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinellas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande collarinho cahido. Chamava-se Polycarpo e tinha perto de cincoenta annos ou mais. Uma vez sentado, extrahiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pol-os na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada d’elle, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos. — Seu Pilar, eu preciso fallar com você, disse-me baixinho o filho do mestre. Chamava-se Raymundo este pequeno, e era molle, applicado, intelligencia tarda. Raymundo gastava duas horas em reter aquillo que a outros levava apenas trinta ou cincoenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cerebro. Reunia a isso um grande medo ao pae. Era uma creança fina, pallida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pae e retirava-se antes. O mestre era mais severo com elle do que comnosco. — O que é que você quer? — Logo, respondeu elle com voz tremula. Começou a licção de escripta. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais intelligentes, por um escrupulo facil de entender e de excellente effeito no estylo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pallido nem mofino: tinha boas cores e musculos de ferro. Na licção de escripta, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na taboa, occupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquelle dia foi a mesma cousa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis attitudes differentes, das quaes recordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras lettras que era; mas, instinctivamente, dava-lhes essa expressões. Os outros foram acabando; não tive remedio senão acabar também, entregar a escripta, e voltar para o meu logar. Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fóra, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flôr do bairro e do genero humano. Para cumulo de desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céo, por cima do morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda immensa, que bojava no ar, uma cousa soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a grammatica nos joelhos. — Fui um bobo em vir, disse eu ao Raymundo. — Não diga isso, murmurou elle. Olhei para elle; estava mais pallido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me alguma cousa, e perguntei-lhe o que era. Raymundo estremeceu de novo, e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma cousa particular. — Seu Pilar... murmurou elle dahi a alguns minutos. — Que é? — Voce... — Você que? Elle deitou os olhos ao pae, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvello, olhava para elle, desconfiado, e o Raymundo, notando-me essa circumstancia, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvello, e vi que parecia attento; podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma cousa entre elles. Esse Curvello era um pouco levado do diabo. Tinha onze annos, era mais velho que nós. Que me quereria o Raymundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, fallando-lhe baixo, com instancia, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava d’elle nem de mim. Ou então, de tarde... — De tarde, não, interrompeu-me elle; não póde ser de tarde. — Então agora... — Papae está olhando. Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazel-o mais aperreado. Mas nós também éramos finos; mettemos o nariz no livro, e continuámos a lêr. Afinal cançou e tomou as folhas do dia, tres ou quatro, que elle lia devagar, mastigando as idéas e as paixões. Não esqueçam que estavamos então no fim da Regencia, e que era grande a agitação publica. Polycarpo tinha de certo algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O peior que elle podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janella, á direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendural-a e brandil-a, com a força do costume, que não era pouca. E dahi, póde ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nelle a ponto de poupar-nos uma ou outra correcção. Naquelle dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornaes, e lia a valer. No fim de algum tempo — dez ou doze minutos — Raymundo metteu a mão no bolso das calças e olhou para mim. — Sabe o que tenho aqui? — Não. — Uma pratinha que mamãe me deu. — Hoje? — Não, no outro dia, quando liz annos... — Pratinha de verdade? — De verdade. Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dous tostões, não me lembra; mas era uma moeda, e tão moeda que me fez pular o sangue no coração. Raymundo revolveu em mim o olhar pallido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava caçoando, mas elle jurou que não. — Mas então você fica sem ella? —Mamãe depois me arranja outra. Ella tem muitas que vovô lhe deixou, n’uma caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta? Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. Raymundo recuou a mão d’elle e deu á bocca um gesto amarello, que queria sorrir. Em seguida propoz-me um negocio, uma troca de serviços; elle me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da licção de syntaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pae. E concluia a proposta esfregando a pratinha nos joelhos... Tive uma sensação exquisita. Não é que eu possuisse da virtude uma idea antes propria de homem; não é também que não fosse facil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabiamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de licção e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para elle, á tôa, sem poder dizer nada. Comprehende-se que o ponto da licção era difficil, e que o Raymundo, não o tendo apprendido, recorria a um meio que lhe pareceu util para escapar ao castigo do pae. Se me tem pedido a cousa por favor, alcançal-a-hia do mesmo modo, como de outras vezes; mas parece que era a lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cançada, e não apprender como queria, — e pode ser mesmo que em alguma occasião lhe tivesse ensinado mal, — parece que tal foi a causa da proposta. O pobre diabo contava com o favor, — mas queria assegurar-lhe a efficacia, e d’ahi recorreu á moeda que a mãe lhe déra e que elle guardava como reliquia ou brinquedo; pegou delia e veiu esfregal-a nos joelhos, á minha vista, como uma tentação… Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma cousa, um cobre feio, grosso, azinhavrado... Não queria recebel-a, e custava-me recusal-a. Olhei para o mestre, que continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. — Ande, tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fôra diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E elle não podia ver nada, estava agarrado aos jornaes lendo com fogo, com indignação... — Tome, tome... Relanceei os olhos pela sala, e dei com os do Curvello em nós; disse ao Raymundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas d’ahi a pouco, deitei-lhe outra vez o olho, e — tanto se illude a vontade! — não lhe vi mais nada. Então cobrei animo. — Dê cá... Raymundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu metti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ella commigo, pegadinha á perna. Restava prestar o serviço, ensinar a licção, e não me demorei em fazel-o, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel, que elle recebeu com cautella e cheio de attenção. Sentia-se que despendia um esforço cinco ou seis vezes maior para apprender um nada; mas comtanto que elle escapasse ao castigo, tudo iria bem. De repente, olhei para o Curvello e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu máu. Disfarcei; mas dahi a pouco, voltando-me outra vez para elle, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, accrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para elle e elle não sorriu; ao contrario, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito. — Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raymundo. — Diga-me isto só, murmurou elle. Fiz-lhe signal que se calasse; mas elle instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o contracto feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvello, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes máu, estava agora peior. Não é preciso dizer que também eu ficára em brazas, ancioso que a aula acabasse; mas nem o relogio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornaes, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de hombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fóra, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com elle. Imaginei-me alli, com os livros e a pedra em baixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardal-a-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando no bolso das calças, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quasi lendo pelo tacto a inscripção, com uma grande vontade de espial-a. — Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão. Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me ás pressas. Dei com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornaes dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvello. Pareceu-me adivinhar tudo. — Venha cá, bradou o mestre. Fui e parei diante d’elle. Elle enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, comquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos. — Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as licções aos outros? disse-me o Polycarpo. — Eu... — Dê cá a moeda que este seu collega lhe deu! clamou. Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Polycarpo bradou de novo que lhe désse a moeda, e eu não resisti mais, metti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Elle examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a á rua. E então disse-nos uma porção de cousas duras, que tanto o filho como eu acabavamos de praticar uma acção feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo iamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória. — Perdão, seu mestre... solucei eu. — Não ha perdão! Dê cá a mão! dê cá! vamos! sem-vergonha! dê cá a mão! — Mas, seu mestre... — Olhe que é peior! Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma cousa; não lhe poupou nada, dous, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negocio, apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos de brio! Eu por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que n’aquelle dia ninguém faria egual negocio. Creio que o proprio Curvello enfiara de medo. Não olhei logo para elle, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que sahissemos, tão certo como tres e dous serem cinco. D’ahi a algum tempo olhei para elle; elle também olhava para mim, mas desviou a cara, e penso que empallideceu. Compoz-se, e entrou a lêr em voz alta; estava com medo. Começou a variar de attitude, agitando-se á tôa, coçando os joelhos, o nariz. Póde ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, porque denunciar-nos? Em que é que lhe tiravamos alguma cousa? — Tu me pagas! tão duro como osso! dizia eu commigo. Veiu a hora de sair, e saímos; elle foi adiante, apressado, e eu não queria brigar alli mesmo, na rua do Costa, perto do collegio; havia de ser na rua larga de S. Joaquim. Quando, porém, cheguei á esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou loja; entrei n’uma botica, espiei em outras casas, perguntei por elle a algumas pessoas, ninguém me deu noticia. De tarde faltou á escola. Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a licção. Dormi n’essa noite, mandando ao diabo os dous meninos, tanto o da denuncia como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar á escola, no dia seguinte, dera com ella na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos... De manhã, acordei cedo. A idéa de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava esplendido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me deu, por signal que eram amarellas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao throno de Jérusalem. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim á escola; ainda assim não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que ellas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua... Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor á frente, rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, egual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atraz d’elles. Já lhes disse; o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma cousa: Rato na casaca... Não fui á escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saude, e acabei a manhã na praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem resentimento na alma. E comtudo a pratinha era bonita, e foram elles, Raymundo e Curvello, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor... UM APOLOGO ERA uma vez uma agulha, que disse a um novello de linha: — Porque está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo? — Deixe-me, senhora. — Que a deixe? Que a deixe, por que? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e fallarei sempre que me der na cabeça. — Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem caça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros. — Mas você é orgulhosa. — De certo que sou. — Mas por que? — E’ boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? — Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu? — Você fura o panno, nada m ais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados... Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o panno, vou adiante, puxando por você, que vem atraz, obedecendo ao que eu faço e mando... — Também os batedores vão adiante do imperador. — Você, imperador? — Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e infimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto... Estavam nisto, quando a costureira chegou á casa da baroneza. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baroneza, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atraz d’ella. Chegou a costureira, pegou do panno, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo panno adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ageis como os galgos de Diana — para dar a isto uma côr poética. E dizia a agulha: — Então, senhora linha, ainda teima no que dizia ha pouco? Não repara que esta distincta costureira só se importa commigo; eu é que vou aqui entre os dedos d’ella, unidinha a elles, furando abaixo e acima... A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ella, silenciosa e activa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ella não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silencio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no panno. Cahindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile. Veiu a noite do baile, e a baroneza vestiu-se, A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E emquanto compunha o vestido da bella dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava d’aqui ou d’alli, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe: — Ora agora, diga-me, quem é que vae ao baile, no corpo da baroneza, fazendo parte do vestido e da elegancia? Quem é que vae dançar com ministros e diplomatas, emquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiencia, murmurou á pobre agulha: — Anda, apprende, tola. Canças-te em abrir caminho para ella e ella é que vai gozar da vida, emquanto ahi ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. Contei esta historia a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinaria! D. PAULA NÃO era possível chegar mais a ponto. D. Paula entrou na sala, exactamente quando a sobrinha enxugava os olhos cançados de chorar. Comprehen-de-se o assombro da tia. Entender-se-ha também o da sobrinha, em se sabendo que D. Paula vive no alto da Tijuca, donde raras vezes desce; a ultima foi pelo Natal passado, e estamos em maio de 1882. Desceu hontem, á tarde, e foi para casa da irmã, rua do Lavradio. Hoje, tão depressa almoçou, vestiu-se e correu a visitar a sobrinha. A primeira escrava que a viu, quiz ir avisar a senhora, mas D. Paula ordenou-lhe que não, e foi pé ante pé, muito devagar, para impedir o rumor das saias abriu a porta da sala de visitas, e entrou — Que é isto? exclamou. Venancinha atirou-se-lhe aos braços, As lagrimas vieram-lhe de novo. A tia beijou-a muito, abraçou-a, disse-lhe palavras de conforto, e pediu, e quiz que lhe contasse o que era, se alguma doença, ou... — Antes fosse uma doença! antes fosse a morte! interrompeu a moça. — Não digas tolices; mas que foi? anda, que foi? Venancinha enxugou os olhos e começou a fallar. Não pôde ir além de cinco ou seis palavras; as lagrimas tornaram tão abundantes e impetuosas, que D. Paula achou de bom aviso deixal-as correr primeiro. Entretanto, foi tirando a capa de rendas pretas que a envolvia, e descalçando as luvas. Era uma bonita velha, elegante, dona de um par de olhos grandes, que deviam ter sido infinitos. Emquanto a sobrinha chorava, ella foi cerrar cautelosamente a porta da sala, e voltou ao canapé. No fim de alguns minutos, Venancinha cessou de chorar, e contou á tia o que era. Era nada menos que uma briga com o marido, tão violenta, que chegaram a fallar de separação. A causa eram ciúmes. Desde muito que o marido embirrava com um sujeito; mas na vespera á noite, em casa do C..., vendo-a dansar com elle duas vezes e conversar alguns minutos, concluiu que eram namorados. Voltou amuado para casa; de manhã, acabado o almoço, a cólera estourou, e elle disse-lhe cousas duras e amargas, que ella repelliu com outras. — Onde está teu marido? perguntou a tia. — Saiu; parece que foi para o escriptorio. D. Paula perguntou-lhe se o escriptorio era ainda o mesmo, e disse-lhe que descançasse, que não era nada; dalli a duas horas tudo estaria acabado. Calçava as luvas rapidamente. — Titia vai lá? — Vou... Pois então? Vou. Teu marido é bom; são arrufos. 104? Vou lá; espera por mim, que as escravas não te vejam. Tudo isso era dito com volubilidade, confiança e doçura. Calçadas as luvas, poz o mantelete, e a sobrinha ajudou-a, fallando também, jurando que, apezar de tudo, adorava o Conrado. Conrado era o marido, advogado desde 1874. D. Paula saiu, levando muitos beijos da moça. Na verdade, não podia chegar mais a ponto. De caminho, parece que ella encarou o incidente, não digo desconfiada, mas curiosa, um pouco inquieta da realidade positiva; em todo caso ia resoluta a reconstruir a paz domestica. Chegou, não achou o sobrinho no escriptorio, mas elle veiu logo, e, passado o primeiro espanto, não foi preciso que D. Paula lhe dissesse o objecto da visita; Conrado adivinhou tudo. Confessou que fôra excessivo em algumas cousas, e, por outro lado, não attribuia á mulher nenhuma índole perversa ou viciosa. Só isso; no mais, era uma cabeça de vento, muito amiga de cortezias, de olhos ternos, de palavrinhas doces, e a leviandade também é uma das portas do vicio. Em relação á pessoa de quem se tratava, não tinha duvida de que eram namorados. Venancinha contara só o facto da vespera; não referiu outros, quatro ou cinco, o penúltimo no theatro, onde chegou a haver tal ou qual escândalo. Não estava disposto a cobrir com a sua responsabilidade os desasos da mulher. Que namorasse, mas por conta própria. D. Paula ouviu tudo, calada; depois fallou também. Concordava que a sobrinha fosse leviana; era proprio da edade. Moça bonita não sae á rua sem attrahir os olhos, e é natural que a admiração dos outros a lisonjeie. Também é natural que o que ella fizer de lisonjeada pareça aos outros e ao marido um principio de namoro: a fatuidade de uns e o ciume do outro explicam tudo. Pela parte d’ella, acabava de vêr a moça chorar lagrimas sinceras; deixou-a consternada, fallando de morrer, abatida com O que elle lhe dissera. E se elle proprio só lhe attribuia leviandade, porque não proceder com cautela e doçura, por meio de conselho e de observação, poupando-lhe as occasiões, apontando-lhe o mal que fazem á reputação de uma senhora as apparencias de accordo, de sympathia, de boa vontade para os homens? Não gastou menos de vinte minutos a boa senhora em dizer essas cousas mansas, com tão boa sombra, que o sobrinho sentiu apaziguar-se-lhe o coração. Resistia, é verdade; duas ou tres vezes, para não resvalar na indulgência, declarou á tia que entre elles tudo estava acabado. E, para animar-se, evocava mentalmente as razões que tinha contra a mulher. A tia, porém, abaixava a cabeça para deixar passar a onda, e surgia outra vez com os seus grandes olhos sagazes e teimosos. Conrado ia cedendo aos poucos e mal. Foi então que D. Paula propoz um meio termo. — Você perdoa-lhe, fazem as pazes, e ella vai estar commigo, na Tijuca, um ou dous mezes; uma especie de desterro. Eu, durante este tempo, encarrego-me de lhe pôr ordem no espirito. Valeu? Conrado aceitou. D. Paula, tão depressa obteve a palavra, despediu-se para levar a boa nova á outra; Conrado acompanhou-a até á escada. Apertaram as mãos; D. Paula não soltou a d’elle sem lhe repetir os conselhos de brandura e prudência; depois, fez esta reflexão natural: — E vão ver que o homem de quem se trata nem merece um minuto dos nossos cuidados... — E’ um tal Vasco Maria Portella... D. Paula empallideceu. Que Vasco Maria Portella? Um velho, antigo diplomata, que... Não, esse estava na Europa desde alguns annos, aposentado, e acabava de receber um titulo de barão. Era um filho d’elle, chegado de pouco, um pelintra… D. Paula apertou-lhe a mão, e desceu rapidamente. No corredor, sem ter necessidade de ajustar a capa, fel-o durante alguns minutos, com a mão tremula e um pouco de alvoroço na physionomia. Chegou mesmo a olhar para o chão, reflectindo. Saiu; foi ter com a sobrinha, levando a reconciliação e a clausula. Venancinha aceitou tudo. Dois dias depois foram para a Tijuca. Venancinha ia menos alegre do que promettera; provavelmente era o exilio, ou póde ser também que algumas saudades. Em todo caso, o nome de Vasco subiu a Tijuca, se não em ambas as cabeças, ao menos na da tia, onde era uma especie de éco, um som remoto e brando, alguma cousa que parecia vir do tempo da Stoltz e do ministério Paraná. Cantora e ministério, cousas frágeis, não o eram menos que a ventura de ser moça, e onde iam essas tres eternidades? Jaziam nas ruinas de trinta annos. Era tudo o que D. Paula tinha em si e diante de si. Já se entende que o outro Vasco, o antigo, também foi moço e amou. Amaram-se, fartaram-se um do outro, á sombra do casamento, durante alguns annos, e, como o vento que passa não guarda a palestra dos homens, não ha meio de escrever aqui o que então se disse da aventura. A aventura acabou; foi uma successão de horas doces e amargas, de delicias, de lagrimas, de coleras, de arroubos, drogas varias com que encheram a esta senhora a taça das paixões. D. Paula esgotou-a inteira e emborcou-a depois para não mais beber. A saciedade trouxe-lhe a abstinência, e com o tempo foi esta ultima phase que fez a opinião. Morreu-lhe o marido e foram vindo os annos. D. Paula era agora uma pessoa austera e pia, cheia de prestigio e consideração. A sobrinha é que lhe levou o pensamento ao passado. Foi a presença de uma situação analoga, de mistura com o nome e o sangue do mesmo homem, que lhe acordou algumas velhas lembranças. Não esqueçam que ellas estavam na Tijuca, que iam viver juntas algumas semanas, e que uma obedecia á outra; era tentar e desafiar a memória. — Mas nós devéras não voltamos á cidade tão cedo? perguntou Venancinha rindo no outro dia de manhã. — Já estás aborrecida? — Não, não, isso nunca, mas pergunto... D. Paula, rindo tambem, fez com o dedo um gesto negativo ; depois, perguntou-lhe se tinha saudades cá de baixo. Venancinha respondeu que nenhumas ; e para dar mais força á resposta, acompanhou-a de um descahir dos cantos da bocca, a modo de indifferença e desdem. Era pôr de mais na carta. D. Paula tinha o bom costume de não ler ás carreiras, como quem vai salvar o pae da forca, mas devagar, enfiando os olhos entre as syllabas e entre as lettras, para ver tudo, e achou que o gesto da sobrinha era excessivo. — Elles amam-se! pensou ella. A descoberta avivou o espirito do passado. D. Paula forcejou por sacudir fóra essas memórias importunas; ellas, porém, voltavam, ou de manso ou de assalto, como raparigas que eram, cantando, rindo, fazendo o diabo. D. Paula tornou aos seus bailes de outro tempo, ás suas eternas valsas, que faziam pasmar a toda a gente, ás mazurkas, que ella mettia á cara da sobrinha como sendo a mais graciosa cousa do mundo, e aos theatros, e ás cartas, e vagamente, aos beijos; mas tudo isso — e esta é a situação — tudo isso era como as frias chronicas, esqueleto da historia, sem a alma da historia. Passava-se tudo na cabeça. D. Paula tentava emparelhar o coração com o cerebro, a ver se sentia alguma cousa além da pura repetição mental, mas, por mais que evocasse as commoções extinctas, não lhe voltava nenhuma. Cousas truncadas! Se ella conseguisse espiar para dentro do coração da sobrinha, póde ser que achasse alli a sua imagem, e então... Desde que esta idéa penetrou no espirito de D. Paula, complicou-lhe um pouco a obra de reparação e cura. Era sincera, tratava da alma da outra, queria vel-a restituida ao marido. Na constância do peccado é que se póde desejar que outros pequem também, para descer de companhia ao purgatório; mas aqui o peccado já não existia. D. Paula mostrava á sobrinha a superioridade do marido, as suas virtudes e assim também as paixões, que podiam dar um máo desfecho ao casamento, peior que trágico, o repudio. Conrado, na primeira visita que lhes fez, nove dias depois, confirmou a advertência da tia; entrou frio e saiu frio. Venancinha ficou atterrada. Esperava que os nove dias de separação tivessem abrandado o marido, e, em verdade, assim era; mas elle mascarou-se, á entrada e conteve-se para não capitular. E isto foi mais salutar que tudo o mais. O terror de perder o marido foi o principal elemento de restauração. O proprio desterro não pôde tanto. Vai senão quando, dois dias depois daquella visita, estando ambas ao portão da chacara, prestes a sair para o passeio do costume, viram vir um cavalleiro. Venancinha fixou a vista, deu um pequeno grito, e correu a esconder-se atraz do muro. D. Paula comprehendeu e ficou. Quiz ver o cavalleiro de mais perto; viu-o d’alli a dois ou tres minutos, um galhardo rapaz, elegante, com as suas finas botas lustrosas, muito bem posto no sellim; tinha a mesma cara do outro Vasco, era o filho; o mesmo geito da cabeça, um pouco á direita, os mesmos hombros largos, os mesmos olhos redondos e profundos. N’essa mesma noite, Venancinha contou-lhe tudo, depois da primeira palavra que ella lhe arrancou. Tinham-se visto nas corridas, uma vez, logo que elle chegou da Europa. Quinze dias depois, foi-lhe apresentado em um baile, e pareceu-lhe tão bem, com um ar tão pariziense, que ella fallou d’elle, na manhã seguinte, ao marido. Conrado franziu o sobr’olho, e foi este gesto que lhe deu uma idéa que até então não tinha. Começou a vel-o com prazer; d’ahi a pouco com certa anciedade. Elle fallava-lhe respeitosamente, dizia-lhe cousas amigas, que ella era a mais bonita moça do Rio, e a mais elegante, que à em Pariz ouvira elogial-a muito, por algumas senhoras da familia Alvarenga. Tinha graça em criticar os outros, e sabia dizer também umas palavras sentidas, como ninguém. Não fallava de amor, mas perseguia-a com os olhos, e ella, por mais que afastasse os seus, não podia afastal-os de todo. Começou a pensar nelle, amiudadamente, com interesse, e quando se encontravam, batia-lhe muito o coração; pode ser que elle lhe visse então, no rosto, a impressão que fazia. D. Paula, inclinada para ella, ouvia essa narração, que ahi fica apenas resumida e coordenada. Tinha toda a vida nos olhos; a boca meio aberta, parecia beber as palavras da sobrinha, anciosamente, como um cordial. E pedia-lhe mais, que lhe contasse tudo, tudo. Venancinha creou confiança. O ar da tia era tão joven, a exhortação tão meiga e cheia de um perdão antecipado, que ella achou alli uma confidente e amiga. não obstante algumas phrases severas que lhe ouviu mescladas ás outras, por um motivo de inconsciente hypocrisia. Não digo calculo; D. Paula enganava-se a si mesma. Podemos comparal-a a um general invalido, que forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras campanhas. — Já vês que teu marido tinha razão, dizia ella; foste imprudente, muito imprudente... Venancinha achou que sim, mas jurou que estava tudo acabado. — Receio que não. Chegaste a amal-o devéras? — Titia... — Tu ainda gostas d’elle! — Juro que não. Não gosto; mas confesso... sim... confesso que gostei… Perdoe-me tudo; não diga nada a Conrado; estou arrependida... Repito que, a principio um pouco fascinada... Mas que quer a senhora? — Elle declarou-te alguma cousa? — Declarou; foi no theatro, uma noite, no theatro lyrico, á sahida. Tinha costume de ir buscar-me ao camarote e conduzir-me até o carro; e foi á sahida... duas palavras… D. Paula não perguntou, por pudor, as próprias palavras do namorado, mas imaginou as circumstancias, o corredor, os pares que saiam, as luzes, a multidão, o rumor das vozes, e teve o poder de representar, com o quadro, um pouco das sensações d’ella; e pediu-lh’as com interesse, astutamente. — Não sei o que senti, acudiu a moça cuja commoção crescente ia desatando a lingua; não me lembro dos primeiros cinco minutos. Creio que fiquei séria; em todo o caso, não lhe disse nada. Pareceu-me que toda gente olhava para nós, que teriam ouvido, e quando alguém me comprimentava sorrindo, dava-me idéa de estar caçoando. Desci as escadas não sei como, entrei no carro sem saber o que fazia; ao apertar-lhe a mão, afrouxei bem os dedos. Juro-lhe que não queria ter ouvido nada. Conrado disse-me que tinha somno, e encostou-se ao fundo do carro; foi melhor assim, porque eu não sei que diria, se tivéssemos de ir conversando. Encostei-me também, mas por pouco tempo; não podia estar na mesma posição. Olhava para fóra atravez dos vidros, e via só o clarão dos lampeões, de quando em quando, e afinal nem isso mesmo; via os corredores do theatro, as escadas, as pessoas todas, e elle ao pé de mim, cochichando as palavras, duas palavras só, e não posso dizer o que pensei em todo esse tempo; tinha as idéas baralhadas, confusas, uma revolução em mim... — Mas, em casa? — Em casa, despindo-me, é que pude reflectir um pouco, mas muito pouco. Dormi tarde, e mal. De manhã, tinha a cabeça aturdida. Não posso dizer que estava alegre nem triste; lembro-me que pensava muito n’elle, e para arredal-o prometti a mim mesma revelar tudo ao Conrado; mas o pensamento voltava outra vez. De quando em quando, parecia-me escutar a voz d’elle, e estremecia. Cheguei a lembrar-me que, á despedida, lhe dera os dedos frouxos, e sentia, não sei como diga, uma especie de arrependimento, um medo de o ter offendido... e depois vinha o desejo de o ver outra vez... Perdôe-me, titia; a senhora é que quer que lhe conte tudo. A resposta de D. Paula foi apertar-lhe muito a mão e fazer um gesto de cabeça. Afinal achava alguma cousa de outro tempo, ao contacto d’aquellas sensações ingenuamente narradas. Tinha os olhos, ora meio cerrados, na somnolencia da recordação, — ora aguçados de curiosidade e calor, e ouvia tudo, dia por dia, encontro por encontro, a propria scena do theatro, que a sobrinha a principio lhe occultara. E vinha tudo o mais, horas de ancia, de saudade, de medo, de esperança, desalentos, dissimulações, impetos, toda a agitação de uma creatura em taes circumstancias, nada dispensava a curiosidade insaciável da tia. Não era um livro, não era sequer um capitulo de adultério, mas um prologo, — interessante e violento. Venancinha acabou. A tia não lhe disse nada, deixou-se estar mettida em si mesma; depois acordou, pegou-lhe na mão e puxou-a. Não lhe fallou logo; fitou primeiro, e de perto, toda essa mocidade inquieta e palpitante, a boca fresca, os olhos ainda infinitos, e só voltou a si quando a sobrinha lhe pediu outra vez perdão. D. Paula disse-lhe tudo o que a ternura e a austeridade da mãe lhe poderia dizer; fallou-lhe de castidade, de amor ao marido, de respeito publico; foi tão eloquente que Venancinha não pôde conter-se, e chorou. Veiu o chá, mas não ha chá possivel depois de certas confidencias. Venancinha recolheu-se logo, e, como a luz era agora maior, saiu da sala com os olhos baixos, para que o criado lhe não visse a commoção. D. Paula ficou diante da mesa e do criado. Gastou vinte minutos, ou pouco menos, em beber uma chicara de chá e roer um biscouto, e apenas ficou só, foi encostar-se á janella, que dava para chacara. Ventava um pouco, as folhas moviam-se susurrando, e, comquanto não fossem as mesmas do outro tempo, ainda assim perguntavam-lhe: « Paula, você lembra-se do outro tempo? » Que esta é a particularidade das folhas, as gerações que passam contam ás que chegam as cousas que viram, e é assim que todas sabem tudo e perguntam por tudo. Você lembra-se do outro tempo? Lembrar, lembrava; mas aquella sensação de ha pouco, reflexo apenas, tinha agora cessado. Em vão repetia as palavras da sobrinha, farejando o ar agreste da noite: era só na cabeça que achava algum vestigio, reminiscencias, cousas truncadas. O coração empacára de novo; o sangue ia outra vez com a andadura do costume. Faltava-lhe o contacto moral da outra. E continuava, apezar de tudo, diante da noite, que era egual ás outras noites de então, e nada tinha que se parecesse com as do tempo da Stoltz e do marquez de Paraná; mas continuava, e lá dentro as pretas espalhavam o somno contando anecdotas, e diziam, uma ou outra vez, impacientes: — Sinhá velha hoje deita tarde como diabo! VIVER FIM dos tempos. Ahasverus, sentado em uma rocha, iîta longamente o horisonte, onde passam duas aguias, cruzando-se. Medita, depois sonha. Vai declinando o dia. Ahasverus. — Chego á clausula dos tempos; este é o limiar da eternidade. A terra está deserta nenhum outro homem respira o ar da vida. Sou o ultimo; posso morrer. Morrer! deliciosa idéa! Séculos de séculos vivi, cançado, mortificado, andando sempre, mas eil-os que acabam e vou morrer com elles. Velha natureza, adeus! Céu azul, nuvens renascentes, rosas de um dia e de todos os dias, aguas perennes, terra inimiga, que me não comeste os ossos, adeus! O errante não errará mais. Deus me perdoará, se quizer, mas a morte consola-me. Aquella montanha é aspera como a minha dôr; aquellas aguias, que alli passam, devem ser famintas como o meu desespero. Morrereis também, aguias divinas? Prometheo . — Certo que os homens acabaram; a terra está núa d’elles. Ahasverus . — Ouço ainda uma voz… Voz de homem? Céus implacáveis, não sou então o ultimo? Eil-o que se approxima... Quem és tú? Ha em teus grandes olhos alguma cousa parecida com a luz mysteriosa dos archanjos de Israel; não és homem... Prometheo. — Não. Ahasverus . — Raça divina? Prometheo. — Tu o disseste. Ahasverus. — Não te conheço; mas que importa que te não conheça? Não és homem; posso então morrer; poisson o ultimo, e fecho a porta da vida. Prometheo . — A vida, como a antiga Thebas, tem cem portas. Fechas uma, outras se abrirão. E’s o ultimo da tua especie? Virá outra especie melhor, não feita do mesmo barro, mas da mesma luz. Sim, homem derradeiro, toda a plebe dos espíritos perecerá para sempre; a flôr d’elles é que voltará á terra para reger as cousas. Os tempos serão rectificados. O mal acabará ; os ventos não espalharão mais, nem os germens da morte, nem o clamor dos opprimidos, mas tão sómente a cantiga do amor perenne e a benção da universal justiça... Ahasverus .— Que importa á especie que vai morrer commigo toda essa delicia posthuma? Crê-me, tu que és immortal, para os ossos que apodrecem na terra as purpuras de Sidonia não valem nada. O que tu me contas é ainda melhor que o sonho de Campanella. Na cidade d’este havia delictos e enfermidades; a tua exclue todas as lesões moraes e physicas. O Senhor te ouça! Mas deixa-me ir morrer. Prometheo. — Vai, vai. Que pressa tens em acabar os teus dias? Ahasverus . — A pressa de um homem que tem vivido milhares de annos. Sim, milheiros de annos. Homens que apenas respiraram por dezenas d’elles, inventaram um sentimento de enfado, tedium vitae, que elles nunca puderam conhecer, ao menos em toda a sua implacável e vasta realidade, porque é preciso haver calcado, como eu, todas as gerações e todas as minas, para experimentar esse profundo fastio da existência. Prometheo. — Milheiros de annos? Ahasverus . — Meu nome é Ahasvérus e vivia em Jérusalem, ao tempo em que iam crucificar Jesus-Christo. Quando elle passou pela minha porta, afrouxou ao peso do madeiro que levava aos hombros, e eu empurrei-o, bradando-lhe que não parasse, que não descançasse, que fosse andando até á collina, onde tinha de ser crucificado… Então uma voz annunciou-me do céu que eu andaria sempre, continuamente, até o fim dos tempos. Tal é a minha culpa; não tive piedade para com aquelle que ia morrer. Não sei mesmo como isto foi. Os phariseus diziam que o filho de Maria vinha destruir a lei, e que era preciso matal-o; eu, pobre ignorante, quiz realçar o meu zelo e d’ahi a acção d’aquelle dia. Que de vezes vi isto mesmo, depois, atravessando os tempos e as cidades! Onde quer que o zelo penetrou n’uma alma subalterna, fez-se cruel ou ridículo. Foi a minha culpa irremissível. Prometheo . — Grave culpa, em verdade, mas a pena foi benevola. Os outros homens leram da vida um capitulo, tu leste o livro inteiro. Que sabe um capitulo de outro capitulo? Nada; mas o que os leu a todos, liga-os e conclue. Ha paginas melancólicas? Ha outras joviaes e felizes. A convulsão tragica precede a do riso, a vida brota da morte, cegonhas e andorinhas trocam de clima, sem jamais abandonal-o inteiramente; é assim que tudo se concerta e restitue. Tu viste isso, nâo dez vezes, não mil vezes, mas todas as vezes; viste a magnificência da terra curando a afflicção da alma, e a alegria da alma supprindo á desolação das cousas; dansa alternada da natureza, que dá a mão esquerda a Job e a direita a Sardanapalo. Ahasverus. — Que sabes tu da minha vida? Nada; ignoras a vida humana. Prometheo .— Ignoro a vida humana? Deixa-me rir! Eia, homem perpetuo, explica-te. Conta-me tudo; saiste de Jerusalem... Ahasverus. — Sai de Jerusalem. Comecei a peregrinação dos tempos. Ia a toda a parte, qualquer que fosse a raça, o culto ou a lingua; soes e neves, povos barbaros e cultos, ilhas, continentes, onde quer que respirasse um homem, ahi respirei eu. Nunca mais trabalhei. Trabalho é refugio, e não tive esse refugio. Cada manhã achava commigo a moeda do dia… Vêde; cá está a ultima. Ide, que já não sois precisa (atira a moeda ao longe). Não trabalhava, andava apenas, sempre, sempre, sempre, um dia e outro dia, um anno e outro anno, e todos os annos, e todos os séculos. A eterna justiça soube o que fez: sommou a eternidade com a ociosidade. As gerações legavam-me umas ás outras. As linguas que morriam ficavam com o meu nome embutido na ossada. Com o volver dos tempos, esquecia-se tudo; os heróes dissipavam-se em mythos, na penumbra, ao longe; e a historia ia cahindo aos pedaços, não lhe ficando mais que duas ou tres feições vagas e remotas. E eu via-as de um modo e de outro modo. Fallaste em capitulo? Felizes os que só leram a vida em um capitulo. Os que se foram, á nascença dos impérios, levaram a impressão da perpetuidade d’elles; os que expiraram quando elles decahiam, enterraram-se com a esperança da recomposição mas sabes tu o que é ver as mesmas cousas, sem parar, a mesma alternativa de prosperidade e desolação, desolação e prosperidade, eternas exequias e eternas alleluias, auroras sobre auroras, occasos sobre occasos? Prometheo .— Mas não padeceste, creio; é alguma cousa não padecer nada. Ahasverus .— Sim, mas vi padecer os outros homens, e, para o fim o espectáculo da alegria dava-me a mesma sensação que os discursos de um doudo. Fatalidades do sangue e da carne, conflictos sem fim, tudo vi passar a meus olhos, a ponto que a noite me fez perder o gosto ao dia, e acabo não distinguindo as flores das urzes. Tudo se me confunde na retina enfarada. Prometheo .— Pessoalmente não te doeu nada; e eu que padeci por tempos innumeros o effeito da cólera divina? Ahasverus .— Tu? Prometheus. — Prometheus é o meu nome. Ahasverus.— Tu Prometheo? Prometheo. — E qual foi o meu crime? Fiz de lodo e agua os primeiros homens, e depois, compadecido, roubei para elles o fogo do céu. Tal foi o meu crime. Jupiter, que então regia o Olympo, condemnou-me ao mais cruel supplicio. Anda, sobe commigo a este rochedo. Ahasverus .— Contas-me uma fabula. Conheço esse sonho hellenico. Prometheo. — Velho incrédulo! Anda ver as proprias correntes que me agrilhoaram; foi uma pena excessiva para nenhuma culpa; mas a divindade orgulhosa e terrivel… Chegamos, olha, aqui estão ellas... Ahasverus .— O tempo que tudo roe não as quiz então? Prometheo .— Eram de mão divina; fabricou-as Vulcano. Dois emissários do céu vieram atar-me ao rochedo, e uma aguia, como aquella que lá corta o horisonte, comia-me o figado, sem consumil-o nunca. Durou isto tempos que não contei. Não, não podes imaginar este supplicio… Ahasverus .— Não me illudes? Tu Prometheo? Não foi então um sonho da imaginação antiga? Prometheo .— Olha bem para mim, palpa estas mãos. Vê se existo. Ahasverus .— Moysés mentiu-me. Tu Prometheo, creador dos primeiros homens? Prometheo .— Foi o meu crime. Ahasverus.— Sim, foi o teu crime, artifice do inferno; foi o teu crime inexpiavel. Aqui devias ter ficado por todos os tempos, agrilhoado e devorado, tu, origem dos males que me affligiram. Careci de piedade, é certo; mas tu, que me trouxeste á existência, divindade perversa, foste a causa original de tudo. Prometheo .—A morte próxima obscurece-te a razão. Ahasverus .— Sim, és tu mesmo, tens a fronte olympica, forte e bello titão: és tu mesmo... São estas as cadeias? Não vejo o signal das tuas lagrimas. Prometheo. — Chorei-as pela tua raça. Ahasverus . — Ella chorou muito mais por tua culpa. Prometheo .— Ouve, ultimo homem, ultimo ingrato! Ahasverus .— Para que quero eu palavras tuas? Quero os teus gemidos, divindade perversa. Aqui estão as cadeias. Vê como as levanto nas mãos; ouve o tinir dos ferros... Quem te desagrilhoou outr’ora? Prometheo. — Hercules. Ahasverus . — Hercules... Vê se elle te presta egual serviço, agora que vaes ser novamente agrilhoado. Prometheo. — Deliras. Ahasverus .— O céu deu-te o primeiro castigo; agora a terra vai dar-te o segundo e derradeiro. Nem Hercules poderá mais romper estes ferros. Olha como os agito no ar, á maneira de plumas; é que eu represento a força dos desesperos millenarios. Toda a humanidade está em mim. Antes de cair no abysmo, escreverei n’esta pedra o epitaphio de um mundo. Chamarei a aguia, e ella virá; dir-lhe-hei que o derradeiro homem, ao partir da vida, deixa-lhe um regalo de deuses. Prometheo .— Pobre ignorante, que rejeitas um throno! Não, não podes mesmo rejeital-o. Ahasverus .— E’s tu agora que deliras. Eia, prostra-te, deixa-me ligar-te os braços. Assim, bem, não resistirás mais; arqueja para ahi. Agora as pernas... Prometheo . — Acaba, acaba. São as paixões da terra que se voltam contra mim; mas eu, que não sou homem,não conheço a ingratidão. Não arrancarás uma lettra ao teu destino, elle se cumprirá inteiro. Tu mesmo serás o novo Hercules. Eu, que annunciei a gloria do outro, annuncio a tua; e não serás menos generoso que elle. Ahasverus . — Deliras tu? Prometheo .— A verdade ignota aos homens é o delirio de quem a annuncia. Anda, acaba. Ahasverus . — A glória não paga nada, e extingue-se. Prometheo. — Esta não se extinguirá. Acaba, acaba; ensina ao bico adunco da aguia como me ha de devorar a entranha; mas escuta... Não, não escutes nada; não pódes entender-me. Ahasverus . — Falla, falla. Prometheo .— O mundo passageiro não póde entender o mundo eterno; mas tu serás o élo entre ambos. Ahasverus. — Dize tudo. Prometheo .— Não digo nada; anda, aperta bem estes pulsos, para que eu não fuja, para que me aches aqui á tua volta. Que te diga tudo? Já te disse que uma raça nova povoará a terra, feita dos melhores espíritos da raça extincta; a multidão dos outros perecerá. Nobre familia, lúcida e poderosa, será a perfeita communhão do divino com o humano. Outros serão os tempos, mas entre elles e estes um élo é preciso, e esse élo és tu. Ahasverus .— Eu? Prometheo .— Tu mesmo, tu, eleito, tu, rei. Sim, Ahasvérus, tu serás rei. O errante pousará. O desprezado dos homens governará os homens. Ahasverus . — Titão artificioso, illudes-me... Rei, eu? Prometheo .— Tu rei. Que outro seria? O mundo novo precisa de uma tradição do mundo velho, e ninguem pôde fallar de um a outro como tu. Assim não haverá interrupção entre as duas humanidades. O perfeito procederá do imperfeito, e a tua bocca dir-lhe-ha as suas origens. Contarás aos novos homens todo o bem e todo o mal antigo. Reviverás assim como a arvore a que cortaram as folhas seccas, e conserva tão sómente as viçosas; mas aqui o viço é eterno. Ahasverus .— Visão luminosa! Eu mesmo? Prometheo .— Tu mesmo. Ahasverus .— Estes olhos.... estas mãos… vida nova e melhor... Visão excelsa! Titão, é justo. Justa foi a pena; mas egualmente justa é a remissão gloriosa do meu peccado. Viverei eu? eu mesmo? Vida nova e melhor? Não, tu mofas de mim. Prometheo . — Bem, deixa-me, voltarás um dia, quando este immenso céu fôr aberto para que desçam os espiritos da vida nova. Aqui me acharás tranquillo. Vai. Ahasverus.— Saudarei outra vez o sol? Prometheo .— Esse mesmo que ora vai a cair. Sol amigo, olho dos tempos, nunca mais se fechará a tua palpebra. Fita-o, se pódes. Ahasverus .— Não posso. Prometheo.— Podel-o-has depois quando as condições da vida houverem mudado. Então a tua retina fitará o sol sem perigo, porque no homem futuro ficará concentrado tudo o que ha melhor na natureza, energico ou subtil, scintillante ou puro. Ahasverus .— Jura que me não mentes. Prometheo. — Verás se minto. Ahasverus.— Falla, falla mais, conta-me tudo. Prometheo . — A descripção da vida não vale a sensação da vida; tel-a-has prodigiosa. O seio de Abrahão das tuas velhas Escripturas não é senão esse mundo ulterior e perfeito. Lá verás David e os prophetas. Lá contarás á gente estupefacta, não só as grandes acções do mundo extincto, como também os males que ella não ha de conhecer, lesão ou velhice, dólo, egoísmo, hypocrisia, a aborrecida vaidade, a inopinavel toleima e o resto. A alma terá, como a terra, uma tunica incorruptível. Ahasverus .— Verei ainda este immenso céu azul! Prometheo. — Olha como é bello. Ahasverus .— Bello e sereno como a eterna justiça. Céu magnifico, melhor que as tendas de Cedar, ver-te-hei ainda e sempre; tu recolherás os meus pensamentos, como outr’ora; tu me darás os dias claros e as noites amigas... Prometheo. — Auroras sobre auroras. Ahasverus .— Eia, falia, falia mais. Conta-me tudo. Deixa-me desatar-te estas cadeias... Prometheo .— Desata-as, Hercules novo, homem derradeiro de um. mundo, que vás ser o primeiro de outro. E’ o teu destino; nem tu nem eu, ninguém poderá mudal-o. E’s mais ainda que o teu Moysés. Do alto do Nebo, viu elle, prestes a morrer, toda a terra de Jerichó, que ia pertencer á sua posteridade; e o Senhor lhe disse: « Tu viste com teus olhos, e não passarás a ella.» Tu passarás a ella, Ahasvérus; tu habitarás Jerichó. Ahasverus .— Põe a mão sobre a minha cabeça, olha bem para mim; incute-me a tua realidade e a tua predição; deixa-me sentir um pouco da vida nova e plena… Rei disseste? Prometheo .— Rei eleito de uma raça eleita. Ahasverus .— Não é demais para resgatar o profundo desprezo em que vivi. Onde uma vida cuspiu lama, outra vida porá uma auréola. Anda, falla mais... falia mais… (Continúa sonhando. A duas aguias o approximam-se). Uma aguia . — Ai, ai, ai d’este ultimo homem, está morrendo e ainda sonha com a vida. A outra .— Nem elle a odiou tanto, senão porque a amava muito. O CONEGO OU METAPHYSICA DO ESTYLO VEM do Libano, esposa minha, vem do Libano, vem... As mandragoras deram o seu cheiro. Temos ás nossas portas toda a casta de pombos... — «Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado, lhe façaes saber que estou enferma de amor...» Era assim, com essa melodia do velho drama de Judá, que procuravam um ao outro na cabeça do conego Mathias um substantivo e um adjectivo... Não me interrompas, leitor precipitado; sei que não acreditas em nada do que vou dizer. Dil-o-hei, comtudo, a despeito da tu a pouca fé, porque o dia da conversão publica ha de chegar. N’esse dia, — cuido que por volta de 2222, — o paradoxo despirá as azas para vestir a japona de uma verdade commum. Então esta pagina merecerá, mais que favor, apotheose. Hão de traduzil-a em todas as linguas. As academias e institutos farão d’ella um pequeno livro, para uso dos séculos, papel de bronze, córte-dourado, letras de opala embutidas, e capa de prata fosca. Os governos decretarão que ella seja ensinada nos gymnasios e lyceus. As philosophias queimarão todas as doutrinas anteriores, ainda as mais definitivas, e abraçarão esta psychologia nova, unica, verdadeira, e tudo estará acabado. Até lá passarei por tonto, como se vai ver. Mathias, conego honorário e pregador effectivo, estava compondo um sermão quando começou o idyllio psychico. Tem quarenta annos de idade, e vive entre livros e livros, para os lados da Gamboa. Vieram encommendar-lhe o sermão para certa festa próxima; elle que se regalava então com uma grande obra espiritual, chegada no ultimo paquete, recusou o encargo; mas instaram tanto, que aceitou. — Vossa Reverendissima faz isto brincando, disse o principal dos festeiros. Mathias sorriu manso e discreto, como devem sorrir os ecclesiasticos e os diplomatas. Os festeiros despediram-se com grandes gestos de veneração, e foram annunciar a festa nos jornaes, com a declaração de que pregava ao Evangelho o conego Mathias «um dos ornamentos do clero brazileiro». Este «ornamento do clero» tirou ao conego a vontade de almoçar, quando elle o leu agora de manhã; e só por estar ajustado, é que se metteu a escrever o sermão. Começou de má vontade, mas no fim de alguns minutos já trabalhava com amor. A inspiração, com os olhos no céu, e a meditação, com os olhos no chão, ficam a um e outro lado do espaldar da cadeira, dizendo ao ouvido do conego mil cousas mysticas e graves. Mathias vai escrevendo, ora devagar, ora depressa. As tiras saem-lhe das mãos, animadas e polidas. Algumas trazem poucas emendas ou nenhumas. De repente, indo escrever um adjectivo, suspende-se; escreve outro e risca-o; mais outro, que não tem melhor fortuna. Aqui é o centro do idyllio. Subamos á cabeça do conego. Upa! Cá estamos. Custou-te, não, leitor amigo? E’ para que não acredites nas pessoas que vão ao Corcovado, e dizem que alli a impressão da altura é tal, que o homem fica sendo cousa nenhuma. Opinião panica e falsa, falsa como Judas e outros diamantes. Não creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem Hymalayas valem muita cousa ao pé da tua cabeça, que os mede. Cá estamos. Olha bem que é a cabeça do conego. Temos á escolha um ou outro dos hemispherios cerebraes; mas vamos por este, que é onde nascem os substantivos. Os adjectivos nascem no da esquerda. Descoberta minha, que, ainda assim, não é a principal, mas a base d’ella, como se vai ver. Sim, meu senhor, os adjectivos nascem de um lado, e os substantivos de outro, e toda a sorte de vocábulos está assim dividida por motivo da differença sexual... — Sexual? Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm sexo. Estou acabando a minha grande memória psycho-léxico-lógica, em que exponho e demonstro esta descoberta. Palavra tem sexo. — Mas, então, amam-se umas ás outras? Amam-se umas ás outras. E casam-se. O casamento d’ellas é o que chamamos estylo. Senhora minha, confesse que não entendeu nada. — Confesso que não. Pois entre aqui também na cabeça do conego. Estão justamente a suspirar d’este lado. Sabe quem é que suspira? é o substantivo de ha pouco, o tal que o conego escreveu no papel, quando suspendeu a penna. Chama por certo adjectivo, que lhe não apparece: «Vem do Libano, vem... E falla assim pois está em cabeça de padre; se fosse de qualquer pessoa do século, a linguagem seria a de Romeu: «Julieta é o sol... ergue-te, lindo sol.» Mas em cerebro ecclesiastico, a linguagem é a das Escripturas. Ao cabo, que importam formulas? Namorados de Verona ou de Judá fallam todos o mesmo idioma, como acontece com o thaler ou o dollar, o florim ou a libra, que é tudo o mesmo dinheiro. Portanto, vamos lá por essas circumvoluções do cerebro ecclesiastico, atraz do substantivo que procura o adjectivo. Sylvio chama por Sylvia. Escutai; ao longe parece que suspira também alguma pessoa; é Sylvia que chama por Sylvio. Ouvem-se agora e procuram-se. Caminho difficil e intrincado que é este de um cerebro tão cheio de cousas velhas e novas! Ha aqui um borborinho de ideas, que mal deixa ouvir os chamados de ambos; não percamos de vista o ardente Sylvio, que lá vai, que desce e sóbe, escorrega e salta; aqui, para não cair, agarra-se a umas raizes latinas, alli abordoa-se a um psalmo, acolá monta n’um pentametro, e vai sempre andando, levado de uma força intima, a que não póde resistir. De quando em quando, apparece-lhe alguma dama,— adjectivo também—e offerece-lhe as suas graças antigas ou novas; mas, por Deus, não é a mesma, não é a unica, a destinada ab eterno para este consorcio. E Sylvio vai andando, á procura da unica. Passai, olhos de toda côr, fôrmas de toda casta, cabellos cortados á cabeça do Sol ou da Noite; morrei sem éco, meigas cantilenas suspiradas no eterno violino; Sylvio não pede um amor qualquer, adventício ou anonymo; pede um certo amor nomeado e predestinado. Agora não te assustes, leitor, não é nada; é o conego que se levanta, vai á janella, e encosta-se a espairecer do esforço. Lá olha, lá esquece o sermão e o resto. O papagaio em cima do poleiro, ao pé da janella, repete-lhe as palavras do costume; e, no terreiro, o pavão enfuna-se todo ao sol da manhã; o proprio sol, reconhecendo o conego, manda-lhe um dos seus fieis raios, a cumprimental-o. E o raio vem, e pára diante da janella: « Conego illustre, aqui venho trazer os recados do sol, meu senhor e pae.» Toda a natureza parece assim bater palmas ao regresso d’aquelle galé do espirito. Elle proprio alegra-se, entorna os olhos por esse ar puro, deixa-os ir fartarem-se de verdura e fresquidão, ao som de um passarinho ede um piano; depois falla ao papagaio, chama o jardineiro, assoa-se, esfrega as mãos, encosta-se. Não lhe lembra mais nem Sylvio nem Sylvia. Mas Sylvio e Sylvia é que se lembram de si. Emquanto o conego cuida em cousas extranhas, elles proseguem em busca um do outro, sem que elle saiba nem suspeite nada. Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência, onde se faz a elaboração confusa das idéas, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pullula a vida sem fôrmas, os germens e os detrictos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão immenso do espirito. Aqui cahiram elles, á procura um do outro, chamando e suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o leitor a mim, e escorreguemos também. Vasto mundo incognito. Sylvio e Sylvia rompem por entre embryões e ruinas. Grupos de idéas, deduzindo-se á maneira de syllogismes, perdem-se no tumulto de reminiscências da infancia e do seminário. Outras idéas, gravidas de idéas, arrastam-se pesadamente, amparadas por outras idéas virgens. Cousas e homens amalgamam-se; Platão traz os oculos de um escrivão da camara ecclesiastica; mandarins de todas as classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros inglezes e rosas pallidas; tão pallidas, que não parecem as mesmas que a mãe do conego plantou quando elle era criança. Memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se. Cá estão as vozes remotas da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que elle ouvia cantar ás pretas, em casa; farrapos de sensações esvaídas, aqui um medo, alli um gosto, acolá um fastio de cousas que vieram cada uma por sua vez, e que ora jazem na grande unidade impalpavel e obscura. - Vem do Libano, esposa minha... - Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém... Ouvem-se cada vez mais perto. Eis ahi chegam elles ás profundas camadas de theologia, de philosophia, de lithurgia, de geographia e de historia, lições antigas, noções modernas, tudo á mistura, dogma e syntaxe. Aqui passou a mão pantheista de Spinoza, ás escondidas; alli ficou a cunhada do Doutor Angélico; mas nada d’isso é Sylvio nem Sylvia. E elles vão rasgando, levados de uma força intima, affinidade secreta, através de todos os obstáculos e por cima de todos os abysmos. Também os desgostos hão de vir. Pezares sombrios, que não ficaram no coração do conego, cá estão, á laia de manchas moraes, e ao pé d’elles o reflexo amarello ou roxo, ou o que quer que seja da dôr alheia e universal. Tudo isso vão elles cortando, com a rapidez do amor e do desejo. Cambaleias, leitor? Não é o mundo que desaba; é o conego que se sentou agora mesmo. Espaireceu á vontade, tornou á mesa do trabalho, e relê o que escreveu, para continuar; péga da penna, molha-a desce-a ao papel, a ver que adjectivo ha de annexar ao substantivo. Justamente agora é que os dous cubiçosos estão mais perto um do outro. As vozes crescem, o enthusiasmo cresce, todo o Cântico passa pelos lábios d’elles, tocados de febre. Phrases alegres, anecdotas de sacristia, caricaturas, facecias, disparates, aspectos esturdios, nada os retem, menos ainda os faz sorrir. Vão, vão, o espaço estreita-se. Ficai ahi, perfis meio-apagados de paspalhões que fizeram rir ao conego, e que elle inteiramente esqueceu; ficai, rusgas extinctas, velhas charadas, regras de voltarete, e vós também, cellulas de idéas novas, debuxos de concepções, pó que tens de ser pyramide, ficai, abalroai, esperai, desesperai, que elles não têm nada comvosco. Amam-se e procuram-se. Procuram-se e acham-se. Emfim, Sylvio achou Sylvia. Viram-se, cairam nos braços um do outro, offegantes de canceira, mas remidos com a paga. Unem-se, entrelaçam os braços, e regressam palpitando da inconsciência para a consciência. « Quem é esta que sóbe do deserto, firmada sobre o seu amado? » pergunta Sylvio, como no Cântico; e ella, com a mesma labia erudita, responde-lhe que « é o sello do seu coração », e que « o amor é tão valente como a propria morte ». N’isto, o conego estremece. O rosto illumina-se-lhe. A penna, cheia de commoção e respeito, completa o substantivo com o adjectivo. Sylvia caminhará agora ao pé de Sylvio, no sermão que o conego vai pregar um dia d’estes, e irão juntinhos ao prelo, se elle colligir os seus escriptos, o que não se sabe.