História Literária

Os romances, livros de contos, poemas e peças teatrais publicados por Machado de Assis ao longo de quase meio século participaram da consolidação desses gêneros literários no Brasil e constituem um capítulo decisivo para a definição da atividade literária no país.

A Machadiana da BBM guarda todas as primeiras edições dos romances, assim como dos livros de contos, poemas e peças teatrais publicados por Machado de Assis entre 1861, ano da peça Desencantos, e 1908, quando saiu seu último livro, o Memorial de Aires.

Nos 25 títulos que publicou em vida, trazendo o nome literário “Machado de Assis” estampado na capa, levou o romance brasileiro a outro patamar, contribuiu para definir o conto moderno, encantou leitores com seus poemas, peças e crônicas, e construiu uma galeria de personagens inesquecíveis.

Corina, Helena, Brás Cubas, Eugênia, Virgília, Dona Plácida, Quincas Borba, Rubião, Sofia, o conselheiro Aires, Flora e, claro, Capitu. Algumas dessas personagens saíram dos livros e ganharam vida própria, em músicas, telenovelas, filmes e peças teatrais.

Sobre os textos contidos nesse conjunto de livros, foram produzidos milhares de artigos e centenas de livros, constituindo a fortuna crítica mais longeva e das mais complexas da história da literatura brasileira.

A construção do nome

A trajetória bem-sucedida de Machado de Assis como autor pode ser evidenciada pela posição de seu nome nas folhas de rosto dos exemplares. Nas primeiras produções, o título do livro frequentemente aparece antes do nome do escritor, como é possível observar nas imagens de Ressurreição (1872) e Americanas (1875). Em produções posteriores, percebe-se o deslocamento do nome do autor para a parte superior da folha de rosto – o primeiro ponto de contato visual do leitor com a página. O acréscimo, a partir de 1897, da indicação de pertença à “Academia Brasileira” marca a ascensão do prestígio do escritor, como se vê nos exemplares de Poesias completas (1901) e Memorial de Aires (1908). Tanto esse movimento de elevação do nome quanto a indicação de sua filiação institucional podem ser interpretados como indícios gráficos da crescente consagração do escritor.

A sombra do defunto-autor

O romance Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado aos pedaços durante 1880 e compilado em livro em 1881, é um exemplo da distinção emergente entre o escritor e o autor ficcional. Este ganha importância crescente na ficção de Machado de Assis, especialmente a partir desse romance. O “defunto autor” Brás Cubas chama a atenção não apenas por apresentar suas memórias de forma absolutamente original, desde o além-túmulo, mas também por se destacar visualmente na folha de rosto da edição e na lombada do livro, como se vê na imagem abaixo.

É notável a diferença do tamanho e do destaque dados ao nome do personagem-narrador-autor ficcional em detrimento do nome do autor Machado de Assis. Esse deslocamento se confirma nas páginas iniciais do romance, em que Brás Cubas assina o prólogo “Ao leitor” e assume as rédeas da ficção, com a chancela do seu criador.

A Machadiana da BBM apresenta em seus exemplares de Memórias póstumas de Brás Cubas encadernações que também ressaltam essa valorização do autor ficcional. As lombadas variam quanto ao título apresentado. Em uma aparece “Memórias de Brás Cubas” [Exemplar 2], em outra se lê apenas “Brás Cubas” [Exemplar 1]; mas ambas as encadernações dão destaque tanto a Brás Cubas como a Machado de Assis.

Livros e leituras do tempo

Os exemplares das primeiras edições frequentemente têm um espaço dedicado a apresentar outras obras do autor e alguns incluem a listagem de publicações comercializadas pela mesma editora ou livraria. 

Quase ministro (1864) e Ressurreição (1872) apresentam essas listas nas primeiras páginas, com os preços das obras, e Americanas (1875) traz listas tanto nas primeiras páginas como ao final. Os exemplares de Poesias completas (1901) e Memorial de Aires (1908) trazem o catálogo completo da livraria H. Garnier nas últimas folhas.

 

Helena (1876), Memórias póstumas de Brás Cubas (tanto na edição de 1881, como na edição de 1896), Papéis avulsos (1882) e Histórias sem data (1884) são acompanhadas da relação de obras do mesmo autor.

A presença desses elementos possibilita recompor o ambiente editorial e literário de que esses livros participavam. Permite também compreender com que autores e livros Machado de Assis disputava leitores. A precificação dos livros possibilita observar o valor comercial dos diferentes títulos oferecidos ao leitor brasileiro da época. E a organização dos catálogos em categorias distintas nos conta sobre a classificação dos livros no período.

Em relação aos exemplares que apresentam a lista das obras do mesmo autor, destacam-se a amplitude e a variedade dos títulos publicados por Machado de Assis até chegar às suas obras mais conhecidas, que o consagraram.

Galeria de personagens

Com a grande difusão do gênero romance durante o século XIX, surgiram também os livros cujos títulos coincidiam com os nomes de seus personagens principais. Na obra machadiana, isso ocorreu frequentemente. Dos nove romances publicados, sete trazem no título nomes de personagens: Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). Isso indica o investimento dos seus romances na construção de personagens, ou de caracteres, como o romancista costuma se referir às suas criaturas.

Grandes figuras para além da obra

Machado de Assis criou personagens que se tornaram célebres no cenário literário nacional. A mulher segura e controladora das situações, figurada por Virgília, Sofia e Capitu; os homens ciumentos como Félix, Estácio e Bento Santiago; os parasitas e agregados, como Viana e José Dias; e também os lunáticos, como Quincas Borba e Simão Bacamarte – todos eles saíram das páginas dos livros e se tornaram referências críticas importantes da cultura e da sociedade brasileiras.

Um escritor, vários gêneros

A Machadiana da BBM mostra a variedade de gêneros literários praticados por Machado de Assis, que se destacou no teatro, na poesia, na crítica, no conto, no romance e na crônica.

Esses gêneros, em suas feições modernas, estavam se firmando no século XIX, e Machado contribuiu para sua consolidação no Brasil. Assim, vale observar que Ressurreição (1872) traz na folha de rosto a indicação “romance”, e o título Os deuses de casaca (1866) vem acompanhado da palavra “comédia”.

Contos fluminenses (1870) é provavelmente o primeiro livro brasileiro a trazer na capa a palavra “contos” para se referir a narrativas curtas, muitas vezes classificadas no século XIX como “lendas”, “romances” e “novelas”.  Por outro lado, as folhas de rosto de Histórias da meia-noite (1873) e Poesias completas, 1ª ed. (1901) e 2ª ed. (1902) apresentam a relação dos contos e dos livros de poemas que compõem cada volume.

Ao redor do texto

As primeiras edições das obras de Machado de Assis frequentemente são acompanhadas de prólogos e advertências, nas quais o escritor estabelece diretrizes para a composição do livro e por vezes indica os rumos que pretende imprimir à sua carreira literária. 

Muitos desses textos iniciais são mantidos pelo escritor em outras edições publicadas em vida, mas nem sempre. A advertência de Americanas (1875), por exemplo, é retirada quando o livro passa a compor as Poesias completas (1901)

Por outro lado, muitas edições modernas suprimem esses paratextos, privando o leitor de informações importantes sobre o livro. Na Machadiana da BBM, todos esses textos podem ser recuperados na forma como foram escritos por Machado de Assis e publicados sob sua supervisão.

Reverberações da obra

A Machadiana da BBM compreende as primeiras versões do legado de Machado de Assis, que reverbera de inúmeras formas ao longo do tempo e em diversos países, gerando uma vasta e heterogênea fortuna crítica.

 Para conhecer as diversas leituras suscitadas pela obra ao longo do tempo, as referências fundamentais são Fontes para o estudo de Machado de Assis (1958) de José Galante de Sousa, a Bibliographie descriptive, analytique et critique de Machado de Assis (1957-1958), de Jean-Michel Massa, e a Bibliografia Machadiana (1959-2003) de Ubiratan Machado, publicada em 2005.

Juntos, esses três livros trazem referências de mais de 5.000 textos publicados sobre Machado de Assis e sua obra, um número que continua a crescer, com contribuições de estudiosos do Brasil e de várias partes do mundo.

Em outros tempos e lugares

Assim como ocorre com a fortuna crítica machadiana, as contínuas traduções também são indicativas do alcance e prestígio adquiridos pela obra. Dois romances foram publicados em espanhol ainda em vida do autor, Memorias Póstumas de Blas Cubas (1902) e Esaú y Jacob (1905), em Montevidéu e Buenos Aires, respectivamente. A BBM conserva exemplares dessas duas traduções.

Uma constelação de epígrafes

As epígrafes configuram uma dimensão importante das obras literárias, já que são uma indicação do autor acerca de suas referências e dos diálogos que quer estabelecer com a produção cultural de seu tempo, assim como de muitos outros tempos e lugares. Nos escritos de Machado de Assis, as epígrafes indicam um impressionante repertório de leituras. Há desde textos da Antiguidade Clássica a fragmentos de contemporâneos do autor, originários de várias tradições literárias (francês, inglês, alemão, italiano, espanhol) e muitas áreas do conhecimento. Esses pequenos textos indicam o gosto e os interesses do escritor. Tanto sua publicação como, em alguns casos, sua retirada em edições posteriores, sugerem o que o autor quer oferecer como possíveis chaves de leitura, e o que quer ocultar dos seus leitores. Na primeira publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas em folhetim, de março a dezembro de 1880 na Revista Brasileira, Machado insere como epígrafe um extrato de As you like it, de Shakespeare; e quando da publicação em livro, em 1881, tal epígrafe foi retirada.